Category: Análises

  • O Vagabundo (1916), de Charles Chaplin | Análise

    O Vagabundo (1916), de Charles Chaplin | Análise

    vagabundo-charles-chaplin-analise-capaO primeiro plano do filme mostra aque­las car­ac­terís­ti­cas por­tas do tipo “saloon”. Depois de alguns segun­dos, por detrás das por­tas, surgem dois pés em um pas­so alarga­do, semel­hante ao de um pin­guim. É Chap­lin. Sim­ples assim. No lugar de sua car­ac­terís­ti­ca ben­gala, o Car­l­i­tos ago­ra está com um vio­li­no na mão. O filme é “O Vagabun­do” (The Vagabond), de 1916, real­iza­do para a pro­du­to­ra Mutu­al Film Cor­po­ra­tion. O cineas­ta Charles Chap­lin está com liber­dade total e recur­sos quase ilim­i­ta­dos, ain­da que com a “obri­gação” de pro­duzir 12 comé­dias de suces­so por ano. Sendo o ter­ceiro filme de um con­tra­to sub­stan­cial, já que o salário do primeiro ano fora de 670 mil dólares mais os bônus, em “O Vagabun­do” é pos­sív­el perce­ber uma ambição melo­dramáti­ca latente.

    Surgi­do em 1914, Car­l­i­tos (no orig­i­nal: Lit­tle Tramp) tem sua fac­eta sen­ti­men­tal ger­mi­na­da neste cur­ta. No enre­do, um vio­lonista itin­er­ante, Chap­lin, encon­tra uma jovem, Edna Purvionce, a primeira e eter­na musa do cineas­ta, apri­sion­a­da por um grupo de ciganos. Os dois fogem jun­tos e começam a morar na estra­da. Um pin­tor encon­tra Edna no meio da flo­res­ta e se encan­ta. Ele a hom­e­nageia em um quadro chama­do “A Irlan­da em pes­soa”. Quan­do este é expos­to em uma gale­ria, a mãe ver­dadeira de Edna recon­hece o retra­to de sua fil­ha. O pin­tor con­duz a mul­her ao encon­tro de Edna, que decide par­tir jun­to com ela, mas levan­do tam­bém o Vagabun­do. E tudo isso em 24 minutos!

    Com lon­gos planos aber­tos em uma câmera estáti­ca, o filme apre­sen­ta uma decu­pagem car­ac­terís­ti­ca do iní­cio do cin­e­ma. Os preenchi­men­tos dos enquadra­men­tos já demon­stram um artista em proces­so de sofisti­cação, o que fica níti­do logo na primeira gag (efeito cômi­co, pia­da) do filme. Car­l­i­tos toca seu vio­li­no em frente a por­ta de um bar, e, enquan­to isso, uma trupe de músi­cos chega em frente à out­ra por­ta do bar. Quan­do Car­l­i­tos aca­ba sua per­fo­mance, vai recol­her o din­heiro com os fre­quen­ta­dores do esta­b­elec­i­men­to. Pouco tem­po depois, um músi­co da trupe tam­bém vai pedir din­heiro, mas é rechaça­do já que momen­tos antes Chap­lin tam­bém tin­ha pedi­do din­heiro. Óbvio que isso aca­ba em mui­ta con­fusão e cor­re­ria. Mas o que me intri­ga, é como Chap­lin já pen­sa­va em usar o som como ele­men­to con­sti­tu­ti­vo de uma gag. E não só o som, mas a imagem. Há um enquadra­men­to, por exem­p­lo, em que é pos­sív­el ver, em primeiro plano, a trupe de músi­cos tocan­do e, em segun­do plano, no fun­do do quadro, um Chap­lin, bem pequeni­no, com seu vio­li­no. É uma con­strução dis­tin­ta, levan­do em con­ta­to a for­ma como eram usa­dos os planos gerais nos filmes daque­la época.

    Edna Purvionce, a primeira e eterna musa de Charles Chaplin
    Edna Purvionce, a primeira e eter­na musa de Charles Chaplin

    Ver Edna Purvionce na tela é sem­pre um praz­er, ain­da mais que em quase toda sua car­reira no cin­e­ma ela esteve ao lado de Chap­lin. O ros­to redon­do e afi­la­do da atriz, sem­pre soube faz­er caras e bocas per­feitas para os filmes do cineas­ta, cuja atu­ação encon­tra­va na per­for­mance de Edna uma figu­ra quase que ami­ga. Na ver­dade, olhar os dois na tela era, em muitos momen­tos, teste­munhar uma amizade artís­ti­ca. Em “O Vagabun­do”, Edna se desta­ca e real­mente incor­po­ra a “cigana escrav­iza­da”. Deixan­do de lado a aparên­cia angel­i­cal, a atriz está suja, com roupas ras­gadas e os cabe­los com­ple­ta­mente desengonçados.

    E Chap­lin é Chap­lin. Com planos aber­tos em meio a natureza, o vagabun­do como músi­co itin­er­ante é bril­hante, afi­nal, toda a fome e ener­gia do per­son­agem explode em uma per­for­mance mar­cante. O vio­li­no e o cor­po de Chap­lin se tor­nam um só. Car­l­i­tos inclu­sive chega a pas­sar o arco do instru­men­to em seu nar­iz! Com o vio­li­no, em momen­tos de har­mo­nia seu cor­po se move suave­mente, e em momen­tos de ten­são ele é con­traí­do e joga­do por uma força que, obvi­a­mente, Chap­lin se deixa levar, chegan­do inclu­sive a cair em uma bacia de água! Nes­ta cena, Chap­lin e Edna estão em rit­mos para­le­los. Enquan­to o vagabun­do se empol­ga com seu instru­men­to, a atriz tam­bém se deixa levar pela músi­ca, e no mes­mo instante em que o cor­po de Chap­lin se move de for­ma sel­vagem, Edna lava a roupa fre­neti­ca­mente. Pura sintonia!

    Chap­lin se livra dos ciganos que pren­di­am Edna e foge com ela, mas antes cospe na cara do cigano mal­va­do, inter­pre­ta­do pelo gigante Eric Camp­bel, porém de uma maneira “dis­tin­ta”, como aque­las belas está­tuas que jor­ram água pelos lábios. Em uma leve câmera baixa, Chap­lin toma as rédeas da car­ru­agem dos ciganos, e em um pequeno trav­el­ling (movi­men­to de câmara em que esta real­mente se deslo­ca no espaço) para trás, apre­sen­ta um boni­to plano com os “vilões” cor­ren­do deses­per­ada­mente pela estra­da. Depois, não há bons ou maus per­son­agens, somente descober­tas. Um pin­tor sem inspi­ração encon­tra Edna. Uma mãe des­o­la­da encon­tra sua fil­ha per­di­da. E o vagabun­do quase perde o que havia encontrado.

    vagabundo-charles-chaplin-analise-1

    Um dos grandes trun­fos de Chap­lin se dá na for­ma como ele uti­liza o cenário em sua vol­ta, em uma espé­cie de trans­fig­u­ração da real­i­dade. Há filmes do perío­do Mutu­al em que esta car­ac­terís­ti­ca é lev­a­da a extremos, ver “A Casa de Pen­hores” (1916), mas em “O Vagabun­do”, Chap­lin alia este poder de trans­for­mação a uma sen­si­bil­i­dade român­ti­ca, o que vai ser a pedra de toque de obras pos­te­ri­ores, como “O Garo­to” (1921) e “O Cir­co” (1928). Assim, são notavéis os sim­ples momen­tos de Chap­lin preparan­do “uma coz­in­ha ao céu aber­to” em uma mesa impro­visa­da, que­bran­do ovos com um marte­lo e lavan­do min­u­ciosa­mente o ros­to man­cha­do e mal­trata­do de Edna.

    No final, o pin­tor retor­na, em um car­ro, com a mãe de Edna e um grupo de pes­soas que estavam na exposição para o local onde Chap­lin mora­va. A sen­ho­ra, niti­da­mente rica, resolve dar um maço de din­heiro para Car­l­i­tos, que, sem titubear, recusa e ain­da afas­ta a ofer­ta com a pal­ma de sua mãe dire­i­ta – eis a elegân­cia de um vagabun­do. Neste momen­to, o sem­blante do Car­l­i­tos muda. Na ver­dade não é somente Car­l­i­tos ali, mas tam­bém o próprio Chap­lin. Na cena, há 4 atores em um plano amer­i­cano (quan­do a pes­soa é enquadra­da do joel­ho para cima), mas é níti­do como o cor­po do Vagabun­do enche o quadro.

    vagabundo-charles-chaplin-analise-2

    O críti­co e dire­tor francês François Truf­faut, escreveu que a primeira fase da car­reira de Chap­lin se per­gun­ta “Será que exis­to?”. Acred­i­to que out­ra per­gun­ta que tam­bém norteia esta fase é “Porque que eu exis­to?”, e no final de “O Vagabun­do” há uma respos­ta. Car­l­i­tos existe para aqui­lo: Abraçar Edna, tocar no próprio ros­to sur­pre­so pela par­ti­da da par­ceira, diz­er “Adeus peque­na garo­ta” (Good­bye Lit­tle Girl), sor­rir lev­e­mente e lev­an­tar a mão esquer­da, sem ace­nar, para um car­ro que leva a sua amada.

    Entre 1914 e 1922, Charles Chap­lin pro­duz­iu 69 cur­tas. Deste perío­do, a min­ha fase favorita é a da Mutu­al. Nos 12 filmes feitos para pro­du­to­ra é pos­sív­el ver um cineas­ta fervil­han­do de ener­gia e ideias. No entan­to, nes­ta época o cineas­ta esta­va pre­ocu­pa­do em agradar o públi­co, o que fez com que muitos dos filmes da Mutu­al tivessem finais felizes, apres­sa­dos e mal con­struí­dos. Exem­p­lo dis­so é o des­fe­cho de “O Vagabun­do”. Acred­i­to que se o cur­ta ter­mi­nasse com Chap­lin de costas para a câmera, olhan­do o car­ro de Edna indo emb­o­ra, o efeito seria mais coer­ente com a pro­pos­ta do cur­ta: apre­sen­tar um vagabun­do que sem­pre está procu­ran­do um lugar onde pos­sa se encaixar. No final, Edna tem um insight e fica deses­per­a­da. O car­ro vol­ta e Chap­lin vai emb­o­ra jun­to com os out­ros per­son­agens. Foi algo muito rápi­do. Não que um final feliz seja um prob­le­ma, mas há um con­traste entre a epi­fa­nia de Edna e o com­por­ta­men­to que ela esta­va apre­sen­tan­do des­de que con­heceu o pin­tor. Porém, esta difer­ença não prej­u­di­ca a con­strução do per­son­agem de Chap­lin no cur­ta. “O Vagabun­do” é uma peque­na aven­tu­ra sen­ti­men­tal que ain­da pode emo­cionar, afi­nal, assim como a obra-pri­ma melo­dramáti­ca “O Garo­to”, este é “um filme com um sor­riso, e talvez uma lágrima…”.

    Assista ao filme com­ple­to abaixo:

  • Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pin­tou pra lhe abusar. (…) E não adi­anta vir me dede­ti­zar. Pois nem o DDT pode assim me exter­mi­nar. Porque você mata uma e vem out­ra em meu lugar.

