Category: Dossiê

  • A parceria entre Eduardo Baptistão e Daniel Piza

    A parceria entre Eduardo Baptistão e Daniel Piza

    Eduardo Baptistão
    Eduar­do Baptistão

    Dez anos. Esse foi o tem­po que durou a parce­ria entre o ilustrador Eduar­do Bap­tistão e o jor­nal­ista Daniel Piza. Durante esse perío­do, Bap­tistão foi respon­sáv­el pelas ilus­trações da col­u­na Sinopse, assi­na­da por Piza e pub­li­ca­da aos domin­gos no Cader­no 2 do jor­nal Estadão (Esta­do de S. Paulo).

    Pre­mi­a­do den­tro e fora do Brasil, Bap­tistão é dono de um traço incon­fundív­el, insti­gante e lúdi­co, car­ac­terís­ti­ca que impactou Daniel Piza. Gen­til­mente, Eduar­do abriu seu arqui­vo pes­soal para com­par­til­har com todos os leitores e leitoras do inter­ro­gAção algu­mas das ilus­trações que fez de Piza.

    Con­fi­ra tam­bém as impressões do ilustrador sobre a parce­ria de uma década:

    Começo da parceria

    Daniel já havia tra­bal­ha­do no Estadão no iní­cio dos anos 1990, depois pas­sou pela Fol­ha de São Paulo e Gaze­ta Mer­can­til. Voltou ao Estadão em 2000 como edi­tor exec­u­ti­vo e col­u­nista de cul­tura e esportes. No iní­cio da pub­li­cação — uma col­u­na sem­anal no Cader­no 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jor­nal o esti­lo que mais se adap­ta­va à ideia que tin­ha, e acabou optan­do pelo meu. Durante todo o perío­do em que pub­li­cou a col­u­na Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domin­gos em que eu não a ilus­trei. Nes­sas ocasiões, em que eu esta­va em férias ou de fol­ga em algum feri­ado, quem nor­mal­mente me sub­sti­tuía era o meu ami­go e cole­ga Car­lin­hos Muller. Coube ao Car­lin­hos, por sinal, ilus­trar a últi­ma col­u­na que Daniel escreveu, pois eu cumpria a fol­ga de Natal.

    Daniel Piza no dia a dia

    Daniel gosta­va de con­ver­sar. Por ser um cara muito cul­to e infor­ma­do, eram sem­pre óti­mos papos! Não éramos ínti­mos a pon­to de abor­dar assun­tos pes­soais, mas sem­pre trocá­va­mos ideias sobre a col­u­na, sobre o tema pro­pos­to e, muitas vezes, eu lhe per­gun­ta­va se tin­ha algu­ma imagem em mente para a col­u­na da sem­ana. Ele sem­pre con­fiou na min­ha inter­pre­tação e me deu car­ta bran­ca para cri­ar. Em vez de enviar o tex­to por e‑mail, coisa que rara­mente fazia, Daniel prefe­ria levar o tex­to impres­so até a min­ha mesa, e sem­pre fazia algum comen­tário sobre o assun­to prin­ci­pal da col­u­na. Nes­sas ocasiões, eram tam­bém comuns as con­ver­sas sobre fute­bol, paixão que tín­hamos em comum, emb­o­ra fôsse­mos “rivais” – ele cor­in­tiano, eu palmeirense. Cheguei a jog­ar fute­bol com ele muitas vezes, nas peladas notur­nas orga­ni­zadas pelo pes­soal da redação. Daniel tin­ha muito bom domínio de bola e vocação de artil­heiro – mas, devo diz­er, isso era facil­i­ta­do pelo fato de jog­ar sem­pre “na ban­heira” [posição de impedimento].

    Repercussão das ilustrações

    É difí­cil falar sobre a reper­cussão das ilus­trações, porque rara­mente eu tin­ha algum retorno do públi­co sobre elas. De maneira ger­al, os leitores comen­tavam muito as col­u­nas, mas eram rarís­si­mos os comen­tários sobre as ilus­trações. Lem­bro de um desen­ho, de um fil­ho cor­ren­do em direção ao pai sen­ta­do no chão, que fiz para uma col­u­na sobre o dia dos pais, em que um leitor se declar­ou emo­ciona­do não só pelo tex­to, mas tam­bém pela imagem.

     'filho correndo para o pai sentado no chão'  (Eduardo Baptistão)
    Fil­ho cor­ren­do para o pai sen­ta­do no chão (Eduar­do Baptistão)

    Traços marcantes de Daniel Piza

    Algu­mas col­u­nas do Daniel eram escritas tão em primeira pes­soa que me sug­e­ri­am usar a figu­ra dele como per­son­agem da ilus­tração. Mas, nes­sas ocasiões, eu opta­va por ape­nas sug­erir o Daniel nos desen­hos, sem me pre­ocu­par muito com a semel­hança. No con­jun­to de ilus­trações que fiz para a col­u­na ao lon­go do tem­po, foram muitas em que o Daniel apare­cia de algu­ma forma.

    O que mais admi­ra­va no Daniel era a ver­sa­til­i­dade e a pro­dução cau­dalosa. Era notáv­el a sua capaci­dade de escr­ev­er sobre qual­quer assun­to, do fute­bol à culinária, da arquite­tu­ra à religião, da políti­ca à ciên­cia. E era notáv­el tam­bém a quan­ti­dade absur­da de col­u­nas, reporta­gens, resen­has, arti­gos e livros que ele escrevia, assim como a quan­ti­dade de livros lidos, de shows, con­cer­tos, peças e filmes assis­ti­dos e de dis­cos ouvi­dos para pro­duzir às vezes uma úni­ca col­u­na! Eu sem­pre o usa­va como refer­ên­cia, pelo tan­to que ele pro­duz­iu em tão poucos anos de vida em com­para­ção comi­go, qua­tro anos mais vel­ho e infini­ta­mente menos pro­du­ti­vo. Mas eu acred­i­to que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, aci­ma da média.

    Veja abaixo as ilus­trações cri­adas pelo Eduar­do Bap­tistão de Daniel Piza:

  • Entrevista com o jornalista Daniel Piza ao programa Provocações (2000)

    Entrevista com o jornalista Daniel Piza ao programa Provocações (2000)

    Em novem­bro de 2000, o jor­nal­ista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) con­cedeu uma entre­vista dire­ta e polêmi­ca ao apre­sen­ta­dor do pro­gra­ma Provo­cações (TV Cul­tura), Antônio Abu­jam­ra.

    Nela, Daniel Piza fala sobre a práti­ca do jor­nal­is­mo cul­tur­al no Brasil e sua descar­ac­ter­i­za­ção: “O jor­nal­is­mo cul­tur­al, em ger­al, é o jor­nal­is­mo que eles chamam de var­iedades. Então, é a peque­na resein­ha [resen­ha] do últi­mo dis­co pop que saiu na Inglater­ra, ou uma entre­vista pingue-pongue com algum ator de Hol­ly­wood. Isso é o que chamam de jor­nal­is­mo cul­tur­al no Brasil”, dispara.

    Piza desta­ca que o públi­co brasileiro tem “medo de opinião, medo de dis­cussão, um públi­co que pref­ere o pop­ulis­mo, o ‘da boca pra fora’, do que real­mente você dis­cu­tir coisas que ten­ham a ver, que façam sen­ti­do, que digam respeito à qualidade”.

    As declar­ações do jor­nal­ista pos­suem um tom con­tro­ver­so, mas eru­di­ta­mente fun­da­men­ta­do, esti­lo que acom­pan­hou Daniel Piza durante toda sua car­reira. Essa é uma das car­ac­terís­ti­cas mar­cantes nas reflexões e dis­cur­sos que per­me­iam o tra­bal­ho de Piza, recon­heci­do como um dos maiores nomes do jor­nal­is­mo cul­tur­al brasileiro. Recon­hec­i­men­to e val­oriza­ção que con­tin­u­am após sua morte pre­coce, ocor­ri­da no final de 2011.

    Con­fi­ra a entre­vista na íntegra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=H8HAIuMBq28

  • Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Foto: Damião A. Francisco
    Foto: Damião A. Francisco

    Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

    Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

    Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

    2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

    A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

    Foto: Grupo Estadão
    Foto: Grupo Estadão

    No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

    Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Pâni­co Band — Podcast

    Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

    É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

    Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

    Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

    A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

    Foto: Daniel Deak
    Foto: Daniel Deak

    No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

    Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

    Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.

  • Dossiê Darren Aronofsky: The Fountain — Graphic Novel

    Dossiê Darren Aronofsky: The Fountain — Graphic Novel

    Dossiê Darren Aronofsky: The Fountain - Graphic NovelO dire­tor inglês Peter Green­away já vem divul­gan­do des­de a déca­da de 80 a sua ideia de que o cin­e­ma mor­reu e em seus últi­mos pro­je­tos, como na trilo­gia As male­tas de Tulse Luper, expande a exper­iên­cia do cin­e­ma ini­cial­mente lim­i­ta­do ape­nas às suas salas escuras. Dev­i­do a explo­ração mer­cadológ­i­ca cada vez maior nes­ta indús­tria, é fácil que sub­pro­du­tos de um lon­ga sejam pro­duzi­dos para ten­tar sim­u­lar esta expan­são, mas na ver­dade são somente pequenos extras ou um mak­ing of do que já foi feito, não mudan­do real­mente a exper­iên­cia cin­e­matográ­fi­ca em si. Ou seja, são ape­nas out­ros meios para con­seguir mais din­heiro do consumidor.

