Category: Literatura Estrangeira

  • Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    cada-homem-e-uma-raca-mia-couto-livroCon­heci a lit­er­atu­ra de Mia Couto durante o perío­do em que fiz Doutora­do em Recife. Jun­tei-me a um grupo de estu­dos denom­i­na­do Lit­er­atu­ra Africana: nar­ra­ti­vas da des­col­o­niza­ção, sob a coor­de­nação de Sil­via Cortez Sil­va, min­ha pro­fes­so­ra e ori­en­ta­do­ra. Entre cafez­in­hos, bolos, livros e boa con­ver­sa, Mia Couto foi sendo assim­i­la­do por mim, ou mel­hor, ele foi comi­do, cheira­do, absorvi­do pela min­ha fome de lit­er­atu­ra e poesia.

    Mia Couto nasceu em Beira, Moçam­bique, no ano de 1955. Faz parte de uma ger­ação de escritores africanos de lín­gua por­tugue­sa. Her­dou da cul­tura oral africana a habil­i­dade de ouvir e con­tar nar­ra­ti­vas. Na min­ha edição do livro “Cada homem é uma raça: con­tos” (edi­to­ra Cia das Letras, 2013), inspi­rador dessa resen­ha afe­ti­va e reflex­i­va, ten­ho reg­istra­do na con­tra­ca­pa um breve autó­grafo do autor: “À Ana Cristi­na. Bei­jo. Mia Couto. 2013.” Guar­do com muito car­in­ho esse “quase” encon­tro, já que a obra foi um pre­sente de min­ha ex-ori­en­tan­da do cur­so de História, que ter­mi­nou por se encan­tar com a obra do autor após a leitu­ra de um arti­go meu sobre out­ro de seus livros: “O Out­ro pé da sereia”. Mia Couto é um dess­es autores que encan­ta pela per­for­mance estilista, pela notáv­el capaci­dade que tem de mover para sua escri­ta a sen­si­bil­i­dade e a del­i­cadeza de quem apren­deu que a mel­hor batal­ha não é trava­da nos cam­pos de guer­ra, mas nos domínios da escrita.

    O livro “Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de onze con­tos escritos em uma lin­guagem colo­quial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sen­ti­dos fáceis. Assim como a rep­re­sen­tação do numer­al onze, na numerolo­gia, diz respeito ao desafio e batal­ha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intri­g­ante por sen­ti­dos, já que os con­tos se ref­er­em a uma prob­lemáti­ca bas­tante opor­tu­na para nos­sa con­tem­po­ranei­dade: se cada pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual, qual é a intenção em se lev­an­tar ban­deiras e pre­con­ceitos con­tra o Out­ro? Se cada indi­ví­duo é uma fron­teira, quem me garante que não esta­mos todos em trân­si­to, em amar­go e sin­istro esta­do de embriaguez?

    Os onze con­tos se dis­tribuem pelo espaço do livro, mas ape­nas para que não o per­camos de vista. Eles infini­tam as fron­teiras do leitor e da leitu­ra, os levan­do para out­ros cenários atem­po­rais com per­son­agens que mais pare­cem humanos (talvez sejam). Ain­da no começo da obra, em for­ma­to de frag­men­to, Mia Couto nos faz pensar:

    Min­ha raça sou eu mes­mo. A pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual. Cada homem é uma raça, sen­hor Polícia.

    Toda essa advertên­cia para que o leitor se pre­pare para uma desci­da aos sub­ter­râ­neos do son­ho, da lou­cu­ra, da amar­gu­ra, do ciúme, da ausên­cia e da solidão. O que faze­mos quan­do nos­sa humanidade vaga em oscilantes dese­qui­líbrios de desumanidade? O que somos quan­do nos res­ta ape­nas o pesade­lo e a desilusão?

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de dese­qui­líbrios nar­ra­tivos equi­li­bra­dos pela suavi­dade e per­spicá­cia do autor, que enche de sen­ti­men­tos e ressen­ti­men­tos os sujeitos que tran­si­tam sob o espaço da obra. No con­to A Rosa Caramela, a per­son­agem é cor­cun­da e magra e tem uma des­ori­en­tação bas­tante ina­bit­u­al: vivia apaixon­a­da por está­tuas. Son­dam alguns que o moti­vo ten­ha sido o son­ho frustra­do de ser noi­va. Ela inven­tara-se noi­va no desas­sossego dos seus son­hos em ter uma fes­ta de casa­men­to com bril­hos e corte­jos. Enam­orou-se de está­tuas com a lev­eza de quem se apaixona pela frieza do amor não cor­re­spon­di­do. Era sua lou­cu­ra que a fazia perder o juí­zo? Ou teria sido a fal­ta de afe­tivi­dade com aque­la que era sem beleza para se aco­modar na (ir)realidade de um casamento?

    A lou­cu­ra de Rosa Caramela cruza-se na nar­ra­ti­va com a do Tio Geguê e do seu sobrin­ho, que pas­sam a nar­ra­ti­va viven­do em um uni­ver­so de insanidade e alu­ci­nação. Os dois per­son­agens vivem cada um a seu modo a desilusão da guer­ra e da orfan­dade. O Tio Geguê havia se tor­na­do par­tic­i­pante de um grupo de vig­ilân­cia e saben­do somente mar­char foi para guer­ra. O sobrin­ho, que vivia tem­pos de alu­ci­nação, acha­va ter fal­a­do com a mãe que nun­ca con­hecera. Ele imag­i­na­va que seu pais não quis­er­am “ver tran­si­tan­do de bicho para meni­no, ran­han­do bar­bas, magro até na tosse.” Ambos cam­in­ham pela nar­ra­ti­va ébrios de nascença e de ausên­cia e descon­fi­avam que “a morte se tor­na­va tão fre­quente que só a vida fazia espan­to”.

    Mas não é somente lou­cu­ra e alu­ci­nação que indi­vid­u­al­iza, human­iza e frag­iliza os per­son­agens da obra de Mia Couto. O moí­do cotid­i­ano do sofri­men­to cas­ti­ga e chega a cri­ar uma ilusão de per­tenci­men­to. Ros­alin­da é gor­da, cheia de saudades do sofri­men­to que havia vivi­do com seu fina­do mari­do Jac­in­to. No cemitério, por vin­gança, tro­ca as inscrições dos túmu­los viz­in­hos para que suas anti­gas namoradas não lhe aco­mo­dem saudades e choros. Espan­ca­da e traí­da, via no gesto sua últi­ma for­ma de vencer os ter­ríveis anos que havia pas­sa­do em sua com­pan­hia. Somente na morte seu sofri­men­to fin­d­a­va; somente na morte e na tro­ca do aqui jaz pode­ria ser final­mente esposa.

    A temáti­ca sobre machis­mo é recor­rente na obra de Mia Couto que inven­ta out­ro per­son­agem quase míti­co, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não acei­ta que sua mul­her fos­se pescar e desse ordem no bar­co. No intu­ito de desmo­bi­lizar a mul­her de suas intenções, ele leva o bar­co — jun­ta­mente com os fil­hos — para o alto das dunas. Fiz­era daque­la embar­cação primeiro sua mora­dia e depois o incen­deia a golpes de insanidade na frente dos fil­hos e da mul­her. Vivia a procu­rar seus olhos no mar e sem quer­er enx­er­gar que a mul­her pre­cisou ir tra­bal­har para traz­er man­ti­men­tos para casa. Des­de o princí­pio da nar­ra­ti­va, o leitor é adver­tido: “vive­mos longe de nós, em dis­tante fin­g­i­men­to. Desa­pare­ce­mo-nos. Porque nos prefe­r­i­mos nes­sa escuridão inte­ri­or?”.

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é uma lit­er­atu­ra de denún­cia sobre as difer­entes maneiras que ergue­mos muros e fin­camos ban­deiras.  A aparên­cia como req­ui­si­to de sofri­men­to é um bom gan­cho de pen­sa­men­to para refle­tir­mos a par­tir de qual momen­to nos­sa aparên­cia físi­ca pas­sa a ser deter­mi­nante para defin­i­mos quem somos. Os estrangeiros que per­am­bu­lam pelos con­tos de Mia Couto são víti­mas do olhar sem­pre indifer­ente do Out­ro. São persegui­dos e vivem sob olhar aten­to da descon­fi­ança e do medo. A len­da de amor entre um forasteiro e sua ama­da, que vivia em uma aldeia, é sig­ni­fica­ti­vo para perce­ber­mos como somos rápi­dos em faz­er jul­ga­men­tos e lentos em apri­morar nos­sa humanidade.

    O con­to O embodeiro que son­ha­va pás­saro nar­ra a história de um vende­dor de pás­saros que pas­sa a ser o prin­ci­pal sus­peito em uma colô­nia de estrangeiros, que viam com descon­fi­ança aque­la difí­cil con­vivên­cia com um homem pobre e pre­to, que vivia a andar pelo lugar venden­do pás­saros e a roubar das cri­anças des­cuida­dos inter­ess­es. Aque­les que não gostavam daque­la inad­e­qua­da junção sen­ti­am ciúmes do pas­sa­do, da feliz arru­mação das criat­uras pela aparên­cia. Em um des­fe­cho fenom­e­nal, o autor nos leva a pen­sar sob quais gaio­las vive­mos pre­sos? Somos pás­saros que son­hamos com voo, mas ape­nas raste­jamos pelo chão?

    Os con­tos em trân­si­to deix­am os leitores ton­tos. Somos lev­a­dos a refle­tir que ape­nas quan­do repen­samos nos­sas ati­tudes nos abri­mos para rever­mos nos­sas certezas.  Duarte Fortin, coxo e encar­rega­do ger­al dos cri­a­dos em uma min­er­ado­ra, em con­fis­são ao padre admite: — “Se Deus for negro, sen­hor padre, estou frito: nun­ca mais vou ter perdão”. Se exis­tem certezas elas nos man­tém cegos pela vida. Deve­mos procu­rar nos­sos olhos não no mar, mas na fun­dura de nos­so Ser. É a par­tir de um movi­men­to de reflexão e de respon­s­abil­i­dade éti­ca com o Out­ro que poder­e­mos abrir nos­sos escuros para mel­hor enx­er­gar­mos nos­sas tes­si­turas. Vag­amos pela leitu­ra de Mia Couto procu­ran­do com­preen­der e jun­tar os sen­ti­dos que habitam nos seus con­tos, mas ape­nas somos lev­a­dos a uma viagem inte­ri­or, em bus­ca de nos­so próprio proces­so de (des)humanização.