    Raul Seixas em “Mosca na Sopa”

    Sinôn­i­mo de incô­mo­do e despre­zo, a mosca é um dos inse­tos mais rechaça­dos do con­vívio social. Ela transtor­na reuniões famil­iares, impor­tu­na tradições de ordem e con­t­role, desnu­da as estru­turas assép­ti­cas. A mosca na sopa, per­son­ifi­cação ado­ta­da pelo com­pos­i­tor e músi­co brasileiro Raul Seixas, é uma anar­quista públi­ca e notória: sua pre­sença é hos­tiliza­da, mas inde­pende de aceitação; por mais que seja intim­i­da­da, vio­len­ta­da, apri­sion­a­da e dego­la­da, ela vol­ta em múlti­p­los pares. E é com taman­ha per­sistên­cia e deboche que elas, as famiger­adas moscas, comu­ni­cam sua mensagem.

    tatuagem-hilton-lacerda-analise-posterNo final da déca­da 1970, as moscas tam­bém mar­cavam pre­sença físi­ca e metafóri­ca em ter­ritório brasileiro. Para os agentes da ditadu­ra mil­i­tar, todo e qual­quer ele­men­to sub­ver­si­vo que aten­tasse con­tra a ordem, o gov­er­no e o trinômio “tradição – família – pro­priedade”, dev­e­ria ser sumari­a­mente extin­to. Naque­les anos de por­tas fechadas, entre a per­ife­ria de Recife e Olin­da, cidades do Nordeste brasileiro, o dire­tor Hilton Lac­er­da ambi­en­tou a história de uma trupe de artis­tas que cri­a­va um uni­ver­so próprio de irreverên­cia, zom­baria e auto­ria no teatro-cabaré Chão de Estre­las, cri­ação inspi­ra­da pelo grupo de teatro Viven­cial Diver­siones, que exis­tiu entre 1972 e 1981.

    Na ficção, o sis­tema pro­to­co­lar de regras, ordens, hier­ar­quia e dis­ci­plina do sis­tema mil­i­tar, exer­cia influên­cia angus­tiante em um tími­do recru­ta nasci­do e cri­a­do no inte­ri­or de Per­nam­bu­co, tor­nan­do-lhe penoso e mortífero o dev­er de sus­ten­tar uma más­cara que mal lhe cabe no ros­to. Esse é o fio con­du­tor da pólvo­ra que explode em “Tat­u­agem” (Brasil, 2013), filme do cineas­ta per­nam­bu­cano Hilton Lac­er­da em sua estreia como dire­tor depois de lon­ga exper­iên­cia como roteirista. A tra­ma traz como pano de fun­do o romance entre o agi­ta­dor cul­tur­al e per­former Clé­cio Wan­der­ley, inter­pre­ta­do pelo ator Irand­hir San­tos, e o sol­da­do raso Arlin­do Araújo, con­heci­do como Fin­in­ha, per­son­agem vivi­do por Jesuí­ta Bar­bosa.

    Chão de Estrelas, o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela
    Chão de Estre­las, o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela

    Tat­u­agem” fala de resistên­cia políti­ca, cri­ação explo­si­va, anar­quista, debocha­da, livre; é uma afir­mação do espaço daque­les que são esma­ga­dos por uma con­jun­tu­ra arma­da, mas que resistem, queimam, ren­o­vam. Na tra­ma, Chão de Estre­las nasce no seio da per­ife­ria, epí­grafe acen­tu­a­da no iní­cio do lon­ga-metragem com a fala de Clé­cio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela”, em clara refer­ên­cia aos inter­na­cional­mente con­heci­dos, cul­tua­dos e caros ambi­entes de apre­sen­tação artís­ti­ca e cor­po­ral da época. É nesse perímetro de rein­venções que o dire­tor Hilton Lac­er­da detém o olhar, crian­do uma nar­ra­ti­va audaciosa.

    Clé­cio e Fin­in­ha se con­hecem por meio de Paulete (Rodri­go Gar­cia), irmão da então namora­da do recru­ta. Enquan­to Clé­cio diri­gia um espetácu­lo debocha­do, Fin­in­ha vivia apri­sion­a­do nos dita­mes do quar­tel, detal­he expos­to logo nos min­u­tos ini­ci­ais, com a visão do rapaz enquadra­do pelas bar­ras dos belich­es — efeito cri­a­do pela uti­liza­ção do movi­men­to de zoom-out. O envolvi­men­to desse casal improváv­el, vai descorti­nan­do uma nova visu­al­iza­ção e entendi­men­to do mun­do, abrindo espaço para as sen­si­bil­i­dades de dois uni­ver­sos dis­tin­tos. Rodea­do pela liber­dade em todos os sen­ti­dos, Fin­in­ha vai, aos poucos, sentin­do seu cor­po como parte do proces­so artís­ti­co e viven­cial que explode no teatro do Chão de Estre­las. Assim como o mitológi­co can­to da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encan­tar o jovem recru­ta, mostran­do-lhe um ambi­ente de tro­ca de relações bem mais autên­ti­co do que cos­tu­ma­va vivenciar.

    Cena do filme “Tat­u­agem” mostran­do o “apri­sion­a­men­to” de Fininha

    No filme, o “cair da noite” assume uma sim­bolo­gia extrema­mente impor­tante ao abrir novas pontes de resistên­cia. Pontes que podem ser obser­vadas no públi­co que fre­quen­ta o teatro-cabaré, for­ma­do por homos­sex­u­ais, sim­pa­ti­zantes, mil­i­tantes da luta de class­es e int­elec­tu­ais esquerdis­tas – esta últi­ma figu­ra é ado­ta­da pelo pro­fes­sor Jou­bert (Sílvio Res­tiffe) e seus poe­mas de cun­ho políti­co e lib­ertário, além da sua pro­dução exper­i­men­tal, fei­ta com uma câmera Super‑8, dire­ciona­da para reg­is­trar os momen­tos mar­cantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estre­las. É através da noite, do ero­tismo, da luxúria escan­car­a­da, do cuspe anárquico em for­ma de per­for­mances ousadas com o cor­po e a lin­guagem, que “Tat­u­agem” vai traçan­do novas rotas de pere­gri­nação de for­ma arrojada.

    Hilton Lac­er­da

    O dire­tor Hilton Lac­er­da vem de uma lon­ga cam­in­ha­da como roteirista, trazen­do na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amare­lo Man­ga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parce­ria com o cineas­ta Cláu­dio Assis, e “Car­to­la – Músi­ca para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Fer­reira. A ener­gia em con­stru­ir detal­h­es faz a assi­natu­ra de Lac­er­da um difer­en­cial palpáv­el em “Tat­u­agem”.

    A opção por con­tar a história de amor entre dois home­ns gan­ha con­tornos autên­ti­cos: Clé­cio e Fin­in­ha divi­dem o afe­to ínti­mo com os espec­ta­dores; o romance – claro, dire­to, cru – não está ali ape­nas para inqui­etar os que ain­da desvi­am o olhar diante das cenas de bei­jo ou de sexo entre dois home­ns; o amor homos­sex­u­al e o choque de vivên­cias que ele rep­re­sen­ta (o agi­ta­dor cul­tur­al e o mil­i­tar) ultra­pas­sam a aco­modação da mil­itân­cia padroniza­da: nes­sa relação de polos opos­tos está o gri­to dos amores, gru­pos, movi­men­tos, pen­sa­men­tos, vidas e sen­ti­men­tos rotu­la­dos como per­iféri­cos. É esse o ele­men­to de pul­são lev­an­tan­do por “Tat­u­agem”, levan­do à der­ro­ca­da da hege­mo­nia das insti­tu­ições sagradas e do des­file dos tri­un­fantes. Para o pal­co e o públi­co do Chão de Estre­las, não há lugar para pre­con­ceitos, não há már­tires para cas­trações. O que existe no cabaré-teatro é o rompi­men­to de tradições; um lugar onde múlti­plas jor­nadas não se chocam, mas se com­ple­men­tam, ten­do como exem­p­lo máx­i­mo a figu­ra de Clé­cio: dire­tor, poeta, agi­ta­dor, anar­quista, amante e pai.

    o performer Clécio Wanderley (Irandhir Santos) e o soldado raso Fininha (Jesuíta Barbosa)
    o per­former Clé­cio Wan­der­ley (Irand­hir San­tos) e o sol­da­do raso Fin­in­ha (Jesuí­ta Barbosa)

    A liber­dade e a vivên­cia con­sciente tam­bém estão pre­sentes no con­ceito de família apre­sen­tan­do no filme. Tuca — fru­to do rela­ciona­men­to do agi­ta­dor cul­tur­al com Deusa, mãe solteira, adep­ta dos mes­mos ideais — cir­cu­la livre­mente pelas dependên­cias do cabaré, obser­van­do os tra­bal­hos de pro­dução do pai. Em uma cena sig­ni­fica­ti­va, Clé­cio pede à Deusa que não tra­ga mais o meni­no ao cabaré pois aque­le “não é lugar para cri­ança”. Nesse gan­cho, a mãe responde que “não há lugar ade­qua­do, e sim edu­cação ade­qua­da”, fazen­do refer­ên­cia dire­ta a um mod­e­lo edu­ca­cional que apos­ta na liber­dade, con­sciên­cia e tolerância.

    Toda essa provo­cação clara e sub­ver­si­va deixa ras­tros pelo filme e encon­tra out­ra forte rep­re­sen­tante com a per­son­agem Paulete. É na ale­gria do escân­da­lo que Paulete ali­men­ta o son­ho de ser ator recon­heci­do, dan­do mais vida ao lon­ga-metragem com suas piadas espir­i­tu­osas, seus berros e gestos cor­po­rais esfuziantes. É difí­cil destacar uma úni­ca cena drama­ti­za­da pelo ator Rodri­go Gar­cía na pele de Paulete: ele con­segue faz­er os holo­fotes cir­cu­larem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despu­do­radas ou caras e bocas risíveis. Gar­cía tem o poder de trans­for­mar a car­i­catu­ra do artista gay trans­vesti­do em indu­men­tárias fem­i­ni­nas, em uma ver­dadeira meta­mor­fose artística.

    Rodrigo Garcia como a personagem Paulete
    Rodri­go Gar­cia como a per­son­agem Paulete

    Há mui­ta inten­si­dade e aut­en­ti­ci­dade em “Tat­u­agem” – fato que ren­deu suces­so de críti­ca, prêmios e menções hon­rosas para o filme e seus atores. Mais uma pro­va de que rotas alter­na­ti­vas são pos­síveis, tan­to no âmbito do pen­sa­men­to quan­to na ação. O audio­vi­su­al brasileiro pre­cisa de olhares difer­en­ci­ais, novas lin­gua­gens, desafios, pos­turas e riscos, não só da parte dos pro­du­tores, mas tam­bém de espec­ta­dores. Cin­e­ma é feito de sen­si­bil­i­dades e da per­sistên­cia de “moscas” que não se intim­i­dam com o que está dito e feito, trazen­do para si a tare­fa de ques­tionar a nat­u­ral­iza­ção do mun­do. Con­stru­ir panora­mas é como tat­u­ar a pele: na mar­ca eterniza­da, pas­sa­do, pre­sente e futuro se comu­ni­cam em um mes­mo traço. E é no cam­in­ho que per­corre esse traço que está o novo.

  • Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    O bura­co do espel­ho está fecha­do, ago­ra eu ten­ho que ficar ago­ra. Fui pelo aban­dono aban­don­a­do, aqui den­tro do lado de fora.

    bicho-de-sete-cabecas-2001-reflexos-roubados-analise-posterO tre­cho aci­ma faz parte da músi­ca “O Bura­co do Espel­ho”, do can­tor e com­pos­i­tor brasileiro Arnal­do Antunes. A canção inte­gra a tril­ha sono­ra do filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), um retra­to duro, áci­do e humana­mente cru­el sobre a real­i­dade viven­ci­a­da pelos inter­nos de hos­pi­tais psiquiátri­cos. Dirigi­do pela cineas­ta Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolog­ne­si, “Bicho de Sete Cabeças” nar­ra a história de um jovem inter­na­do pelo pai em um man­icômio depois de ter sido fla­gra­do com cig­a­r­ros de macon­ha. O enre­do foi basea­do no livro “Can­to dos Malditos”, uma auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno (1957–2008), ex-inter­no de uma insti­tu­ição man­i­co­mi­al e, como muitos out­ros, víti­ma dos abu­sos, espan­ca­men­tos e tor­turas comu­mente prat­i­ca­dos nesse tipo de lugar.