    É aí que está a grande difer­ença da graph­ic nov­el The Foun­tain, escri­ta por Dar­ren Aronof­sky e ilustra­da por Kent Williams, que foi lança­da pelo selo Ver­ti­go da DC Comics em 2005 e ain­da é inédi­ta no Brasil. Ape­sar de ter sido prati­ca­mente desen­volvi­da em para­le­lo ao filme A Fonte da Vida, lança­do em 2006 e dirigi­do pelo próprio Aronof­sky, ela foi cri­a­da de maneira com­ple­ta­mente inde­pen­dente. A base dos dois é a sua história, mas as semel­hanças prati­ca­mente acabam por aí. Temos em cada um dess­es pro­je­tos uma ver­são difer­ente do enre­do ini­cial, que uti­lizam ao máx­i­mo todas as pos­si­bil­i­dades da mídia na qual foi adap­ta­da, respei­tan­do a sua própria lin­guagem e esti­lo. Algo sim­i­lar acon­tece quan­do uma adap­tação de um livro para as telas não ten­ta repro­duzir a exper­iên­cia da leitu­ra, mas sim cri­ar algo novo uti­lizan­do a lin­guagem do cinema.

    Tomás em busca da Árvore da Vida
    Tomás em bus­ca da Árvore da Vida

    Se você ain­da não con­hece a história prin­ci­pal, ela nar­ra em três difer­entes tem­pos a jor­na­da de um mes­mo per­son­agem (Tomás, Tom­my e Tom) em bus­ca da imor­tal­i­dade para poder ficar jun­to a sua ama­da. As três nar­ra­ti­vas vão se alter­nan­do e uma é inter­de­pen­dente da out­ra, ou seja, é necessário que o per­son­agem resol­va a mes­ma questão ness­es espaços difer­entes de tem­po para que ele pos­sa final­mente con­cluir a sua própria história.

    Darren Aronofsky
    Dar­ren Aronofsky

    Este provavel­mente ain­da é o pro­je­to mais ambi­cioso de Aronof­sky — posição que talvez vai ser toma­da pelo seu novo lon­ga Noé, pre­vis­to para 2014 — e tam­bém foi o que mais divid­iu o públi­co, como ele mes­mo comen­tou em uma entre­vista. Isso não só pelo esti­lo nar­ra­ti­vo e pela com­plex­i­dade dos cenários e situ­ações, algo pare­ci­do com que o recente A Viagem dirigi­do por Tom Tyk­w­er e pelos irmãos Wachows­ki fez, mas tam­bém pelo seu tema prin­ci­pal: aceitar a morte, ou o fim, assim como as nos­sas próprias lim­i­tações como seres humanos.

    Tom em direção a Xibalba
    Tom em direção a Xibalba

    Por con­ta do seu alto cus­to, o pro­je­to foi ofi­cial­mente encer­ra­do em 2002, mas o dire­tor resolveu ree­scr­ev­er todo o roteiro para que ele deix­as­se de ser uma super pro­dução e seguisse a mes­ma lin­ha de filmes indie de baixo orça­men­to, que o mes­mo havia feito até aque­le momento.

    Kent Williams
    Kent Williams

    Logo no iní­cio das nego­ci­ações do filme, Aronof­sky sabia que este seria um pro­je­to muito difí­cil, então ele e o pro­du­tor lutaram de antemão para que os dire­itos da graph­ic nov­el fos­sem garan­ti­dos de qual­quer for­ma. Quan­do entrou em con­ta­to com a Ver­ti­go, lhe indicaram o artista Kent Williams e, ape­sar de não o con­hecer, cada vez que ia receben­do mais exem­p­los de seus tra­bal­hos, fica­va ain­da mais empol­ga­do com essa parce­ria. Depois de ini­ci­a­do as pro­duções, eles brin­cavam bas­tante a respeito de qual dos dois iri­am ter­mi­nar primeiro, o lon­ga ou a HQ. Quase hou­ve um empate, mas a graph­ic nov­el ficou pronta um ano antes do filme.

    Capas da séria lançada pela Editora Abril
    Capas da série lança­da pela Edi­to­ra Abril

    Williams é um ilustrador amer­i­cano que já tra­bal­hou para várias edi­toras de quadrin­hos, sendo respon­sáv­el pelas artes do Wolver­ine na acla­ma­da série Wolver­ine & Destru­tor: Fusão, lança­do aqui no Brasil em qua­tro edições pela Edi­to­ra Abril no ano de 1989. Hoje em dia ele deixou um pouco as HQs de lado para se focar mais em suas pin­turas, ape­sar de ter admi­ti­do em uma entre­vista que está tra­bal­han­do em um quadrin­ho autoral, mas que não tem pra­zo para ter­mi­nar. Se você tiv­er inter­esse, pode acom­pan­har seus tra­bal­hos mais recentes neste blog ou em seu site ofi­cial.

    Em The Foun­tain foi pos­sív­el realizar grafi­ca­mente todos os detal­h­es do enre­do, que em out­ra mídia como o cin­e­ma, provavel­mente seria finan­ceira­mente impos­sív­el. Este é na real é um dos grandes trun­fos de uma história em quadrin­ho, em um desen­ho pode-se cri­ar tudo que se imag­i­na e até coisas que são impos­síveis de exi­s­tir. M.C. Esch­er era, por exem­p­lo, um espe­cial­ista nes­ta área, sem ficar se pre­ocu­pan­do muito com orça­men­tos. Isso vale tam­bém no que­si­to de sair do pudor hol­ly­wood­i­ano, nos desen­hos não é pre­ciso lidar com a lim­i­tação dos estú­dios e dos próprios atores. Por exem­p­lo, os per­son­agens da HQ estão com­ple­ta­mente nus den­tro da bol­ha, enquan­to no filme estão vesti­dos dos pés á cabeça.

    Tommy em busca da cura do câncer
    Tom­my em bus­ca da cura do câncer

    No começo, os desen­hos de Williams podem ger­ar um cer­to estran­hamen­to, pois ele varia bas­tante o esti­lo ao lon­go da história. Os traços vão des­de somente alguns con­tornos, pare­cen­do um pouco com ras­cun­hos, à pági­nas com­ple­ta­mente col­ori­das até nos mín­i­mos detal­h­es. Além dessa grande vari­ação de detal­hamen­to e cor, que cria uma per­son­al­i­dade muito inter­es­sante nos desen­hos, se nota uma clara sep­a­ração entre os três difer­entes tem­pos que a história se pas­sa, tan­to pela divisão grá­fi­ca dos quadros e suas cores deter­mi­nantes, quan­to pela cor uti­liza­da no fun­do para preencher o espaço vazio.

    O uso de somente duas fontes nos tex­tos, uma para os diál­o­gos e out­ra para nar­ração, aca­ba que­bran­do um pouco toda essa diver­si­dade dos desen­hos, mas con­segue assim man­ter uma exper­iên­cia de leitu­ra bem agradáv­el. É inter­es­sante tam­bém notar que algu­mas leg­en­das no iní­cio são descrições de sons ou esta­dos dos per­son­agens naque­le quadro, como se fos­se um roteiro para o filme, mas que durante o desen­volver da história assume uma lin­guagem mais car­ac­terís­ti­ca dos quadrinhos.

    Tom começando a aceitar o seu destino
    Tom começan­do a aceitar o seu destino

    Pode-se até pen­sar que The Foun­tain pode­ria ser algo como uma “ver­são do dire­tor” do lon­ga, mas isto seria equiv­o­ca­do. Tam­bém está longe de ser um sto­ry­board do mes­mo. Como men­cionei ante­ri­or­mente, ela é uma exper­iên­cia com­ple­ta­mente difer­ente do filme, sendo uma nova inter­pre­tação ao invés de ape­nas mais uma repetição do que você já viu nas telas. Alguns talvez até podem afir­mar que esta HQ é algo mais para um fã do lon­ga ou do dire­tor. Não pos­so dis­cor­dar des­ta afir­mação, mas acred­i­to que a mes­ma sobre­vive tran­quil­a­mente como uma obra inde­pen­dente e úni­ca no mun­do das graph­ic nov­els.

    Como a HQ ain­da é inédi­ta aqui no Brasil, é pos­sív­el com­prá-la em inglês no site de livrarias como a Sarai­va e a Cul­tura. Se você já com­prou ou pre­tende com­prar, uma exper­iên­cia que pode ser bem inter­es­sante é a leitu­ra dela jun­to com a tril­ha sono­ra do filme cri­a­da por Clint Mansell, que é sim­ples­mente sensacional.

  • Daniel Piza: Legado e Saudades

    Daniel Piza: Legado e Saudades

    Daniel Piza por Eduar­do Baptistão

    So this house is emp­ty now There’s noth­ing I can do To make you want to stay So tell me how Am I sup­posed to live with­out you?