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.

  • Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    boneco-de-neve-de-jo-nesbo-livro-capaUm trau­ma emo­cional é o tipo de veneno com grande con­cen­tração de sub­stân­cias mortíferas. Agin­do inter­na­mente e induzin­do a um grande sofri­men­to, o trau­ma quase sem­pre vem acom­pan­hado de esta­dos físi­cos ou psíquicos lesion­a­dos pelo tem­po e pelas vivên­cias neg­a­ti­vas acu­mu­ladas. Sor­rateira­mente, ele vai crescen­do em dimen­sões e poder destru­ti­vo, e tal qual uma epi­demia, é difí­cil extirpá-lo.

    Retal­hos de difer­entes trau­mas com­põem a obra “Boneco de Neve” (orig­i­nal Snø­man­nen, tradução de Grete Ske­vik, edi­to­ra Record, 2013, págs. 420), séti­mo livro da série “inspetor Har­ry Hole”, tra­bal­ho do escritor, músi­co e econ­o­mista norueguês Jo Nes­bø. Acla­ma­do na Europa e em fran­ca ascen­são pelo mun­do, Nes­bø já vendeu mais de 20 mil­hões de livros, con­qui­s­tan­do o Prêmio Glass Key como mel­hor romance nórdi­co de 1998.

    Na obra “Boneco de Neve”, o ter­ror psi­cológi­co dos thrillers poli­ci­ais lança­dos pelo autor norueguês retor­na com força total, per­son­ifi­ca­do ago­ra pela pre­sença do assas­si­no em série que, antes de sumir com as víti­mas, deixa um “sim­páti­co” bonequin­ho feito de gelo em frente ao local em que comete os seque­stros. O lunáti­co cos­tu­ma atacar sem­pre quan­do cai a primeira neve do ano, agin­do den­tro de um padrão. Desco­brir que tipo de lin­ha de ação e quais são os mod­e­los (e seg­re­dos) que ori­en­tam o ser­i­al killer é tare­fa do prob­lemáti­co inspetor Har­ry Hole.

    Mar­ca­do pelas trág­i­cas lem­branças de um pas­sa­do tumul­tua­do, Hole amar­ga o rompi­men­to de um rela­ciona­men­to, a morte de ami­gos em mis­são, o defin­hamen­to da mãe em um leito de hos­pi­tal, além de situ­ações famil­iares com­pli­cadas e a dependên­cia do álcool. Quan­do donas de casa começam a desa­pare­cer mis­te­riosa­mente, com a pos­te­ri­or des­o­va de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o trauma­ti­za­do inspetor começa a medir pis­tas, con­tan­do com a aju­da da poli­cial Katrine Bratt, recém-integra­da à cor­po­ração em que Har­ry é lotado.

    Jo Nesbø por Cato Lein
    Jo Nes­bø por Cato Lein

    A tra­ma é estru­tu­ra­da com idas e vin­das na ordem cronológ­i­ca, além de digressões dos per­son­agens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A nar­ra­ti­va é inten­sa, reple­ta de picos de ten­são, mis­tu­ran­do ele­men­tos macabros e per­tur­badores, mas sem apelar para a escat­olo­gia vis­cer­al de livros como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, de Bret Eas­t­on Ellis. O grande trun­fo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enig­ma ao desafi­ar a per­cepção do leitor; a todo o momen­to, o sen­so de obser­vação é colo­ca­do à pro­va, pois cada detal­he rev­ela mais – ou menos – do que aparenta.

    Con­fes­so que antes de começar a leitu­ra, subes­timei o emble­ma do boneco de neve como assi­natu­ra de um assas­si­no per­ver­so. Lig­a­da à figu­ra do ‘homem de gelo’ como metá­fo­ra natali­na próx­i­ma do uni­ver­so infan­til, não con­segui perce­ber de ime­di­a­to que nes­sa escol­ha tam­bém reside uma pista impor­tante. De obje­to lúdi­co à mar­ca de crime, a imagem do boneco atrav­es­sa cic­los difer­entes, que aju­dam a com­preen­der um pouco do uni­ver­so que o autor apresentou.

    O autor por Niklas R. Lello
    O autor por Niklas R. Lello

    Seguin­do o rit­mo frenéti­co da obra, deslum­brei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e con­tin­u­assem em mar­cha, afi­nal, são 420 pági­nas vorazes. Inter­es­sante notar que a descrição físi­ca do poli­cial Har­ry Hole me fez supor que a per­son­agem pode se tratar de um alter ego de Jo Nes­bø, pois as asso­ci­ações são ime­di­atas. Fora isso, Nes­bø criou uma espé­cie de “cer­tidão pes­soal e profis­sion­al” para o pro­tag­o­nista de suas séries, com dire­ito a descrições de per­son­al­i­dade, cur­ricu­lum vitae, inter­ess­es, ambições e planos futur­os. Gostei de desco­brir que estou lig­a­da ao dete­tive ator­men­ta­do pelo gos­to musi­cal (Sex Pis­tols e Neil Young) e pela ambição pes­soal, que con­siste em enten­der o que é a mal­dade e o amor.

    Com­para­do pelo jor­nal britâni­co The Sun­day Times ao influ­ente “O silên­cio dos inocentes”, do escritor Thomas Har­ris, a carnific­i­na silen­ciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a pen­e­trar em uma ver­são mod­er­na do mitológi­co labir­in­to de Déda­lo, onde uma besta movi­da por emoções humanas seques­tra e aniquila suas víti­mas, deixan­do um ras­tro silen­cioso de ter­ror. Jo Nes­bø cati­va o leitor ao traz­er o dia­bóli­co e a redenção lado a lado, em capí­tu­los que pul­sam, dilatam e escon­dem. Uma dica pre­ciosa: este­ja aten­to aos mín­i­mos detal­h­es e sím­bo­los espal­ha­dos em toda a nar­ra­ti­va. Como escreveu o dra­matur­go William Shake­speare na peça “Mac­beth”: “Pelo comichar do meu pole­gar, sei que deste lado vem vin­do um malvado”.

    Assista o book trail­er sen­sa­cional do livro (ver­são do Reino Unido):

  • Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    You and I are under­dosed and we’re ready to fall. Raised to be stu­pid, taught to be noth­ing at all. I don’t like the drugs but the drugs like me. (…) There’s a hole in our soul that we fill with dope. And we’re feel­ing fine”.

    (Você e eu esta­mos dopa­dos, e nós esta­mos pron­tos para cair. Cri­a­dos para ser­mos estúpi­dos, ensi­na­dos a não ser nada. Eu não gos­to das dro­gas, mas elas gostam de mim. (…) Há um bura­co em nos­sas almas que preenchemos com dro­gas, e nós esta­mos nos sentin­do bem – tradução livre).

    O tre­cho aci­ma per­tence à músi­ca “I don’t like the drugs (But the drugs like me)”, lança­da pela ban­da Mar­i­lyn Man­son no álbum “Mechan­i­cal Ani­mals” (1998). O vocal­ista e per­former norte-amer­i­cano Bri­an Warn­er, con­heci­do mundial­mente pelo pseudôn­i­mo que deu nome à ban­da, car­rega nas costas inúmeras polêmi­cas e escân­da­los, dos quais se desta­cam o uso abu­si­vo de dro­gas, per­for­mances de pal­co con­sid­er­adas insól­i­tas, além de ter tido seu nome asso­ci­a­do ao Mas­sacre de Columbine, uma das mais ter­ríveis tragé­dias envol­ven­do ado­les­centes e assas­si­na­to nos Esta­dos Unidos.

    Marilyn Manson (Brian Warner)
    Mar­i­lyn Man­son (Bri­an Warner)

    No álbum “Mechan­i­cal Ani­mals”, Mar­i­lyn Man­son fala aber­ta­mente sobre a degradação de uma sociedade vazia, nar­co­ti­za­da e mecan­iza­da, onde só há lugar para “sis­temas ner­vosos desati­va­dos” (Dis­as­so­cia­tive) e “pílu­las para entor­pecer, embur­recer e trans­for­mar você em out­ra pes­soa” (Coma White). Em 1985, treze anos antes do polêmi­co e pre­mi­a­do álbum de Man­son dividir opiniões, o escritor Bret Eas­t­on Ellis pub­li­ca­va Abaixo de Zero (orig­i­nal Less than Zero), seu livro de estreia. Assim como “Mechan­i­cal Ani­mals”, a obra de Eas­t­on Ellis foi igual­mente cer­ca­da por con­tro­vér­sias ao traz­er de for­ma crua e dire­ta o retra­to dete­ri­o­ra­do da ger­ação dos anos 80, afun­da­da em um mun­do onde fama, pornografia, dro­gas e crimes refletem a iden­ti­dade (ou a fal­ta dela) de jovens e adolescentes.

    Capa do livro pela editora L&PM
    Capa do livro pela edi­to­ra L&PM

    A nar­ra­ti­va começa com o retorno de Clay, pro­tag­o­nista da tra­ma, à casa dos pais em Los Ange­les para pas­sar o perío­do de férias da fac­ul­dade. Na vol­ta ao lar, Clay reen­con­tra os vel­hos ami­gos do colé­gio, assim como sua ex-namora­da, Blair. Todos eles têm em comum vidas super­fi­ci­ais, con­tro­ladas pela fal­sa ilusão de poder e, espe­cial­mente, pelo uso abu­si­vo de nar­cóti­cos. Clay vive em uma casa sem afe­to, sem saber dire­ito difer­en­ciar as irmãs pelo nome (ado­les­centes que con­somem cocaí­na sem o menor con­strang­i­men­to), cujos pais não pos­suem nen­hum sen­so de respon­s­abil­i­dade e com­pro­mis­so. Julian, um dos ami­gos mais próx­i­mos de Clay, entra no uni­ver­so da pros­ti­tu­ição mas­culi­na para man­ter o vício das dro­gas; Blair bus­ca refú­gio na bebi­da, e as demais com­pan­hias de Clay são com­postas por garo­tas bulími­cas, rapazes que banal­izam o ato sex­u­al, transformando‑o em um mero “por que não?”, além de vici­a­dos e traficantes.