    No lon­ga-metragem, Neto (pro­tag­on­i­za­do pelo ator Rodri­go San­toro) é um jovem de classe média baixa que vive con­fli­tos famil­iares por não se enquadrar no padrão de com­por­ta­men­to social­mente aceito, irri­tan­do espe­cial­mente seu pai (vivi­do por Oth­on Bas­tos). Atrav­es­san­do uma fase asso­ci­a­da à rebel­dia, Neto gos­ta de andar de skate, pichar muros, usar brin­cos e cabe­los com­pri­dos, fato que a figu­ra pater­na não acei­ta e oprime. A ausên­cia de diál­o­go e a repressão desme­di­da resul­tam no estremec­i­men­to da comu­ni­cação entre pai e fil­ho, levan­do-os à con­stante tro­ca de acusações e rompantes de agres­sivi­dade. A con­tínua ten­são e descon­fi­ança faz com que Wil­son, pai de Neto, deci­da internar o fil­ho em um hos­pí­cio depois de encon­trar cig­a­r­ros de macon­ha entre os per­tences do rapaz. A par­tir desse momen­to, a vida de Neto trans­for­ma-se em um ver­dadeiro abis­mo esque­ci­do den­tro do inferno.

    Encar­cer­a­do con­tra sua von­tade, o jovem tam­bém é igno­ra­do pelo psiquia­tra da insti­tu­ição, profis­sion­al que rara­mente aparece no lugar e cuja úni­ca pre­ocu­pação é con­seguir finan­cia­men­to, ain­da que isso sig­nifique cap­turar e internar pes­soas indis­crim­i­nada­mente. O padec­i­men­to de Neto e dos out­ros inter­nos ocorre das mais difer­entes for­mas, seja por meio de dro­gas anestési­cas e de sub­stân­cias como o metil­fenida­to, con­heci­do como “sossega leão”; ou da tor­tu­rante “camisa de força”, colete que apri­siona os mem­bros supe­ri­ores; bem como através de trata­men­tos com Eletro­con­vul­soter­apia (ECT), pop­u­lar­mente chama­dos de eletro­choques. Além dos tor­men­tos físi­cos, os “pacientes-pri­sioneiros” são humil­ha­dos, hos­tiliza­dos, bar­bariza­dos e esque­ci­dos, sofren­do forte coação de médi­cos e enfer­meiros, e sentin­do a indifer­ença e pre­con­ceito vin­dos da própria família. São seres humanos estigma­ti­za­dos, coisi­fi­ca­dos e trans­for­ma­dos em per­son­agens invisíveis, per­den­do sua liber­dade, dig­nidade, autono­mia e subjetividade.

    Autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno
    Auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno

    A cica­triz da inter­nação psiquiátri­ca cobra seu preço, e mes­mo depois de lib­er­a­do, Neto não con­segue se adap­tar ao mod­e­lo impos­to pela sociedade e pela família, e é nova­mente encar­cer­a­do no hos­pí­cio. O rapaz só con­segue sair após incen­di­ar a cela em que está e, final­mente, chamar a atenção do pai. No des­fe­cho do filme, acom­pan­hamos Neto envel­he­ci­do pelo sofri­men­to e pela dor. Depois de tudo o que enfren­tou, o rapaz trans­for­ma-se em uma som­bra de si mes­mo, angus­ti­a­do como o quadro “O gri­to” (1893), de Edvard Munch; des­en­can­ta­do como o gri­to de ‘Nun­ca mais’, do poe­ma “O Cor­vo” (1845), de Edgar Allan Poe, e abati­do como as com­posições der­radeiras do com­pos­i­tor clás­si­co alemão Robert Schu­mann.

    Pre­mi­a­do em fes­ti­vais nacionais e inter­na­cionais, “Bicho de Sete Cabeças” pos­sui uma atmos­fera que com­bi­na cin­e­matográ­fi­co e doc­u­men­tal, evi­den­ci­a­da pela nat­u­ral­i­dade dos diál­o­gos e atu­ação dos atores. O tema tam­bém for­t­alece a luta anti­man­i­co­mi­al ao apon­tar a dor e a desin­te­gração encon­tradas em espaços que con­tro­lam e reprimem para — toman­do de emprés­ti­mo a expressão cun­ha­da pelo filó­so­fo e pesquisador francês Michel Fou­cault — trans­for­mar sub­je­tivi­dades humanas em “cor­pos dis­ci­plina­dos, cor­pos dóceis”. Por não faz­er parte do enquadra­men­to social e com­por­ta­men­to impos­to pelas redes micro­bianas de poder, Neto foi apri­sion­a­do, cas­ti­ga­do e sub­meti­do a mecan­is­mos de remodelação.

    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”
    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”

    Situ­ações como as do pro­tag­o­nista do filme — de não adap­tação aos parâmet­ros esta­b­ele­ci­dos — tam­bém fiz­er­am com que muitas mul­heres fos­sem sen­ten­ci­adas à inter­nação em insti­tu­ições asi­lares, como o Hos­pí­cio do Juquery. O estu­do detal­ha­do de Maria Clementi­na Pereira Cun­ha em livros (O espel­ho do mun­do. Juquery, a história de um asi­lo – 1986), arti­gos (De his­to­ri­ado­ras, brasileiras e escan­di­navas: Lou­curas, folias e relações de gêneros no Brasil (sécu­lo XIX e iní­cio do XX)) e pesquisas mostra que a imposição de padrões ditos nor­mais para o com­por­ta­men­to fem­i­ni­no exer­cia papel deci­si­vo na inter­nação psiquiátri­ca. Assim como a per­son­agem do filme “Bicho de Sete Cabeças”, as mul­heres que estavam fora do padrão social esper­a­do eram con­sid­er­adas inad­e­quadas e, dessa for­ma, obri­gadas à cor­reção exemplar.

    “O grito” (1893), de Edvard Munch
    “O gri­to” (1893), de Edvard Munch

    A imposição do padrão de nor­mal­i­dade, difun­di­da com toda força pelos dis­cur­sos de natureza médi­ca de menos de um sécu­lo atrás, foi uti­liza­da den­tro dos hos­pi­tais psiquiátri­cos para jus­ti­ficar inter­nações e ações arbi­trárias. Além do grupo fem­i­ni­no, os demais mar­gin­al­iza­dos – pes­soas pobres, mis­eráveis, moradores de cor­tiços, operários, mendi­gos e todos os que sub­ver­ti­am a ordem esta­b­ele­ci­da – eram con­sid­er­a­dos propen­sos à devas­sidão, per­ver­são, lou­cu­ra e criminalidade.

    Out­ro pon­to inter­es­sante dev­i­da­mente rep­re­sen­ta­do no lon­ga-metragem de Laís Bodanzky diz respeito à figu­ra do psiquia­tra como autori­dade com­pe­tente, ates­ta­da cien­tifi­ca­mente para pro­duzir dis­cur­sos autor­iza­dos. No iní­cio de sua inter­nação, Neto ques­tiona enfer­meiros sobre o fato de estar ali, afir­man­do que eles não pode­ri­am man­tê-lo inter­na­do, pois não esta­va doente. Um dos enfer­meiros afir­ma a Neto que os pais do jovem já tin­ham con­ver­sa­do com o médi­co e expli­ca­do toda a situ­ação. No pron­tuário de Neto con­sta­va que ele era um rapaz “agres­si­vo, rebelde, que não respeita­va seus pais, mes­mo ten­do muito amor e diál­o­go em casa”, ou seja, o jovem já esta­va ficha­do e rotu­la­do assim que entrou no hos­pí­cio, e nada do que dissesse ou fizesse mod­i­fi­caria ou aten­uar­ia sua situ­ação. Neto perdeu a autono­mia, sua capaci­dade de decidir e sua liber­dade de ir e vir. Como expres­sa Alfre­do Naf­fah Neto em arti­go inti­t­u­la­do ‘O estig­ma da lou­cu­ra e a per­da da autono­mia’:

    Des­de o instante em que o estig­ma da lou­cu­ra lhe foi imputa­do, é como se no lugar do sujeito apare­cesse a doença men­tal; então, o dis­cur­so e as ações expres­sas pelo louco ces­sam de sig­nificar em si próprias, tor­nan­do-se ape­nas sin­tomas da doença.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    Dessa for­ma, aque­les que são mar­ca­dos com o estig­ma da lou­cu­ra são con­sid­er­a­dos inca­pazes – jurídi­ca, social e emo­cional­mente – de decidir sobre o seu próprio des­ti­no. Nas palavras de Naf­fah Neto: “O louco é trans­for­ma­do num fan­toche que deve ser manip­u­la­do pelo poder/saber médi­co”. Na lit­er­atu­ra, o poder dis­cricionário das autori­dades médi­cas, “cien­tí­fi­cas e com­pe­tentes”, pode ser obser­va­do no con­to “Só vim tele­fonar”, do autor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, e no con­to-nov­ela “O Alienista”, do escritor brasileiro Macha­do de Assis. De difer­entes maneiras, ambos tratam de ques­tionar a visão do saber médi­co como dis­cur­so incon­testáv­el, capaz de manip­u­lar, sub­ju­gar e aniquilar iden­ti­dades. Tan­to o hos­pí­cio como a prisão atu­am como insti­tu­ições de dis­ci­plina e con­t­role, crian­do novas modal­i­dades de fis­cal­iza­ção e domínio jus­ti­fi­cadas pela legit­im­i­dade científica.

    Rodrigo Santoro em  “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Marlene Bérgamo)
    Rodri­go San­toro em “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Mar­lene Bérgamo)

    Em arti­go inti­t­u­la­do “Lou­cu­ra e Crim­i­nal­i­dade: Desven­dan­do os mis­térios das moral­i­dades anô­malas”, Felipe da Cun­ha Lopes e Íta­lo Cris­tiano Sil­va e Souza dis­cor­rem sobre a asso­ci­ação entre lou­cu­ra e crim­i­nal­i­dade fei­ta pelo dis­cur­so médi­co teresinense entre as décadas de 1870 e final da déca­da de 1930. Segun­do o arti­go, os arti­c­ulis­tas que escrevi­am para jor­nais piauiens­es da época asso­ci­avam lou­cu­ra à práti­ca de crimes, ale­gan­do a existên­cia da insanidade em crim­i­nosos e da crim­i­nal­i­dade em loucos (basea­d­os na teo­ria da degenerescên­cia). Com base nes­sa ideia, percebe-se a “prob­lema­ti­za­ção da lou­cu­ra em função da vir­tu­al­i­dade crim­i­nosa”. Os autores do arti­go lem­bram que “(…) a psiquia­tria foi uma das prin­ci­pais fer­ra­men­tas uti­lizadas para jus­ti­ficar e elab­o­rar estraté­gias de con­t­role e trans­for­mação do com­por­ta­men­to do homem em sociedade”. Assim, a med­i­c­i­na trans­for­mou-se em fer­ra­men­ta indis­pen­sáv­el para man­ter dis­pos­i­tivos de con­t­role social.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    O regime de ver­dade e a imposição de uma supos­ta nor­mal­i­dade exigem trib­u­tos caros; preço que é pago a sangue e alma por um número ines­timáv­el de pes­soas que foram e con­tin­u­am sendo excluí­das, tran­cafi­adas e esque­ci­das. Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade extrap­o­lam pági­nas de livros e dados de pesquisas. Eles estão mar­ca­dos no coração dos sobre­viventes do Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG), do Juquery e muitas out­ras insti­tu­ições de con­t­role e domínio.

  • Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    dogville-analise-posterE a rachadu­ra na xícara de chá abre uma tril­ha para a ter­ra dos mor­tos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partin­do dessa imagem, percebe­mos uma alame­da silen­ciosa e intrin­ca­da de caos, dúvi­das e inse­gu­ranças invadin­do o rotineiro e con­fortáv­el espaço social, per­son­ifi­ca­do pela figu­ra de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem vol­ta, pois pen­e­tra no esta­do de espíri­to de um grupo, nação ou comu­nidade, desnudan­do sim­u­lações e fazen­do cair más­caras. Esse é o cenário esboça­do pelo filme Dogville (2003), dirigi­do pelo dire­tor dina­mar­quês Lars von Tri­er, e cuja temáti­ca será obje­to de mapea­men­to, reflexão e análise no que con­cerne ao imag­inário mate­r­i­al da cidade e dos per­son­agens fictícios.