    This House is Emp­ty Now – de Elvis Costel­lo e Burt Bacharach

    O homem de cabe­los claros, lev­e­mente aver­mel­ha­dos, aparên­cia jovial, mas far­to em gestos e expressões car­regadas de uma maturi­dade muito aci­ma da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aque­le era Daniel Piza, dire­ta­mente dos livros, das impressões do jor­nal e da tela do com­puta­dor para o auditório de um dos shop­pings da cap­i­tal piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “final­mente”. Ela começa em 2009 e se desen­ro­la em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou con­vic­ta de que não. Como sibilou a poet­i­sa Emi­ly Dick­in­son:“To see the Sum­mer Sky/ Is Poet­ry, though nev­er in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nun­ca em um livro seja encontrada/Os ver­dadeiros poe­mas voam). Dito isso, vamos aten­der a ordem afe­ti­va dos acon­tec­i­men­tos. Teresina, 18 de março de 2011. Sex­ta-feira, últi­mo dia antes do final de sem­ana, o acla­ma­do sus­piro de alívio que tan­tos tra­bal­hadores, estu­dantes e até mes­mo os adep­tos do “ócio refi­na­do” esper­am em polvorosa, con­tan­do nos dedos. No meio dessa expec­ta­ti­va, às 9 horas da man­hã, eu rece­bi a notí­cia de que o jor­nal­ista Daniel Piza, então edi­tor-exec­u­ti­vo e col­u­nista cul­tur­al do jor­nal O Esta­do de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclu­si­va pro­movi­da pelo Fes­ti­val Artes de Março, even­to que reúne músi­ca, lit­er­atu­ra e exposições artís­ti­cas. Par­tic­u­lar­mente, aque­le seria o momen­to mais espe­cial da min­ha vivên­cia jor­nalís­ti­ca e literária até então. O sujeito que esta­va vin­do par­tic­i­par da pro­gra­mação cul­tur­al do fes­ti­val não era ape­nas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fiz­er­am pas­sar noites acor­da­da na ânsia de ter­miná-los para recomeçá-los nova­mente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ min­ha grande inspi­ração nas águas ondu­lantes do Jor­nal­is­mo Cul­tur­al; o homem que me pro­por­cio­nou ver uma mudança níti­da na for­ma de infor­mar e par­til­har cul­tura, fazen­do com que o con­hec­i­men­to asso­ci­a­do à con­sciên­cia saísse de um plano da inex­istên­cia típi­ca dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há cor­agem, há ini­cia­ti­va. E isso não se esquece.

    O mod­e­lo de inspi­ração começou a se for­mar no meu ínti­mo em março de 2009, dois anos antes e, ironi­ca­mente, no mes­mo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começa­do o cur­so de Jor­nal­is­mo — um dos meus grandes pro­je­tos de vida -, eu esta­va às voltas com pesquisas bib­li­ográ­fi­cas e redação de um arti­go sobre cul­tura, jor­nal­is­mo, análise do dis­cur­so e exclusão social. Exata­mente nesse perío­do, uma das pro­fes­so­ras da fac­ul­dade me entre­gou um livro fino, com uma imagem à moda anti­ga na capa e com o títu­lo de Jor­nal­is­mo Cul­tur­al. Ao fol­hear dis­traida­mente o livro para começar min­has ano­tações, não con­segui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naque­le momen­to, tive a certeza de que gostaria e dev­e­ria saber mais sobre o escritor que retoma­va tão bem os primór­dios do Jor­nal­is­mo Cul­tur­al e esboça­va assun­tos polêmi­cos, como a sep­a­ração entre “alta cul­tura” e “baixa cul­tura” de for­ma lúci­da, ele­gante, inter­es­sante. O autor? Um sen­hor de nome Daniel Luiz de Tole­do Piza, nasci­do em São Paulo no ano de 1970 e for­ma­do em Dire­ito pela tradi­cional Fac­ul­dade de Dire­ito do Largo São Fran­cis­co (USP). Como o des­ti­no é ter­ra de ninguém, Daniel deu asas à tendên­cia jor­nalís­ti­ca que lhe perseguia e envere­dou pelos cader­nos de cul­tura do Esta­do de São Paulo, Fol­ha de São Paulo e Gaze­ta Mer­can­til, além de atu­ar como comen­tarista esportivo.

    Coleção da Mara com títu­los do autor

    À época, para saber mais sobre o jor­nal­ista, fiz o que qual­quer “indi­ví­duo-máquina” do sécu­lo XXI faria: dei uma “goog­lea­da” no nome Daniel Piza e desco­bri o blog pes­soal do autor e inúmeras out­ras infor­mações. Eu ain­da não sabia, mas, ao exe­cu­tar essa procu­ra, eu tin­ha encon­tra­do o jor­nal­ista que viria a ser a min­ha maior inspi­ração des­de então. Come­cei a procu­rar livros, tex­tos, arti­gos, ensaios, frag­men­tos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jor­nal­is­mo Cul­tur­al” (edi­to­ra Con­tex­to), “Mis­térios da Lit­er­atu­ra – Poe, Macha­do, Con­rad e Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Pen­ta” (edi­to­ra Nova Alexan­dria), “Con­tem­porâ­neo de Mim – Dez anos da col­u­na Sinopse” (edi­to­ra Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (edi­to­ra Bertrand Brasil), “Amazô­nia de Euclides” (edi­to­ra LeYa) e “Dez Anos que Encol­her­am o Mun­do” (edi­to­ra LeYa). Ape­sar da pou­ca idade e cer­ca de vinte anos de car­reira, Daniel escreveu e pub­li­cou dezes­sete livros, além de assi­nar traduções das obras de Bernard Shaw, Her­man Melville e Hen­ry James, nomes de peso da lit­er­atu­ra mundial.

    Tweet do jogador Ronal­do sobre a morte de Piza

    Além de todas as láureas profis­sion­ais, Daniel Piza con­seguiu o impos­sív­el: provo­car min­ha curiosi­dade o sufi­ciente para ler e pesquis­ar sobre fute­bol, esporte que está longe de alcançar qual­quer incli­nação da min­ha parte. Com títu­los inusi­ta­dos, que mais pare­ci­am um anún­cio para o Col­iseu de Roma, o jor­nal­ista descrevia jogos, atle­tas, ambi­entes de com­petições e as tendên­cias do momen­to. Através dos tex­tos dele, eu soube, por exem­p­lo, quem é Ney­mar, qual a importân­cia real do Pelé (me des­culpem os doutos na vida esporti­va, mas devo con­fes­sar que não enten­dia nen­hu­ma reverên­cia ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns téc­ni­cos — e tor­ci­das — são tão indi­gestos. Daniel era cor­in­tiano apaixon­a­do e foi respon­sáv­el por reporta­gens exclu­si­vas, como o anún­cio da aposen­ta­do­ria do jogador Ronal­do, o Fenô­meno, de quem era ami­go. O jor­nal­ista, escritor e tradu­tor, fil­ho da Dona Edith e do Sr. Her­al­do Piza, e tam­bém, como ele mes­mo gosta­va de se descr­ev­er, “casa­do com Rena­ta Piza e pai de Letí­cia, Maria Clara e Bernar­do”, segu­ra­va muitos leitores horas a fio na frente do com­puta­dor, lendo e relen­do (a releitu­ra faz parte de um proces­so de apren­diza­do), arti­gos e matérias de con­teú­do impecáv­el, bem escrito e per­sua­si­vo. Todos os dias, às 7:15h da man­hã, eu cor­ria para o com­puta­dor para me man­ter infor­ma­da sobre as atu­al­iza­ções do blog que Daniel man­tinha. No tra­bal­ho, em algu­ma fol­ga, o esque­ma era o mes­mo. Lem­bro de ter aper­ta­do F5 ( o que cor­re­sponde à oper­ação de atu­al­iza­ção) no tecla­do umas seis vezes em um só dia esperan­do novas posta­gens. Quan­do via­ja­va ou me ausen­ta­va, procu­ra­va retomar as leituras per­di­das e “sub­ornar” com refrig­er­antes e doces caseiros o jor­naleiro da ban­ca que eu fre­quen­ta­va, para que ele guardasse pelo menos algu­mas edições do Estadão.

    Daniel Piza e o fotó­grafo Tia­go Queiroz, em Sena Madureira (AC)

    Até que, coin­ci­den­te­mente, em março de 2011, Daniel Piza ater­ris­sou em solo piauiense pela primeira vez, com con­fer­ên­cia mar­ca­da para 19h. Lá esta­va a min­ha opor­tu­nidade úni­ca – e por isso mes­mo imperdív­el — de con­ferir o que o jor­nal­ista-refer­ên­cia dos meus tex­tos e arti­gos tin­ha a diz­er, ago­ra pres­en­cial­mente. Cheguei ao local com qua­tro horas de ante­cedên­cia — sem neces­si­dade, lógi­co — e fiquei flanan­do pela praça de ali­men­tação e livraria. Às 18h, já esta­va na por­ta, obser­van­do o entra e sai de profis­sion­ais da impren­sa e do col­u­nis­mo social piauiense, todos queren­do uma declar­ação, imagem ou gravação para seus respec­tivos veícu­los. Afi­nal, ali esta­va o autor de ensaios inter­es­santes sobre lit­er­atu­ra, onde um tra­bal­ho de pesquisa e a paixão o levaram a escr­ev­er a biografia de Macha­do de Assis.O fascínio pela união entre lit­er­atu­ra e jor­nal­is­mo o fez sair Amazô­nia a den­tro para per­cor­rer o cam­in­ho de Euclides da Cun­ha, ou ain­da ter atre­vi­men­to e, aci­ma de tudo, cor­agem, para dar opinião, apon­tar o dedo, diz­er o que pen­sa com respon­s­abil­i­dade e conhecimento.