    Inseri­das nesse meio, estão famílias despedaças, pais e mães atuan­do dire­ta­mente no show busi­ness hol­ly­wood­i­ano, mas sem saber como lidar com os próprios fil­hos – e sem o menor inter­esse em apren­der. Enquan­to isso, a dro­ga, o sexo e o din­heiro fácil roubam a tutela e dire­cionam a vida dess­es “fil­hos do vazio”, sem per­spec­ti­vas ou son­hos. Se a juven­tude é acla­ma­da como a fase das con­quis­tas e a luta por uma existên­cia com propósi­to, a ger­ação de Bret Eas­t­on Ellis gri­tou para ser sauda­da pela incon­se­quên­cia, alien­ação, pas­sivi­dade, pelo “desa­pareça aqui”. O enre­do de Abaixo de Zero (tradução de Rick Good­win, edi­to­ra L&PM em parce­ria com a edi­to­ra Roc­co, 2011, pág. 176) rev­ela mentes arru­inadas e cam­in­hos per­di­dos em uma nar­ra­ti­va inter­romp­i­da por flux­os de con­sciên­cia, memórias e lap­sos. O leitor exper­i­men­ta a pos­si­bil­i­dade de entrar na cabeça de Clay, sentin­do, obser­van­do e viven­do como se estivesse exata­mente na pele do pro­tag­o­nista. Essa téc­ni­ca pode ser encon­tra­da em out­ras obras de Eas­t­on Ellis, como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, que tam­bém abor­da, de for­ma incom­par­a­vel­mente vis­cer­al, o fun­do do poço da ger­ação per­di­da. As cica­trizes da época juve­nil con­ce­dem ao tra­bal­ho do escritor norte-amer­i­cano um tom quase biográ­fi­co, con­fes­sa­do por ele em entre­vista ao site Sab­o­tage Times, em que afir­ma ter sido Patrick Bate­man, pro­tag­o­nista do livro “O Psi­co­pa­ta Americano”.

    Christian Bale em "Psicopata Americano", dirigido por Mary Harron
    Chris­t­ian Bale em “Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, dirigi­do por Mary Harron

    Lev­a­do para as telonas, Abaixo de Zero foi estre­la­do por Andrew McCarthy, Robert Downey Jr. e James Spad­er, inter­pre­tan­do respec­ti­va­mente Clay, Julian e Rip. Ape­sar das polêmi­cas ini­ci­adas logo no primeiro romance, Bret Eas­t­on Ellis estende a temáti­ca e aler­ta para o prob­le­ma cen­tral do con­sumo desen­f­rea­do de dro­gas, soma­do à decadên­cia e o vazio exis­ten­cial do ser humano.

    Poster do filme dirigido por Marek Kanievska
    Poster do filme dirigi­do por Marek Kanievska

    A real­i­dade descri­ta nas obras de Bret Ellis em mea­d­os dos anos 80 não está tão dis­tante do cenário brasileiro encon­tra­do, por exem­p­lo, nas fes­tas regadas à bebidas, sexo bara­to e dro­gas, cap­i­taneadas por jovens da classe média alta em ambi­entes par­adis­ía­cos. Enquan­to o dese­jo de cur­tir a vida alcança o sta­tus de “feli­ci­dade supre­ma”, lema espal­ha­do por cam­pan­has pub­lic­itárias, pro­gra­mas e nov­e­las, o Brasil con­tabi­liza o infe­liz número de 370 mil usuários reg­u­lares de crack nas cap­i­tais de seus estados.

    Para quem ain­da ousa diz­er que “real­i­dade e ficção não se mis­tu­ram”, sugiro lig­ar a tele­visão em qual­quer canal, aces­sar a inter­net ou sin­tonizar a emis­so­ra de rádio. Dis­farçadas e ráp­i­das, elas estarão lá, em diver­sas cores, for­matos e taman­hos. Inúmeras promes­sas de ele­vação e pop­u­lar­iza­ção. O ciclo do vazio con­tin­ua e, como enlouquece Mar­i­lyn Man­son na músi­ca “The Dope Show”: “Eles te amam quan­do você está em todas as capas. Quan­do você não está, eles amam outro”.

  • Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

    Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

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    Capa do livro pela Com­pan­hia das Letras

    Nos últi­mos meses, o mun­do tem con­heci­do o poder da mobi­liza­ção pop­u­lar na Turquia, onde protestos reuni­ram quase 2,5 mil­hões de pes­soas. As cidades de Istam­bul e Ancara, esta últi­ma a cap­i­tal do país, con­cen­tram o maior número de atos de protesto con­tra o gov­er­no vigente. No Brasil, a situ­ação não tem sido difer­ente e, à semel­hança do que vêm acon­te­cen­do na Turquia, os movi­men­tos pop­u­lares estão sendo dura­mente reprim­i­dos por gov­er­nos autoritários e coercitivos.

    Antes dess­es impor­tantes acon­tec­i­men­tos soci­ais e políti­cos, a grande maio­r­ia dos brasileiros teve o primeiro con­ta­to com a cul­tura tur­ca através da afe­ta­da nov­ela glob­al Salve Jorge, com suas dançari­nas de olhos mar­ca­dos, cenários hiper­boli­ca­mente exóti­cos e uma pop­u­lação “arabesca”, bem ao gos­to dos fetich­es oci­den­tais. Diminuir a importân­cia de uma cul­tura transformando‑a em pro­du­to das indús­trias cul­tur­ais tem sido uma práti­ca incan­sáv­el de veícu­los de entreten­i­men­to e comu­ni­cação, bem como de insti­tu­ições sacra­men­tadas, que usam tudo o que podem para angari­ar lucros e difundir ideologias.

    Feliz­mente, não foi dessa vez que eu despen­quei no abis­mo desse esque­ma, pois meu inter­esse pela cul­tura tur­ca remete aos meus treze anos de idade, quan­do escutei pela primeira vez a músi­ca “Şımarık”, do can­tor e per­former Tarkan. De lá para cá, ten­ho sido guia­da por uma espé­cie de “mão invisív­el do des­ti­no” para tudo o que faz refer­ên­cia à Turquia: fiz grandes ami­gos em Istam­bul, Ancara, İzmir e Amas­ra, come­cei a apren­der a lín­gua do país e procu­rar por escritores, poet­as e músi­cos tur­cos. Foi assim que me deparei com Istam­bul – Memória e Cidade (orig­i­nal İst­anb­ul: Hatıralar ve Şehir), exten­so romance memo­ri­al­ista de Orhan Pamuk, primeiro escritor tur­co a rece­ber o Prêmio Nobel de Lit­er­atu­ra (ano de 2006). A edi­to­ra Com­pan­hia das Letras lançou a pub­li­cação brasileira em 2007, com tradução de Ser­gio Flaks­man e basea­da na tradução ingle­sa da obra, assi­na­da por Mau­reen Freely.

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    Orhan Pamuk

    As memórias auto­bi­ográ­fi­cas de Orhan Pamuk se mis­tu­ram a relatos de via­jantes oci­den­tais famosos, escritores tur­cos imer­sos em ruí­nas e tris­tezas e acon­tec­i­men­tos que mar­caram para sem­pre o coração da cidade mais famosa da Turquia. O livro é um apan­hado detal­ha­do da vida em Istam­bul com todas as suas belezas e decadên­cias, onde as ruas estão cer­cadas pelas man­sões dos anti­gos paxás, com­ple­ta­mente destruí­das pelo fogo e pelo tem­po; famílias ric­as dese­jam a qual­quer cus­to osten­tar uma imagem oci­den­tal­iza­da, desprezan­do tudo o que faz refer­ên­cia ao império otomano ou às tradições ori­en­tais. Entre citações de escritores tur­cos como Yahya Kemal, Reşat Ekrem Koçu, Ahmet Ham­di Tan­pı­nar e Ahmet Rasim, famosos por descreverem detal­h­es que até mes­mo uma boa parte dos “Istan­bul­lus” descon­hece, o pre­mi­a­do memo­ri­al­ista dá ao leitor um panora­ma ger­al da cidade que o viu nascer e crescer, capaz tam­bém de des­per­tar sen­ti­men­tos contraditórios.

    Orhan Pamuk nasceu em 1952, den­tro de uma família bur­gue­sa que entra­va grada­ti­va­mente em ruí­na finan­ceira. Jun­to com seu irmão mais vel­ho, Orhan cresceu rodea­do por par­entes e pela pre­sença autoritária da avó pater­na. Ape­sar das inten­sas dis­putas inter­nas pela posse de pro­priedades e bens, tios, tias, mães, pais, irmãos, sobrin­hos e avó se reu­ni­am na mesa de jan­tar e sus­ten­tavam as aparên­cias. Segun­do descrição con­ti­da no livro, esse tipo de com­por­ta­men­to inco­mo­da­va o escritor des­de pequeno, mas só ao pon­to de não inter­ferir em seu próprio mun­do. As brigas ger­adas no seio do Edifí­cio Pamuk trazi­am à tona a real­i­dade de uma sociedade des­gas­ta­da, arru­ina­da pelas mudanças que se oper­avam na ten­ta­ti­va de apa­gar o pas­sa­do, impon­do uma vida oci­den­tal­iza­da para esque­cer as ori­gens. A família Pamuk não era reli­giosa e não fix­a­va seus princí­pios em segui­men­tos tradi­cionais de obe­diên­cia cega, o que deixou espaço para um desen­volvi­men­to int­elec­tu­al e pes­soal maior. Orhan e seu irmão vivi­am no con­for­to de car­ros impor­ta­dos, esco­las caras e pas­seios famil­iares ao Bós­foro, desta­ca­do pelo autor como parte cen­tral da vida de qual­quer habi­tante de Istambul.

    Pintura de Melling, do livro "Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore"
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    O livro vem reple­to de fotografias em pre­to e bran­co – exata­mente como o autor con­cebe a cidade -, além de traz­er um min­u­cioso tra­bal­ho de pesquisa. Para falar a ver­dade, Orhan Pamuk colo­ca para fora toda a obsessão de memo­ri­al­ista que o persegue, com 408 pági­nas de uma trav­es­sia lenta, melancóli­ca e silen­ciosa, escri­ta em tons de cin­za. Para o “olhar oci­den­tal”, é inter­es­sante con­hecer as impressões que o fab­u­loso pin­tor Antoine Ignace Melling teve de Istam­bul, através das ima­gens de suas obras repro­duzi­das no livro. Destaque tam­bém para comen­tários de Pamuk aos difer­entes relatos dos france­ses Gerárd de Ner­val, Theóphile Gau­ti­er e Gus­tave Flaubert sobre Istam­bul, influ­en­cian­do dire­ta­mente autores turcos.