    A história do lon­ga-metragem se pas­sa em uma vila chama­da Dogville, habita­da por pes­soas sim­ples, com anseios modestos e sem per­spec­ti­vas de mudança. Situ­a­do entre mon­tan­has, o vilare­jo tem pouquís­si­mo con­ta­to com o mun­do exte­ri­or, isolan­do os moradores aos lim­ites do lugar. A roti­na mecan­iza­da de Dogville reflete em uma comu­nidade aco­moda­da, sem capaci­dade cria­ti­va e com­ple­ta­mente entor­peci­da. Um de seus moradores, o aspi­rante a escritor Tom Edi­son (inter­pre­ta­do pelo ator Paul Bet­tany), avo­ca para si a autori­dade de “líder-comu­nitário” e ten­ta inserir novas ideias e dis­cussões no seio da comunidade.

    Em um dado momen­to, a empoeira­da vila é toma­da de assalto pela pre­sença de Grace (vivi­da pela atriz Nicole Kid­man), forasteira que chega furtiva­mente à Dogville. Tom é o primeiro a ter con­ta­to com Grace, interce­den­do por ela per­ante os out­ros mem­bros do grupo. Depois de uma assem­bleia, fica deci­di­do que Grace terá duas sem­anas para con­quis­tar a con­fi­ança do povoa­do e, sug­es­tion­a­da por Tom, a forasteira decide ofer­e­cer sua aju­da aos habitantes.

    dogville-analise-1

    A “rachadu­ra na xícara”, ini­ci­a­da com o aparec­i­men­to de Grace, se estende durante toda a sequên­cia do filme, divi­di­do em nove capí­tu­los. No decor­rer da tra­ma, mudanças sub­stan­ci­ais acon­te­cem no pequeno vilare­jo e o ar de feli­ci­dade idíli­ca dá lugar à nuvem de fumaça den­sa, fúne­bre e tene­brosa. A pop­u­lação de Dogville começa mostran­do medo e descon­fi­ança em relação à per­manên­cia de Grace na cidade, mod­i­f­i­can­do o pen­sa­men­to pouco depois, já que todos os quinze habi­tantes estavam sendo ben­e­fi­ci­a­dos pelo tra­bal­ho da forasteira. O enre­do segue até rev­e­lar a ver­dadeira face de Dogville: de ami­gos acol­he­do­res, os habi­tantes pas­sam a predadores vorazes, tratan­do Grace como obje­to, esma­gan­do sua iden­ti­dade, desumanizando‑a.

    Para enten­der como se dá a con­strução do imag­inário mate­r­i­al da cidade e de seus habi­tantes, cabe destacar a apos­ta do dire­tor Lars von Tri­er em um esti­lo cin­e­matográ­fi­co híbri­do, em que fig­u­ram ele­men­tos teatrais e literários. Com essa mis­tu­ra, as noções de real e irre­al se entre­laçam e sub­vertem os mod­e­los padrões, alteran­do tam­bém a per­cepção de ver­dadeiro e fal­so. O lon­ga-metragem apre­sen­ta car­ac­terís­ti­cas do teatro grego (insti­ga o dese­jo do espec­ta­dor pela vio­lên­cia crua), teatro do absur­do (inter­ação dos atores com obje­tos imag­inários), bem como a ausên­cia de fun­do musi­cal. Out­ro fator deci­si­vo na con­strução do filme é a uti­liza­ção de cenários desta­ca­dos no chão, mar­can­do a pre­sença de cada habi­tante no ambi­ente um do out­ro, e o uso de pare­des pre­tas (teatro caixa-pre­ta), val­orizan­do assim um for­ma­to mais intimista, volta­do à dra­mati­ci­dade e tensão.

    dogville-analise-2

    A fal­ta de “dis­trações cêni­cas” per­mite que o espec­ta­dor con­cen­tre a atenção nas relações que se embaraçam e desem­baraçam na cadeia dos acon­tec­i­men­tos. Dessa for­ma, obser­va-se a con­strução de Dogville como uma cidade para­da no tem­po, víti­ma de sua própria amar­gu­ra e solidão. A cul­tura da repetição, medioc­ridade e imutabil­i­dade toma con­ta do pequeno espaço, afo­gan­do os moradores em uma espé­cie de tor­por cego. Pre­sos em ideias fixas, eles não con­seguem enx­er­gar além dos seus próprios muros, e mes­mo inte­gran­do o todo — rep­re­sen­ta­do pelo espaço comu­nitário — os mem­bros de Dogville não se recon­hecem como indivíduos.

    Os moradores per­dem a maior parte das horas do dia em suas ativi­dades cotid­i­anas, cuja úni­ca ori­en­tação vem do bada­lo monocór­dio do sino da igre­ja, admin­istra­do por uma habi­tante da vila, já que nen­hum padre jamais apare­ceu no local. Den­tre os habi­tantes, estão casais infe­lizes e apáti­cos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e edu­car os fil­hos; fab­ri­cantes de obje­tos e pro­du­tos sem qual­i­dade, mas que logram em cima da comu­nidade através de preços exor­bi­tantes (família Hen­son e sen­ho­ra Gin­ger); home­ns hipocon­dría­cos ou que se recusam a aceitar a enfer­mi­dade (dois extremos, rep­re­sen­ta­dos pelo ex-médi­co Thomas Edi­son, pai do autoin­ti­t­u­la­do escritor Tom, e o irascív­el cego McK­ay); além do trans­porta­dor de car­ga (Ben) que fre­quen­ta prostíbu­los e ten­ta escon­der o fato por ver­gonha, e a fax­ineira solitária e sua fil­ha deficiente.

    dogville-analise-3

    Em um primeiro momen­to, a inér­cia bucóli­ca do lugar encan­ta Grace que, cansa­da de fugir de supos­ta máfia, faz tudo para per­manecer no local. Quan­do os habi­tantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a descon­heci­da tem de ser entregue à polí­cia ou aos mafiosos, há uma rup­tura grada­ti­va no modo de trata­men­to. De “recém-inte­grante” do espaço comu­nitário, a forasteira se trans­for­ma em escra­va físi­ca e sex­u­al, sendo explo­ra­da de todas as maneiras possíveis.

    A par­tir desse pon­to, Dogville começa a se con­struí­da como “cidade do cão”, onde pes­soas agem por instin­to ani­male­sco de poder e con­t­role, forçan­do Grace a ser um de seus obje­tos. Toda a mesquin­haria da cidade é camu­fla­da pela afir­mação medonha dos habi­tantes de que “só quer­e­mos o seu bem” ou “não gostaríamos de faz­er isso com você”, rep­re­sen­tan­do a imagem do algoz que açoi­ta e fla­gela, ale­gan­do que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a bar­bárie per­pe­tra­da pela San­ta Inquisição con­tra supos­tos hereges e o con­tín­uo mas­sacre étni­co e reli­gioso cometi­do nas ter­ras do Ori­ente Médio, por exemplo).

    dogville-analise-4

    O ide­al con­ser­vador, tradi­cional­ista e paca­to da cidade camu­fla o medo da mudança que asso­la o ínti­mo dos moradores, deixan­do-os capazes de qual­quer sel­vage­ria para con­ser­var a atmos­fera inerte e o comod­is­mo. No imag­inário dos moradores de Dogville, a cidade fun­ciona per­feita­mente bem, integra­da por ideais democráti­cos e solidários de manutenção de val­ores tradi­cionais e famil­iares. Mas com a chega­da de Grace, o espec­ta­dor começa a acom­pan­har o declínio moral e social da vila; ruí­nas que estavam escon­di­das na cegueira da cidade, em sua natureza amor­fa e imutável.

    Ao pen­e­trar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace trans­for­ma-se no dedo em riste, uma espé­cie de ques­tion­a­men­to vivo às ima­gens con­struí­das sobre a vila e seus habi­tantes. As certezas de Tom Edi­son começam a ser removi­das, rev­e­lando ao próprio “escritor” que a últi­ma coisa que ele gostaria que acon­te­cesse era pas­sar por mudanças ou con­frontar sua vida. Por out­ro lado, Grace pro­va através de suas ações e reações diante de todas as bru­tal­i­dades das quais é víti­ma que “não estar mor­to não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaís­ta E.E Cum­mings. A cria­tivi­dade e humanidade da jovem forasteira lem­bram à Dogville como a vila é peque­na em espíri­to, lim­i­ta­da geografi­ca­mente, tran­cafi­a­da em um mosaico de roti­nas, per­feita­mente adap­ta­da e esta­bi­liza­da em situ­ações que sequer con­hece ou entende.

    dogville-analise-5

    Com­preen­den­do o imag­inário como a cul­tura de um grupo, percebe-se a descon­strução das ima­gens de Dogville, desnudan­do o caráter tirâni­co de pes­soas catatôni­cas, inca­pazes de lidar com rup­turas. A vila imag­inária de Lars von Tri­er é um emble­ma das grandes cidades e sua “filosofia do absur­do”, onde a indi­vid­u­al­i­dade se perde no meio de relações super­fi­ci­ais e a sede do “poder de vida e de morte” afu­gen­ta sen­ti­men­tos, crian­do hierarquias.

    Para super­ar taman­ho des­gaste, Grace faz refer­ên­cia ao esto­icis­mo e sua éti­ca do “imper­tur­báv­el, extir­pação das paixões e aceitação res­ig­na­da do des­ti­no” como for­ma de atin­gir à sabedo­ria. Dores, sofri­men­tos e infortúnios são esque­ci­dos e per­son­ifi­ca­dos na imagem de uma mul­her doce, meiga, com voz açu­cara­da e capaz de supor­tar as adver­si­dades. A con­strução dessa imagem faz refer­ên­cia a aceitação da sociedade atu­al, silen­ciosa e cati­va, sub­ju­ga­da por “poderes microscópi­cos”, expressão cun­ha­da pelo pen­sador francês Michel Fou­cault, que dom­i­nam, mar­t­i­rizam e dev­as­tam sua existência.

    dogville-analise-6

    Dogville remon­ta ima­gens do nos­so quadro social, assas­si­no de indi­vid­u­al­i­dades e toma­do por mesquin­harias. Como os habi­tantes desse pequeno povoa­do esque­ci­do, ali­men­ta­mos a ideia de que somos for­ma­dos por “justiça, igual­dade e frater­nidade”, escon­den­do o ros­to ao desumanizar e estigma­ti­zar o out­ro. A car­i­catu­ra do covarde per­son­agem Tom Edi­son mostra o lado intragáv­el do medo de encar­ar inse­gu­ranças e mudanças, da sub­mis­são a uma ordem social impos­ta, do ide­al de fetiche gregário e da ação instin­ti­va, com a bus­ca da sat­is­fação de neces­si­dades físi­cas e dos próprios interesses.

    Saturno devorando seu filho
    Sat­urno devo­ran­do seu filho

    O des­fe­cho do filme, trági­co e inten­so – a exem­p­lo da dra­matur­gia gre­ga -, apre­sen­ta ima­gens dicotômi­cas e míti­cas, pre­sentes no imag­inário social. Ini­cial­mente con­ce­bi­da como Prom­e­teu, titã mitológi­co que, guia­do pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civ­i­liza­ção e as artes e é amaldiçoa­do por Júpiter (Zeus), sendo sev­era­mente cas­ti­ga­do, Grace vai assu­min­do a for­ma do quadro de Goya (Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.

    Dogville é for­ma­da por sím­bo­los de apreen­são do real, emble­ma de ima­gens que são trans­for­madas em pes­soas, sen­ti­men­tos, situ­ações e coisas. Os per­son­agens da “cidade do cão” são metá­foras que unem obje­tivi­dade e sub­je­tivi­dade. Refle­tir sobre o imag­inário é com­preen­der sua importân­cia na con­strução da real­i­dade e na for­mação da iden­ti­dade humana, em toda sua inqui­etação e complexidade.