    Ambi­ente de tra­bal­ho do Daniel Piza

    Daniel Piza con­seguia andar pelo fute­bol sem per­na de pau, dis­cor­rer sobre políti­ca com cer­ta pas­sion­al­i­dade, mas com força argu­men­ta­ti­va, e falar sobre músi­ca, lit­er­atu­ra, artes plás­ti­cas e arquite­tu­ra, aden­tran­do o uni­ver­so cul­tur­al como ninguém. Assim, fica difí­cil mes­mo não quer­er uma pon­tin­ha desse fenô­meno, que muitos insis­tem em chamar de herdeiro de Paulo Fran­cis, mas que ago­ra, depois da maturi­dade que vem com leituras e reflexões, pre­firo men­cionar como pro­tag­o­nista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sen­tan­do em uma das primeiras filas, à esquer­da, e con­segui ver Daniel Piza conce­den­do entre­vis­tas, recon­hecen­do ter­reno e falan­do sobre cul­tura, cul­tura e mais cul­tura. Do meu lugar, obser­va­va as expressões e o tom de voz — baixo e explica­ti­vo –, imag­i­nan­do tam­bém que tin­ha me engana­do um pouco. Lem­bro de ter con­cluí­do que a tele­visão e a inter­net aumen­tam as pes­soas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão cor­po­ral trans­mi­tia serenidade.

    Daniel Piza e Mara Vanes­sa Torres

    No final do even­to, impul­sion­a­da por um ami­go men­tal­mente estáv­el – já que min­ha timidez me pren­deu solo abaixo -, tro­quei algu­mas palavras com Daniel Piza. Meu diál­o­go foi reple­to de palavras bal­bu­ci­adas, rec­headas de con­strang­i­men­to. Desnecessário. Notan­do min­ha timidez, o bió­grafo do grande Macha­do de Assis sim­ples­mente disse: “Não tem prob­le­ma. Eu tam­bém sou tími­do”. Desse momen­to, ape­nas um reg­istro feito com câmera de celu­lar. Tími­do, como todas as boas inspi­rações. Na man­hã do dia 31 de dezem­bro de 2011, 9 meses depois da vin­da de Daniel Piza à min­ha cidade, rece­bo um SMS tru­ci­dante às 8h da man­hã, dizen­do que Daniel tin­ha sido víti­ma de um AVC (aci­dente vas­cu­lar cere­bral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vas­to con­hec­i­men­to e de alguém que soube ser o máx­i­mo de encan­to em uma vida de des­en­can­to. Daniel Luiz de Tole­do Piza vive hoje no coração daque­les que o amam, nas feições de seus três fil­hos, no lega­do de obras pub­li­cadas, inúmeros tex­tos jor­nalís­ti­cos, arti­gos, opiniões, pre­fá­cios e nas hom­e­na­gens con­stan­te­mente prestadas. No dia 04 de jul­ho deste ano, a prefeitu­ra do Rio de Janeiro inau­gurou a Esco­la Munic­i­pal Jor­nal­ista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A insti­tu­ição de ensi­no fica situ­a­da em um bair­ro com menor Índice de Desen­volvi­men­to Humano (IDH) da cap­i­tal flu­mi­nense, aten­den­do alunos do 6º ao 9º anos do ensi­no fun­da­men­tal. Mes­mo de longe, Daniel con­tin­ua trans­for­man­do, crian­do e obser­van­do o mun­do através das palavras. Um gênio raro, con­ste­lação int­elec­tu­al de primeira grandeza. Que ele con­tin­ue fazen­do por muitos out­ros, inclu­sive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a con­sciên­cia e des­per­tar o entendi­men­to para um mun­do novo.

    (…) Não deixar o des­en­can­to tomar con­ta é o mel­hor presente.

    Daniel Piza

    danielpiza-bibliografia

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  • Dossiê Darren Aronofsky: O Lutador — Entrevista Traduzida

    Dossiê Darren Aronofsky: O Lutador — Entrevista Traduzida

    por Kei­th Phipps, 18/12/2008, traduzi­do exclu­si­va­mente com per­mis­são do The Onion.

    O filme de estréia de Dar­ren Aronof­sky, Pi (1998) , provou seu poder de cri­ar ima­gens cati­vantes e uma história atra­ti­va com pouco din­heiro. A par­tir daí, seus orça­men­tos aumen­taram, mas o foco con­tin­u­ou firme, e ele real­i­zou mais dois filmes provo­cadores – a bem rece­bi­da adap­tação do livro de Hubert Sel­by sobre as pro­fun­dezas do vício, Réquiem para um Son­ho (2000), e o menos bem rece­bido Fonte da Vida (2006), uma história entre­laça­da de amor e morte rejeita­da pelo públi­co e por vários críti­cos, mas ado­ra­da por um cres­cente públi­co cult. Tra­bal­han­do a par­tir de um roteiro de Rob Siegel (um anti­go edi­tor do Onion e – con­fis­são – ami­go do autor des­ta entre­vista), O Luta­dor (2008) mostra Aronof­sky voltan­do a um esti­lo ain­da mais rig­oroso do que o de sua estréia para explo­rar o mun­do de um luta­dor profis­sion­al (um rev­e­lador Mick­ey Rourke) lidan­do com a pos­si­bil­i­dade latente de que seus mel­hores dias já pas­saram. Logo depois de gan­har o Leão de Ouro no Fes­ti­val de Veneza, Aronof­sky con­ver­sou com o The A.V. Club sobre a lin­guagem sec­re­ta dos luta­dores, como faz­er o públi­co levar o wrestling a sério e sobre diri­gir seus próprios pais.

    Onde fica o mun­do real – den­tro do ringue ou fora do ringue?

    Da últi­ma vez que con­ver­samos, você esta­va pron­to para diri­gir cer­ca de oito filmes difer­entes. Por que este?
    Eu pas­sei quase um ano e meio fazen­do pós-pro­dução téc­ni­ca em Fonte da Vida. Ape­sar de eu gostar do proces­so, acho que min­ha parte predile­ta de faz­er filmes são os atores. Eu que­ria faz­er algo que só tivesse a ver com as atu­ações, com bem poucos efeitos espe­ci­ais. Eu dei uma olha­da em todos os pro­je­tos que está­va­mos desen­vol­ven­do e O Luta­dor com Rob [Siegel] esta­va bem adi­anta­do, então nós começamos a con­cen­trar todas as nos­sas atenções naque­la direção.

    Sendo o wrestling profis­sion­al um fenô­meno tão grande, deve ter –
    Bom, nun­ca hou­ve um filme sério, eu diria, não que eu sai­ba. Anos atrás, quan­do eu me formei em cin­e­ma, eu escrevi uma lista de filmes pos­síveis, e um deles era chama­do O Luta­dor. Exis­tem tan­tos filmes de boxe que já chega a ser um gênero, mas ninguém tin­ha feito um filme de ver­dade sobre o wrestling. À medi­da que come­cei a acom­pan­har aque­le uni­ver­so, pude perce­ber quão úni­co ele era.

    Parte do prob­le­ma é que, com o boxe, há uma dúvi­da sobre qual vai ser o resul­ta­do, quem vai gan­har. Mas é difer­ente no wrestling. Que tipo de difi­cul­dades isso trouxe?
    Foi um desafio, no sen­ti­do de faz­er uma luta no fim do filme que não dissesse respeito ao resul­ta­do como com­petição atléti­ca, mas sim como con­se­quên­cia de uma decisão pes­soal. Então esse foi um desafio com­pli­ca­do – e, tam­bém, como retratar algo que as pes­soas percebem como fal­so e, basi­ca­mente, rejeitam. Como faz­er uma inves­ti­gação sin­cera desse mundo?

    Então, como você fez? 
    Eu acho que o lim­ite do que é ver­dadeiro e fal­so tornou-se um grande tema quan­do Rob e eu falá­va­mos a respeito do filme logo no iní­cio, porque há esta ideia de “Onde fica o mun­do real – den­tro do ringue ou fora do ringue?” Essa foi a prin­ci­pal razão do Rob ter luta­do para man­ter a strip­per no filme. Eu esta­va dis­pos­to a mudar, porque, um filme inde­pen­dente com uma strip­per… me deix­a­va ner­voso. Mas quan­to mais a gente pen­sa­va a respeito, mais a gente perce­bia que as lig­ações entre a strip­per e o luta­dor eram real­mente sig­ni­fica­ti­vas. Ambos usam nomes fal­sos, ambos vestem fan­tasias, ambos encan­tam um públi­co e cri­am uma fan­ta­sia para esse públi­co, e ambos usam seus cor­pos como sua arte, então o tem­po é o seu maior inimigo.

