Dez anos. Esse foi o tempo que durou a parceria entre o ilustrador Eduardo Baptistão e o jornalista Daniel Piza. Durante esse período, Baptistão foi responsável pelas ilustrações da coluna Sinopse, assinada por Piza e publicada aos domingos no Caderno 2 do jornal Estadão (Estado de S. Paulo).
Premiado dentro e fora do Brasil, Baptistão é dono de um traço inconfundível, instigante e lúdico, característica que impactou Daniel Piza. Gentilmente, Eduardo abriu seu arquivo pessoal para compartilhar com todos os leitores e leitoras do interrogAção algumas das ilustrações que fez de Piza.
Confira também as impressões do ilustrador sobre a parceria de uma década:
Começo da parceria
Daniel já havia trabalhado no Estadão no início dos anos 1990, depois passou pela Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil. Voltou ao Estadão em 2000 como editor executivo e colunista de cultura e esportes. No início da publicação — uma coluna semanal no Caderno 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jornal o estilo que mais se adaptava à ideia que tinha, e acabou optando pelo meu. Durante todo o período em que publicou a coluna Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domingos em que eu não a ilustrei. Nessas ocasiões, em que eu estava em férias ou de folga em algum feriado, quem normalmente me substituía era o meu amigo e colega Carlinhos Muller. Coube ao Carlinhos, por sinal, ilustrar a última coluna que Daniel escreveu, pois eu cumpria a folga de Natal.
Daniel Piza no dia a dia
Daniel gostava de conversar. Por ser um cara muito culto e informado, eram sempre ótimos papos! Não éramos íntimos a ponto de abordar assuntos pessoais, mas sempre trocávamos ideias sobre a coluna, sobre o tema proposto e, muitas vezes, eu lhe perguntava se tinha alguma imagem em mente para a coluna da semana. Ele sempre confiou na minha interpretação e me deu carta branca para criar. Em vez de enviar o texto por e‑mail, coisa que raramente fazia, Daniel preferia levar o texto impresso até a minha mesa, e sempre fazia algum comentário sobre o assunto principal da coluna. Nessas ocasiões, eram também comuns as conversas sobre futebol, paixão que tínhamos em comum, embora fôssemos “rivais” – ele corintiano, eu palmeirense. Cheguei a jogar futebol com ele muitas vezes, nas peladas noturnas organizadas pelo pessoal da redação. Daniel tinha muito bom domínio de bola e vocação de artilheiro – mas, devo dizer, isso era facilitado pelo fato de jogar sempre “na banheira” [posição de impedimento].
Repercussão das ilustrações
É difícil falar sobre a repercussão das ilustrações, porque raramente eu tinha algum retorno do público sobre elas. De maneira geral, os leitores comentavam muito as colunas, mas eram raríssimos os comentários sobre as ilustrações. Lembro de um desenho, de um filho correndo em direção ao pai sentado no chão, que fiz para uma coluna sobre o dia dos pais, em que um leitor se declarou emocionado não só pelo texto, mas também pela imagem.
Filho correndo para o pai sentado no chão (Eduardo Baptistão)
Traços marcantes de Daniel Piza
Algumas colunas do Daniel eram escritas tão em primeira pessoa que me sugeriam usar a figura dele como personagem da ilustração. Mas, nessas ocasiões, eu optava por apenas sugerir o Daniel nos desenhos, sem me preocupar muito com a semelhança. No conjunto de ilustrações que fiz para a coluna ao longo do tempo, foram muitas em que o Daniel aparecia de alguma forma.
O que mais admirava no Daniel era a versatilidade e a produção caudalosa. Era notável a sua capacidade de escrever sobre qualquer assunto, do futebol à culinária, da arquitetura à religião, da política à ciência. E era notável também a quantidade absurda de colunas, reportagens, resenhas, artigos e livros que ele escrevia, assim como a quantidade de livros lidos, de shows, concertos, peças e filmes assistidos e de discos ouvidos para produzir às vezes uma única coluna! Eu sempre o usava como referência, pelo tanto que ele produziu em tão poucos anos de vida em comparação comigo, quatro anos mais velho e infinitamente menos produtivo. Mas eu acredito que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, acima da média.
Veja abaixo as ilustrações criadas pelo Eduardo Baptistão de Daniel Piza:
Em novembro de 2000, o jornalista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) concedeu uma entrevista direta e polêmica ao apresentador do programa Provocações (TV Cultura), Antônio Abujamra.
Nela, Daniel Piza fala sobre a prática do jornalismo cultural no Brasil e sua descaracterização: “O jornalismo cultural, em geral, é o jornalismo que eles chamam de variedades. Então, é a pequena reseinha [resenha] do último disco pop que saiu na Inglaterra, ou uma entrevista pingue-pongue com algum ator de Hollywood. Isso é o que chamam de jornalismo cultural no Brasil”, dispara.
Piza destaca que o público brasileiro tem “medo de opinião, medo de discussão, um público que prefere o populismo, o ‘da boca pra fora’, do que realmente você discutir coisas que tenham a ver, que façam sentido, que digam respeito à qualidade”.
As declarações do jornalista possuem um tom controverso, mas eruditamente fundamentado, estilo que acompanhou Daniel Piza durante toda sua carreira. Essa é uma das características marcantes nas reflexões e discursos que permeiam o trabalho de Piza, reconhecido como um dos maiores nomes do jornalismo cultural brasileiro. Reconhecimento e valorização que continuam após sua morte precoce, ocorrida no final de 2011.
Em artigo publicado em uma renomada revista cultural brasileira, o jornalista Daniel Piza escreveu sobre a influência da leitura na vivência dos personagens literários, criando ou destruindo determinados modelos comportamentais e processos de significação. Piza destacou a presença dos livros na transformação e no destino de protagonistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gustave Flaubert), Dom Quixote (personagem do livro homônimo escrito por Miguel de Cervantes), Hamlet (cultuada peça de Shakespeare) e Julien Sorel (O Vermelho e o Negro, de Stendhal). Os exemplos são muitos.
Em toda a história da literatura, existem personagens fortalecidos e metamorfoseados por meio do encontro libertador com a leitura, peça-chave na mudança de vida e consciência. Como destacou Piza, são as palavras vivas dos folhetins românticos que fazem Emma Bovary, por exemplo, detestar a “existência pela metade” que tem ao lado do frígido marido; as novelas de cavalaria encontradas em Amadís de Gaula são responsáveis por Dom Quixote, fidalgo sonhador, enveredar pela loucura fantasiosa com o intuito de viver uma existência com sentido, por mais paradoxal que isso possa soar quando se trata das aventuras imaginárias do cavaleiro visionário e de seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Ao escrever esse artigo, Daniel Piza não poderia imaginar que ele próprio se tornaria um personagem-leitor completo e inspirador. Nem mesmo a morte — que o arrancou precocemente do convívio neste plano, em dezembro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força suficiente para retirá-lo da lembrança de todos os que o amam e o admiram. E acredito que ela nunca encontre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da contribuição do jornalista para o universo cultural. Daniel foi prolífico em todas as atividades que se propôs a realizar, sejam elas suas produções jornalísticas, a publicação de seus 17 livros em apenas duas décadas de carreira, traduções e incontáveis pesquisas. A enorme capacidade de praticar todas as formas de texto jornalístico (entrevista, reportagem, crítica, crônica, ensaio, polêmica) e de optar pela independência do espírito são alguns dos atributos que o mantém perto do coração saudoso de seus leitores.
Comigo não é diferente. Com o passar do tempo, sinto ainda mais falta das ideias e opiniões expressas por Daniel nas colunas diárias e semanais, assim como na antiga ansiedade que eu nutria sempre que o lançamento de um novo livro do jornalista era anunciado. Diante dessa ausência, busco alternativas humanamente possíveis para visitar e revisitar o universo criado por Piza. Entre as opções deixadas pelo escritor e jornalista, escolhi “trazer para perto” o livro “Mistérios da Literatura: Poe, Machado, Conrad, Kafka” (editora Mauad, 2005, pág.119), um trabalho que une reflexão e impressão sensorial, linguagem técnica e memorialismo. Dividido em quatro capítulos, o autor registra nos títulos de abertura a essência do que o leitor pode encontrar em cada fase: os choques de consciência e descoberta impulsionados pela leitura de Edgar Allan Poe na adolescência; a confusão mental e as desilusões humanas que começam a ser experimentadas na fase juvenil, também percebidas nos personagens de Machado de Assis; os grandes riscos e escolhas observados por Joseph Conrad, sentidos na pele quando as responsabilidades e decisões batem à porta, e o eterno universo de incertezas que é a vida, uma solução milagrosa que nunca chega, como bem refletiu Franz Kafka em seus textos.