  • Ilsa — a Guardiã Perversa da SS (1975), de Don Edmonds

    Ilsa — a Guardiã Perversa da SS (1975), de Don Edmonds

     A  belíssima loira e peitudissima atriz Dianne Thorne estrela a produção.
    A belís­si­ma loira e pei­tud­is­si­ma atriz Dianne Thorne estrela a produção.

    Foi em um lam­pe­jo de sabedo­ria artís­ti­ca, digna somente dos maiores tram­biqueiros de Hol­ly­wood, que alguns pro­du­tores da déca­da 50 ( alguns dizem déca­da de 40) tiver­am a belís­si­ma ideia de explo­rar todo o absur­do e vio­lên­cia da ocu­pação nazista alemã durante a segun­da guer­ra mundial.Tudo isso em pro­duções baratas que se diziam realista.

    A intenção era lit­eral­mente explo­rar esse tema, gan­har din­heiro em cima de algo que até hoje fasci­na e repu­dia qual­quer pes­soa que já ten­ha ouvi­do falar como os pri­sioneiros eram trata­dos nos cam­pos de con­cen­tração. Nasceu assim o Nazi-xplota­tion, um sub­gênero bem famoso do cin­e­ma X‑plotation.

    Quan­do a déca­da de 60 chegou, os jovens que­ri­am mais era saber de sexo e vio­lên­cia, então não demor­ou para que os mes­mos pro­du­tores tram­biqueiros começassem a pen­sar numa maneira mais per­sua­si­va de faz­er essa jovem plateia, com hor­mônios a flor da pele, irem ao cin­e­ma. Nes­sa época tam­bém sur­gi­ram mais sub­gêneros den­tro do X‑plotation e quase toda pro­dução bara­ta tin­ha que ter peit­in­ho e sangue a cada minuto.

    Love Camp 7, por Lee Frost
    Love Camp 7, por Lee Frost

    Com o suces­so do filme Love Camp 7 de Lee Frost em 1969, o pro­du­tor David F. Fried­man’s decid­iu inve­stir na mes­ma ideia de vio­lên­cia, putaria e… nazis­tas, mais uma vez. Assim surgiu Ilsa — a Guardiã Per­ver­sa da SS (Ilsa — She Wolf of the SS), que seria dirigi­do por Don Edmonds (1937–2009), em 1975. Edmonds era um ator de pequenos papéis e dire­tor de filmes eróti­cos de baixo orça­men­to. Da noite pro dia se tornou um dire­tor cul­tua­do por esse filme que é o maior rep­re­sen­tante do Nazi-xplota­tion de todos os tempos.

    Até entrar para a his­to­ria do cin­e­ma como Ilsa, Dianne já fazia suces­so em revis­tas mas­culi­nas como mod­e­lo pin-up e tam­bém como strip­per em Las Vegas. Começou no cin­e­ma em 1964, fazen­do pro­duções eróti­cas baratas e chegou a ter uma peque­na par­tic­i­pação em um episó­dio na clás­si­ca série Star Trek.

    Ilsa, Harem Keeper of the Oil Sheiks, por Don Edmonds
    Ilsa, Harem Keep­er of the Oil Sheiks, por Don Edmonds

    Em 1975 ela encon­tra seu papel mais mar­cante inter­pre­tan­do a coman­dante Ilsa. Ela reprisa o papel mais três vezes em Ilsa, Harem Keep­er of the Oil Sheiks (1976), Ilsa, the Tigress of Siberia (1977) e tam­bém em uma pro­dução dirigi­da pelo dire­tor espan­hol recém fale­ci­do, Jess Fran­co mestre do cin­e­ma sexplotation.

    Existe uma peque­na con­fusão em relação a este filme: alguns sites colo­cam o nome da per­son­agem inter­pre­ta­da por Dianne como Ilsa, out­ros como Gre­ta e mais out­ros como Wan­da. O nome orig­i­nal do filme é Gre­ta — Haus ohne Män­ner (1979) então imag­i­no que deva­mos ficar com Gre­ta mes­mo. Basi­ca­mente só o primeiro filme des­ta tetralo­gia entra no gênero Nazi, os out­ros usam a mes­ma ideia, mas vão mais pro lado de out­ra ram­i­fi­cação do gênero x‑plotation que é o gênero W.I.P (Wom­ans In Prison), onde mul­heres são tor­tu­radas e abu­sadas em prisões, para o praz­er de um dire­tor sádico.

    Ilsa the Tigress of Siberia, por Jean LaFleur
    Ilsa the Tigress of Siberia, por Jean LaFleur

    Dianne, tem ao todo 28 papéis em sua car­reiras, mas somente os filme em que ela inter­pre­tou Ilsa são dig­nos de nota. Ela fez seu ulti­mo papel 1989, inter­pre­tan­do o tran­sex Sr. Piran­del­lo, pai do per­son­agem inter­pre­ta­do por James Beluchi no filme Real Men. Des­de então começou a cuidar de uma capela de casa­men­tos em las Vegas com seu mari­do. Mas, no site do IMDB apare­cem duas pro­duções com o nome da atriz cota­do no elen­co com estreia mar­ca­da para 2013. Res­ta esper­ar para saber se é oficial.

    Vamos ao filme… Ilsa é uma coman­dante de um cam­po de con­cen­tração nazista, que usa seus pri­sioneiros em “exper­i­men­tos médi­cos” pes­soais. Ela ten­ta provar para o alto escalão da SS, que mul­heres são mais resistentes a dor do que os home­ns. Como ela faz isso? Sim­ples, ela tor­tu­ra home­ns e mul­heres das maneiras mais cruéis e absur­das pos­síveis e vê qual morre primeiro! Legal né?

    Comandante Ilsa demonstrando que manja das putarias.
    Coman­dante Ilsa demon­stran­do que man­ja das putarias.

    Fora esse seu inter­esse acadêmi­co pela med­i­c­i­na, Ilsa tam­bém é dona de um apetite sex­u­al voraz e, sem­pre que pode, man­da um pri­sioneiro sor­tu­do para sua cama para sat­is­fazê-la. Infe­liz­mente a ale­gria do escol­hi­do dura muito pouco, pois ela fica muito, mas muito irri­ta­da quan­do o mané do pri­sioneiro goza antes dela. E como ela resolve essa situ­ação? Sim­ples, como qual­quer coman­dante da SS nazista de um filme x‑plotation do meio da déca­da de 70 que se preze faria! Cas­tran­do o infeliz!

    Ilsa escolhendo um dos prisioneiros “azarados” para lhe fazer companhia.
    Ilsa escol­hen­do um dos pri­sioneiros “azara­dos” para lhe faz­er companhia.

    Tudo está as mil mar­avil­has com a coman­dante até que um cer­to pri­sioneiro, com uma espé­cie de “super­poder” dig­amos assim, é chama­do para a cama da coman­dante. Não é que final­mente ela encon­tra alguém dig­no de sua atenção sex­u­al? O cara con­segue con­tro­lar a ereção pela noite inteira se quis­er, e assim con­segue a sim­pa­tia da loba SS e o jogo se inverte, pois ago­ra é um pri­sioneiro que tem o coman­dante sob seu comando!

    Dá pra notar que o filme é só isso mes­mo, sexo, vio­lên­cia, tor­tu­ra, mais sexo e depois mais tor­tu­ra! Não é atoa que ele foi proibido na Ale­man­ha na época de seu lança­men­to e tam­bém em out­ros diver­sos países.

    Por mais absur­do a obra pareça, é inegáv­el diz­er que ela influ­en­ciou diver­sos gêneros do cin­e­ma além do x‑plotation. Fora dos telões do cin­e­ma, Ilsa inspirou tam­bém alguns per­son­agens de videogame como a The Butcher­ess do game Blood­rayne, e tam­bém influ­en­ciou no design de um grupo de elite fem­i­ni­na que aparece no game Return To Cas­tle Wolfen­stein.

    De um lado a The Butcheress do game Bloodrayne e do outro a comandante Ilsa demonstrando toda sua volúpia.
    De um lado a The Butcher­ess do game Blood­rayne e do out­ro a coman­dante Ilsa demon­stran­do toda sua volúpia.
    Grindhouse - Planeta Terror e À Prova de Morte
    Grind­house

    A mais óbvia das influên­cias de Ilsa no cin­e­ma, foi quan­do Quentin Taran­ti­no e Robert Rodriguez dividi­ram a direção no pro­je­to Grind­house com os filmes Plan­e­ta Ter­ror (2007) e À Pro­va de Morte (2007), ten­do como intenção hom­e­nagear essas pro­duções x‑plotation da déca­da de seten­ta. Entre um filme e out­ro, a platéia que assis­tia teve a chance de ver alguns trail­ers fal­sos de out­ras supostas pro­duções. Entre ess­es fal­sos filmes, um deles foi bati­za­do de: Were­wolf Women of SS, onde podemos ver Sheri Moon, a esposa do dire­tor e músi­co Rob Zom­bie, como uma ofi­cial nazista que coman­da um pro­je­to cien­tí­fi­co com a intenção de trans­for­mar mul­heres em lobi­somens para lutar na guer­ra! Veja o video abaixo.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=pv_aefnKf‑E

    machete
    Machete, por Robert Rodriguez

    Ess­es trail­ers fal­sos der­am origem a três filmes, um deles foi o fraquís­si­mo Machete dirigi­do por Robert Rodriguez em 2010, out­ro foi Hobo With A Shot­gun (em alguns sites este filme é traduzi­do com o belo tit­u­lo de “Mendi­go com Escope­ta!”) dirigi­do por Jason Eisen­er em 2011. Então podemos diz­er que existe a pos­si­bil­i­dade de ver­mos um dia Were­wolf women of SS em ver­são lon­ga metragem.

    Emb­o­ra Ilsa — a Guardiã Per­ver­sa da SS seja um filme situ­a­do em uma época bem clara e basea­do em acon­tec­i­men­tos reais, o caráter real­ista da obra sobra mes­mo para aqui­lo que parece mais absur­do. Os úni­cos acon­tec­i­men­tos que real­mente exi­s­ti­ram durante a ocu­pação nazista são os exper­i­men­tos mostra­dos no filme, todos ver­dadeiros. Diver­sos pri­sioneiros judeus foram real­mente usa­dos como coba­ias pelas tropas nazis­tas em cam­pos de concentração.

    Hobo With A Shotgun,  por Jason Eisener
    Hobo With A Shot­gun, por Jason Eisener

    No lon­ga são mostradas as já citadas cas­trações e os testes de resistên­cia a dor, numa cena vemos até uma pri­sioneira sendo fer­vi­da viva! Algu­mas mul­heres são proposi­tal­mente infec­tadas com doenças como tifu, sífil­is, lep­ra, etc.

    Exis­tem diver­sos filmes e muitos tex­tos na inter­net que tratam sobre ciên­cia nazista de uma maneira muito mais abrangente do que aqui. É tudo muito inter­es­sante e ao mes­mo tem­po revoltante. Recomen­do que pesquisem!

    A per­son­agem de Ilsa obvi­a­mente nun­ca exis­tiu, nem nun­ca exis­tiu nen­hu­ma mul­her que chegou ao alto coman­do do exérci­to alemão a pon­to de diri­gir um cam­po de con­cen­tração. Mas a coman­dante sado­ma­so foi basea­da em alguém que exis­tiu de ver­dade, não uma ofi­cial, mas a esposa de um. Estou falan­do de Ilse Koch, esposa de Karl-Otto Koch, um alto coman­dante do exérci­to nazista que entre os anos 1937 a 1943, coman­dou dois cam­pos de con­cen­tração em ter­ritório alemão, os cam­po de Bunchen­wald e Majdanek.

    A sádica da vida real ou a ninfomaníaca da ficção. Com qual você prefere passar a noite?
    A sádi­ca da vida real ou a nin­fo­manía­ca da ficção. Com qual você pref­ere pas­sar a noite?

    A sen­ho­ra Koch (mais con­heci­da como “A bruxa de Bunchewald”) ficou famosa pelos estran­hos sou­venirs que gosta­va de guardar, entre eles, pedaços de couro tat­u­a­do dos pri­sioneiros e aba­jures feitos de pele humana, eram o mais bási­cos da coleção. Ele foi pre­sa e jul­ga­da diver­sas vezes, aos sessen­ta anos come­teu suicí­dio enquan­to cumpria um sen­tença de prisão perpetua.