    Você pesquisou sobre o des­ti­no de luta­dores e strip­pers depois que a idade acabou com suas carreiras?
    Bom, strip­pers de idade… a gente não fez essa pesquisa. [Risos.] Mas era claro o que acon­tece com elas. Luta­dores mais vel­hos, por muitos deles terem tido grande fama em algum pon­to, con­tin­u­am suas car­reiras. Nós nos reuni­mos com vários dos grandes caras mais vel­hos, des­de Greg “The Ham­mer” Valen­tine a Niko­lai Volkoff, Super­fly Snu­ka a Tony Atlas. Nós falam­os com vários dess­es caras, tive­mos lon­gas con­ver­sas a respeito disso.

    O filme todo acon­tece prati­ca­mente neste mun­do onde as pes­soas ou estão em ascen­são ou em declínio. É um mun­do que muitas pes­soas nem sabem exi­s­tir. Qual foi a coisa mais sur­preen­dente que você desco­briu ao observá-lo?
    Há várias coisas sin­gu­lares e inter­es­santes – a frater­nidade entre os luta­dores, a rede de suporte. O fato de que eles falam seu próprio idioma, que é cheio de expressões “circens­es”, o que me faz pen­sar que o wrestling provavel­mente veio do negó­cio do “cir­co”, algo no esti­lo “Assista dois fortões lutan­do”. Eles chamam a audiên­cia de “os alvos”, chamam a luta de “o espetácu­lo”. Eles têm tan­tas expressões que só fazem parte do seu próprio diale­to secre­to. Até o jeito que lutam quan­do estão no ringue – fazen­do sinais com as mãos uns pros out­ros ou dan­do tap­in­has pra avis­ar o out­ro quan­do está na hora de entre­gar a luta. É um mun­do muito com­pli­ca­do que vem de anos e anos de home­ns entre­tendo as massas.

    Os anos 90 foram do ecsta­sy, os 80 dos yup­pies. Havia toda aque­la cul­tura do ecsta­sy. As pes­soas se diver­ti­am bas­tante nos anos 90.

    E ele cos­tu­ma ser retrata­do como um mun­do basi­ca­mente sem rival­i­dade fora do pal­co. Isso é sim­pli­ficar demais?
    Ten­ho certeza que sim. Defin­i­ti­va­mente exis­tem caras que não são pop­u­lares porque batem um tan­to forte demais quan­do estão no ringue, eles chamam esse esti­lo de “stiff” (durão). Tam­bém há vários brin­cal­hões no negó­cio, há sem­pre vários trotes sendo apli­ca­dos, e havia algu­mas cenas dis­so tudo que acabaram sendo cor­tadas do filme. Mas eu não acho que qual­quer tipo de rival­i­dade seria pro­por­cional às rival­i­dades den­tro do ringue, se é isso que você está per­gun­tan­do. Eles têm suas próprias políti­cas, com certeza.

    Necro Butch­er

    Há uma cena mem­o­ráv­el com uma luta abso­lu­ta­mente bru­tal. O que você acha que atrai a audiên­cia ao se ter algo tão vio­len­to num even­to de wrestling?
    É um fenô­meno inter­es­sante. Quero diz­er, é ina­cred­itáv­el. O nív­el de bru­tal­i­dade do filme não é nada per­to do tipo de coisa que real­mente acon­tece. O cara com quem Mick­ey Rourke luta naque­la cena se chama Necro Butch­er, que inter­pre­ta ele mes­mo. So você for até o YouTube e procu­rar por “Necro Butch­er”, você vai ver coisas mais hard­core do que qual­quer coisa que a gente apre­sen­ta. Eu ten­ho teo­rias sobre a psi­colo­gia de porque essas pes­soas têm praz­er com isso, mas eu acho que enten­do como tudo evoluiu.

    Quan­do o WWF se tornou o WWE e basi­ca­mente admi­tiu que o wrestling era entreten­i­men­to e não esporte, prati­ca­mente todo mun­do desis­tiu da ilusão de que aqui­lo era real, que não era ence­na­do. O públi­co que assiste ao wrestling sabe que ele é ence­na­do, mas ain­da meio que se deixa levar pela sua dra­mati­ci­dade. A coisa que os emo­ciona é quan­do ess­es caras arriscam sua saúde e suas vidas. Mes­mo em even­tos menos hard­core, eles ficam impres­sion­a­dos quan­do os caras dão aque­les saltos e giros malu­cos. No mun­do hard­core, a coisa vai mais além, e as pes­soas esper­am que ess­es caras se machuquem para o seu entreten­i­men­to. Eu não acho que eles queiram que alguém mor­ra, mas de algu­ma for­ma eles sen­tem praz­er em saber que os caras estão se machu­can­do de ver­dade. Eu acho que é uma com­petição dire­ta com o que o MMA vem fazen­do. É um jeito de man­ter o wrestling como um esporte san­gren­to, basi­ca­mente. Que tal a min­ha psi­colo­gia pop? [Risos.] Eu acho que é daí que tudo se orig­i­na, mas não ten­ho certeza.

    Você mudou rad­i­cal­mente seu esti­lo a cada filme. Por que tan­tas mudanças radicais?
    Bem, eu ten­ho brin­ca­do que, se a Madon­na nos ensi­nou algu­ma coisa, é que você pre­cisa se rein­ven­tar. Eu acho que é impor­tante, como dire­tor, ou qual­quer pes­soa tra­bal­han­do com arte, que você tente coisas novas, desafie-se e se arrisque. Eu ten­tei me arriscar em cada filme que fiz – nun­ca fiz do jeito fácil, e acho que é porque o que me ani­ma é pôr uma mon­tan­ha tão grande quan­to eu pud­er na min­ha frente e faz­er o pos­sív­el para escalá-la.

    Obvi­a­mente hou­ve algu­mas desvan­ta­gens ao tra­bal­har com um orça­men­to tão pequeno e com uma pro­pos­ta de câmera na mão, mas quais foram algu­mas das van­ta­gens que você teve?
    Eu achei todo o proces­so de faz­er esse filme bas­tante empol­gante e diver­tido porque ele foi incriv­el­mente nat­u­ral­ista. O filme inteiro é muito nat­u­ral­ista, mas, espe­cial­mente na exe­cução, nós ten­ta­mos man­tê-lo tão nat­u­ral­ista quan­to pos­sív­el. Então, ao invés de mon­tar a ilu­mi­nação por horas, nós mon­tá­va­mos tudo em cin­co min­u­tos, mudan­do algu­mas lâm­padas, colo­can­do algu­mas corti­nas nas janelas, e seguíamos em frente. Geral­mente eu falo sobre como min­ha lin­guagem visu­al vem da história – a história lhe diz como fotogra­far um filme. Para este filme, ela veio do meu ator, e eu sabia que Mick­ey gosta­va de liber­dade. Então eu ten­tei cri­ar um play­ground com­ple­ta­mente sem lim­ites pra ele, pra que ele pudesse basi­ca­mente sair do trail­er e andar 20 quadras se fos­se isso o que ele quisesse faz­er. É pra isso que nós está­va­mos pron­tos. Eu con­tratei uma cine­grafista que fez vários filmes nar­ra­tivos, mas tam­bém muitos doc­u­men­tários nat­u­rais, Maryse Alber­ti. Eu con­tratei um design­er de pro­dução [Tim Grimes] que me con­seguiu óti­mas locações pra tra­bal­har. A gente fez coisas como gravar em even­tos de ver­dade com fãs de wrestling de ver­dade e com luta­dores de ver­dade. Todo mun­do com quem Mick­ey lutou era profis­sion­al. A gente fre­quen­ta­va as arquiban­cadas. Aque­la cena onde Mick­ey está assistin­do a uma luta, ela ter­mi­na e todo mun­do está no camarim, e eu disse, “Mick­ey, vai pro camarim”, e a gente só pôs a câmera nas costas e foi atrás dele, impro­visamos com­ple­ta­mente aque­la cena. Na cena da mer­cearia, metade daque­les clientes eram pes­soas reais, não atores. Na ver­dade, uma hora o ger­ente veio me pedir, “Ei, você pode pedir pro Mick­ey escr­ev­er um pouco mel­hor?” Eu fiquei, tipo, “Do que você tá falan­do?” E ele disse, “Bom, ele tá dan­do coisas pras pes­soas, e os preços que ele escreve – quan­do elas olham, elas não con­seguem enten­der a letra dele”. Mick­ey não sabia quan­to cus­ta­va o qui­lo de nada! Ele só escrevia, e eles saíam com aqui­lo! Então era uma lou­cu­ra. Foi muito diver­tido poder tra­bal­har nes­sa veloci­dade de pega-a-câmera-e-grava.

    Ele treinou muito para as cenas da mercearia?
    Ele odi­ou as cenas da mer­cearia. Ele não que­ria estar lá de jeito nen­hum, então ele meio que se virou.

    Eu sin­ce­ra­mente sen­ti como se pudesse assi­s­tir a uma hora daquilo.
    [Risos.] Ain­da temos mais material.

    Os clientes de sobrenome “Aronof­sky” eram os seus pais?
    Sim, eles estavam lá.