A escolha dos quatro escritores universais não foi feita de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebemos a conexão existente entre os ideais que começavam a se formar no adolescente que descobriu o mundo aos poucos, levantando questões sobre tudo o que instigava sua curiosidade ou o incomodava. Assim como os personagens clássicos da literatura, o jornalista e escritor paulistano percebia a leitura como uma aventura desafiadora onde podem ser descortinadas as “possibilidades de libertação”. Daniel traçou muitos caminhos e, certamente, descobriria outros tantos se tivesse tido tempo.
Foto: Grupo Estadão
No capítulo sobre Poe, o jornalista relembra momentos da sua infância ao assistir os registros guardados em rolos de filme Super‑8, posteriormente convertidos em DVD. Tais momentos são um autêntico baú de tesouros familiar, lembrado por Daniel com muito carinho. Caçula em uma família de quatro irmãos, o jornalista cita as brincadeiras, peladas, aniversários, temporadas na praia, viagens e festas juninas vividas ao lado dos irmãos Sérgio, Renato e Paulo. A infância é lembrada como uma fase doce, sem problemas ou amarguras, repleta de inocência e descobertas, e que por isso mesmo é difícil de abandonar. O começo da adolescência coloca todas as maravilhas por terra, revelando um mundo desconhecido e sombrio, tal qual a obra de Poe.
Daniel faz demorada referência ao conto Ligéia, publicado no livro “Histórias Extraordinárias”, e que o coloca em contato com espirais intensas de desejos, conhecimento e emoção, sentimentos que costumam aflorar com energia arrebatadora nos adolescentes. Desenvolvendo a capacidade de fazer referências e esmiuçar com refinamento detalhes técnicos, o escritor paulistano acrescentava combustível à sede de ampliar a consciência para o que lhe provocava a percepção e os sentidos. É também nesse capítulo que o leitor tem mais contato com a vida particular de Daniel, seja por meio de acontecimentos felizes da infância, como o bife de carne moída à milanesa da avó Toneta, ou nas primeiras tensões, como a descoberta da miopia.
Foto: Pânico Band — Podcast
Já no capítulo referente a Machado de Assis, escritor que Piza admirava e de quem se tornou biógrafo, os dilemas da fase juvenil têm início. Ao lado do mundo de obrigações que começa a despontar, o autor faz menção às questões levantadas por Machado através de seus personagens, perdidos em relações de enfrentamento, ilusões de grandeza e interesses disfarçados. O encantamento com Machado aconteceu por conta de uma desventura: em 1986, Daniel foi atropelado, e durante as sessões de fisioterapia esbarrou em “Quincas Borba”. A partir desse momento, uma “longa amizade unilateral” começou a surgir. Piza parece ter aprendido com Machado de Assis que as máscaras caem e que o comportamento humano é mais difuso e complexo do que poderia supor a nossa vã filosofia, como sentenciou Shakespeare em “Hamlet” e nos lembrou Machado no conto “A Cartomante”.
É também nessas digressões “piza-machadianas” onde descubro uma particularidade do jornalista que o aproxima da minha vivência. Assim como Piza, iniciei o curso de Direito esperando encontrar algo que me completasse, mas o que realmente achei foi um redemoinho de decepções. As minutas de contrato, as papeladas e legislações me asfixiavam, não dando espaço algum para a verve literária que trago flamejante dentro do peito. Desse modo, qualquer brocardo jurídico poderia ser capaz de me matar.
Daniel tomou outro caminho: encerrou o curso e optou por procurar espaço dentro do jornalismo, que se revelou sua verdadeira paixão. No meu caso, a situação já era de vida ou morte, então decidi abandonar os processos e seguir a minha carreira jornalística como profissão diplomada. Confesso que me emocionei bastante ao notar essa, dentre outras, similaridades com o jornalista e escritor que mais admiro. Outro gosto compartilhado é o concorrido pebolim, em que gastei horas dos meus recreios escolares pegando fila no salão de jogos do colégio para disputar uma partida. Em um vídeo compartilhado pela filha mais velha de Daniel Piza, Letícia, em uma fanpage do facebook, o jornalista tira de letra o pebolim ao disputar uma partida com outros profissionais do Estadão, veículo em que trabalhava quando faleceu.
Foto: Dulce Helfer/Agência RBS
Junto com o risco de viver, Daniel encontrou nas narrativas de Conrad um espelho que oferece muito mais do que reflexo, e sim uma eterna busca por caminhos que não podem ser manipulados, mas, ao contrário, são vividos no limite. As referências aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisitam o tema do homem e sua natureza selvagem, um instinto colocado à prova quando os extremos da cobrança física e emocional nos empurram em cima de cordas bambas sem rede de proteção. Piza se detém em Conrad justamente pelo risco, pela procura do desconhecido que parece sempre ter povoado a mente e o coração do jornalista. Nesse capítulo, Daniel fala do encanto inesquecível de algumas das muitas viagens que fez, relatando as sensações despertadas, além de trazer à tona a percepção da viagem como um projeto, um ato com finalidades além do passeio e do turismo, e sim como oportunidade de conhecimento.
A “fuga de olhos abertos” acontece quando percebemos o grande espaço de incertezas em que vivemos, onde placebos permanecem disfarçados de antídotos milagrosos. Esses pensamentos emergem na presença de Franz Kafka e no modo perturbador como o tcheco se relacionou com Piza por meio de obras como “Carta ao Pai”, “A Metamorfose”, “Narrativas do Espólio”, “O Silêncio das Sereias”, “O Pião”, “O Processo” e “O Castelo”. Nesse painel de ideias, percebemos como Daniel encontra ressonância na ruptura proposta por Kafka no que diz respeito a separação entre racional e irracional. Utilizando um aforismo de primeira ordem escrito por Daniel, “quanto mais escravizado pelo costume, mais o homem sonha com o clarão salvador”. A realidade é um mosaico de rotinas, costumes fabricados conscientemente e repassados de forma inconsciente. Por isso mesmo, forma um abismo profundo e perigoso. Ao terminar de ler o capítulo, lembrei da poesia que o russo Vladimir Maiakóvski dedicou ao poeta Sierguei Iessiênin, que cometeu suicídio em 1925, na qual as letras finais falam: “É preciso arrancar alegria ao futuro. Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício”.
Foto: Daniel Deak
No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitura”, com indicações preciosas de autores, livros e referências. Por sinal, no decorrer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomendações imperdíveis e cuidadosamente pesquisadas. Tudo refletindo o estilo renascentista, de múltiplos interesses e curiosidades que fez de Daniel Piza um nome eternizado e destacado no jornalismo brasileiro.
Como leitora e admiradora, ler “Mistérios da Literatura” me deixou mais próxima do ser humano fantástico que foi Daniel Piza. Com o livro, consegui me aproximar mais dos anseios que dominaram a infância, adolescência e idade adulta do jornalista, descobrindo semelhanças com minhas próprias vivências. Nesses dois anos de ausência, Daniel nunca deixou de inspirar a descoberta de novas ideias, e toda vez que penso em cultura e arte, levo em conta o que acabei aprendendo com ele por meio de uma “amizade unilateral” (termo que Piza usou ao falar do relacionamento que travou com Machado de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as minhas percepções, a capacidade de ler o mundo aliando inspiração e questionamento, racionalidade e o sentimento de ter meu coração saltando nas veias quando me deparo com um quadro de Leonid Afremov e Leonor Fini, ou com as composições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ainda quando leio Poe, Machado, Conrad, Kafka e outros muitos autores. Dentre eles, aquele que passou os 41 anos da vida buscando fazer uma existência de independência de espírito.
