Uma História de Sarajevo (2005), de Joe Sacco | HQ da Semana

Um dos con­fli­tos mais san­gren­tos da História retrata­do em quadrinhos

uma-historia-de-sarajevo-2005-de-joe-sacco-hq-da-semana-capaDiante das ten­sões políti­cas que estão explodin­do na Ucrâ­nia, Síria e uma pos­sív­el re-polar­iza­ção inter­na­cional, ten­to mon­tar o que­bra-cabeças indi­vid­ual des­ta con­jun­tu­ra tur­bu­len­ta. Esse “redesen­har” de fron­teiras do Leste europeu e adjacên­cias me obrigam a com­preen­der (como pro­fes­sor de História) min­i­ma­mente isso tudo. Assim, des­de que tive aces­so às reflexões de Edward Said com “Ori­en­tal­is­mo” (2007), da dire­to­ra de cin­e­ma Kathryn Bigelow e das con­ver­sas em sala de aula, fui atrás de novas refer­ên­cias sobre algo que descon­hece­mos: O out­ro lado do mapa.

No meu trân­si­to de leitor/HQ amador, encon­trei por aca­so dois nomes bem posi­ciona­dos no debate políti­co que segue: Joe Sac­co e Enki Bilal. Hoje quero falar de Sac­co, ape­sar de Bilal pos­suir algu­mas con­vergên­cias poéti­cas muito inter­es­santes com ele. Talvez o explore nas min­has próx­i­mas pon­tas soltas.

Após sor­rir e chorar com “Der­ro­tista” (2006) retiro da estante “Uma História de Sara­je­vo” (2005). Esse livro pren­deu min­ha leitu­ra numa sen­ta­da, pois ele rev­ela o quan­to descon­hece­mos as cica­trizes de um dos con­fli­tos mais san­gren­tos da História: o con­fli­to na Bós­nia entre 1992–95.

Joe Sacco (por Don Usner)

Joe Sac­co (por Don Usner)

Com seu tal­en­to volta­do para o jor­nal­is­mo em quadrin­hos, o escritor maltês desven­da o cenário de guer­ra a par­tir de um con­jun­to de lem­branças da sua fonte mais per­ti­nente: o ex-sol­da­do, Neven.

A par­tir de pequenos paga­men­tos (bebidas, almoços) a Neven, Sac­co é fis­ga­do para visu­alizar uma memória san­grenta, mar­ca­do por gru­pos para­mil­itares que coman­davam o con­fli­to na Bós­nia, for­ma­do por ex-pre­sidiários, mer­cenários, artis­tas e qual­quer um que deci­da lutar por Sara­je­vo “livre”.

Neven é seu guia, um com­pan­heiro fun­da­men­tal: “Enten­da, estou vul­neráv­el. É uma guer­ra pelo amor de Deus, e ago­ra que eu me envolvi nela pre­ciso de um ombro ami­go (…), alguém que me car­regue suave­mente pelas ruínas”.

Através da rigidez típi­ca do seu traço em p&b, somos lev­a­dos a um uni­ver­so com­ple­ta­mente descon­heci­do aos oci­den­tais (leitores da impren­sa ofi­cial), no qual o sig­nifi­ca­do da vida perde o val­or em nome da “limpeza étni­ca”, chamus­ca­da por uma com­plexa teia envol­ven­do religião, geopolíti­ca, intri­gas e morte.

Seu quadrin­ho-doc­u­men­tário nar­ra o proces­so de desin­te­gração da Iugoslávia (1991), enquan­to “na Bós­nia, a repúbli­ca de maior mis­tu­ra étni­ca, tudo parece estar em paz na cap­i­tal Sara­je­vo, enquan­to políti­cos nacional­is­tas sérvios debatem acalo­rada­mente o futuro da ter­ra que divi­dem”. Com o pós-guer­ra fria e o des­man­te­lo da URSS, novos inter­ess­es geopolíti­cos con­fig­u­ram-se, prin­ci­pal­mente a eman­ci­pação de país­es antes vin­cu­la­dos ao gigante soviéti­co. Na Bós­nia, a situ­ação não foi diferente.

Trecho de "Uma História de Sarajevo"

Tre­cho de “Uma História de Sarajevo”

Nesse sen­ti­do, Neven faz um retra­to da frag­men­tação a par­tir da for­mação de gru­pos arma­dos que bus­cam impedir o cer­co a Sara­je­vo pelos sérvios e croatas. No con­jun­to de sol­da­dos ded­i­ca­dos ao con­fli­to, os eixos nar­ra­tivos prin­ci­pais cir­cu­lam nas exper­iên­cias mil­itares como Ismet Bajramovic, Jusuf Praz­i­na, Musan Tapalovic e Ramiz Delal­ic, e seus pequenos impérios de sangue. Vale a pena fris­ar que não há didatismo na obra, aqui você não vai “apren­der” sobre o con­fli­to na Bós­nia, mas sim mer­gul­har nos seus destroços.

Ao tran­si­tar por estes líderes, Neven rela­ta uma história até então pouco con­heci­da sobre o con­fli­to, da ascen­são dos gru­pos para­mil­itares, as atro­ci­dades cometi­das aos civis, o impacto políti­co que tais “exérci­tos” provo­caram na esfera políti­ca nacional até seu enfraque­c­i­men­to total, após a Bós­nia neu­tralizar suas zonas de atu­ação “ile­gais”.

Página da HQ

Pági­na da HQ

Neven declara que “começam a se acu­mu­lar provas com­pro­m­ete­do­ras con­tra out­ros sen­hores da guer­ra (…) incluin­do o assas­si­na­to de cidadãos, em espe­cial sérvios (…) os anti­gos heróis de Sara­je­vo não serão per­doa­d­os. Eles ameaçaram a autori­dade do gov­er­no em casa e o enver­gonharam fora dela”.

Como con­fi­ar em Neven? Que lim­ites Sac­co esta­b­ele­ceu para con­stru­ir uma ponte entre a amizade e a con­fi­ança entre os dois? Afi­nal, o que este con­fli­to rep­re­sen­ta para nós? Para Bruno Gar­cia, “con­trar­ian­do o bom sen­so, o con­fli­to com­ple­ta [22] anos sendo melan­col­i­ca­mente igno­ra­do pela impren­sa inter­na­cional, que parece já ter extraí­do do even­to tudo que era pos­sív­el para vender jornais”.

A con­tribuição de Sac­co para ilu­mi­nar nos­sos olhares para o Out­ro reforça o abis­mo cri­a­do pelos oci­den­tais, diante de con­fli­tos expos­tos nos tele­jor­nais na hora do jan­tar. Até quan­do não vamos enx­er­gar as crises inter­na­cionais como algo que nos afe­ta dire­ta­mente? Inspi­ra­do em Edward Said, seria o Ori­ente um mito Oci­den­tal? Até quan­do as bom­bas vão explodir em nos­sa indifer­ença? Joe Sac­co, com “Uma História de Sara­je­vo”, provo­ca e atiça com o obje­ti­vo de reti­rar o leitor do lugar comum.


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