    De vol­ta ao filme… O cam­po de con­cen­tração onde toda a ação acon­tece não lem­bra muito os temíveis cam­pos que vemos em doc­u­men­tários ou em filmes com a mes­ma temáti­ca que se lev­am mais a sério. Ele mais parece uma prisão de segu­rança mín­i­ma, e os pri­sioneiros até cer­to pon­to são bem gordinhos, com­para­do aos que vemos em fotos reais da época, e tam­bém pos­suem uma cer­ta liber­dade, que provavel­mente não exis­tia, pra falar com os ofi­ci­ais nazistas.

    Prisioneiras do campo de concentração do filme
    Pri­sioneiras do cam­po de con­cen­tração do filme

    Eu gos­to de Ilsa — a Guardiã Per­ver­sa da SS por ser um puta fil­maço que me mar­cou bas­tante, foi o primeiro do gênero nazi-xplota­tion que vi. Não imag­i­na­va que alguém pode­ria faz­er uma comé­dia falan­do de temas tão ten­sos… ou mel­hor: Não imag­i­na­va que algum estú­dio DEIXARIA um dire­tor faz­er um filme sobre temas tão delicados.

    Viven­do em tem­pos politi­ca­mente cor­re­tos até demais, onde a maio­r­ia das pes­soas está dis­pos­ta a se ofend­er tão calorosa­mente e lutar por causas banais, é quase impos­sív­el acred­i­tar que um filme assim seria lança­do nos dias de hoje sem sofr­er grandes críti­cas e resistên­cia dos sofa­tivis­tas de plan­tão. Afi­nal, todo mun­do está dis­pos­to a lutar por algo des­de que isso não obrigue ninguém a sair da frente do Face­book ou tirar a bun­da do sofá…

    Ilsa em mais um de seus experimentos
    Ilsa em mais um de seus experimentos

    Na min­ha pré-adul­tecên­cia me inter­es­sei muito por filmes gore, trash, slash­ers e mon­do. Todos ess­es podem ser con­sid­er­a­dos sub-gêneros do cin­e­ma x‑plotation. A déca­da de seten­ta foram os anos em que ess­es filmes pipocavam nos cin­e­mas norte amer­i­canos aos montes, era nat­ur­al que em meio a tan­tos lança­men­tos baratos, uns fos­sem mel­hores que out­ros, em meio a mui­ta (mui­ta mes­mo!) por­caria que assisti durante ess­es anos de “auto estu­do cine­fil­iti­co”, Ilsa — a Guardiã Per­ver­sa da SS se tornou um dos meus filmes preferi­dos, é mais um daque­les lon­gas que faço questão de assi­s­tir uma vez a cada dois ou três anos, pra ter certeza que ain­da é foda!

    Fora tudo isso, há um caráter psi­cológi­co que me faz pen­sar um pouco… por que dia­bos a vio­lên­cia é tão fascinante?

    Não uma sim­ples vio­lên­cia fic­cional, mas uma vio­lên­cia basea­da em fatos. Antes mes­mo dos crédi­tos ini­ci­ais, vemos um tex­to atribuí­do ao pro­du­tor Her­man Traeger (pseudôn­i­mo de David F. Fried­man, o ver­dadeiro pro­du­tor) avisan­do que os exper­i­men­tos pre­sentes na tra­ma do filme são reais e que foram clas­si­fi­cadas como “exper­iên­cias médi­cas”. Por últi­mo diz que o filme fora real­iza­do com a esper­ança de que essas mes­mas exper­iên­cias médi­cas não se repi­tam nova­mente. Ou seja, mes­mo avisa­do dis­so, a maio­r­ia das pes­soas pref­ere ver o filme até final, ou até mes­mo esse pré avi­so ins­tigue o espec­ta­dor a assistir.

    Vocês foram avisados do que viria a seguir...
    Vocês foram avisados…

    O que mais me fasci­na nis­so tudo é o teor sex­u­al da bagaça toda, como algo tão desumano con­segue se asso­ciar tão facil­mente com sexo? Por que existe tan­ta audiên­cia do públi­co (incluin­do eu!) em cima de um tema tão especí­fi­co, a pon­to de se cri­ar um nome exclu­si­vo para esse tipo de filme?

    Enfim, a intenção aqui não é desmere­cer a obra, mas sim discutí-la.

    Pra ter­mi­nar deixo o vídeo da músi­ca Ilsa que a ban­da brasileira Zumbis do Espaço gravou para hom­e­nagear a loba alemã. Ago­ra, clique no play e leia tudo de novo can­tan­do essa lin­da e sin­gela poe­sia do hor­ror punk nacional.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=i‑I1Rl2Eml4

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=cWaChi_OOvQ

  • Dique (2012), de Adalberto Oliveira

    Dique (2012), de Adalberto Oliveira

    dique-cartazFazia cer­to tem­po que não me impres­sion­a­va com o cin­e­ma inde­pen­dente no Brasil. Esta­va acom­pan­han­do muitos filmes que não me tocavam, mas, ao artic­u­lar a curado­ria da Mostra “Panora­ma Per­nam­bu­co” (jun­to com os cineas­tas Jucélio Matos e Már­cio Farias) — exibi­da em Teresina-PI/2012 — algo inusi­ta­do acon­te­ceu, pois den­tro do pacote com belos filmes real­iza­dos naque­las ter­ras, surge com sur­pre­sa: Dique (um filme de Adal­ber­to Oliveira).

    Dique já par­ticipou de mais de vinte Fes­ti­vais pelo Brasil e pelo mun­do (dez inter­na­cionais), desta­can­do o 1° Fes­ti­val de Cine Lati­noamer­i­cano Inde­pen­di­ente de Bahía Blan­ca, 34º Fes­ti­val Inter­na­cional del Nue­vo Cine Lati­noamer­i­cano — Sec­ción Para­lela VANGUARDIAS, 2ª Mues­tra Inter­na­cional de Cine Inde­pen­di­ente, em Osorno no Chile e o 18° Festvídeo — Fes­ti­val de Vídeo de Teresina, onde tive o praz­er de par­tic­i­par da comis­são jul­gado­ra, em que foi pos­sív­el tornar o vídeo (em votação unân­ime) vence­dor do even­to na cat­e­go­ria Exper­i­men­tal, jun­to com out­ro tra­bal­ho de Adal­ber­to (Case). Ah, sem falar dos out­ros prêmios (mais de dez até o momen­to) con­quis­ta­dos por aí.

    Com direção, desen­ho sonoro e fotografia de Adal­ber­to Oliveira, cap­tação com hidro­fone de Thel­mo Cristo­vam, mix­agem e final­iza­ção de Adel­mo Tenório, pro­dução de Már­cio Farias e assistên­cia de pro­dução de Nico­las Oliveira, Dique é vídeo que prob­lema­ti­za o ato de ver e sen­tir. Tudo começa com a tela escu­ra, exa­lan­do um estran­ho ruí­do… o que nos pos­si­bili­ta artic­u­lar audição e pele, pois a nar­ra­ti­va abre espaço para explo­rar out­ros sen­ti­dos, além dos olhos e ouvi­dos. O que antes é um breve estran­hamen­to, tor­na-se (em segun­dos), imer­são completa.

    Somos lança­dos numa pais­agem dura, con­trastante, onde as pedras de Casa Caia­da dom­i­nam a cena. Aqui pos­so visu­alizar um exer­cí­cio paciente na bus­ca pelo supos­to equi­líbrio entre a crueza das pedras que demar­cam o litoral, com suas lin­has tor­tu­osas, atrav­es­sadas pela dis­per­são e des­en­con­tro das for­mas, fric­cio­nan­do a suavi­dade celeste de um céu que me remete às pince­ladas impres­sion­istas, em trân­si­to com os pré­dios que ras­gam o teto azul (ondas dis­tantes rev­e­lam a água como ele­men­to purificador).

    Entre a leveza e a crueza.
    Entre a lev­eza e a crueza.

    O som des­do­bra-se nas ima­gens em sequên­cia. Adal­ber­to vira-se con­tra a pais­agem ante­ri­or e olha deti­da­mente para as ondas — estas sel­vagens ao nos­so olhar – que acari­ci­am as pedras, vis­tas como home­ns solitários.
    Cortes rápi­dos inserem novos ele­men­tos à pais­agem sono­ra de Dique, ago­ra com nuvens pesadas ao fun­do e aves tími­das, sus­ten­ta­dos pela frieza dos pré­dios de uma cidade que aparenta uma leve sonolên­cia, com home­ns escon­di­dos no alto de seus andares, habi­tan­do no coração do dis­tan­ci­a­men­to, as sobras orgâni­cas que moram ali.

    Estaria Adal­ber­to esta­b­ele­cen­do um canal de comu­ni­cação entre o orgâni­co e o inorgâni­co? Estari­am os caranguei­jos con­spir­an­do con­tra nós? Somos Home­ns-caranguei­jos ou Caranguei­jos-home­ns? A beira de Casa Caia­da fica mais escu­ra, o som abafa, pequenos crustáceos em mobi­liza­ção micro.

    Carangueijos-bailarinos.
    Caranguei­jos-bailar­i­nos.

    Mais uma vez o ele­men­to-água entra no filme: a chu­va. Ela atua como agente de limpeza e reor­de­na­men­to da pais­agem, que, ao cumprir seu papel, alivia as ten­sões e suaviza os ouvi­dos, através dos choques entre água-pedra. Preparação para out­ros exercícios.

    Rad­i­cal­mente, somos sur­preen­di­dos com caranguei­jos gigantes, no alto de seu Império, tor­nan­do os home­ns, coisas peque­nas, sem foco, igno­rantes de um mun­do para­le­lo que existe bem a sua frente, a um pas­so do balé som­brio, cor­tante, assus­ta­dor. A água invade a areia, todos desaparecem…

    Pré­dios enfileira­dos dom­i­nam a cena, abrindo espaço para o deslo­ca­men­to do olhar-Natureza para o olhar-Homem. Esta con­tradição é inter­mináv­el, cícli­ca, que faz do Homem um ser que nega àquela, mas ao mes­mo tem­po, depende dos seus recur­sos para afir­mar sua separação.

    O olho do cineas­ta con­tem­pla a cidade num exer­cí­cio remete aos capí­tu­los não lin­ear­es de “Can­to de Aves Pam­peanas 1”, do argenti­no Nicolás Testoni, artic­u­lan­do uma von­tade con­jun­ta em expres­sar a pais­agem – não-imo­bilista – como estru­tu­ra que se move para frente, redefinin­do o mosaico de impressões que nos­sos olhos procu­ram detec­tar na con­fusa mis­tu­ra de ele­men­tos de uma cidade que bro­ta, e nasce toda tor­ta… cam­baleante, cheia de cores, ten­sion­adas entre árvores sobre­viventes do impe­ri­al­is­mo urbano.

    Dique joga com con­trastes, rein­ven­ta as pais­agens e reforça sua inqui­etação con­stante — den­tro da min­ha leitu­ra pico­ta­da — Somos Home­ns-caranguei­jos ou Carangueijos-homens?

    Homens-Carangueijos?
    Home­ns-Caranguei­jos?

    O Sol vai cain­do, jun­to com a sobera­nia do Crustáceo-Rei. Der­ro­ta­do pelo tem­po (ali­a­do do silên­cio) inva­sor de cor­pos e car­caças, ele abre cam­in­ho para o lambe-lambe ger­al das moscas, dançan­do em cima das patas que implo­ram pelo últi­mo movimento.

    A noite dom­i­na. Lá longe, as ondas estão indifer­entes ao olho de Adal­ber­to, pois já estão acos­tu­madas com a sua estran­ha pre­sença, que antes era incô­mo­da, mas ago­ra, — pen­sam as ondas — “não podemos faz­er nada, pois não sabe­mos até que pon­to ele quer nos con­sumir”. E assim elas seguem som­brias, rudes, sel­vagens, tra­bal­hado­ras do mar.

