Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

Livro traz reflexões e memórias de um dos maiores nomes do jor­nal­is­mo cul­tur­al brasileiro e sua relação com qua­tro escritores universais

Foto: Damião A. Francisco

Foto: Damião A. Francisco

Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

Foto: Grupo Estadão

Foto: Grupo Estadão

No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

Foto: Pânico Band - Podcast

Foto: Pâni­co Band — Podcast

Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

Foto: Pânico Band - Podcast

Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

Foto: Daniel Deak

Foto: Daniel Deak

No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.


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