    Orhan Pamuk
    Orhan Pamuk

    É inegáv­el a destreza e segu­rança com que Pamuk expõe as nuances que car­ac­ter­i­zam a sua cidade, procu­ran­do faz­er para­le­los com sua vida pes­soal. No decor­rer das pági­nas, o leitor tam­bém se depara com fotos do arqui­vo famil­iar, mostran­do Orhan e seu irmão pequenos, assim como os par­entes em ger­al. Par­tic­u­lar­mente, tive a sen­sação de que as palavras do autor trazem uma car­ga de melan­co­l­ia, con­fir­ma­da ain­da mais pelas fotografias das ruas cinzen­tas, degradadas e pouco ilu­mi­nadas de Istam­bul, assim como pelo triste olhar da mãe de Orhan, mul­her lindís­si­ma e de embaraço melancóli­co, eterniza­do pela imo­bil­i­dade fotográfica.

    Assim como o Brasil tem a palavra “Saudade” como um vocábu­lo úni­co, os “Istan­bul­lus” têm o ter­mo “Hüzün” para definir a inten­sa melan­co­l­ia que sen­tem. A importân­cia dessa palavra é tão grande para enten­der os sig­nifi­ca­dos da cidade que Pamuk dedi­cou um capí­tu­lo inteiro para esmi­uçar as mais difer­entes acepções para o ter­mo. Essa ‘tris­teza’ reflete uma rup­tura, um far­do cul­tur­al enorme, uma exper­iên­cia espir­i­tu­al que ultra­pas­sa o entendi­men­to e se trans­for­ma em poe­sia diária de quem res­pi­ra o ar do Bós­foro e cam­in­ha pelas ruas de casas de madeira queimadas, anti­gas mora­dias de paxás e por vielas que divi­dem lugar com ciprestes e cemitérios.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Istam­bul – Memória e Cidade parece ser uma ten­ta­ti­va de retorno e redenção de Orhan Pamuk, já que o próprio autor viveu momen­tos de con­fli­to e negação com relação à cidade. Seja em meio aos momen­tos da infân­cia, brigas de família, iní­cio da vida esco­lar e, anos mais tarde, entra­da desan­i­ma­da na fac­ul­dade de Arquite­tu­ra, Pamuk mostra o lado que per­tence aos ver­dadeiros nativos da cidade em pre­to e bran­co. No meio de tan­tas lem­branças, há tam­bém os estu­dos que o autor real­i­zou para escr­ev­er o livro, o qual­i­fi­ca­do con­hec­i­men­to históri­co que ele apre­sen­ta, a sua desen­f­rea­da bus­ca por arquiv­os públi­cos e tam­bém a par­til­ha de sen­ti­men­tos que mar­caram a sua vida, como a dolorosa sep­a­ração do ambi­ente famil­iar, quan­do começou a fre­quen­tar o colé­gio; sua neces­si­dade de expressão por meio de desen­hos e pin­turas e o inesquecív­el caso de amor que ele teve com uma garo­ta a quem dele­gou um pseudôn­i­mo curioso (Rosa Negra). Lamen­tavel­mente para o autor – e isso fica bem claro no decor­rer desse capí­tu­lo -, o romance não dá cer­to e a cul­pa recai em cima da opção de Pamuk pela arte.

    Barış Akarsu
    Barış Akar­su

    Min­ha exper­iên­cia com a leitu­ra desse livro foi bas­tante pos­i­ti­va, mas pre­ciso men­cionar a vagarosi­dade na sequên­cia de alguns capí­tu­los, que exigem grande esforço de con­cen­tração por parte do leitor, e tam­bém a lacu­na que sen­ti por não perce­ber nen­hum capí­tu­lo ou comen­tário mais detal­ha­do sobre a pro­dução musi­cal de Istam­bul, tão rica e diver­si­fi­ca­da. A Turquia tem pro­duzi­do os mais vari­a­dos tipos de músi­ca, e eu não pode­ria deixar de enfa­ti­zar o instru­men­tista Hüs­nü Şen­lendiri­ci que, a propósi­to, tem uma com­posição belís­si­ma chama­da  İst­anb­ul İst­anb­ul Olalı, e o fab­u­loso can­tor e per­former Barış Akar­su, vence­dor da série tele­vi­si­va Akade­mi Türkiye (Acad­e­mia Tur­ca), em 2004, com a inter­pre­tação prodi­giosa da músi­ca Islak Islak. Barış tam­bém atu­ou na série Yalancı Yarim (algo como “meu amante men­tiroso” ou ain­da “metade men­tiroso”), atingin­do um suces­so estron­doso até sua morte, aos 28 anos, viti­ma­do por um aci­dente de carro.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Como entu­si­as­ta da pro­dução cul­tur­al da Turquia, e sem esque­cer da importân­cia de Pamuk para a lit­er­atu­ra tur­ca como o autor mais ven­di­do do país, com obras traduzi­das para mais de sessen­ta lín­guas, recomen­do a leitu­ra de Istam­bul – Memória e Cidade porque, muito mais do que uma viagem ao pas­sa­do, essa obra con­strói pontes que, ao invés de dis­tan­cia­rem, aproximam.

  • A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A_morte_de_Ivan_Ilitch-capaPre­sença fan­tas­magóri­ca, som­bria, temi­da. Uma car­i­catu­ra de dentes amare­los e ros­to esquáli­do, que vaga pelas noites de tem­pes­tade. Vul­to den­tro de um quar­to escuro, com forte aro­ma de velas mis­tu­ra­do com cipreste e crisân­te­mo, avoluman­do lágri­mas ind­is­farçáveis. Não impor­ta a imagem ou descrição atribuí­da, a morte é uma das obsessões do homem tan­to quan­to a von­tade de saber sobre o iní­cio da existên­cia e seu elo perdido.

    No entan­to, falar sobre o assun­to ain­da con­sti­tui tabu para diver­sas sociedades, rep­re­sen­tan­do con­teú­do a ser evi­ta­do para que a ale­gria de viv­er não se dis­sol­va em ques­tion­a­men­tos sem retorno. Porém, cam­in­han­do do lado opos­to dessa ideia dom­i­nante, o escritor rus­so Liev Niko­laievitch Tol­stói não tin­ha o menor receio em tratar sobre temas que envolvessem a câmara mor­tuária e o pon­to final da exper­iên­cia humana. Nasci­do na sun­tu­osa residên­cia de Yas­naya-Polyana em 1828, o conde Liev Tol­stói teve pen­sa­men­tos con­trários aos dos mem­bros de sua posição social, ques­tio­nan­do-se durante toda a vida sobre a ide­olo­gia que man­tém a estrat­i­fi­cação pre­sente entre ricos e pobres, trans­for­man­do a orga­ni­za­ção da sociedade em um ver­dadeiro abis­mo. As ideias do escritor tam­bém con­trastavam com o pen­sa­men­to reli­gioso, políti­co, artís­ti­co e social da época, reg­istro evi­dente em quase toda a sua obra. Da sua exten­sa ativi­dade int­elec­tu­al, tornaram-se sinôn­i­mos de clás­si­co os romances Guer­ra e Paz e Ana Karên­i­na, e a nov­ela A morte de Ivan Ilitch, con­sid­er­a­da por muitos críti­cos como a pri­ma-dona do gênero na lit­er­atu­ra mundi­al. A edição lança­da pela L&PM Pock­et em 1997, traduzi­da por Ver­am Karam, gan­hado­ra do prêmio Aço­ri­anos de Tradução, foi reim­pres­sa em 2010, pos­si­bil­i­tan­do que a con­sagra­da nov­ela de Tol­stói con­tin­u­asse chegan­do às mãos de novos leitores.

    Pub­li­ca­da em 1886, A morte de Ivan Ilitch é fru­to dos últi­mos anos de vida de Tol­stói, que mor­reu aos 82 anos de idade na estação fer­roviária de Astapo­vo. Naque­la ocasião, o romancista tin­ha fugi­do de casa para iso­lar-se em um mosteiro, pois esta­va imer­so em uma fase de reclusão volta­da para a natureza e con­tem­plação reli­giosa, ati­tude que seguia à rev­elia de famil­iares e ami­gos. Em 1883, o escritor Ivan Tur­guêniev, ami­go ínti­mo de Liev Tol­stói, chegou a lhe escr­ev­er uma der­radeira car­ta dire­ta­mente do seu leito de morte, pedin­do que o ami­go voltasse para a lit­er­atu­ra. Moti­va­do por esse pedi­do ou não, Tol­stói retornou com a história do buro­cra­ta Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viv­er e nem mor­rer, mas ten­tou encon­trar respostas para a morte durante o lon­go proces­so de ago­nia que enfrentou.

    Foto do autor Leo Tolstoy
    Foto do autor Leo Tolstoy

    A nar­ra­ti­va começa pelo final, no pré­dio do Tri­bunal de Justiça em que Ivan Ilitch tra­bal­ha­va e onde sua morte foi comen­ta­da pelos seus cole­gas de tra­bal­ho e cartea­do. Ao invés de con­dolên­cias sin­ceras, os com­pan­heiros dis­cu­ti­am trans­fer­ên­cias e pro­moções de car­gos, vis­to que uma das vagas esta­va em aber­to. Com essa sutileza, Tol­stói per­corre o mun­do mesquin­ho de home­ns e mul­heres sem iden­ti­dade ou con­sciên­cia, cuja per­son­al­i­dade varia de acor­do com inter­ess­es ou posições. Pes­soas para quem a morte é pre­rrog­a­ti­va do viz­in­ho, con­sti­tuin­do-se em real­i­dade dis­tante de suas sossegadas existên­cias. Antes de ser viti­ma­do pela tene­brosa mor­tal­ha, Ivan Ilitch viveu como todos os seus con­frades: fil­ho de ofi­cial lota­do em car­gos e depar­ta­men­tos por puro aper­to de mãos, Ivan cresceu saben­do que seu des­ti­no seria seguir car­reira em órgão públi­co, pulan­do de setor em setor mes­mo que não tivesse a menor aptidão para isso. O que real­mente impor­ta­va eram as lig­ações políti­cas e soci­ais que con­seguiria travar ao lon­go da vida, lega­do que seu pai tra­tou de iniciar.