    Dique final­iza sua tra­jetória escon­di­do nas pedras de Casa Caia­da, obser­van­do explosões aéreas arti­fi­ci­ais, bus­can­do enten­der as relações entre as duas pais­agens em diál­o­go con­stante: o Homem e a Natureza. Até que pon­to esta­mos hib­ridiza­dos? Até que pon­to exis­tem fron­teiras entre nos­sas patas e suas mãos? Um estu­do sobre as mudanças, o olhar que prob­lema­ti­za os dis­tan­ci­a­men­tos, um poe­ma visu­al que descon­strói nos­sas zonas de conforto.

    Uma certeza: o filme mais impor­tante que assisti em toda cam­in­ha­da real­iza­da até o momen­to nas min­has leituras do cur­ta-metragem brasileiro. Lá em Per­nam­bu­co, o cin­e­ma inde­pen­dente está fervil­han­do de Home­ns e Mul­heres que fazem um serviço sério. Tomem nota! Não adi­anta Adal­ber­to, seu filme saiu de Olin­da para con­quis­tar os olhos do mundo.

    Para mais infor­mações, visi­ta o blog ofi­cial do filme.

    Veja o trail­er abaixo:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=c1NCfN5BMK8

  • O Grande Dragão Branco (1988), de Newt Arnold

    O Grande Dragão Branco (1988), de Newt Arnold

    O Grande Dragão Branco DVDEm 1987 o bel­ga espe­cial­ista em artes mar­ci­ais Jean Claude Van Damme saiu do anon­i­ma­to para estre­lar sua primeira grande pro­dução cin­e­matográ­fi­ca, O Grande Dragão Bran­co (Blood­sport, EUA, 1988), dirigi­do por Newt Arnold, e nos anos seguintes entrou no hall dos maiores bru­cu­tus do cin­e­ma, for­man­do no imag­inário pop­u­lar dos anos 80 e 90 uma espé­cie de “trio dos marombeiros” jun­to com Sil­vester Stal­lone e Arnold Schwarzeneg­ger, estando na ter­ceira posição deste top, é claro.

    Este seu primeiro grande suces­so foi aque­le que seria seu filme mais lem­bra­do e mais reprisa­do na TV brasileira, uma pro­dução dos estú­dios Can­non, dirigi­do pelo expe­ri­ente profis­sion­al do cin­e­ma Newt Arnold, que serviu como dire­tor de segun­da unidade e assis­tente de dire­tor em grandes pro­duções como O Poderoso Chefão II, Blade Run­ner, Os Goonies, entre out­ros grandes e menores suces­sos ao lon­go dos seus quase 40 anos de serviços à Hol­ly­wood. Curiosa­mente ele só dirigiu ape­nas três títu­los, sendo O Grande Dragão Bran­co o últi­mo, mel­hor e mais famoso deles.

    O filme teve o orça­men­to esti­ma­do em US$1.100.000, val­or bem medi­ano para uma pro­dução da Can­non films. Nas bil­hete­rias o filme super­ou seu val­or em 10 vezes e teve duas con­tin­u­ações hor­ríveis, que pouco ou nada tem a ver com o orig­i­nal, usan­do ape­nas seu tit­u­lo para chamar a atenção dos fãs desin­for­ma­dos na maior picare­tagem. O orig­i­nal fora lança­do em 1988, pas­san­do por alguns prob­le­mas de pro­dução e quase não chegan­do aos cin­e­mas. Reza a len­da que o próprio Van Damme teve que edi­tar algu­mas cenas por fal­ta de edi­tor, coisa que não é con­fir­ma­da nos crédi­tos do filme.

    Acho muito difí­cil escr­ev­er sobre O Grande Dragão Bran­co sem apelar para um lado muito pes­soal da coisa. Afi­nal, o filme foi e é até hoje reprisa­do aos baldes na sessão da tarde e nas madru­gadas da Rede Globo, um clás­si­co dos anos 90 da TV aber­ta e um dos meus filmes favoritos de todos os tempos.

    OGrandeDragaoBranco-1

    Às vezes, só para irri­tar os ciné­fi­los mais tara­dos, cos­tu­mo exal­tar as qual­i­dades de O Grande Dragão Bran­co como se fos­se um mar­co do cin­e­ma mod­er­no, com­para­n­do com grandes filmes do sécu­lo como; Cidadão Kane, O Poderoso Chefão, Psi­cose, Os Sete Samu­rais, filmes do Truf­faut ou do Kubrick, etc. sem­pre dizen­do que nun­ca, jamais, nen­hum filme feito até hoje ou qual­quer filme que será feito futu­ra­mente, con­seguira ser mel­hor ou no mín­i­mo chegar aos pés de O Grande Dragão Bran­co! É claro que hoje digo isso como brin­cadeira, mas quan­do eu assis­tia lá pelos meus 8 ou 9 anos, pra mim era a mais pura verdade!

    O filme con­ta a história de Frank Dux (Van Damme), um mil­i­tar norte-amer­i­cano treina­do pelo mestre Sen­zo Tana­ka (Roy Chiao, ator chinês com quase 100 filmes no cur­rícu­lo), que aban­dona os serviços mil­itares nos states e parte para Hong Kong para se encon­trar com seu sen­sei. Des­de cri­ança Frank pas­sou por um doloroso treina­men­to que exi­gia muito de seu físi­co e de sua con­cen­tração. Numa das cenas mais clás­si­cas do filme vemos ele amar­ra­do pelos braços e per­nas sus­pen­so no ar entre dois tron­cos, enquan­to seu mestre puxa as cor­das tor­nan­do a cena mui­ta ten­sa e dolorosa, ain­da mais saben­do que não são efeitos visuais ou trucagem cinematográfica.

    O Grande Dragão Branco

    Já em Hong Kong, Frank con­segue uma vaga no “Kumite”, um torneio super-secre­to e ile­gal que reúne os mel­hores prat­i­cantes de artes mar­ci­ais de todo o mun­do. Não há regras e os luta­dores chegam real­mente ao lim­ite, pos­sivel­mente até a morte de um dos adversários.

    Logo que chega faz amizade com Ray Jack­son (Don­ald Gibb), que tam­bém irá lutar no torneio. Ray é um gigante de bom coração que ado­ra uma luta livre e os dois se con­hecem numa cena hilária onde Frank con­segue vencer Ray num game de flipera­ma (Karate Champ, jogo japonês de 1984, clás­si­co) e logo viram amigos.

    No momen­to em que Frank vai faz­er a inscrição para o torneio, os juízes não acred­i­tam que ele foi treina­do por Sen­zo Tana­ka e pra provar isso eles pedem que faça o golpe Dim Mak, um golpe secre­to que no reino dos filmes de artes mar­ci­ais seria mor­tal quan­do apli­ca­do, pois suposta­mente causaria danos inter­nos ao adver­sário, numa cena antológ­i­ca Frank Dux mostra pra todos os pre­sentes sua força e con­cen­tração ao que­brar um úni­co tijo­lo especí­fi­co numa pil­ha com cinco!

    O Grande Dragão Branco

    Dim Mak na ver­dade é ape­nas ficção, sendo um golpe que só existe nos filmes e nas histórias de kung-fu e Karatê, ele aparece em cen­te­nas de out­ros filmes con­heci­do quase sem­pre como “ o toque na morte”, poden­do ser vis­to em grandes pro­duções como O Tigre e o Dragão (Crouch­ing Tiger, Hid­den Drag­on, 2000) dirigi­do por Ang Lee e no filme Kill Bill (2003) de Quentin Taran­ti­no, a Noi­va aprende uma espé­cie de Dim Mak que se tor­na mui­ta útil caso um dia você seja enter­ra­do vivo.

    Mas não são ape­nas os luta­dores que têm inter­esse no torneio: uma deter­mi­na­da repórter faz de tudo para se infil­trar nos basti­dores da com­petição, assim como uma dupla de poli­ci­ais (um deles inter­pre­ta­do por um jovem For­est Whitak­er!) que está atrás de Frank Dux por aban­donar o serviço mil­i­tar e que tam­bém pre­ten­dem acabar com o even­to de uma vez por todas.

    O Grande Dragão Branco

    Mas os grandes desafios chegam ao nos­so herói quan­do ele encon­tra seu nême­sis, o luta­dor cru­el Chong Li, inter­pre­ta­do por Bolo Yeung, ator chinês com cur­rícu­lo gigan­tesco em filmes de artes mar­ci­ais e que depois des­ta pro­dução se tornou ami­go de Van Damme fora das câmeras. Uma curiosi­dade a mais sobre o per­son­agem Chong-li: as pou­cas falas que ele tem no filme são na maio­r­ia tiradas do filme Oper­ação Dragão de 73, filme estre­la­do por Bruce Lee onde Bolo Yeung tam­bém par­ticipou! Yeung, anos depois vol­ta para inter­pre­tar mais um vilão con­tra Van Damme no filme Dup­lo impacto (Dou­ble Impact, 1992 dir. Shel­don Leit­tich) e chegou apare­cer no Real­i­ty Show britâni­co “Jean Claude Van Damme: Behind Closed Doors” de 2011, onde podemos ver o astro na sua vida real fazen­do coisas nor­mais que pouco lem­bram suas façan­has cin­e­matográ­fi­cas. Mas no reino da ficção os dois sem­pre foram inimi­gos mortais!

    No filme durante uma luta, Chong Li desce a por­ra­da em Ray Jack­son, deixando‑o a beira da morte. O ami­go, Frank Dux, jura vin­gança e der­ro­ta todos os adver­sários até chegar na luta final con­tra Chong Li que, num exem­p­lo de vila­nia fil­hada­putís­ti­ca, joga sujo e tra­paceia, jogan­do poeira nos olhos de Frank deixando‑o cego!

    Na ver­dade a tra­ma do filme é somente uma des­cul­pa bara­ta para ver­mos Frank Dux descen­do o sar­rafo em todo mun­do no torneio. As cenas de luta foram muito bem core­ografadas pelo próprio Frank Dux da vida real e as atu­ações são dig­nas de um filmes de ação dos anos oiten­ta, con­tan­do até com o já cita­do For­est Whitak­er, fazen­do um pequeno papel per­di­do ali no meio. Todos os clichês do cin­e­ma de kung-fu/karatê estão ali, o mestre insen­sív­el, o golpe secre­to, a vin­gança do herói, o vilão arro­gante e ine­scrupu­loso, e a luta final con­tra o arqui-inimi­go Chong-Li com o clí­max em slow-motion, com a clás­si­ca cena de Van Damme fazen­do essa care­ta hor­ro­rosa aqui:

    O Grande Dragão Branco

    Uma das coisas mais estra­nhas sobre a pro­dução do filme é o fato dela se diz­er basea­da em em uma história real, coisa que nun­ca foi con­fir­ma­da. A úni­ca fonte de infor­mação sobre o torneio Kumite e sobre os per­son­agens que apare­cem no filme é o próprio Frank Dux da vida real, que por si só é um figu­ra, alem de ter cri­a­do seu próprio esti­lo de luta chama­do Dux Nin­jut­su Ryu, ele diz ter ven­ci­do o torneio secre­to umas 53 vezes seguidas(!), detém o recorde de nocaute mais rápi­do, 12 seg(!!) e ele tam­bém diz ter rece­bido a medal­ha de hon­ra e bravu­ra do próprio pres­i­dente dos EUA (!!!). Porém, nun­ca nen­hum out­ro luta­dor do mun­do ouviu falar ou par­ticipou do tal torneio e nun­ca ninguém viu a tal medal­ha. Ou seja, ou esse cara é um bai­ta men­tiroso do caram­ba ou o torneio existe e é extrema­mente secre­to mes­mo. ( e a medal­ha é invisív­el, claro)

    Frank Dux verdadeiro e o ator Donald Gibb, intérprete de Ray Jackson
    Frank Dux ver­dadeiro e o ator Don­ald Gibb, intér­prete de Ray Jackson

    A ideia do filme, “torneio de artes mar­ci­ais com luta­dores do mun­do todo, cada um lutan­do com seu esti­lo” ante­ci­pa até os pop­u­lares games de luta como Street Fight­er e Mor­tal Kom­bat que fazi­am lotar os flipera­mas entre os anos de 90 a 96, quan­do ess­es esta­b­elec­i­men­tos eram bem mais pop­u­lares e muitas vezes as úni­cas opções para quem quisesse jog­ar um vídeo gamezinho.