Se optarmos por contar o tempo da vida em termos de anos, e não de qualidade e de experiências, Daniel Piza viveu pouco, pouquíssimo. Mas se olharmos pelo lado da profundidade e da intensidade, Daniel fez cada segundo da vida valer a pena; para si e para os outros.
O diretor inglês Peter Greenaway já vem divulgando desde a década de 80 a sua ideia de que o cinema morreu e em seus últimos projetos, como na trilogia As maletas de Tulse Luper, expande a experiência do cinema inicialmente limitado apenas às suas salas escuras. Devido a exploração mercadológica cada vez maior nesta indústria, é fácil que subprodutos de um longa sejam produzidos para tentar simular esta expansão, mas na verdade são somente pequenos extras ou um making of do que já foi feito, não mudando realmente a experiência cinematográfica em si. Ou seja, são apenas outros meios para conseguir mais dinheiro do consumidor.
É aí que está a grande diferença da graphic novelThe Fountain, escrita por Darren Aronofsky e ilustrada por Kent Williams, que foi lançada pelo selo Vertigo da DC Comics em 2005 e ainda é inédita no Brasil. Apesar de ter sido praticamente desenvolvida em paralelo ao filme A Fonte da Vida, lançado em 2006 e dirigido pelo próprio Aronofsky, ela foi criada de maneira completamente independente. A base dos dois é a sua história, mas as semelhanças praticamente acabam por aí. Temos em cada um desses projetos uma versão diferente do enredo inicial, que utilizam ao máximo todas as possibilidades da mídia na qual foi adaptada, respeitando a sua própria linguagem e estilo. Algo similar acontece quando uma adaptação de um livro para as telas não tenta reproduzir a experiência da leitura, mas sim criar algo novo utilizando a linguagem do cinema.
Tomás em busca da Árvore da Vida
Se você ainda não conhece a história principal, ela narra em três diferentes tempos a jornada de um mesmo personagem (Tomás, Tommy e Tom) em busca da imortalidade para poder ficar junto a sua amada. As três narrativas vão se alternando e uma é interdependente da outra, ou seja, é necessário que o personagem resolva a mesma questão nesses espaços diferentes de tempo para que ele possa finalmente concluir a sua própria história.
Darren Aronofsky
Este provavelmente ainda é o projeto mais ambicioso de Aronofsky — posição que talvez vai ser tomada pelo seu novo longa Noé, previsto para 2014 — e também foi o que mais dividiu o público, como ele mesmo comentou em uma entrevista. Isso não só pelo estilo narrativo e pela complexidade dos cenários e situações, algo parecido com que o recente A Viagem dirigido por Tom Tykwer e pelos irmãos Wachowski fez, mas também pelo seu tema principal: aceitar a morte, ou o fim, assim como as nossas próprias limitações como seres humanos.
Tom em direção a Xibalba
Por conta do seu alto custo, o projeto foi oficialmente encerrado em 2002, mas o diretor resolveu reescrever todo o roteiro para que ele deixasse de ser uma super produção e seguisse a mesma linha de filmes indie de baixo orçamento, que o mesmo havia feito até aquele momento.
Kent Williams
Logo no início das negociações do filme, Aronofsky sabia que este seria um projeto muito difícil, então ele e o produtor lutaram de antemão para que os direitos da graphic novel fossem garantidos de qualquer forma. Quando entrou em contato com a Vertigo, lhe indicaram o artista Kent Williams e, apesar de não o conhecer, cada vez que ia recebendo mais exemplos de seus trabalhos, ficava ainda mais empolgado com essa parceria. Depois de iniciado as produções, eles brincavam bastante a respeito de qual dos dois iriam terminar primeiro, o longa ou a HQ. Quase houve um empate, mas a graphic novel ficou pronta um ano antes do filme.
Capas da série lançada pela Editora Abril
Williams é um ilustrador americano que já trabalhou para várias editoras de quadrinhos, sendo responsável pelas artes do Wolverine na aclamada série Wolverine & Destrutor: Fusão, lançado aqui no Brasil em quatro edições pela Editora Abril no ano de 1989. Hoje em dia ele deixou um pouco as HQs de lado para se focar mais em suas pinturas, apesar de ter admitido em uma entrevista que está trabalhando em um quadrinho autoral, mas que não tem prazo para terminar. Se você tiver interesse, pode acompanhar seus trabalhos mais recentes neste blog ou em seu site oficial.
Em The Fountain foi possível realizar graficamente todos os detalhes do enredo, que em outra mídia como o cinema, provavelmente seria financeiramente impossível. Este é na real é um dos grandes trunfos de uma história em quadrinho, em um desenho pode-se criar tudo que se imagina e até coisas que são impossíveis de existir. M.C. Escher era, por exemplo, um especialista nesta área, sem ficar se preocupando muito com orçamentos. Isso vale também no quesito de sair do pudor hollywoodiano, nos desenhos não é preciso lidar com a limitação dos estúdios e dos próprios atores. Por exemplo, os personagens da HQ estão completamente nus dentro da bolha, enquanto no filme estão vestidos dos pés á cabeça.
Tommy em busca da cura do câncer
No começo, os desenhos de Williams podem gerar um certo estranhamento, pois ele varia bastante o estilo ao longo da história. Os traços vão desde somente alguns contornos, parecendo um pouco com rascunhos, à páginas completamente coloridas até nos mínimos detalhes. Além dessa grande variação de detalhamento e cor, que cria uma personalidade muito interessante nos desenhos, se nota uma clara separação entre os três diferentes tempos que a história se passa, tanto pela divisão gráfica dos quadros e suas cores determinantes, quanto pela cor utilizada no fundo para preencher o espaço vazio.
O uso de somente duas fontes nos textos, uma para os diálogos e outra para narração, acaba quebrando um pouco toda essa diversidade dos desenhos, mas consegue assim manter uma experiência de leitura bem agradável. É interessante também notar que algumas legendas no início são descrições de sons ou estados dos personagens naquele quadro, como se fosse um roteiro para o filme, mas que durante o desenvolver da história assume uma linguagem mais característica dos quadrinhos.
Tom começando a aceitar o seu destino
Pode-se até pensar que The Fountain poderia ser algo como uma “versão do diretor” do longa, mas isto seria equivocado. Também está longe de ser um storyboard do mesmo. Como mencionei anteriormente, ela é uma experiência completamente diferente do filme, sendo uma nova interpretação ao invés de apenas mais uma repetição do que você já viu nas telas. Alguns talvez até podem afirmar que esta HQ é algo mais para um fã do longa ou do diretor. Não posso discordar desta afirmação, mas acredito que a mesma sobrevive tranquilamente como uma obra independente e única no mundo das graphic novels.
Como a HQ ainda é inédita aqui no Brasil, é possível comprá-la em inglês no site de livrarias como a Saraiva e a Cultura. Se você já comprou ou pretende comprar, uma experiência que pode ser bem interessante é a leitura dela junto com a trilha sonora do filme criada por Clint Mansell, que é simplesmente sensacional.
So this house is empty now There’s nothing I can do To make you want to stay So tell me how Am I supposed to live without you?
This House is Empty Now – de Elvis Costello e Burt Bacharach
O homem de cabelos claros, levemente avermelhados, aparência jovial, mas farto em gestos e expressões carregadas de uma maturidade muito acima da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aquele era Daniel Piza, diretamente dos livros, das impressões do jornal e da tela do computador para o auditório de um dos shoppings da capital piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “finalmente”. Ela começa em 2009 e se desenrola em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou convicta de que não. Como sibilou a poetisa Emily Dickinson:“To see the Summer Sky/ Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam). Dito isso, vamos atender a ordem afetiva dos acontecimentos. Teresina, 18 de março de 2011. Sexta-feira, último dia antes do final de semana, o aclamado suspiro de alívio que tantos trabalhadores, estudantes e até mesmo os adeptos do “ócio refinado” esperam em polvorosa, contando nos dedos. No meio dessa expectativa, às 9 horas da manhã, eu recebi a notícia de que o jornalista Daniel Piza, então editor-executivo e colunista cultural do jornal O Estado de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclusiva promovida pelo Festival Artes de Março, evento que reúne música, literatura e exposições artísticas. Particularmente, aquele seria o momento mais especial da minha vivência jornalística e literária até então. O sujeito que estava vindo participar da programação cultural do festival não era apenas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fizeram passar noites acordada na ânsia de terminá-los para recomeçá-los novamente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ minha grande inspiração nas águas ondulantes do Jornalismo Cultural; o homem que me proporcionou ver uma mudança nítida na forma de informar e partilhar cultura, fazendo com que o conhecimento associado à consciência saísse de um plano da inexistência típica dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há coragem, há iniciativa. E isso não se esquece.