    Depois de se for­mar em Dire­ito, Ivan Ilitch par­tiu para uma das provín­cias rus­sas para assumir o pos­to de secretário par­tic­u­lar e emis­sário do gov­er­nador, pre­sente dado pelo pai. Essas “entradas pela janela”, práti­ca igual­mente comum na história brasileira, eram o úni­co mun­do que o jovem buro­cra­ta con­hecia. Homem de ambições baseadas no lucro e na imi­tação da elite, Ivan seguia à risca o pro­to­co­lo lança­do por seus supe­ri­ores e pela alta-sociedade, fre­quen­tan­do ambi­entes pom­posos, humil­han­do sub­al­ter­nos, sus­ten­tan­do a máx­i­ma de que “ordens são ordens” e, prin­ci­pal­mente, aper­feiçoan­do-se na arte da bajulação.

    Retrato de Tolstói por Ilya Efimovich Repin (1844-1930).
    Retra­to de Tol­stói por Ilya Efi­movich Repin.

    Esse esti­lo de vida basea­do em más­caras per­sis­tiu até mes­mo no casa­men­to, moti­va­do por beleza e con­veniên­cia, rene­gan­do o amor ao últi­mo plano. Ape­sar das histórias român­ti­cas que ali­men­ta­ram os sécu­los pas­sa­dos, a ideia do amor esta­va longe da alco­va de muitos casais, pois ain­da no sécu­lo XIX pre­domi­na­va o casa­men­to jus­ti­fi­ca­do por acor­dos e tro­ca de van­ta­gens entre as famílias. O buro­cra­ta Ivan Ilitch não fugiu à regra e mer­gul­hou de cabeça em um rela­ciona­men­to que só trouxe amar­guras, recla­mações e cobranças. Casa­do com Praskovya Fiodor­ov­na, mul­her dita de boa família, mas super­fi­cial e rabu­gen­ta, Ivan detes­ta­va o matrimônio e o con­ce­bia como um abis­mo sem fim, razão pela qual vivia enfur­na­do no tra­bal­ho. Nesse ele­men­to, percebe-se a críti­ca de Tol­stói con­tra a hipocrisia dos casa­men­tos sem amor, dese­jo ou respeito, práti­ca comum à época.

    Anos des­gas­tantes se pas­saram e em uma de suas mudanças de car­go e casa, Ivan Ilitch sofreu um aci­dente caseiro, baten­do a região dos rins. No começo, a dor local­iza­da e o gos­to amar­go na boca não impres­sion­aram o buro­cra­ta. Somente depois, com a inten­si­fi­cação da sen­sação penosa, Ivan notou que algo anda­va muito mal. Procu­ran­do diver­sos médi­cos e espe­cial­is­tas, que nada diziam de útil ou váli­do, Ivan teve que encar­ar seu pesade­lo real: a aprox­i­mação da morte. O caráter do rus­so, ante­ri­or­mente mas­cara­do pelas obri­gações soci­ais, perde a camu­flagem e começa a sofr­er alter­ações. A super­fi­cial­i­dade dá lugar a uma dis­tân­cia fria, vio­len­ta, reple­ta de angús­tias e sen­ti­men­tos que tran­scen­dem o próprio Ivan Ilitch. O medo da morte ator­men­ta o con­fi­ante buro­cra­ta, que só encon­tra con­for­to na pre­sença de Geras­sim, empre­ga­do de mod­os serenos e com­por­ta­men­to honesto.

    Durante a ago­nia de Ilitch, Tol­stói faz com que o leitor se aprox­ime do sofri­men­to, do sen­ti­men­to desagradáv­el – e evi­ta­do a todo cus­to – de recon­hecer sua fini­tude, de que um dia irá deixar de exi­s­tir como matéria, aniqui­lan­do tudo o que con­hece. Escri­ta de for­ma sim­ples, sem rodeios, A morte de Ivan Ilitch pos­si­bili­ta o ques­tion­a­men­to de decisões e for­mas com as quais a vida é con­duzi­da. Adi­anta ir emb­o­ra sem levar nada ver­dadeira­mente nos­so? A posição social e a com­ple­ta indifer­ença em relação ao mun­do valem mais a pena do que o amor aos nos­sos pares, a par­til­ha, a igual­dade e out­ros sen­ti­men­tos que deix­am mar­cas? Essas são ape­nas duas das inúmeras reflexões que a obra suscita.

    Quadro “The Garden of Death”, do artista nórdico Hugo Simberg
    Quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Simberg

    Ivan Ilitch, um homem medíocre que acred­i­ta­va viv­er uma vida digna porque repro­duzia leis e aten­dia aos padrões da elite, um indi­ví­duo sem pen­sa­men­tos próprios, for­ma­do pelas ideias dos out­ros, teve como auge da vida o perío­do em que ficou doente ter­mi­nal e “tin­ha de viv­er à beira do pre­cipí­cio, soz­in­ho, sem uma alma que o enten­desse e dele tivesse com­paixão”. Ivan, dono de uma existên­cia sem raízes, encon­trou na mor­tal­i­dade o medo que elu­ci­da, o pâni­co que força a que­da do véu da ignorân­cia. Se a morte age silen­ciosa­mente e traz no ros­to o hor­ror sem gri­tos do quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Sim­berg, Tol­stói deu ao mun­do, na for­ma da história comum de um fun­cionário públi­co insignif­i­cante, a biografia de uma humanidade doente, metódi­ca e con­ge­la­da; a história de ani­mais mecâni­cos que só acor­dam com o sus­sur­ro que os leva embora.

  • O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    Capa da versão lançada pela editora DarkSide
    Capa do e‑book lança­do pela edi­to­ra DarkSide

    Drácu­la, per­son­agem da lit­er­atu­ra de hor­ror cri­a­do pelo irlandês Bram Stok­er, tem o poder de dom­i­nar ger­ações inteiras. A estória do sug­ador de sangue demonía­co e sedu­tor, que se ali­men­ta da vida – e con­se­quente­mente da alma – de suas víti­mas, surgiu por meio dos pesade­los de Bram Stok­er, gan­han­do cor­po em 1897. A inspi­ração do romancista tam­bém veio das pesquisas que real­iza­va sobre a vida do príncipe Vlad III da Valáquia, região da Romê­nia. Con­heci­do como “O Empal­ador”, Vlad III era extrema­mente temi­do pelo sadis­mo e carnific­i­na com o qual trata­va inimi­gos e pri­sioneiros, impon­do punições cruéis. Segun­do a len­da, o príncipe romeno se deli­ci­a­va ao ver os cor­pos dos inimi­gos empal­a­dos em esta­cas ver­tendo sangue.

     

    Retrato de Vlad III, datado por volta de 1560
    Retra­to de Vlad III, data­do por vol­ta de 1560

    Mas nem só de biografias e mitos vivia o cri­ador de Drácu­la. As nar­ra­ti­vas que envolvem vam­piros remon­tam à tradição oral de povos da antigu­idade, mas só gan­haram espaço na lit­er­atu­ra em mea­d­os do sécu­lo XIX. Antes de Bram Stok­er, os escritores Sheri­dan Le Fanu (1814 – 1873) e John Poli­dori (1795 – 1821) já havi­am abor­da­do a temáti­ca do vam­piro em suas obras, mas a con­sagração só viria com Drácu­la. Ape­sar do suces­so do livro, Bram Stok­er con­tin­u­ou viven­do sem muitos alardes até sua morte, em 1912, aos 65 anos. Dois anos depois, Flo­rence Stok­er, esposa do escritor, pub­li­ca uma coletânea de con­tos do mari­do, cujo títu­lo é “O Hós­pede de Drácu­la e out­ras histórias estra­nhas” (orig­i­nal ‘Dracula’s Guest And Oth­er Weird Sto­ries’), lança­do pela edi­to­ra George Rout­ledge & Sons, Ltd. of Lon­don. O con­to de aber­tu­ra é o homôn­i­mo O Hós­pede de Drácu­la, e segun­do o pre­fá­cio escrito por Flo­rence Bram Stok­er, a história é parte inte­grante do livro de suces­so do mari­do, mas que não foi inseri­da à época por questões de espaço, con­sideran­do à exten­são do romance.

    Imagem do filme Drácula, dirigido por Tod Browning em 1931, com Béla Lugosi e Helen Chandler
    Imagem do filme “Drácu­la” (1931), dirigi­do por Tod Brown­ing, com Béla Lugosi e Helen Chandler

    A nar­ra­ti­va começa com a visi­ta de um inglês à Munique, cidade alemã, e sua von­tade de dar um pas­seio pelos arredores da região. Na saí­da do hotel, o cocheiro encar­rega­do de faz­er a con­dução do vis­i­tante é aler­ta­do pelo maître a retornar antes do cair da noite. O inglês chegara bem em cima da “Walpur­gis­nacht”, con­heci­da como a “Noite de San­ta Val­bur­ga”, tradi­cional fes­ta cristão com ori­gens pagãs, cel­e­bra­da na noite do dia 30 de abril. Durante as cel­e­brações, são feitas grandes fogueiras com o intu­ito de expul­sar demônios e espíri­tos sem rumo que vagam pela dimen­são dos vivos.

    O autor Bram Stoker (Foto Hulton Archive/Getty Images)
    O autor Bram Stok­er (Foto: Hul­ton Archive/Getty Images)

    Empol­ga­do pela pais­agem vibrante, o tur­ista não dá ouvi­dos aos ape­los do cocheiro quan­do este sug­ere que voltem, pois estavam se aprox­i­man­do de um vilare­jo aban­don­a­do e con­sid­er­a­do por toda gente local como amaldiçoa­do. Osten­tan­do a racional­i­dade e sober­ba ingle­sas, o homem decide que vai seguir em frente sem o con­du­tor da car­ru­agem, e a par­tir desse momen­to começam a sur­gir diver­sos per­rengues que nem mes­mo a ina­baláv­el razão ingle­sa é capaz de dis­sim­u­lar. Alter­ações climáti­cas explo­si­vas, seguidas de uma atmos­fera lúgubre, desabam sobre o destemi­do inglês e o leitor começa a sen­tir os efeitos da nar­ra­ti­va bem con­struí­da de Bram Stok­er, que uti­liza muito bem a mis­tu­ra de super­stição com ter­ror psi­cológi­co. Par­tic­u­lar­mente, uma das situ­ações mais inter­es­santes do con­to foi acom­pan­har o bom sen­so tipi­ca­mente inglês ser dis­solvi­do nas molécu­las do medo e mist­i­cis­mo, já que o vis­i­tante começa a pal­pi­tar mais forte e dese­jar até ter aten­di­do aos ape­los do afli­to cocheiro, de quem des­den­hou e duvidou.