     

    Sem con­tar que, para quem já jogou Mor­tal Kom­bat, talvez não ten­ha nota­do mas no game orig­i­nal de 1992, o per­son­agem John­ny Cage usa o MESMO calção que o per­son­agem de Van Damme usa no filme!

    Mudando apenas a cor da faixa. Será coincidência, homenagem ou plágio mesmo?
    Mudan­do ape­nas a cor da faixa. Será coin­cidên­cia, hom­e­nagem ou plá­gio mesmo?

     

    O jogo Street Fight­er é ante­ri­or ao filme em poucos meses de difer­ença, sendo um pouco difí­cil um ter se basea­do no out­ro. Mas coin­cidên­cias à parte, de fato, acho que se quisessem faz­er um filme decente adap­tan­do o game Street Fight­er dev­e­ri­am usar O Grande Dragão Bran­co como base para o roteiro. Emb­o­ra o plot do filme seja o fes­ti­val de clichês já cita­dos, nen­hu­ma cena é gra­tui­ta, tudo que aparece em tela é rel­e­vante para a tra­ma sim­ples e dire­ta, sem grandes aspi­rações cin­e­matográ­fi­cas, o filme é e se propõe a ser ape­nas um diver­são casu­al e logra êxi­to na ten­ta­ti­va. Mel­hor do que muitas pro­duções mega­lo­manía­cas e bil­ionárias que querem te mostrar o sen­ti­do da vida em três horas de duração com efeitos visuais absur­da­mente caros (e em 3D).

    Como eu já disse, assi­s­tir O Grande Dragão Bran­co é uma exper­iên­cia muito pes­soal pra mim, me faz lem­brar da infân­cia e de tem­pos onde tra­bal­ho, din­heiro e estu­dos não fica­va a frente da diver­são sim­ples de se sen­tar a frente da TV e assi­s­tir um bom filme, quan­do assis­to não estou reven­do um filme anti­go, mas sim reven­do um momen­to bom da min­ha vida.

    Então fica a recomen­dação, caso queira se aven­tu­rar a assi­s­tir uma pro­dução bara­ta e diver­ti­da com boas cenas de ação, O Grande Dragão Bran­co é uma óti­ma sugestão.

  • DOC de Amor (2010), de Jucélio Matos

    DOC de Amor (2010), de Jucélio Matos

    Esse amor sem razão.
    Sem val­or amanhã.
    Mes­mo assim arderá eternamente.

    Mari­na Lima

    O cin­e­ma brasileiro inde­pen­dente col­he seus fru­tos. Vive­mos uma fase mar­ca­da pelas novas pos­si­bil­i­dades de pro­dução audio­vi­su­al em vir­tude da democ­ra­ti­za­ção das mídias e suporte de expressão. Hoje é pos­sív­el colo­car em práti­ca ideias, até então amar­radas pela lim­i­tação dos recur­sos téc­ni­cos, que esta­va disponív­el nas mãos de poucos. Ago­ra podemos cri­ar e faz­er cin­e­ma no Brasil em per­spec­ti­va plur­al, exper­i­men­tan­do a lin­guagem den­tro de nos­sas via­bil­i­dades e dese­jos de cri­ação, com nos­sos celu­lares, máquinas fotográ­fi­cas e demais dis­pos­i­tivos móveis.

    Novos doc­u­men­taris­tas surgem nes­sa safra cria­ti­va, pro­duzin­do sen­ti­do à História – seja na políti­ca, nos debates soci­ais, religião, etc — no caso de Jucélio Matos, às histórias das sen­si­bil­i­dades con­tem­porâneas. Ao ini­ciar seus estu­dos sobre cin­e­ma em 2004, Jucélio se rev­el­ou para a cena audio­vi­su­al per­nam­bu­cana em pouco tem­po, com o filme Doc de Amor (2010).

    Real­iza­do para um tra­bal­ho de con­clusão de cur­so da Fac­ul­dade Mau­rí­cio de Nas­sau, o filme já des­bravou qua­tro fes­ti­vais (Fes­ti­val Brasileiro de Cin­e­ma Uni­ver­sitário (RJ), Cur­ta Cabo Frio (RJ), Fes­ti­val do Filme etno­grá­fi­co do Recife (PE) e Arra­ial Cine Fest (BA)) e vem gan­han­do espaço por onde pas­sa, ao explo­rar um tema descon­cer­tante e mis­te­rioso para muitos de nós: o Amor.

    O filme apre­sen­ta um mosaico de histórias: expon­do a vida de várias pes­soas comuns viven­do seu dia-dia, sejam nos pos­tos de gasoli­na, nos bares, nas coz­in­has, nas casas, nas aven­turas ou nos lanch­es habit­u­ais de fim de tarde. Em cada coração que tran­si­ta no filme, podemos encon­trar difer­entes reina­dos, que deci­dem as for­mas de viven­ciar suas noções de Amor.

    O filme prob­lema­ti­za o ato de amar, vis­to nos depoi­men­tos como rup­tura das con­venções, que antes pren­di­am nos­sos cor­pos numa estru­tu­ra rígi­da, sus­ten­ta­do pelo sen­so mas­culin­izante da sociedade, lim­i­tan­do as pos­si­bil­i­dades de exper­i­men­tação dos sentidos.

    Jucélio sabe cap­tar os aro­mas das per­spec­ti­vas, das vozes que pren­dem o espec­ta­dor nas nar­ra­ti­vas mais ínti­mas, na bus­ca de pro­duzir vários sabores que se aprox­i­mam do pal­adar de Rodol­fo, o coz­in­heiro real, espe­cial­ista em trans­for­mar o Amor num con­jun­to de porções regadas à sal­a­da verde (lev­eza), com um toque de arroz mar­ro­quino (con­sistên­cia), mescla­do com pro­teí­na — entre o salmão e o camarão (ener­gia e tran­qüil­i­dade), fechan­do com um café e choco­late, para não perder o ânimo.

    Nem sem­pre o Amor é vis­to como trân­si­to de liber­dade. Ele tam­bém é con­t­role e dis­ci­plina, como aque­le pote de jujubas que você não pode devorá-lo de ime­di­a­to, mas só pode com­er um, sob o monopólio de uma tuto­ra, que impede o dese­jo de se lam­buzar no açú­car. É o que podemos ver no reina­do de Paula, que percebe o Amor numa lóg­i­ca de jogo e con­t­role – muitas vezes de for­ma tirâni­ca – para ger­ar “fun­cional­i­dade” e medi­da na relação. Para ela, “amar é cas­ti­go. Nada sobre con­t­role, tudo em peri­go. Adoráv­el pen­itên­cia, chicote ami­go. Se chegar a falên­cia, mor­ro con­ti­go”.

    Entre comi­da e con­t­role, temos expec­ta­ti­va e morte, entre risos e timidez, temos a rep­re­sen­tação cêni­ca que faz do Amor um grande espetácu­lo, demar­can­do as fron­teiras entre o real e o dese­jo. Até que pon­to nos é per­mi­ti­do que­brar mais de um pote e saciar nos­sa fome?

    Cada vida aber­ta nos ensi­na que o Amor não é vis­to ape­nas por um ângu­lo, mas vivi­dos em múlti­p­los olhares não-con­tem­pla­tivos, que fazem do sen­ti­men­to um cam­po de exper­iên­cias e tro­ca de sen­si­bil­i­dades, mes­mo que o out­ro não fale sua lín­gua, ou que não con­si­ga viv­er no mes­mo teto. Os amores enquan­to proces­so, fluxo e instru­men­to de redefinição con­stante de cada indivíduo.

    O filme não expõe o Amor enquan­to efe­ti­vação, resul­ta­do final, pre­vis­i­bil­i­dade, o que Jucélio procu­ra é tran­si­tar pelas exper­iên­cias que se colo­cam diante de nós, para com­par­til­har um con­jun­to de visões em proces­so de con­strução, muitas vezes não-ditas no uni­ver­so sen­so-comum, que é vigia­da pela estu­pid­ez da vir­il­i­dade machista, restri­ta ao moral­is­mo tri­un­fante do homem sifil­izador e da mul­her recata­da, enri­je­ci­da pela tradição do cor­po que se fecha para os pos­síveis e impossíveis.

    Para­le­lo às nar­ra­ti­vas, Jucélio explo­ra no filme o uso de leg­en­das para con­tar out­ra história, exigin­do do espec­ta­dor atenção redo­bra­da no cruza­men­to entre o tex­to e as ima­gens. Era uma vez, um príncipe que “só gosta­va de príncipes”, com receio de perder todas as suas riquezas, o príncipe “decide escr­ev­er um dis­cur­so a todo seu reina­do”, um pro­nun­ci­a­men­to que fala do Amor.

    Para rece­ber inspi­ração, o príncipe vai à bus­ca de con­viv­er com pes­soas que com­par­til­havam das mes­mas emoções. As leg­en­das que nar­ram esta história não apare­cem numa ordem defini­da, mas durante todo o filme, dis­per­sas entre as vozes que rev­e­lam seus amores ao espec­ta­dor. As leg­en­das tam­bém são uti­lizadas em algu­mas cenas para acom­pan­har simul­tane­a­mente os depoimentos.

    Quan­do entre­vista Rodol­fo, Jucélio exper­i­men­ta tro­car a voz do depoente pelas leg­en­das, onde a entre­vista é tex­tu­al­iza­da, a par­tir de um corte na cena, para invert­er a relação que o espec­ta­dor man­tinha até então com o filme. Nesse momen­to, quem assiste é tam­bém leitor, ao acom­pan­har a con­ver­sa entre os dois, a par­tir do tex­to disponív­el, silen­cian­do as vozes, ao destacar ima­gens de Rodol­fo no tra­bal­ho, coz­in­han­do, despre­ocu­pa­do com a pre­sença da câmera, que fixa o olhar em seus movi­men­tos quase automáti­cos na cozinha.

    Jucélio Matos, dire­tor do documentário

    Já no final do filme, Jucélio retoma as leg­en­das para con­cluir que o príncipe, ao escr­ev­er seu dis­cur­so, “apron­tou-se ele­gan­te­mente… e desis­tiu. Não havia sen­ti­do em falatório algum. Porque ape­sar de amor rimar tan­to com dor, ele resolveu acred­i­tar no tem­po pre­sente. Inde­pen­dente em qual lado do espel­ho estivesse. E a real­i­dade e ficção viraram assim, um só amor”.

    Seria o príncipe do Doc de Amor uma exten­são de Jucélio? Ou nos­sas exten­sões mais ínti­mas, postas em questão? Para aden­trar neste uni­ver­so que se des­faz com uma névoa bran­ca, que se perde entre as fol­has e o céu, é pre­ciso se per­mi­tir, ati­var todos os poros que ain­da nos restam para con­sumir e ser con­sum­i­do pelos amores que com­par­til­hamos num espaço aber­to-fecha­do-aber­to, num exer­cí­cio con­stante de rein­venção dos con­ceitos que cer­cam o Amor, a fim de torná-lo livre, para degus­tações afe­ti­vas, em quem sabe, efetivas…

    O sol rea­parece, os cor­pos são obri­ga­dos a se sep­a­rar… é hora de ir emb­o­ra para casa… mas, como diz Jorge Maut­ner*, “min­has lágri­mas se acabaram, mas não a von­tade de chorar… só o amor pode matar o medo”.

    Esse é o Doc de Amor, meu Doc de Amor, que Jucélio Matos fez para o mun­do. Por uma história das sensibilidades.

    * Jorge Maut­ner em Ressureições do álbum Revirão (Warn­er Music), de 2007