    Como foi diri­gir seus pais?
    Mãe, gri­ta mais alto! Não, gri­ta de ver­dade! Não, gri­ta, mãe!” É diver­tido e eles gostaram pra caram­ba, então eu fico feliz de ter eles por perto.

    Deixar Rourke ter liber­dade chegou a atra­pal­har o filme?
    Se atra­pal­hou, foi cor­ta­do. [Risos.] Eu sou bas­tante bru­tal na sala de edição. Geral­mente, se algu­ma coisa não está fun­cio­nan­do, cai fora. Mas, ao mes­mo tem­po, às vezes ele faz algu­ma coisa incrív­el, mas vai ficar um pouquin­ho fora de tom porque é demais, de um jeito ou de out­ro. Então é só o tra­bal­ho de edi­tar, uma vez que você tem todo o mate­r­i­al, de cor­tar tudo isso fora.

    O públi­co que assiste ao wrestling sabe que ele é ence­na­do, mas ain­da meio que se deixa levar pela sua dra­mati­ci­dade. A coisa que os emo­ciona é quan­do ess­es caras arriscam sua saúde e suas vidas.

    Mick­ey Rourke

    Você acom­pan­hou a car­reira de Mick­ey Rourke antes? Como foi a sua exper­iên­cia em crescer nos anos 80 e 90 assistin­do Rourke?
    Eu era um tremen­do fã no fim dos anos 80, começo dos 90. E provavel­mente foi por isso que o escalei, porque eu era um grande fã imag­i­nan­do o que teria acon­te­ci­do com ele.

    Quais atu­ações em particular?
    Coração Satâni­co era um dos meus filmes favoritos. E, é claro, Barfly – Con­de­na­dos pelo Vício. Eu sem­prei achei que ele esta­va espetac­u­lar ness­es filmes. Eu lem­bro de assi­s­tir a Barfly, e então vê-lo ser indi­ca­do naque­le ano [ao Oscar de] Mel­hor Ator, porque ele nun­ca tin­ha sido indi­ca­do. Eu fiquei ator­doa­do. Aque­la atu­ação é tão marcante.

    Quem gan­hou naque­le ano?
    Eu não sei. Infe­liz­mente, foi um ano forte. As out­ras cin­co atu­ações… Bull Durham ou alguém assim, eu não sei. Foi um bom ano, aque­le. [Foi 1987. Michael Dou­glas gan­hou Mel­hor Ator por Wall Street – Poder e Cobiça, des­ban­can­do William Hurt, Mar­cel­lo Mas­troian­ni, Jack Nichol­son e Robin Williams.]

    Falan­do de Bull Durham, essas lig­as de wrestling são pare­ci­das com as segun­das divisões de out­ros esportes.
    Sim, defin­i­ti­va­mente. É exata­mente isso. São caras que não são bons o sufi­ciente para estarem no WWE. Hoje em dia, é o WWE e o resto. E o resto é um pun­hado de even­tos pequenos, o maior deles o Ring of Hon­or, que é a nos­sa últi­ma luta no ROH. Esse é o maior even­to fora do WWE. E nós pudemos tra­bal­har com eles, porque eles pre­cisam de toda exposição que con­seguirem, e são vis­tos como mais fiéis ao wrestling. Nós tra­bal­hamos com três even­tos. O out­ro foi o even­to mais hard­core do mundo.

    Há uma cena onde Rourke e Marisa Tomei falam sobre Kurt Cobain e como os anos 90 foram hor­ríveis, e os anos 90 como a morte da diver­são. Tem algo a ver com a idade deles ou eles tem algu­ma out­ra razão?
    [Risos.] Bom, Rob escreveu ess­es diál­o­gos. Havia muito mais diál­o­gos que eram ain­da mais engraça­dos, mas eles não fun­cionaram – os atores sofr­eram com eles. Mas, de qual­quer for­ma, Rob escreveu isso. Vou te diz­er, fica muito engraça­do no filme. Nas pou­cas vezes em que ele foi exibido, as pes­soas ama­ram. Acho que cutu­cou algo. Eu não acho que é só a inver­são de papéis ao colo­car Kurt como o vilão da história, que é uma visão pouco comum da coisa toda. Os anos 90 foram uma fes­ta, quero diz­er, talvez defin­i­ti­va­mente não para aque­le movi­men­to grunge, mas as pes­soas estavam fazen­do muito mais fes­ta nos anos 90 do que nos anos 80. Você não acha? Os anos 90 foram do ecsta­sy, os 80 dos yup­pies. Havia toda aque­la cul­tura do ecsta­sy. As pes­soas se diver­ti­am bas­tante nos anos 90.

    Sen­tir dor é o que nos faz sen­tir mais vivos!

    Todas as deixas musi­cais estão lig­adas ao glam met­al dos anos 80. O que faz wrestling e glam met­al com­bina­rem tanto?
    [Risos.] Tudo isso veio do Rob. Você pre­cisa saber que ele é um grande fã de glam met­al. A gente sen­ta­va lá e ele me con­ta­va dessas ban­das. Eu dizia, “Rob, eu pre­ciso colo­car essa músi­ca ago­ra – pre­ciso escol­her entre Scor­pi­ons, blábláblá e Accept, qual eu escol­ho?” E ele, “Scor­pi­ons!” Então eu acho que ele fez essa lig­ação muito bem, essas épocas se sobre­pun­ham. À medi­da que o filme começou a tomar for­ma, percebe­mos quão diver­tido e empol­gante ele seria. Era uma delí­cia ten­tar per­cor­rer toda aque­la músi­ca e escol­her aque­la cer­ta para cada momen­to, da músi­ca do Cin­derel­la no iní­cio a “Balls to the Wall” no final.

    Como os fãs e os luta­dores rece­ber­am o filme?
    Eu vou mostrá-lo logo para Vince [McMa­hon, pres­i­dente do WWE], então estou muito ani­ma­do com isso; provavel­mente irei até lá em algu­mas sem­anas. Mas, por enquan­to – basi­ca­mente ele só esteve em fes­ti­vais, e os úni­cos luta­dores que o assi­s­ti­ram foram os que nos aju­daram no filme – eles acham que mostramos bas­tante respeito pelo ofí­cio. Quan­to a Mick­ey, eles dizem que não há um só luta­dor no mun­do todo que pen­saria que ele não sabe lutar, e que ele é mel­hor que provavel­mente 80% dos caras por aí. Mick­ey ficou feliz em ouvir isso.

    Mas eu ando muito curioso para saber o que os vet­er­a­nos vão achar. Quan­do eu gan­hei o Leão de Ouro, eu dediquei o filme a todos os luta­dores, já que eu meio que com­par­til­hei suas histórias. Eles são uma classe úni­ca. Eles não são orga­ni­za­dos, não têm aposen­ta­do­ria, não tem plano de saúde, vários deles estão tragi­ca­mente mor­ren­do muito jovens. Eu fala­va com Mick­ey, “Por que não há luta­dores no SAG?” Se você pen­sar a respeito, o Screen Actor Guild [espé­cie de sindi­ca­to de atores estadunidense] dev­e­ria orga­nizá-los. Eu não dev­e­ria deixar Vince ouvir isso. Mas eles estão rep­re­sen­tan­do diante de câmeras, e até dublês fazem parte do SAG.

    A primeira vez que lhe entre­vis­ta­mos, depois de Pi, você ime­di­ata­mente expres­sou inter­esse em tra­bal­har num grande filme de Hol­ly­wood. Robo­cop será esse filme?
    Espero que sim. Eu fico chegan­do per­to, mas aí surge a opor­tu­nidade de faz­er algo sobre o qual eu prati­ca­mente vou ter con­t­role com­ple­to. Então é uma opor­tu­nidade difí­cil de deixar pas­sar, e aque­le filme grande ain­da não apare­ceu na hora cer­ta. Eu gostei da min­ha colab­o­ração com Hol­ly­wood em Fonte da Vida. Você encon­tra mui­ta gente esper­ta com mui­ta exper­iên­cia em filmes, e você pode con­seguir muito a par­tir daí, então eu estou esperan­do a chance pra que acon­teça. Robo­cop ain­da não tem um roteiro. Espero que acabe sendo um grande roteiro e que nós pos­samos fazê-lo.

    Você acha que Fonte da Vida encon­trou uma segun­da audiên­cia neste ponto?
    Ah, cer­ta­mente existe uma audiên­cia para Fonte da Vida. Eu diria que fica numa pro­porção de 30/70, só 30% das pes­soas real­mente enten­dem, e esse tipo de gente já viu ele algu­mas vezes. A real­i­dade é que é com­pli­ca­do faz­er um filme com­er­cial sobre aceitar a morte. Mui­ta gente quer ver pes­soas sendo mor­tas, não uma visão metafísi­ca da morte, então ele vai levar tem­po até encon­trar pes­soas que este­jam aber­tas a ele, e sem­pre vai haver gente que não está dis­pos­ta sob nen­hu­ma cir­cun­stân­cia a exper­i­men­tar aqui­lo. É o meu mel­hor tra­bal­ho, e o resul­ta­do final é o filme que eu que­ria faz­er, e sin­to muito orgul­ho dele. Min­ha intenção está toda lá.