    Imagem do filme "Drácula de Bram Stoker" (1992), dirigido por Francis Ford Coppola, com Gary Oldman e Keanu Reeves
    Imagem do filme “Drácu­la de Bram Stok­er” (1992), dirigi­do por Fran­cis Ford Cop­po­la, com Gary Old­man e Keanu Reeves

    Essa fal­ta de “imu­nidade” ao sobre­nat­ur­al faz com­pan­hia ao leitor durante toda a nar­ra­ti­va, trans­for­man­do o cenário de raios enfure­ci­dos, lobos san­guinários, esta­cas e mor­tos que lev­an­tam em res­pi­ração ofe­gante, quase fan­tas­magóri­ca. Quem leu “Drácu­la” vai estar famil­iar­iza­do com o ter­reno e pode até imag­i­nar o des­fe­cho final da história, que tam­bém assom­brou o próprio pro­tag­o­nista. Um dos destaques da tra­ma é a capaci­dade de Bram Stok­er em envolver e pro­je­tar cenários imag­inários na mente do leitor, cati­van­do pelo medo. Drácu­la é, antes de tudo, o fascínio por um mun­do sem amar­ras, noturno, irre­al e sem a ânco­ra da racional­i­dade. Um estereótipo de poder onde tudo é per­mi­ti­do e onde a magia esbar­ra na eternidade, afi­nal de con­tas, “os mor­tos via­jam depressa”.

    O Hós­pede de Drácu­la é um con­to rápi­do, com 36 pági­nas, que se divide entre a história, pre­fá­cio e curiosi­dades, e pode ser lido entre vinte e trin­ta min­u­tos. Li a história na ver­são e‑book pub­li­ca­da pela edi­to­ra Dark­Side em 2012 e traduzi­da por Maria Clara Carneiro e Bruno Dori­gat­ti. O site Dark­side­books ofer­ece o con­to em for­ma­to e‑book gra­tuita­mente para down­load.

  • Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    contos-lugares-distantes-capaHá livros que te encan­tam do iní­cio ao fim, não só pela sua história mas tam­bém por con­ta das suas ilus­trações e seus vários pequenos detal­h­es, onde você se vê o pegan­do inúmeras vezes ape­nas para ten­tar desco­brir algo novo ou rel­er um tre­cho rapid­in­ho. Foi exata­mente esta exper­iên­cia que tive depois de ler Con­tos de Lugares Dis­tantes do escritor e quadrin­ista aus­traliano Shaun Tan, lança­do aqui no Brasil pela Cosac Naify e traduzi­do por Éri­co Assis.

    Ele é com­pos­to de quinze con­tos, que vari­am des­de alguns bem curt­in­hos (de uma ou duas pági­nas), até out­ros mais lon­gos. Ape­sar de todos terem no mín­i­mo um pé den­tro do mun­do fan­tás­ti­co, não são o tipo de histórias que você diria serem impos­síveis de acon­te­cer, pois são con­tadas como se fos­sem algo total­mente cor­riqueiro e tam­bém por usar ele­men­tos ou obje­tos pre­sentes no dia a dia da maio­r­ia das pessoas.

    é engraça­do que hoje em dia, em que toda casa tem seu mís­sil balís­ti­co inter­con­ti­nen­tal, você mal se lem­bre dele.

    Logo no primeiro tex­to já é pos­sív­el perce­ber que este não é exata­mente um livro para cri­anças, pois pos­sui um humor mais sofisti­ca­do e muitas vezes aca­ba sendo meio assus­ta­dor tam­bém. O autor con­tou em uma entre­vista que se inspirou no esti­lo da série Além da Imag­i­nação (The Twi­light Zone) que assis­tia quan­do cri­ança para escrevê-los, que aca­ba expli­can­do bem esse cli­ma meio fan­tás­ti­co e hor­rip­i­lante. Os adul­tos que acom­pan­haram a série e apre­ci­am belos desen­hos, com certeza vão se deleitar nes­ta obra.

    Ilustração do conto "Brinquedos Quebrados"
    Ilus­tração do con­to “Brin­que­dos Quebrados”

    O feri­ado sem nome acon­tece uma vez por ano, geral­mente por vol­ta do fim de agos­to, às vezes em out­ubro. É esper­a­do tan­to por cri­anças como por adul­tos com um mis­to de emoções: não é pro­pri­a­mente fes­ti­vo, mas ain­da assim é uma espé­cie de comem­o­ração, cuja origem há muito se esqueceu.

    Falan­do em desen­hos, a primeira coisa que mais chama atenção no livro são todas as ilus­trações mag­ní­fi­cas. Fol­he­an­do ele com mais cal­ma, é pos­sív­el tam­bém perce­ber que muitas das ima­gens não são sim­ples­mente para ilus­trar a nar­ra­ti­va, mas tam­bém fazem parte dela. Alguns con­tos são total­mente visuais, como no caso de “Chu­va ao Longe” ou “Faça Seu Próprio Ani­mal de Esti­mação”, que são feitos total­mente de recortes. Ao lê-los você vol­ta a ser cri­ança, com aque­les olhos admi­ra­dos ten­tan­do ver todos os detal­h­es e pos­síveis histórias escon­di­das por trás de cada desen­ho. Sem falar em todo o cuida­do na impressão do mes­mo, que aliás é um dos grandes méri­tos dos livros da edi­to­ra Cosac Naify.

    Sec­re­ta­mente, eu esta­va ansioso para rece­ber um vis­i­tante estrangeiro — tin­ha tan­tas coisas para mostrar a ele. Pelo menos uma vez eu pode­ria ser um expert da região, uma fonte de infor­mações e de comen­tários inter­es­santes. Por sorte, Eric era muito curioso e esta­va sem­pre cheio de per­gun­tas. Porém, não era o tipo de per­gun­ta que eu esta­va esperando.

    "O búfalo do rio" que sempre apontava na direção certa
    “O búfa­lo do rio” que sem­pre apon­ta­va na direção certa

    Um dos con­tos mais mar­cantes é “aler­tas mas sem alarme”, que é bem ao esti­lo de Crôni­cas Mar­cianas (Edi­to­ra Globo) do Ray Brad­bury, onde cidadãos comuns recebem um mís­sil balís­ti­co para colo­car em seus jardins, sentin­do assim par­tic­i­pantes da segu­rança nacional. Só que o tem­po foi se pas­san­do e aque­les obje­tos gigantes ape­nas ficavam para­dos em seus quin­tais e aos poucos as pes­soas foram desco­brindo maneiras bem cria­ti­vas da dar util­i­dade a eles.

    A história mais bizarra e hor­rip­i­lante é “Os grave­tos”, que con­ta a história de um lugar onde grave­tos andam pelas ruas e enquan­to as cri­anças mais novas ten­tam se diver­tir com eles vestin­do roupas vel­has como se fos­sem espan­talhos, os garo­tos mais vel­hos ado­ram sair baten­do e destru­in­do eles. Os adul­tos sem­pre os reprimem por mex­er com eles, mas nun­ca expli­cam o por quê. Tam­bém há a bem diver­ti­da “nos­sa expe­dição” onde dois garo­tos intri­ga­dos com o que pode­ria ter nos lugares onde o mapa ter­mi­na, vão em bus­ca para saber se real­mente não há nada além daque­le lim­ite do papel e acabam fazen­do uma descober­ta no mín­i­mo intrigante.

    Bem, a sua avó e eu nos casamos lá do out­ro lado dele, muito antes de vocês exi­s­tirem. Claro, os casa­men­tos eram bem mais com­pli­ca­dos naque­le tem­po, não eram essas coisas melosas de hoje em dia. Para começar, a noi­va e o noi­vo eram envi­a­dos para bem longe antes da cer­imô­nia, e só tin­ham per­mis­são para levar uma foto ao par­tir, nada além dis­so, até voltarem, o que podia demor­ar bas­tante tempo.

    Desenhos da contra-capa do livro
    Desen­hos da con­tra-capa do livro

    Ao falar de con­tos fan­tás­ti­cos talvez alguns lem­brem do Coisas Frágeis do Neil Gaiman, mas os dois pos­suem um esti­lo de nar­ra­ti­va total­mente difer­ente. Tan é mais min­i­mal­ista e rela­ciona as histórias mais ao cotid­i­ano, enquan­to Gaiman explo­ra um lado mais mís­ti­co e lendário.

    Shaun Tan
    Shaun Tan

    Shuan Tan é for­ma­do em artes plás­ti­cas e lit­er­atu­ra ingle­sa na Uni­ver­si­dade da Aus­trália Oci­den­tal. Ini­ciou sua car­reira como ilustrador em revis­tas de ficção cien­tí­fi­ca e lançou seu primeiro livro O Obser­vador (The View­er) em 1997. A ideia para Con­tos de Lugares Dis­tantes surgiu de alguns pequenos ras­cun­hos que man­tinha em um cader­no de desen­hos, que pode ser vis­to abaixo em um vídeo que mostra o estú­dio do autor. O site ofi­cial do autor tam­bém é muito legal, seguin­do bas­tante tam­bém o esti­lo de recortes e desen­hos, vale a pena dar uma visitada.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=c9NCUydoJFk

  • Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Eu gos­to de explo­rar essa imper­feição, porque é assim que as pes­soas são de ver­dade, boas e más, não ape­nas boas ou ape­nas más”, diz o escritor amer­i­cano Teju Cole (1975) em uma entre­vista durante a sua pas­sagem pela FLIP de 2012. Cole con­segue explo­rar a imper­feição humana de for­ma muito rica e analíti­ca em seu romance de estreia Cidade Aber­ta (Com­pan­hia das Letras, 2012, tradução de Rubens Figueire­do), vence­dor do Prêmio Pen/Hemingway 2012 e elo­gia­do pela críti­ca americana.

    Nova York é con­heci­da como uma das cap­i­tais mais cos­mopoli­tas do mun­do, assim como São Paulo, à primeira vista parece reinar a plu­ral­i­dade que con­strói o meio urbano. Mas muito tem se lido na lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa a voz dos estrangeiros — por exem­p­lo, Junot Diaz em “A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao” — que hoje fig­u­ram grande por­cent­agem da pop­u­lação, fazen­do uma grande difer­ença numa eleição e out­ras decisões políti­cas, por exem­p­lo. Mas ain­da demon­stram que a plu­ral­i­dade não é esse son­ho todo e que ain­da nes­sas grandes cidades se vive em guetos.