O modelo de inspiração começou a se formar no meu íntimo em março de 2009, dois anos antes e, ironicamente, no mesmo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começado o curso de Jornalismo — um dos meus grandes projetos de vida -, eu estava às voltas com pesquisas bibliográficas e redação de um artigo sobre cultura, jornalismo, análise do discurso e exclusão social. Exatamente nesse período, uma das professoras da faculdade me entregou um livro fino, com uma imagem à moda antiga na capa e com o título de Jornalismo Cultural. Ao folhear distraidamente o livro para começar minhas anotações, não consegui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naquele momento, tive a certeza de que gostaria e deveria saber mais sobre o escritor que retomava tão bem os primórdios do Jornalismo Cultural e esboçava assuntos polêmicos, como a separação entre “alta cultura” e “baixa cultura” de forma lúcida, elegante, interessante. O autor? Um senhor de nome Daniel Luiz de Toledo Piza, nascido em São Paulo no ano de 1970 e formado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Como o destino é terra de ninguém, Daniel deu asas à tendência jornalística que lhe perseguia e enveredou pelos cadernos de cultura do Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, além de atuar como comentarista esportivo.
Coleção da Mara com títulos do autor
À época, para saber mais sobre o jornalista, fiz o que qualquer “indivíduo-máquina” do século XXI faria: dei uma “googleada” no nome Daniel Piza e descobri o blog pessoal do autor e inúmeras outras informações. Eu ainda não sabia, mas, ao executar essa procura, eu tinha encontrado o jornalista que viria a ser a minha maior inspiração desde então. Comecei a procurar livros, textos, artigos, ensaios, fragmentos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jornalismo Cultural” (editora Contexto), “Mistérios da Literatura – Poe, Machado, Conrad e Kafka” (editora Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Penta” (editora Nova Alexandria), “Contemporâneo de Mim – Dez anos da coluna Sinopse” (editora Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil), “Amazônia de Euclides” (editora LeYa) e “Dez Anos que Encolheram o Mundo” (editora LeYa). Apesar da pouca idade e cerca de vinte anos de carreira, Daniel escreveu e publicou dezessete livros, além de assinar traduções das obras de Bernard Shaw, Herman Melville e Henry James, nomes de peso da literatura mundial.
Tweet do jogador Ronaldo sobre a morte de Piza
Além de todas as láureas profissionais, Daniel Piza conseguiu o impossível: provocar minha curiosidade o suficiente para ler e pesquisar sobre futebol, esporte que está longe de alcançar qualquer inclinação da minha parte. Com títulos inusitados, que mais pareciam um anúncio para o Coliseu de Roma, o jornalista descrevia jogos, atletas, ambientes de competições e as tendências do momento. Através dos textos dele, eu soube, por exemplo, quem é Neymar, qual a importância real do Pelé (me desculpem os doutos na vida esportiva, mas devo confessar que não entendia nenhuma reverência ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns técnicos — e torcidas — são tão indigestos. Daniel era corintiano apaixonado e foi responsável por reportagens exclusivas, como o anúncio da aposentadoria do jogador Ronaldo, o Fenômeno, de quem era amigo. O jornalista, escritor e tradutor, filho da Dona Edith e do Sr. Heraldo Piza, e também, como ele mesmo gostava de se descrever, “casado com Renata Piza e pai de Letícia, Maria Clara e Bernardo”, segurava muitos leitores horas a fio na frente do computador, lendo e relendo (a releitura faz parte de um processo de aprendizado), artigos e matérias de conteúdo impecável, bem escrito e persuasivo. Todos os dias, às 7:15h da manhã, eu corria para o computador para me manter informada sobre as atualizações do blog que Daniel mantinha. No trabalho, em alguma folga, o esquema era o mesmo. Lembro de ter apertado F5 ( o que corresponde à operação de atualização) no teclado umas seis vezes em um só dia esperando novas postagens. Quando viajava ou me ausentava, procurava retomar as leituras perdidas e “subornar” com refrigerantes e doces caseiros o jornaleiro da banca que eu frequentava, para que ele guardasse pelo menos algumas edições do Estadão.
Daniel Piza e o fotógrafo Tiago Queiroz, em Sena Madureira (AC)
Até que, coincidentemente, em março de 2011, Daniel Piza aterrissou em solo piauiense pela primeira vez, com conferência marcada para 19h. Lá estava a minha oportunidade única – e por isso mesmo imperdível — de conferir o que o jornalista-referência dos meus textos e artigos tinha a dizer, agora presencialmente. Cheguei ao local com quatro horas de antecedência — sem necessidade, lógico — e fiquei flanando pela praça de alimentação e livraria. Às 18h, já estava na porta, observando o entra e sai de profissionais da imprensa e do colunismo social piauiense, todos querendo uma declaração, imagem ou gravação para seus respectivos veículos. Afinal, ali estava o autor de ensaios interessantes sobre literatura, onde um trabalho de pesquisa e a paixão o levaram a escrever a biografia de Machado de Assis.O fascínio pela união entre literatura e jornalismo o fez sair Amazônia a dentro para percorrer o caminho de Euclides da Cunha, ou ainda ter atrevimento e, acima de tudo, coragem, para dar opinião, apontar o dedo, dizer o que pensa com responsabilidade e conhecimento.
Ambiente de trabalho do Daniel Piza
Daniel Piza conseguia andar pelo futebol sem perna de pau, discorrer sobre política com certa passionalidade, mas com força argumentativa, e falar sobre música, literatura, artes plásticas e arquitetura, adentrando o universo cultural como ninguém. Assim, fica difícil mesmo não querer uma pontinha desse fenômeno, que muitos insistem em chamar de herdeiro de Paulo Francis, mas que agora, depois da maturidade que vem com leituras e reflexões, prefiro mencionar como protagonista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sentando em uma das primeiras filas, à esquerda, e consegui ver Daniel Piza concedendo entrevistas, reconhecendo terreno e falando sobre cultura, cultura e mais cultura. Do meu lugar, observava as expressões e o tom de voz — baixo e explicativo –, imaginando também que tinha me enganado um pouco. Lembro de ter concluído que a televisão e a internet aumentam as pessoas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão corporal transmitia serenidade.
Daniel Piza e Mara Vanessa Torres
No final do evento, impulsionada por um amigo mentalmente estável – já que minha timidez me prendeu solo abaixo -, troquei algumas palavras com Daniel Piza. Meu diálogo foi repleto de palavras balbuciadas, recheadas de constrangimento. Desnecessário. Notando minha timidez, o biógrafo do grande Machado de Assis simplesmente disse: “Não tem problema. Eu também sou tímido”. Desse momento, apenas um registro feito com câmera de celular. Tímido, como todas as boas inspirações. Na manhã do dia 31 de dezembro de 2011, 9 meses depois da vinda de Daniel Piza à minha cidade, recebo um SMS trucidante às 8h da manhã, dizendo que Daniel tinha sido vítima de um AVC (acidente vascular cerebral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vasto conhecimento e de alguém que soube ser o máximo de encanto em uma vida de desencanto. Daniel Luiz de Toledo Piza vive hoje no coração daqueles que o amam, nas feições de seus três filhos, no legado de obras publicadas, inúmeros textos jornalísticos, artigos, opiniões, prefácios e nas homenagens constantemente prestadas. No dia 04 de julho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A instituição de ensino fica situada em um bairro com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital fluminense, atendendo alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental. Mesmo de longe, Daniel continua transformando, criando e observando o mundo através das palavras. Um gênio raro, constelação intelectual de primeira grandeza. Que ele continue fazendo por muitos outros, inclusive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a consciência e despertar o entendimento para um mundo novo.