    Então, mais psi­colo­gia pop para você: Por que as pes­soas querem assi­s­tir wrestling e vio­lên­cia, mas não lidar com um filme que tem a ver com a morte?
    Bom, é estran­ho, porque há um tema em O Luta­dor que é muito sim­i­lar ao tema de Fonte da Vida. [O per­son­agem de Rourke] acei­ta quem ele é e tem um tipo de mer­gul­ho no final pare­ci­do com [o de] Fonte da Vida. Eu acho que, no fim das con­tas, o wrestling não pas­sa de uma exten­são da luta glad­i­atória, porém mais cívi­ca no sen­ti­do de que as pes­soas não estão sendo mor­tas. É tirar toda a dinâmi­ca do bem con­tra o mal, mas, além dis­so, há todo o ele­men­to maso­quista do wrestling. Por que as pes­soas gostam de assi­s­tir alguém encar­an­do a morte e a dor, é, eu acho… Caram­ba, eu não sei, provavel­mente há mais um bil­hão de razões, mas eu acho que uma parte dis­so tudo é teste­munhar out­ras pes­soas pas­san­do por aqui­lo. Você pode sen­tir empa­tia, e isso faz você se sen­tir mais vivo, porque sen­tir dor é uma das coisas que nos faz sen­tir mais vivos. Aqui está a sua citação, “Sen­tir dor é o que nos faz sen­tir mais vivos!” [Risos.]

  • Dossiê Darren Aronofsky: Pi — Entrevista Traduzida

    Dossiê Darren Aronofsky: Pi — Entrevista Traduzida

    Quan­do assis­ti­mos algum filme de Dar­ren Aronof­sky é inevitáv­el o tur­bil­hão de sen­sações, ideias e ques­tion­a­men­tos que surgem em torno do enre­do. Os lon­gas do dire­tor são reple­tos de refer­ên­cias e sem­pre deix­am pon­tas para que o espec­ta­dor con­strua sua própria rede de deduções, o que por si só é fan­tás­ti­co. 3.141592.. — Pi (leia nos­so primeiro tex­to do Dos­siê Dar­ren Aronof­sky) é primeira entre­vista que vamos pub­licar, traduzi­da com exclu­sivi­dade pelo inter­ro­gAção, pub­li­ca­da orig­i­nal­mente no site do óti­mo A.V. Club (do grupo The Onion) e con­duzi­da por Joshua Klein. O dire­tor, lá em 1998, fala da exper­iên­cia de faz­er um filme de baixo orça­men­to total­mente foca­do em ideias, já con­sid­er­a­do cult na época, além de prom­e­ter con­tin­uar fazen­do filmes do mes­mo nív­el e con­ven­hamos, Dar­ren Aronof­sky con­seguiu man­ter o foco.

    Dar­ren Aronof­sky — 3.141592…

    Traduzi­do por Natália Bel­los

    Pro­du­to de Har­vard e do Amer­i­can Film Insti­tute, o cineas­ta Dar­ren Aronof­sky, nasci­do no Brook­lyn, parece ter sido des­ti­na­do a faz­er o extremo e int­elec­tu­al filme de ficção cien­tí­fi­ca, que gan­hou o prêmio de Mel­hor Dire­tor, na com­petição de dra­ma, em 1998, no Fes­ti­val de Cin­e­ma de Sun­dance.

    A tra­ma de Pi – um gênio da matemáti­ca desco­bre um elab­o­ra­do códi­go numéri­co e pre­cisa se pro­te­ger daque­les que querem sua descober­ta — resul­ta tan­to do perío­do de tem­po que ele pas­sou em um kibutz em Israel quan­to do “des­ti­no Wall Street” que muitos de seus ami­gos de infân­cia seguiram. 

    Des­de que o filme ger­ou o bur­bur­in­ho após sua exibição em Utah, Aronof­sky assi­nou um con­tra­to para pro­dução de vários filmes com a Mira­max. O The Onion con­ver­sou com Aronof­sky sobre o hype, fazen­do um filme de baixo orça­men­to pare­cer caro e a real­i­dade de comprometer-se. 

    Toda a atenção em torno do pré-lança­men­to que Pi rece­beu criou mui­ta pressão?

    Pressão para transar, talvez. 

    Bem, Pi não é um filme muito comercial… 

    Ah, você está erra­do quan­to a isso, amigo!

    Você acha que Pi é um filme comercial?

    É um filme pura­mente com­er­cial. É o filme mais com­er­cial desse verão. Você quer saber por quê? Porque a estrela do filme são as ideias.

    São as mes­mas ideias que deix­am as pes­soas curiosas há muito tem­po. Assista A pro­fe­cia celesti­na, leia The Bible Code, são best-sell­ers no mun­do todo. As pes­soas querem saber por que esta­mos aqui, o sen­ti­do da vida, quem é Deus, onde Ele está, o que Ele é. 

    São questões como essas que Pi brin­ca. Eu acred­i­to que se os donos de cin­e­ma não fos­sem uns bananas e as pes­soas percebessem os temas inter­es­santes trata­dos no filme, nós faríamos eles irem ao cinema. 

    O proces­so de fil­magem é uma espé­cie de retorno aos dias mais visuais dos indies, de dire­tores como David Lynch. A maio­r­ia dos filmes inde­pen­dentes atual­mente, se são de con­fron­to, quase nun­ca são estilis­ti­ca­mente con­frontantes. O foco é sem­pre o tema, como sexo, vio­lên­cia ou a lin­guagem. Pi é um ataque sen­so­r­i­al completo.

    Des­de o começo, nós sabíamos que queríamos faz­er um filme que fos­se com­ple­ta­mente orig­i­nal, úni­co e difer­ente, porque eu acred­i­to que o públi­co tem uma cer­ta fome após verem o mes­mo pastelão hol­ly­wood­i­ano sem val­or repeti­das vezes.

    Há sem­pre o inter­esse em ver algo novo. Filmes inde­pen­dentes rara­mente dão isso ao públi­co atual­mente. Quan­do eu era mais novo, os filmes que eu gosta­va, como Laran­ja Mecâni­ca – eu cos­tu­ma­va ir a sessões à meia-noite em Man­hat­tan e fica­va deslum­bra­do. Eu sem­pre quis faz­er um filme que fos­se exci­tante e desafi­ador como esse para o público. 

    A parte mais impor­tante do filme, e uma das razões pelas quais eu o acho com­er­cial, é que Pi é ape­nas um thriller. É um filme de perseguição, guia­do pela adren­a­li­na. Nós queríamos faz­er um pas­seio de mon­tan­ha-rus­sa por 90 min­u­tos, em que o públi­co ficas­se pre­so e se man­tivesse cola­do nos seus assen­tos. Com essa meta… Se nós cumprísse­mos o obje­ti­vo do thriller, eu sabia que nós podíamos forçar os temas um pouco e forçar o esti­lo. Se eu tivesse o públi­co sen­ta­do por todo o tem­po pen­san­do para onde o filme esta­va indo, eu sabia que podia brin­car com as out­ras coisas.

    É um filme pura­mente com­er­cial. É o filme mais com­er­cial desse verão. Você quer saber por quê? Porque a estrela do filme são as ideias.

    A ideia era, des­de o começo, faz­er algo que fos­se ao mes­mo tem­po visual­mente inter­es­sante e int­elec­tual­mente estimulante?

    Sim, nós con­stan­te­mente queríamos que fos­se difer­ente. Queríamos que fos­se visual­mente difer­ente de qual­quer coisa que qual­quer um já ten­ha vis­to. É por isso que nós fil­mamos em pre­to ou bran­co em oposição ao pre­to e bran­co; é por isso que nós mis­tu­ramos todos ess­es tipos novos e estran­hos de fil­magem (como o Heat-Cam e a Vibra­tor-Cam). Nós queríamos mudar as regras bási­cas da fil­magem e faz­er escol­has que eram novas na tela. 

    Isso foi difí­cil com um orça­men­to baixo?

    Ah, sim. É um desafio enorme. É muito mais fácil ape­nas ajus­tar a câmera no can­to e deixar a cena rolar, mas isso não seria grat­i­f­i­cante. Meus tipos favoritos de filmes me fazem sen­tir coisas como “Uau, isso é incrív­el”.

    Nós queríamos que nos­sa câmera fizesse isso pelas pes­soas. Nós sim­ples­mente a colo­camos em todos os lugares que podíamos. Nós fomos muito inspi­ra­dos pelos quadrin­hos. A mel­hor coisa dos quadrin­hos é que eles podem colo­car a “câmera” em qual­quer lugar. Não há prob­le­mas de orça­men­to quan­do se quer colo­car a câmera a 90 met­ros do chão. Então ten­ta­mos faz­er isso o máx­i­mo possível. 

    Afi­nal, quan­to o filme custou?

    Cus­tou U$60.000,00 para faz­er até o corte final. Toda a fil­magem e todos os cortes para video­tape. Cus­tou mais din­heiro para ser con­ver­tido para 35 mm* e deixá-lo com um som profis­sion­al. O filme que você vê na tela é defin­i­ti­va­mente de muito baixo orça­men­to, mas ele não parece. 