    O títu­lo do livro pode se rela­cionar ao ter­mo open city — cidade aber­ta traduzi­do ao pé da letra — que foi usa­do pela primeira vez em 1914 para des­ig­nar uma cidade que durante uma guer­ra está despro­te­gi­da mil­i­tar­mente e segun­do as leis inter­na­cionais não pode sofr­er ataques. Numa primeira análise, ten­do con­sciên­cia desse sig­nifi­ca­do, a primeira refer­ên­cia é o 11 de setem­bro amer­i­cano. Mas o ter­mo tam­bém pode ser pen­san­do com o seu sen­ti­do mais comum, uma cidade aber­ta que recebe diari­a­mente mil­hões pes­soas do mun­do inteiro que a constituem.

    Mas a atro­ci­dade não tem nada de novo, não para seres humanos, não para ani­mais. A difer­ença é que em nos­so tem­po ela é extra­or­di­nar­i­a­mente bem orga­ni­za­da, prat­i­ca­da com cur­rais, trens de car­ga, livros de con­tabil­i­dade, cer­cas de arame farpa­do, cam­pos de tra­bal­ho, gás. E esta últi­ma con­tribuição, a ausên­cia de cor­pos. (p.74)

    Teju Cole
    Cidade Aber­ta tra­ta da visão de um estrangeiro num fre­quente ciclo de descober­ta e adap­tação ao efêmero da cidade. São os olhos de Julius, um nar­rador-per­son­agem que flana pela cidade de Nova York mul­ti­fac­eta­da, que anda lado a lado com o leitor. Des­de as suas enormes lojas de depar­ta­men­tos, os pon­tos turís­ti­cos mar­ca­dos pela História, o metrô e seus per­son­agens até as tragé­dias maquiadas pelo rit­mo da cidade. Julius, esmi­uça cada vér­te­bra da metró­pole, nada escapa do seu olhar não só plás­ti­co, mas pro­fun­da­mente int­elec­tu­al. Vin­do da Nigéria aos 17 anos, o per­son­agem é um psiquia­tra recém-for­ma­do e bas­tante atare­fa­do, que faz do seu tem­po livre uma boa des­cul­pa para andar pela cidade con­heci­da pela sua var­iedade de faces.

    Assim como Baude­laire criou a ideia de flâneur — o homem mod­er­no que flana invisív­el pelo meio urbano pre­stando atenção às movi­men­tações, a efe­meri­dade do movi­men­to citadi­no — em Cidade Aber­ta o leitor é tam­bém um flâneur, jun­to do imi­grante que se con­strói con­forme se rela­ciona com esse meio, a ter­ra natal deix­a­da no pas­sa­do e o sen­ti­men­to de difer­ença. O leitor só é apre­sen­ta­do for­mal­mente a Julius, ao nome que o iden­ti­fi­ca, quan­do pas­sa a se apro­fun­dar nas suas memórias e sua vida na Nigéria deix­a­da para trás.

    O livro é divi­di­do em duas partes e ambas são recur­sos poéti­cos para a nar­ra­ti­va pes­soal do per­son­agem. A primeira inti­t­u­la­da de A morte é uma per­feição do olho e a segun­da Eu procu­ra­va a mim mes­mo demon­stram que mes­mo que Julius se dis­farce de ape­nas um pas­sante, um sim­ples obser­vador, enga­ja­do, inteligente, procu­ran­do localizar cada célu­la for­mado­ra da cidade de Nova Iorque, ele está pro­fun­da­mente lig­a­do na bus­ca de encon­trar a si mes­mo, bus­car suas próprias respostas e definir a sua identidade.

    Fran­cis O. Watts With Bird, de John Brew­ster Jr.
    Aliás, a iden­ti­dade é um pon­to inter­es­sante do livro, a história de Julius e Teju Cole são estre­ita­mente próx­i­mas, sal­vo alguns detal­h­es. Julius não é ape­nas um pas­sante que nar­ra a cidade em um uni­ver­so fic­cional. Ele é um grande con­hece­dor de estru­turas históri­c­as e as obser­va fazen­do anális­es plás­ti­cas, como faria Teju que é his­to­ri­ador de arte. Em deter­mi­na­do pas­seio por um museu, ele encon­tra o quadro “Fran­cis O. Watts With Bird” do pin­tor amer­i­cano John Brew­ster Jr. e além de rela­cionar e con­tex­tu­alizar a pin­tu­ra, ele rela­ta uma lig­ação muito ínti­ma entre obser­vador e obra, não deixan­do dúvi­das que está con­duzin­do o leitor pelo passeio.

    O pas­sar­in­ho rep­re­sen­ta­va a alma da cri­ança, como tam­bém acon­te­cia no retra­to feito por Goya do mal­fada­do Manuel Oso­rio Man­rique de Zúñi­ga, de três anos de idade. A cri­ança na pin­tu­ra de Brew­ster mira­va aten­ta, com uma expressão ser­e­na e etérea, do ano de 1805. Ao con­trário de muitas out­ras cri­anças pin­tadas por Brew­ster, o meni­no tin­ha sua audição per­fei­ta. Seria aque­le retra­to um amule­to con­tra a morte? Uma em cada três pes­soas, naque­la época mor­ria antes dos vinte anos de idade. Seria aqui­lo a expressão de um dese­jo mági­co de que a cri­ança resis­tisse e se agar­rase à vida, assim como se agar­ra­va ao cordão?” (p.52)

    A iden­ti­dade de imi­grante, tão penosa de se con­quis­tar mes­mo estando em um lugar por uma decisão própria, é clara em Cidade Aber­ta. Por exem­p­lo, o com­por­ta­men­to dos pás­saros é usa­do em dois momen­tos pelo per­son­agem, ambos retratam a neces­si­dade de migração, quase que nat­ur­al mas mes­mo assim com seus per­calços. O livro tra­ta bas­tante dis­so, da tran­si­to­riedade das pes­soas e espaços a fim de bus­car algo, aparente­mente tão nor­mal em tem­pos de efemeridade. 

    Nova York sem­pre está se mutan­do, se adap­tan­do às crises, ataques e mes­mo assim ain­da guar­da de for­ma orgul­hosa suas mar­cas que con­tam a história da Améri­ca como um lugar do futuro. O nar­rador con­duz muitos dos seus pas­seios afim de em var­ios momen­tos tirar a maquiagem da cidade, por mais que ele diga que não tro­caria esse lugar, ele tam­bém não con­segue se desven­cil­har da sua primeira iden­ti­dade, da sua cor e origens.

    Cer­ca de duzen­tos anos depois, quan­do um jovem da região do Forte Orange desceu pelo rio Hud­son e se esta­b­ele­ceu em Man­hat­tan, decid­iu escr­ev­er seu opus mag­num sobre um Levi­atã albi­no. O autor, que no pas­sa­do tiha sido paro­quiano da Igre­ja da Trindade, inti­t­u­lou seu livro A baleia; o sub­tí­tu­lo, Moby Dick, só foi acres­cen­ta­do depois da primeira edição. Essa mes­ma Igre­ja da Trindade ago­ra não me rece­beu, deixou-me do lado de fora, expos­to ao cor­tante ar mar­in­ho sem me ofer­e­cer nen­hum lugar para rezar. (p.66)

    Mas há tam­bém alguns pon­tos neg­a­tivos em Cidade Aber­ta. Em alguns momen­tos a nar­ra­ti­va des­per­ta um cer­to cansaço por con­ta das descrições detal­hadas e tam­bém das posições políti­cas e críti­cas, lev­adas bas­tante a sério por Julius, que sem­pre aca­ba encon­tran­do motivos para criticar o domínio amer­i­cano. Essas mes­mas opiniões acabam por deixar algu­mas opções do enre­do repet­i­ti­vas e desnecessárias.

    Mas por ser tam­bém uma uma nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, mescla­da pela intim­i­dade do jovem psiquia­tra com sua visão do urbano, Cidade Aber­ta é bas­tante atraente ao leitor curioso. Julius con­segue ques­tionar a solidão e a vida mes­mo quan­do anal­isa as pes­soas e fatos através do seu olhar clíni­co, medin­do a quími­ca e con­ceitos das situações.

    A visão de grandes mas­sa humanas descen­do afobadas para câmaras sub­ter­râneas era per­pet­u­a­mente estran­ha para mim, e eu tin­ha a sen­sação de que a raça humana inteira se pre­cip­i­ta­va, empurra­da por um impul­so de morte anti­nat­ur­al, rumo a cat­acum­bas móveis. Na super­fí­cie da ter­ra, eu esta­va com mil­hares de out­ros em sua solidão, mas den­tro do metrô, de pé entre descon­heci­dos, empurran­do e sendo empurra­do em bus­ca de espaço e de uma brecha para res­pi­rar, todos nós recon­stí­tuíamos trau­mas não admi­ti­dos, a solidão inten­si­fi­ca­da. (p.14
    (…) o pro­fes­sor Saito disse cer­ta vez: Adoro mon­stros imag­inários, mas fico apa­vo­ra­do com os mon­stros reais. (p.19)

    A prin­ci­pio pode-se pen­sar que é ape­nas um estrangeiro vitimiza­do pela cul­tura amer­i­cana, mas ele é bem além dis­so, é um ser humano e seu fluxo de con­sciên­cia com­pro­va que Cidade aber­ta é um livro tam­bém sobre solidão. 

  • A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    Sin­to-me solidária com as mul­heres que assumi­ram suas vidas e que lutam para ter suces­so, o que não me impede, porém, de inter­es­sar-me pelas que não con­seguiram alcançá-lo.

    O bas­tante lúci­do tre­cho aci­ma – reti­ra­do do livro Bal­anço Final de 1972 — define a sinopse de A Mul­her Desilu­di­da (tradução de Hele­na Sil­veira e Maryan A. Bon Bar­bosa, Nova Fron­teira, 2010), da escrito­ra e uma das per­sonas mais con­heci­das do movi­men­to fem­i­nista no cam­po int­elec­tu­al, a france­sa Simone de Beauvoir.

    É basi­ca­mente impre­scindív­el con­hecer ao menos um pouco da tra­jetória de Beau­voir para se com­preen­der a força dos três con­tos de A Mul­her Desilu­di­da e não se ver lendo ape­nas tex­tos sim­plórios da vida de três mul­heres. Con­heci­da por várias situ­ações que vão des­de seu rela­ciona­men­to con­sid­er­a­do bas­tante inco­mum, movi­da pelo int­elec­tu­al de ambos, que atrav­es­sou décadas com o filó­so­fo Jean Paul-Sartre, a relação pas­sion­al e à dis­tân­cia – pas­saram muitos anos se comu­ni­can­do ape­nas por car­tas — com o escritor amer­i­cano Nel­son Algren (con­heci­do por O Homem do braço de Ouro) ou a ousa­da escrit­u­ra dos dois vol­umes de O Segun­do Sexo, Beau­voir viveu con­forme suas próprias regras bus­can­do sem­pre o sen­ti­do de liber­dade. Com a cru­el con­sciên­cia de que ser livre não é uma questão tão sim­ples quan­do se depende das con­vivên­cias soci­ais e o desprendi­men­to dos papéis pré-esta­b­ele­ci­dos, a escrito­ra deu voz e uni­ver­sos fic­cionais ínti­mos da real­i­dade à mul­heres que matavam seus próprios demônios femininos.