(…) Não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Daniel Piza
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por Keith Phipps, 18/12/2008, traduzido exclusivamente com permissão do The Onion.
O filme de estréia de Darren Aronofsky, Pi (1998) , provou seu poder de criar imagens cativantes e uma história atrativa com pouco dinheiro. A partir daí, seus orçamentos aumentaram, mas o foco continuou firme, e ele realizou mais dois filmes provocadores – a bem recebida adaptação do livro de Hubert Selby sobre as profundezas do vício, Réquiem para um Sonho (2000), e o menos bem recebido Fonte da Vida (2006), uma história entrelaçada de amor e morte rejeitada pelo público e por vários críticos, mas adorada por um crescente público cult. Trabalhando a partir de um roteiro de Rob Siegel (um antigo editor do Onion e – confissão – amigo do autor desta entrevista), O Lutador (2008) mostra Aronofsky voltando a um estilo ainda mais rigoroso do que o de sua estréia para explorar o mundo de um lutador profissional (um revelador Mickey Rourke) lidando com a possibilidade latente de que seus melhores dias já passaram. Logo depois de ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, Aronofsky conversou com o The A.V. Club sobre a linguagem secreta dos lutadores, como fazer o público levar o wrestling a sério e sobre dirigir seus próprios pais.
Onde fica o mundo real – dentro do ringue ou fora do ringue?
Da última vez que conversamos, você estava pronto para dirigir cerca de oito filmes diferentes. Por que este?
Eu passei quase um ano e meio fazendo pós-produção técnica em Fonte da Vida. Apesar de eu gostar do processo, acho que minha parte predileta de fazer filmes são os atores. Eu queria fazer algo que só tivesse a ver com as atuações, com bem poucos efeitos especiais. Eu dei uma olhada em todos os projetos que estávamos desenvolvendo e O Lutador com Rob [Siegel] estava bem adiantado, então nós começamos a concentrar todas as nossas atenções naquela direção.
Sendo o wrestling profissional um fenômeno tão grande, deve ter –
Bom, nunca houve um filme sério, eu diria, não que eu saiba. Anos atrás, quando eu me formei em cinema, eu escrevi uma lista de filmes possíveis, e um deles era chamado O Lutador. Existem tantos filmes de boxe que já chega a ser um gênero, mas ninguém tinha feito um filme de verdade sobre o wrestling. À medida que comecei a acompanhar aquele universo, pude perceber quão único ele era.
Parte do problema é que, com o boxe, há uma dúvida sobre qual vai ser o resultado, quem vai ganhar. Mas é diferente no wrestling. Que tipo de dificuldades isso trouxe?
Foi um desafio, no sentido de fazer uma luta no fim do filme que não dissesse respeito ao resultado como competição atlética, mas sim como consequência de uma decisão pessoal. Então esse foi um desafio complicado – e, também, como retratar algo que as pessoas percebem como falso e, basicamente, rejeitam. Como fazer uma investigação sincera desse mundo?
Então, como você fez?
Eu acho que o limite do que é verdadeiro e falso tornou-se um grande tema quando Rob e eu falávamos a respeito do filme logo no início, porque há esta ideia de “Onde fica o mundo real – dentro do ringue ou fora do ringue?” Essa foi a principal razão do Rob ter lutado para manter a stripper no filme. Eu estava disposto a mudar, porque, um filme independente com uma stripper… me deixava nervoso. Mas quanto mais a gente pensava a respeito, mais a gente percebia que as ligações entre a stripper e o lutador eram realmente significativas. Ambos usam nomes falsos, ambos vestem fantasias, ambos encantam um público e criam uma fantasia para esse público, e ambos usam seus corpos como sua arte, então o tempo é o seu maior inimigo.
Você pesquisou sobre o destino de lutadores e strippers depois que a idade acabou com suas carreiras?
Bom, strippers de idade… a gente não fez essa pesquisa. [Risos.] Mas era claro o que acontece com elas. Lutadores mais velhos, por muitos deles terem tido grande fama em algum ponto, continuam suas carreiras. Nós nos reunimos com vários dos grandes caras mais velhos, desde Greg “The Hammer” Valentine a Nikolai Volkoff, Superfly Snuka a Tony Atlas. Nós falamos com vários desses caras, tivemos longas conversas a respeito disso.
O filme todo acontece praticamente neste mundo onde as pessoas ou estão em ascensão ou em declínio. É um mundo que muitas pessoas nem sabem existir. Qual foi a coisa mais surpreendente que você descobriu ao observá-lo?
Há várias coisas singulares e interessantes – a fraternidade entre os lutadores, a rede de suporte. O fato de que eles falam seu próprio idioma, que é cheio de expressões “circenses”, o que me faz pensar que o wrestling provavelmente veio do negócio do “circo”, algo no estilo “Assista dois fortões lutando”. Eles chamam a audiência de “os alvos”, chamam a luta de “o espetáculo”. Eles têm tantas expressões que só fazem parte do seu próprio dialeto secreto. Até o jeito que lutam quando estão no ringue – fazendo sinais com as mãos uns pros outros ou dando tapinhas pra avisar o outro quando está na hora de entregar a luta. É um mundo muito complicado que vem de anos e anos de homens entretendo as massas.
Os anos 90 foram do ecstasy, os 80 dos yuppies. Havia toda aquela cultura do ecstasy. As pessoas se divertiam bastante nos anos 90.
E ele costuma ser retratado como um mundo basicamente sem rivalidade fora do palco. Isso é simplificar demais?
Tenho certeza que sim. Definitivamente existem caras que não são populares porque batem um tanto forte demais quando estão no ringue, eles chamam esse estilo de “stiff” (durão). Também há vários brincalhões no negócio, há sempre vários trotes sendo aplicados, e havia algumas cenas disso tudo que acabaram sendo cortadas do filme. Mas eu não acho que qualquer tipo de rivalidade seria proporcional às rivalidades dentro do ringue, se é isso que você está perguntando. Eles têm suas próprias políticas, com certeza.
Necro Butcher
Há uma cena memorável com uma luta absolutamente brutal. O que você acha que atrai a audiência ao se ter algo tão violento num evento de wrestling?
É um fenômeno interessante. Quero dizer, é inacreditável. O nível de brutalidade do filme não é nada perto do tipo de coisa que realmente acontece. O cara com quem Mickey Rourke luta naquela cena se chama Necro Butcher, que interpreta ele mesmo. So você for até o YouTube e procurar por “Necro Butcher”, você vai ver coisas mais hardcore do que qualquer coisa que a gente apresenta. Eu tenho teorias sobre a psicologia de porque essas pessoas têm prazer com isso, mas eu acho que entendo como tudo evoluiu.
Quando o WWF se tornou o WWE e basicamente admitiu que o wrestling era entretenimento e não esporte, praticamente todo mundo desistiu da ilusão de que aquilo era real, que não era encenado. O público que assiste ao wrestling sabe que ele é encenado, mas ainda meio que se deixa levar pela sua dramaticidade. A coisa que os emociona é quando esses caras arriscam sua saúde e suas vidas. Mesmo em eventos menos hardcore, eles ficam impressionados quando os caras dão aqueles saltos e giros malucos. No mundo hardcore, a coisa vai mais além, e as pessoas esperam que esses caras se machuquem para o seu entretenimento. Eu não acho que eles queiram que alguém morra, mas de alguma forma eles sentem prazer em saber que os caras estão se machucando de verdade. Eu acho que é uma competição direta com o que o MMA vem fazendo. É um jeito de manter o wrestling como um esporte sangrento, basicamente. Que tal a minha psicologia pop? [Risos.] Eu acho que é daí que tudo se origina, mas não tenho certeza.
Você mudou radicalmente seu estilo a cada filme. Por que tantas mudanças radicais?
