Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardiente paciencia’ escrito pelo chileno Antonio Skármeta em 1985, e adaptado para o cinema em 1994. Mas muitos lembrarão o personagem Mario Ruppolo, o carteiro que queria aprender a escrever poemas com Pablo Neruda, a quem entregava cartas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políticas. Quando Neruda vai embora, Mario se casa e passa a ter uma profunda consciência social. Com saudades do poeta, grava os sons do mar e a batida do coração do filho no ventre da esposa grávida e os envia ao célebre interlocutor.
Em várias entrevistas, Skármeta conta um episódio saboroso sobre o personagem. Logo depois de receber indicações ao Oscar, frustrou uma jornalista de uma grande rede de tevê americana, que o procurou para que a levasse até o amigo de Neruda. O escritor revelou que o carteiro era fruto de sua imaginação.
O chileno foi grande amigo de Pablo Neruda. Mas a faísca para a criação de Mario pode ter sido disparada num encontro com o escritor argentino Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para celebrar a vitória dos sandinistas, convocados por Ernesto Cardenal. Apareceu um carteiro, com um telegrama para Cortázar. Skármeta indicou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mexicano Augusto Monterroso perguntou: “Quem é o poste e quem é Julio?”
A poesia tem sido a peça de resistência, ao longo da obra de Skármeta. O lirismo é um recurso literário estratégico, usado para tratar questões espinhosas, como a repressão política e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciência’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insurreição’ (La insurrención, 1985), os três publicados no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As novelas relatam parte da história recente do Chile, desde o golpe de Augusto Pinochet, que derrubou o socialista Salvador Allende, em 1973, ao processo de redemocratização, em 1990. O escritor se vale de personagens secundários, em geral jovens ou nascidos nas camadas populares, para relatar dramas vividos por protagonistas em protestos contra regimes de exceção.
A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estudou Filosofia na Universidade do Chile, orientado pelo filósofo alemão Francisco Soler Grima, discípulo de Julián Marías e José Ortega y Gasset. Ainda na universidade, atuou como diretor de teatro e montou obras de Calderón de la Barca, García Lorca, William Saroyan e Edward Albee. Ganhou concursos literários nos jornais La Nación e El Sur. Traduziu Hermann Melville, Jack Kerouac, Scott Fitzgerald e Norman Mailer.
Em 1969, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas’ por ‘Desnudo en el tejado’. Já havia produzido um filme sobre o Movimento de ação popular e Unitária (MAPU), do qual era membro. Incorporou, mais tarde, a história à novela ‘La insurrección’. Com o golpe militar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedicou ao cinema. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mundo. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um programa de televisão chamado ‘O show dos livros’.
Em 1994, estreou no cinema a segunda versão de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o título ‘El cartero de Neruda’. O filme, dirigido por Michael Radford e estrelado por Massimo Troisi, teve cinco indicações ao Oscar. A partir daí, Skármeta passou a ser reconhecido mundialmente e recebeu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Internacional de Literatura Bocaccio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Premio Altazor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grinzane Cavour’, em 2003. Em 2006, recebeu o ‘Premio Internazionale Ennio Flaiano’ pelo “valor cultural e artístico de sua obra”, em particular pelo romance ‘El baile de la Victoria’.
Se a maior parte dos escritores contemporâneos se rendem à sedução neoliberal, pulverizando sua obra no entretenimento para camadas médias, Skármeta resiste, fundindo ficção e memória histórica. Utópico, o escritor crê na função social da arte: ’em momentos árduos da vida de um país, celebrar a imaginação do artista, que combinada com a força da gente ativa, pode produzir mudanças libertárias na sociedade’, afirma em entrevista em 2011, publicada em seu site oficial.
Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas novelas suas foram adaptadas para outras linguagens artísticas. ‘Ardiente Paciencia’ virou filme e ópera, cantada por Plácido Domingo, em Los Angeles e um musical interpretado pela Orquestra Sinfônica de Londres. ‘El plebiscito’, originalmente texto para o teatro, com montagem frustrada em 2008, foi remontado na novela ‘Los dias del arco iris’. A narrativa ‘Un padre de pelicula’, que tem à frente um jovem que sente a falta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser filmado em 2015, pelo diretor e ator brasileiro Selton Mello.
Uma característica de suas obras são os personagens de apelo popular: pessoas humildes, jovens tímidos e tristes, prostitutas. Esses personagens sofrem uma brutal transformação em suas vidas ao entrar em contato com o mundo da alta cultura. A fricção entre a espontaneidade da cultura popular e as profundidade do conhecimento erudito acaba criando figuras transbordantes de humanidade, palpáveis como as que encontramos no cotidiano.
Criar esses tipos parece ter sido uma lição que Skármeta aprendeu do teatro e do cinema, para atrair o leitor médio. Graças à formação intelectual e política, o escritor agrada também o leitor exigente, ambientando sua ficção em contexto histórico. O encontro entre personagens da baixa e da alta cultura põe em movimento a ideia de que a literatura pode transformar a realidade através da educação. Educar, nesse caso, é levar o leitor à consciência social e à descoberta da poesia, através da identificação com os personagens mais ingênuos.
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