    *Blown up é o nome que se dá ao proces­so no qual o filme é grava­do em for­ma­to dig­i­tal e depois con­ver­tido para 35 mm, para que se ten­ha uma cópia em película. 

    É total­mente pau­ta­do em seu próprio esti­lo visu­al, então ele fun­ciona nesse nív­el [de baixo orça­men­to]. Com apoios, porém, você pode faz­er um filme por nada. Você sabe, empres­ta uma câmera , pega o filme de graça. Com Pi, o cus­to real incluin­do todos os favores que tive­mos seria astronômi­co. É facil­mente um filme de U$2 mil­hões com todos o apoio que tive­mos e com a equipe que tra­bal­hou receben­do o paga­men­to atrasado.

    É um monte de din­heiro. É por isso que ele parece um filme de U$2 mil­hões: na ver­dade é um filme de U$2 mil­hões. Mas em ter­mos de din­heiro real­mente gas­to, foram U$60.000,00.

    Eu acred­i­to que se os donos de cin­e­ma não fos­sem uns “bananas” e as pes­soas percebessem os temas inter­es­santes trata­dos no filme, nós faríamos eles irem ao cinema

    Você acha que a difí­cil situ­ação “din­heiro-primeiro, filme-depois” que muitos jovens cineas­tas enfrentam atra­pal­ha a cria­tivi­dade deles?

    Não, eu acho que expande total­mente a cria­tivi­dade. O prob­le­ma com muitos filmes de grande orça­men­to é que eles têm muito din­heiro, e então eles agem de maneira rotineira e mecâni­ca. Eu acho que quan­do você é lim­i­ta­do pelos seus recur­sos você tem que ser mais criativo. 

    Seus lim­ites cri­am sua real­i­dade, e den­tro dessa real­i­dade, você ten­ta trans­for­mar essas lim­i­tações em seus pon­tos fortes. No fim das con­tas, se algo não fun­ciona, você tem que cor­tar. Você não pode sim­ples­mente diz­er “Bem, eram três da man­hã e meu ator esta­va vom­i­tan­do, esta­va frio e é por isso que o filme ficou assim”. Você não pode faz­er isso. 

    Ou fun­ciona ou não fun­ciona. Pon­to. Fim. Então nós nem queríamos chegar nes­sa situ­ação. Nós basi­ca­mente per­gun­ta­mos “O que podemos faz­er?” E uma vez que nós sabi­amos, nós falam­os “Vamos levá-lo o mais longe que con­seguirmos e torná-lo o mais excep­cional que pud­er­mos nes­sa direção”.

    Já é desafi­ador faz­er out­ros filmes como este da sua estreia?

    Não, eu vou sim­ples­mente desafi­ar con­stan­te­mente os lim­ites o máx­i­mo que pud­er. Eu ten­ho um grande inter­esse em faz­er grandes filmes hol­ly­wood­i­anos, mas eu quero ter certeza de que eles sejam difer­entes e úni­cos. Eu acho que qual­quer empre­sa que fiz­er negó­cios comi­go vai esper­ar isso de mim. 

  • Dossiê Darren Aronofsky: Pi

    Dossiê Darren Aronofsky: Pi

    poster piVinte zero um. Aque­la capa pre­ta com um grande sím­bo­lo bran­co sem­pre me chama­va atenção na locado­ra, mas por algum moti­vo nun­ca loca­va ou chega­va muito per­to dele.

    Vinte zero três. Alguém aleatório em uma fes­ta de ano novo começa a con­ver­sar sobre filmes comi­go e comen­to da tal capa, ele então fala que ape­sar de mais difer­ente é um lon­ga fab­u­loso que eu dev­e­ria assi­s­tir. Acho inter­es­sante mas não dou mui­ta atenção, vou ali pegar um pouco mais de sal­a­da de batata.

    Vinte zero seis. Pare­cia perseguição, nova­mente aque­la imagem, deci­di final­mente ter cor­agem e ver a parte de trás da caixa, mas ao ver fotos em pre­to e bran­co, achei mel­hor ficar para a próx­i­ma vez, que não tin­ha ideia de quan­do era.

    Nota men­tal. Naque­la época ver filme ain­da era uma sim­ples fuga, as vezes até do filme em si.

    Vinte zero sete. Desafir­mo a suposição a respeito dos filmes na min­ha situ­ação atu­al. Algo havia muda­do den­tro de mim. Reafir­mo min­has novas suposições.

    Um. Filmes podem con­ter muito mais infor­mações do que imaginamos.

    Dois. A escol­ha por um tipo de lon­ga diz mui­ta coisa a respeito da situ­ação atu­al de uma pessoa.

    Três. Quase sem­pre é pos­sív­el decifrar infor­mações inter­es­santes ao assi­s­tir algo.

    Nota men­tal: escr­ev­er a respeito dessas coisas começa a pare­cer uma ideia interessante.

    Imagem filme PiVinte onze. O filme da capa estran­ha não é mais nada estran­ho. Já o assisti pelo menos umas seis vezes, seu títu­lo é Pi (EUA, 1998), dirigi­do por Dar­ren Aronof­sky, e o mes­mo está no topo da lista dos lon­gas que eu mais gos­to, assim como o dire­tor, que ocu­pa o segun­do lugar na min­ha lista de cineas­tas preferidos.

    Nota men­tal: é pos­sív­el cri­ar lis­tas para quase tudo.

    Pi foi a estréia de Aronof­sky no cin­e­ma, real­iza­do com um micro-orça­men­to de 60 mil dólares finan­cia­do pela família e ami­gos, mas já pos­suin­do todas as car­ac­terís­ti­cas bem par­ti­c­u­liares e muito pecu­liares do dire­tor. Max­imil­lian “Max” Cohen (Sean Gul­lette), o pro­tag­o­nista e nar­rador do filme, é um matemáti­co que acred­i­ta que tudo ao nos­so redor pode ser rep­re­sen­ta­do e enten­di­do através de números. Além dis­so, se rep­re­sen­tar­mos grafi­ca­mente os números de qual­quer sis­tema, padrões surgem. Por­tan­to, há padrões em toda a natureza.

    Poster Pi Thiago EsserApe­sar de trans­bor­dar em sim­bolis­mos, mitolo­gias, metá­foras e teo­rias, Pi pode ser vis­to de longe como um filme cha­to e maçante, mas ele não é nada dis­so, muito pelo con­trário. Assim como acon­tece em um tex­to do Jorge Luís Borges, após ser­mos quase que esma­ga­dos pela primeira avalanche de infor­mações, aparente­mente desconexas e sem muito sen­ti­do, a luz logo se tor­na tão inten­sa que chega a doer os olhos. Em con­tra­parti­da ao vol­ume de infor­mação, ao lon­go do filme há várias expli­cações feitas de for­ma muito com­preen­síveis para vários dos con­ceitos abor­da­dos, sem em nen­hum momen­to pare­cer aque­las aulas chatas ou total­mente fora do con­tex­to, como acon­te­ceu um pouco em uma cena de A Origem (2011) quan­do se vai explicar como fun­ciona o mecan­is­mo para entrar nos sonhos.
    Nota pes­soal: Torá, Cabala, Teo­ria do Caos, Euclides, Arquimedes, Pitá­go­ras, Fibonac­ci, Leonar­do da Vin­ci, Go, Pro­porção Áurea, Espi­ral Dourada.

    Tam­bém já é pos­sív­el notar um pouco do rit­mo frenéti­co e pico­ta­do, que mais tarde se con­sagrou em Réquiem para um Son­ho (2000), que muitas vezes cria uma ambi­en­tação de thriller no lon­ga. Além dis­so, o Pi tam­bém pos­sui alguns efeitos espe­ci­ais bem inter­es­santes, ape­sar do seu baixo orça­men­to, sendo um deles a cena em que é feito um zoom em cima de números, assim como o mem­o­ráv­el efeito do iní­cio do filme que Matrix (1999) fez no ano seguinte. Aliás, os filmes de Aronof­sky são bem con­heci­dos por resolverem várias questões de efeitos com­plex­os com solução sim­ples e baratas, mas que causam um efeito estonteante.

    Imagem filme PiA tril­ha sono­ra é out­ro pon­to alto de Pi, sendo o iní­cio de uma pro­lí­fi­ca parce­ria com Clint Mansell, que o acom­pan­hou de algu­ma maneira em todos os seus out­ros filmes. Para quem é fã deste tipo de músi­ca, envol­ven­do prin­ci­pal­mente som intru­men­tal, vai ado­rar escutá-la. Tam­bém recomen­do demasi­da­mente a tril­ha sono­ra do seu out­ro filme A Fonte da Vida, que para mim é a mel­hor de todas.

    A exper­iên­cia de assi­s­tir Pi pode ser um pouco difí­cil nos primeiro min­u­tos, mas uma vez super­a­da essa fase, é difí­cil não achá-lo no mín­i­mo per­tur­bador e cheio de pos­si­bil­i­dades de dis­cussões para quem acred­i­ta que através de números ou não, há muito o que ain­da con­hecer sobre as infini­tudes do novo uni­ver­so quântico.

    Out­ros tex­tos inter­es­santes sobre o filme Pi:

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=xzAjzoNOaaU