Bem, eu tenho brincado que, se a Madonna nos ensinou alguma coisa, é que você precisa se reinventar. Eu acho que é importante, como diretor, ou qualquer pessoa trabalhando com arte, que você tente coisas novas, desafie-se e se arrisque. Eu tentei me arriscar em cada filme que fiz – nunca fiz do jeito fácil, e acho que é porque o que me anima é pôr uma montanha tão grande quanto eu puder na minha frente e fazer o possível para escalá-la.
Obviamente houve algumas desvantagens ao trabalhar com um orçamento tão pequeno e com uma proposta de câmera na mão, mas quais foram algumas das vantagens que você teve? Eu achei todo o processo de fazer esse filme bastante empolgante e divertido porque ele foi incrivelmente naturalista. O filme inteiro é muito naturalista, mas, especialmente na execução, nós tentamos mantê-lo tão naturalista quanto possível. Então, ao invés de montar a iluminação por horas, nós montávamos tudo em cinco minutos, mudando algumas lâmpadas, colocando algumas cortinas nas janelas, e seguíamos em frente. Geralmente eu falo sobre como minha linguagem visual vem da história – a história lhe diz como fotografar um filme. Para este filme, ela veio do meu ator, e eu sabia que Mickey gostava de liberdade. Então eu tentei criar um playground completamente sem limites pra ele, pra que ele pudesse basicamente sair do trailer e andar 20 quadras se fosse isso o que ele quisesse fazer. É pra isso que nós estávamos prontos. Eu contratei uma cinegrafista que fez vários filmes narrativos, mas também muitos documentários naturais, Maryse Alberti. Eu contratei um designer de produção [Tim Grimes] que me conseguiu ótimas locações pra trabalhar. A gente fez coisas como gravar em eventos de verdade com fãs de wrestling de verdade e com lutadores de verdade. Todo mundo com quem Mickey lutou era profissional. A gente frequentava as arquibancadas. Aquela cena onde Mickey está assistindo a uma luta, ela termina e todo mundo está no camarim, e eu disse, “Mickey, vai pro camarim”, e a gente só pôs a câmera nas costas e foi atrás dele, improvisamos completamente aquela cena. Na cena da mercearia, metade daqueles clientes eram pessoas reais, não atores. Na verdade, uma hora o gerente veio me pedir, “Ei, você pode pedir pro Mickey escrever um pouco melhor?” Eu fiquei, tipo, “Do que você tá falando?” E ele disse, “Bom, ele tá dando coisas pras pessoas, e os preços que ele escreve – quando elas olham, elas não conseguem entender a letra dele”. Mickey não sabia quanto custava o quilo de nada! Ele só escrevia, e eles saíam com aquilo! Então era uma loucura. Foi muito divertido poder trabalhar nessa velocidade de pega-a-câmera-e-grava.
Ele treinou muito para as cenas da mercearia?
Ele odiou as cenas da mercearia. Ele não queria estar lá de jeito nenhum, então ele meio que se virou.
Eu sinceramente senti como se pudesse assistir a uma hora daquilo.
[Risos.] Ainda temos mais material.
Os clientes de sobrenome “Aronofsky” eram os seus pais?
Sim, eles estavam lá.
Como foi dirigir seus pais?
“Mãe, grita mais alto! Não, grita de verdade! Não, grita, mãe!” É divertido e eles gostaram pra caramba, então eu fico feliz de ter eles por perto.
Deixar Rourke ter liberdade chegou a atrapalhar o filme?
Se atrapalhou, foi cortado. [Risos.] Eu sou bastante brutal na sala de edição. Geralmente, se alguma coisa não está funcionando, cai fora. Mas, ao mesmo tempo, às vezes ele faz alguma coisa incrível, mas vai ficar um pouquinho fora de tom porque é demais, de um jeito ou de outro. Então é só o trabalho de editar, uma vez que você tem todo o material, de cortar tudo isso fora.
O público que assiste ao wrestling sabe que ele é encenado, mas ainda meio que se deixa levar pela sua dramaticidade. A coisa que os emociona é quando esses caras arriscam sua saúde e suas vidas.
Mickey Rourke
Você acompanhou a carreira de Mickey Rourke antes? Como foi a sua experiência em crescer nos anos 80 e 90 assistindo Rourke?
Eu era um tremendo fã no fim dos anos 80, começo dos 90. E provavelmente foi por isso que o escalei, porque eu era um grande fã imaginando o que teria acontecido com ele.
Quais atuações em particular?
Coração Satânico era um dos meus filmes favoritos. E, é claro, Barfly – Condenados pelo Vício. Eu semprei achei que ele estava espetacular nesses filmes. Eu lembro de assistir a Barfly, e então vê-lo ser indicado naquele ano [ao Oscar de] Melhor Ator, porque ele nunca tinha sido indicado. Eu fiquei atordoado. Aquela atuação é tão marcante.
Quem ganhou naquele ano?
Eu não sei. Infelizmente, foi um ano forte. As outras cinco atuações… Bull Durham ou alguém assim, eu não sei. Foi um bom ano, aquele. [Foi 1987. Michael Douglas ganhou Melhor Ator por Wall Street – Poder e Cobiça, desbancando William Hurt, Marcello Mastroianni, Jack Nicholson e Robin Williams.]
Falando de Bull Durham, essas ligas de wrestling são parecidas com as segundas divisões de outros esportes.
Sim, definitivamente. É exatamente isso. São caras que não são bons o suficiente para estarem no WWE. Hoje em dia, é o WWE e o resto. E o resto é um punhado de eventos pequenos, o maior deles o Ring of Honor, que é a nossa última luta no ROH. Esse é o maior evento fora do WWE. E nós pudemos trabalhar com eles, porque eles precisam de toda exposição que conseguirem, e são vistos como mais fiéis ao wrestling. Nós trabalhamos com três eventos. O outro foi o evento mais hardcore do mundo.
Há uma cena onde Rourke e Marisa Tomei falam sobre Kurt Cobain e como os anos 90 foram horríveis, e os anos 90 como a morte da diversão. Tem algo a ver com a idade deles ou eles tem alguma outra razão?
[Risos.] Bom, Rob escreveu esses diálogos. Havia muito mais diálogos que eram ainda mais engraçados, mas eles não funcionaram – os atores sofreram com eles. Mas, de qualquer forma, Rob escreveu isso. Vou te dizer, fica muito engraçado no filme. Nas poucas vezes em que ele foi exibido, as pessoas amaram. Acho que cutucou algo. Eu não acho que é só a inversão de papéis ao colocar Kurt como o vilão da história, que é uma visão pouco comum da coisa toda. Os anos 90 foram uma festa, quero dizer, talvez definitivamente não para aquele movimento grunge, mas as pessoas estavam fazendo muito mais festa nos anos 90 do que nos anos 80. Você não acha? Os anos 90 foram do ecstasy, os 80 dos yuppies. Havia toda aquela cultura do ecstasy. As pessoas se divertiam bastante nos anos 90.
Sentir dor é o que nos faz sentir mais vivos!
Todas as deixas musicais estão ligadas ao glam metal dos anos 80. O que faz wrestling e glam metal combinarem tanto?
[Risos.] Tudo isso veio do Rob. Você precisa saber que ele é um grande fã de glam metal. A gente sentava lá e ele me contava dessas bandas. Eu dizia, “Rob, eu preciso colocar essa música agora – preciso escolher entre Scorpions, blábláblá e Accept, qual eu escolho?” E ele, “Scorpions!” Então eu acho que ele fez essa ligação muito bem, essas épocas se sobrepunham. À medida que o filme começou a tomar forma, percebemos quão divertido e empolgante ele seria. Era uma delícia tentar percorrer toda aquela música e escolher aquela certa para cada momento, da música do Cinderella no início a “Balls to the Wall” no final.
Como os fãs e os lutadores receberam o filme?
Eu vou mostrá-lo logo para Vince [McMahon, presidente do WWE], então estou muito animado com isso; provavelmente irei até lá em algumas semanas. Mas, por enquanto – basicamente ele só esteve em festivais, e os únicos lutadores que o assistiram foram os que nos ajudaram no filme – eles acham que mostramos bastante respeito pelo ofício. Quanto a Mickey, eles dizem que não há um só lutador no mundo todo que pensaria que ele não sabe lutar, e que ele é melhor que provavelmente 80% dos caras por aí. Mickey ficou feliz em ouvir isso.
Mas eu ando muito curioso para saber o que os veteranos vão achar. Quando eu ganhei o Leão de Ouro, eu dediquei o filme a todos os lutadores, já que eu meio que compartilhei suas histórias. Eles são uma classe única. Eles não são organizados, não têm aposentadoria, não tem plano de saúde, vários deles estão tragicamente morrendo muito jovens. Eu falava com Mickey, “Por que não há lutadores no SAG?” Se você pensar a respeito, o Screen Actor Guild [espécie de sindicato de atores estadunidense] deveria organizá-los. Eu não deveria deixar Vince ouvir isso. Mas eles estão representando diante de câmeras, e até dublês fazem parte do SAG.
A primeira vez que lhe entrevistamos, depois de Pi, você imediatamente expressou interesse em trabalhar num grande filme de Hollywood. Robocop será esse filme?
Espero que sim. Eu fico chegando perto, mas aí surge a oportunidade de fazer algo sobre o qual eu praticamente vou ter controle completo. Então é uma oportunidade difícil de deixar passar, e aquele filme grande ainda não apareceu na hora certa. Eu gostei da minha colaboração com Hollywood em Fonte da Vida. Você encontra muita gente esperta com muita experiência em filmes, e você pode conseguir muito a partir daí, então eu estou esperando a chance pra que aconteça. Robocop ainda não tem um roteiro. Espero que acabe sendo um grande roteiro e que nós possamos fazê-lo.
Você acha que Fonte da Vida encontrou uma segunda audiência neste ponto?
Ah, certamente existe uma audiência para Fonte da Vida. Eu diria que fica numa proporção de 30/70, só 30% das pessoas realmente entendem, e esse tipo de gente já viu ele algumas vezes. A realidade é que é complicado fazer um filme comercial sobre aceitar a morte. Muita gente quer ver pessoas sendo mortas, não uma visão metafísica da morte, então ele vai levar tempo até encontrar pessoas que estejam abertas a ele, e sempre vai haver gente que não está disposta sob nenhuma circunstância a experimentar aquilo. É o meu melhor trabalho, e o resultado final é o filme que eu queria fazer, e sinto muito orgulho dele. Minha intenção está toda lá.
Então, mais psicologia pop para você: Por que as pessoas querem assistir wrestling e violência, mas não lidar com um filme que tem a ver com a morte?
Bom, é estranho, porque há um tema em O Lutador que é muito similar ao tema de Fonte da Vida. [O personagem de Rourke] aceita quem ele é e tem um tipo de mergulho no final parecido com [o de] Fonte da Vida. Eu acho que, no fim das contas, o wrestling não passa de uma extensão da luta gladiatória, porém mais cívica no sentido de que as pessoas não estão sendo mortas. É tirar toda a dinâmica do bem contra o mal, mas, além disso, há todo o elemento masoquista do wrestling. Por que as pessoas gostam de assistir alguém encarando a morte e a dor, é, eu acho… Caramba, eu não sei, provavelmente há mais um bilhão de razões, mas eu acho que uma parte disso tudo é testemunhar outras pessoas passando por aquilo. Você pode sentir empatia, e isso faz você se sentir mais vivo, porque sentir dor é uma das coisas que nos faz sentir mais vivos. Aqui está a sua citação, “Sentir dor é o que nos faz sentir mais vivos!” [Risos.]
Quando assistimos algum filme de Darren Aronofsky é inevitável o turbilhão de sensações, ideias e questionamentos que surgem em torno do enredo. Os longas do diretor são repletos de referências e sempre deixam pontas para que o espectador construa sua própria rede de deduções, o que por si só é fantástico. 3.141592.. — Pi (leia nosso primeiro texto do Dossiê Darren Aronofsky) é primeira entrevista que vamos publicar, traduzida com exclusividade pelo interrogAção, publicada originalmente no site do ótimo A.V. Club (do grupo The Onion) e conduzida por Joshua Klein. O diretor, lá em 1998, fala da experiência de fazer um filme de baixo orçamento totalmente focado em ideias, já considerado cult na época, além de prometer continuar fazendo filmes do mesmo nível e convenhamos, Darren Aronofsky conseguiu manter o foco.
Darren Aronofsky — 3.141592…
Traduzido por Natália Bellos
Produto de Harvard e do American Film Institute, o cineasta Darren Aronofsky, nascido no Brooklyn, parece ter sido destinado a fazer o extremo e intelectual filme de ficção científica, que ganhou o prêmio de Melhor Diretor, na competição de drama, em 1998, no Festival de Cinema de Sundance.
A trama de Pi – um gênio da matemática descobre um elaborado código numérico e precisa se proteger daqueles que querem sua descoberta — resulta tanto do período de tempo que ele passou em um kibutz em Israel quanto do “destino Wall Street” que muitos de seus amigos de infância seguiram.
Desde que o filme gerou o burburinho após sua exibição em Utah, Aronofsky assinou um contrato para produção de vários filmes com a Miramax. O The Onion conversou com Aronofsky sobre o hype, fazendo um filme de baixo orçamento parecer caro e a realidade de comprometer-se.
Toda a atenção em torno do pré-lançamento que Pi recebeu criou muita pressão?
Pressão para transar, talvez.
Bem, Pinão é um filme muito comercial…
Ah, você está errado quanto a isso, amigo!
Você acha que Pi é um filme comercial?
É um filme puramente comercial. É o filme mais comercial desse verão. Você quer saber por quê? Porque a estrela do filme são as ideias.
São as mesmas ideias que deixam as pessoas curiosas há muito tempo. Assista A profecia celestina, leia The Bible Code, são best-sellers no mundo todo. As pessoas querem saber por que estamos aqui, o sentido da vida, quem é Deus, onde Ele está, o que Ele é.
São questões como essas que Pi brinca. Eu acredito que se os donos de cinema não fossem uns bananas e as pessoas percebessem os temas interessantes tratados no filme, nós faríamos eles irem ao cinema.
O processo de filmagem é uma espécie de retorno aos dias mais visuais dos indies, de diretores como David Lynch. A maioria dos filmes independentes atualmente, se são de confronto, quase nunca são estilisticamente confrontantes. O foco é sempre o tema, como sexo, violência ou a linguagem. Pi é um ataque sensorial completo.
Desde o começo, nós sabíamos que queríamos fazer um filme que fosse completamente original, único e diferente, porque eu acredito que o público tem uma certa fome após verem o mesmo pastelão hollywoodiano sem valor repetidas vezes.
Há sempre o interesse em ver algo novo. Filmes independentes raramente dão isso ao público atualmente. Quando eu era mais novo, os filmes que eu gostava, como Laranja Mecânica – eu costumava ir a sessões à meia-noite em Manhattan e ficava deslumbrado. Eu sempre quis fazer um filme que fosse excitante e desafiador como esse para o público.
A parte mais importante do filme, e uma das razões pelas quais eu o acho comercial, é que Pi é apenas um thriller. É um filme de perseguição, guiado pela adrenalina. Nós queríamos fazer um passeio de montanha-russa por 90 minutos, em que o público ficasse preso e se mantivesse colado nos seus assentos. Com essa meta… Se nós cumpríssemos o objetivo do thriller, eu sabia que nós podíamos forçar os temas um pouco e forçar o estilo. Se eu tivesse o público sentado por todo o tempo pensando para onde o filme estava indo, eu sabia que podia brincar com as outras coisas.
É um filme puramente comercial. É o filme mais comercial desse verão. Você quer saber por quê? Porque a estrela do filme são as ideias.
A ideia era, desde o começo, fazer algo que fosse ao mesmo tempo visualmente interessante e intelectualmente estimulante?
Sim, nós constantemente queríamos que fosse diferente. Queríamos que fosse visualmente diferente de qualquer coisa que qualquer um já tenha visto. É por isso que nós filmamos em preto ou branco em oposição ao preto e branco; é por isso que nós misturamos todos esses tipos novos e estranhos de filmagem (como o Heat-Cam e a Vibrator-Cam). Nós queríamos mudar as regras básicas da filmagem e fazer escolhas que eram novas na tela.
Isso foi difícil com um orçamento baixo?
Ah, sim. É um desafio enorme. É muito mais fácil apenas ajustar a câmera no canto e deixar a cena rolar, mas isso não seria gratificante. Meus tipos favoritos de filmes me fazem sentir coisas como “Uau, isso é incrível”.
Nós queríamos que nossa câmera fizesse isso pelas pessoas. Nós simplesmente a colocamos em todos os lugares que podíamos. Nós fomos muito inspirados pelos quadrinhos. A melhor coisa dos quadrinhos é que eles podem colocar a “câmera” em qualquer lugar. Não há problemas de orçamento quando se quer colocar a câmera a 90 metros do chão. Então tentamos fazer isso o máximo possível.
Afinal, quanto o filme custou?
Custou U$60.000,00 para fazer até o corte final. Toda a filmagem e todos os cortes para videotape. Custou mais dinheiro para ser convertido para 35 mm* e deixá-lo com um som profissional. O filme que você vê na tela é definitivamente de muito baixo orçamento, mas ele não parece.
*Blown up é o nome que se dá ao processo no qual o filme é gravado em formato digital e depois convertido para 35 mm, para que se tenha uma cópia em película.
É totalmente pautado em seu próprio estilo visual, então ele funciona nesse nível [de baixo orçamento]. Com apoios, porém, você pode fazer um filme por nada. Você sabe, empresta uma câmera , pega o filme de graça. Com Pi, o custo real incluindo todos os favores que tivemos seria astronômico. É facilmente um filme de U$2 milhões com todos o apoio que tivemos e com a equipe que trabalhou recebendo o pagamento atrasado.
É um monte de dinheiro. É por isso que ele parece um filme de U$2 milhões: na verdade é um filme de U$2 milhões. Mas em termos de dinheiro realmente gasto, foram U$60.000,00.
Eu acredito que se os donos de cinema não fossem uns “bananas” e as pessoas percebessem os temas interessantes tratados no filme, nós faríamos eles irem ao cinema
Você acha que a difícil situação “dinheiro-primeiro, filme-depois” que muitos jovens cineastas enfrentam atrapalha a criatividade deles?
Não, eu acho que expande totalmente a criatividade. O problema com muitos filmes de grande orçamento é que eles têm muito dinheiro, e então eles agem de maneira rotineira e mecânica. Eu acho que quando você é limitado pelos seus recursos você tem que ser mais criativo.
Seus limites criam sua realidade, e dentro dessa realidade, você tenta transformar essas limitações em seus pontos fortes. No fim das contas, se algo não funciona, você tem que cortar. Você não pode simplesmente dizer “Bem, eram três da manhã e meu ator estava vomitando, estava frio e é por isso que o filme ficou assim”. Você não pode fazer isso.
Ou funciona ou não funciona. Ponto. Fim. Então nós nem queríamos chegar nessa situação. Nós basicamente perguntamos “O que podemos fazer?” E uma vez que nós sabiamos, nós falamos “Vamos levá-lo o mais longe que conseguirmos e torná-lo o mais excepcional que pudermos nessa direção”.
Já é desafiador fazer outros filmes como este da sua estreia?
Não, eu vou simplesmente desafiar constantemente os limites o máximo que puder. Eu tenho um grande interesse em fazer grandes filmes hollywoodianos, mas eu quero ter certeza de que eles sejam diferentes e únicos. Eu acho que qualquer empresa que fizer negócios comigo vai esperar isso de mim.
Vinte zero um. Aquela capa preta com um grande símbolo branco sempre me chamava atenção na locadora, mas por algum motivo nunca locava ou chegava muito perto dele.
Vinte zero três. Alguém aleatório em uma festa de ano novo começa a conversar sobre filmes comigo e comento da tal capa, ele então fala que apesar de mais diferente é um longa fabuloso que eu deveria assistir. Acho interessante mas não dou muita atenção, vou ali pegar um pouco mais de salada de batata.
Vinte zero seis. Parecia perseguição, novamente aquela imagem, decidi finalmente ter coragem e ver a parte de trás da caixa, mas ao ver fotos em preto e branco, achei melhor ficar para a próxima vez, que não tinha ideia de quando era.
Nota mental. Naquela época ver filme ainda era uma simples fuga, as vezes até do filme em si.
Vinte zero sete. Desafirmo a suposição a respeito dos filmes na minha situação atual. Algo havia mudado dentro de mim. Reafirmo minhas novas suposições.
Um. Filmes podem conter muito mais informações do que imaginamos.
Dois. A escolha por um tipo de longa diz muita coisa a respeito da situação atual de uma pessoa.
Três. Quase sempre é possível decifrar informações interessantes ao assistir algo.
Nota mental: escrever a respeito dessas coisas começa a parecer uma ideia interessante.
Vinte onze. O filme da capa estranha não é mais nada estranho. Já o assisti pelo menos umas seis vezes, seu título é Pi (EUA, 1998), dirigido por Darren Aronofsky, e o mesmo está no topo da lista dos longas que eu mais gosto, assim como o diretor, que ocupa o segundo lugar na minha lista de cineastas preferidos.
Nota mental: é possível criar listas para quase tudo.
Pi foi a estréia de Aronofsky no cinema, realizado com um micro-orçamento de 60 mil dólares financiado pela família e amigos, mas já possuindo todas as características bem particuliares e muito peculiares do diretor. Maximillian “Max” Cohen (Sean Gullette), o protagonista e narrador do filme, é um matemático que acredita que tudo ao nosso redor pode ser representado e entendido através de números. Além disso, se representarmos graficamente os números de qualquer sistema, padrões surgem. Portanto, há padrões em toda a natureza.
Apesar de transbordar em simbolismos, mitologias, metáforas e teorias, Pi pode ser visto de longe como um filme chato e maçante, mas ele não é nada disso, muito pelo contrário. Assim como acontece em um texto do Jorge Luís Borges, após sermos quase que esmagados pela primeira avalanche de informações, aparentemente desconexas e sem muito sentido, a luz logo se torna tão intensa que chega a doer os olhos. Em contrapartida ao volume de informação, ao longo do filme há várias explicações feitas de forma muito compreensíveis para vários dos conceitos abordados, sem em nenhum momento parecer aquelas aulas chatas ou totalmente fora do contexto, como aconteceu um pouco em uma cena de A Origem (2011) quando se vai explicar como funciona o mecanismo para entrar nos sonhos.
Nota pessoal: Torá, Cabala, Teoria do Caos, Euclides, Arquimedes, Pitágoras, Fibonacci, Leonardo da Vinci, Go, Proporção Áurea, Espiral Dourada.
Também já é possível notar um pouco do ritmo frenético e picotado, que mais tarde se consagrou em Réquiem para um Sonho (2000), que muitas vezes cria uma ambientação de thriller no longa. Além disso, o Pi também possui alguns efeitos especiais bem interessantes, apesar do seu baixo orçamento, sendo um deles a cena em que é feito um zoom em cima de números, assim como o memorável efeito do início do filme que Matrix (1999) fez no ano seguinte. Aliás, os filmes de Aronofsky são bem conhecidos por resolverem várias questões de efeitos complexos com solução simples e baratas, mas que causam um efeito estonteante.
A trilha sonora é outro ponto alto de Pi, sendo o início de uma prolífica parceria com Clint Mansell, que o acompanhou de alguma maneira em todos os seus outros filmes. Para quem é fã deste tipo de música, envolvendo principalmente som intrumental, vai adorar escutá-la. Também recomendo demasidamente a trilha sonora do seu outro filme A Fonte da Vida, que para mim é a melhor de todas.
A experiência de assistir Pi pode ser um pouco difícil nos primeiro minutos, mas uma vez superada essa fase, é difícil não achá-lo no mínimo perturbador e cheio de possibilidades de discussões para quem acredita que através de números ou não, há muito o que ainda conhecer sobre as infinitudes do novo universo quântico.