    Em a Mul­her Desilu­di­da, Simone de Beau­voir apre­sen­ta três mul­heres, em momen­tos cru­ci­ais de suas vidas, onde a questão do papel fem­i­ni­no – o pré-esta­b­ele­ci­do ver­sus as escol­has próprias das per­son­agens – entra em con­fli­to com a questão da idade e todo o apara­to psi­cológi­co que acom­pan­ha o para­doxo que pode ser agir ora através dos sen­ti­men­tos, ora respei­tan­do suas próprias ide­olo­gias e escol­has. As mul­heres descritas por Beau­voir refletem muito do momen­to, o ini­cio da déca­da de 70, as rev­oluções fem­i­nistas e as novas situ­ações encar­adas por essas mulheres.

    Des­de quan­do o ter­reno bal­dio do bule­var Edgar-Quinet se tornou esta­ciona­men­to? A mod­ernidade da pais­agem me salta aos olhos, todavia não me lem­bro de tê-la vis­to de out­ra for­ma. Gostaria de con­tem­plar lado a lado os dois cenários: antes e depois, e me espan­tar com a difer­ença. Mas não. O mun­do se con­strói sob meus olhos num eter­no pre­sente. Habituo-me tão depres­sa aos seus aspec­tos que ele não parece mudar. (p.11)

    Simone de Beauvoir
    O livro abre com o con­to A idade da dis­crição que tra­ta de uma acadêmi­ca e escrito­ra entran­do na ter­ceira idade, sentin­do-se dis­tante do momen­to que vive, acred­i­tan­do que não con­segue mais ter ale­grias para viv­er. Sua per­son­al­i­dade de mul­her inde­pen­dente, com um casa­men­to de décadas, aparente­mente bem suce­di­do, e car­reira de pro­fes­so­ra uni­ver­sitária, bate de frente com o papel cru­cial e dom­i­nador de mãe. Com um fil­ho adul­to, cri­a­do con­forme seus próprios ideais, ela se depara com um homem dono de sua própria vida e dis­pos­to a tro­car o foco fem­i­ni­no mater­no e apon­tá-lo para sua esposa.

    É clara a difi­cul­dade da per­son­agem em aceitar que não exis­tem eternidades quan­do se tra­ta de quase todas as relações, sejam elas físi­cas ou mate­ri­ais. A par­tir do momen­to que ela se dá con­ta que tudo ao seu redor está em con­stante proces­so de desen­volvi­men­to e que há um ciclo fun­cio­nan­do por trás dis­so, ela sim­ples­mente encara a força da idade e em vários momen­tos se vê melancóli­ca e descrente.

    Tam­bém é isso envel­he­cer. Tan­tos mor­tos atrás de si, lamen­ta­dos, esque­ci­dos. De repente, quan­do leio o jor­nal, des­cubro uma nova morte: um escritor queri­do, uma cole­ga, um anti­go colab­o­rador de André, um de nos­sos cama­radas políti­cos, um ami­go com quem perdemos o con­ta­to (p.75 e 76)

    Monól­o­go, assim como apon­ta o títu­lo, é nar­ra­do por fluxo de con­sciên­cia de uma mul­her per­tur­ba­da pelo divór­cio e aban­dono. Oscilante entre dormir e acor­dar durante uma madru­ga­da de fes­ta na casa viz­in­ha ela reflete, de for­ma bas­tante pas­sion­al entre amor e ódio, sobre como pode­ria ter sido uma esposa e mãe mel­hor já que seus fil­hos aparente­mente estão com o pai. É uma nar­ra­ti­va assus­ta­da e descon­tro­la­da de uma mul­her que perdeu sua úni­ca refer­ên­cia de posição fem­i­ni­na como esposa e mãe, uma situ­ação nada pecu­liar para uma sociedade que durante tan­to tem­po ale­gou ser esse o úni­co papel da mulher.

    O con­to que car­rega o nome do livro é o mais lon­go e tam­bém dá con­tinuidade, de for­ma mais detal­ha­da e próx­i­ma, a questão do pseu­do pro­tag­o­nis­mo da mul­her no casa­men­to. Nar­ra através da intim­i­dade de um diário, escrito em pouco mais de 3 meses, a vida con­ju­gal de Monique, uma mul­her de 44 anos que ten­ta viven­ciar uma relação aber­ta com o mari­do, mas se vê em ple­na decadên­cia psi­cológ­i­ca quan­do este arru­ma uma amante mais jovem e tor­na-se divi­di­do entre a “segu­rança” da com­pan­heira de anos e a juven­tude sen­su­al da amante independente.

    Quan­do se viveu de tal maneira para os out­ros, é um pouco difí­cil começar a viv­er para si. Não cair nas armadil­has da ded­i­cação: sei muito bem que as palavras dar e rece­ber são inter­cam­biáveis e como eu tin­ha neces­si­dade da neces­si­dade que min­has fil­has tin­ham de mim. Nesse sen­ti­do nun­ca ble­fei. (p.145)

    Monique é a per­son­agem mais conc­re­ta das três apre­sen­tadas no livro pois a con­strução de sua per­son­al­i­dade e con­ceitos próprios se dá através da sua descon­strução como mul­her e mãe nar­ra­da por si própria no seu diário. O con­fli­to com o seu cor­po, o sen­ti­do do sexo longe da juven­tude e a difi­cul­dade de se enten­der os lim­ites de um rela­ciona­men­to aber­to são cru­ci­ais para a deses­ta­bi­liza­ção da auto­con­fi­ança da per­son­agem até porque muitas das regras desse jogo – a relação e o sexo entre o casal – foram delim­i­tadas pelo mari­do que decide a hora que entra ou sai da situação.

    Simone e Sartre cli­ca­dos pelo litu­ano Antanas Sutkus
    Percebe-se nas vozes das três mul­heres de A Mul­her Desilu­di­da um tan­to da Simone e seus dile­mas no entorno do fem­i­nis­mo, prin­ci­pal­mente obser­van­do o con­fli­to pes­soal destas que se encon­tram no fato de encar­ar toda uma sociedade de época, basea­da em padrões morais de família e repro­dução. A divisão clara entre a opção de uma vida profis­sion­al ou de man­tene­do­ra do lar é de uma força cru­cial den­tro dos con­tos. Mas tam­bém traz muito do que se con­hece através de out­ras obras da auto­ra e biografias da sua relação com Sartre.

    Simone de Beau­voir con­segue faz­er com que A Mul­her Desilu­di­da seja tan­to suas exper­iên­cias e relatos que ouviu e viu inti­ma­mente das mul­heres de sua época. São histórias ador­nadas pela beleza da lit­er­atu­ra. Ou como uma própria per­son­agem define: Eis o priv­ilé­gio da lit­er­atu­ra – disse eu – As fig­uras se defor­mam, empalide­cem. As palavras, nós as lev­a­mos conosco. (p.83)

  • Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    O escritor norte-amer­i­cano David Fos­ter Wal­lace tirou a própria vida no ano de 2008, aos 46 anos. Deixou três romances (The Broom of Sys­tem, Infi­nite Jest* e o pós­tu­mo e inacaba­do The Pale King*), três coletâneas de con­tos (Girl With Curi­u­os Hair, Brief Inter­views with Hideous Men e Obliv­ion) e dois livros de não ficção que con­tém ensaios e reporta­gens (A Sup­pos­ed­ly Fun Thing I’ll Nev­er Do Again e Con­sid­er The Lobster). 

    Fã do autor de Infi­nite Jest, o escritor Daniel Galera, entrou em con­ta­to com a agente literária de Wal­lace, Bon­nie Nadell, no mes­mo ano da morte de DFW, fazen­do uma pro­pos­ta para orga­ni­zar e pub­licar uma coletânea com o mel­hor da sua não ficção como uma nova chance para os brasileiros de apre­sen­tar o autor, já que Breve Entre­vis­tas com Home­ns Hedion­dos (lança­do no país em 2005 pela Com­pan­hia das Letras) não teve uma boa recepção por parte dos leitores e da mídia. Além de ser um livro difí­cil, quase enci­clopédi­co , não hou­ve uma boa divul­gação pela editora. 

    Galera rece­beu o sinal verde de Nadelle e eis que temos Fican­do Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (orga­ni­za­ção e tradução Daniel Galera + Daniel Pel­liz­zari, 312 pági­nas, Com­pan­hia das Letras, R$: 44,50). Para aque­les que não estão famil­iar­iza­dos com os tex­tos de DFW em inglês e teve uma difi­cul­dade para ler os con­tos de Breves Entre­vis­tas, Fican­do Longe é a mel­hor for­ma de ter um primeiro con­ta­to com a obra “daque­le cara que usa ban­dana”.

    A seleção ficou entre três reporta­gens : Fican­do Longe do Fato de Estar Meio que Longe de Tudo, Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da que Eu Nun­ca Mais Vou Faz­er e Pense Na Lagos­ta. Um ensaio: Alguns Comen­tários Sobre a Graça de Kaf­ka dos quais Provavel­mente se Omi­tiu. O famoso dis­cur­so de paran­in­fo de 2005: Isto é Água. E uma crôni­ca esporti­va: Fed­er­er como Exper­iên­cia Religiosa.

    O tex­to que dá títu­lo a coletânea (Fican­do Longe etc etc) é um óti­mo cartão de vis­i­tas para quem não leu nada do DFW. A revista Harper´s Mag­a­zine em 1993 deu uma cre­den­cial para o fale­ci­do autor e disse “Olha, vai lá para aque­le dia­cho de Feira Estad­ual de Illi­nois e ape­nas nos diga o que você viu, ok?”

    A Feira Estad­ual de Illi­nois acon­tece anual­mente na cap­i­tal Spring­field des­de 1853 e tem como tema cen­tral a agri­cul­tura e demais out­ros even­tos que são cap­i­tanea­d­os por grandes cor­po­rações e tudo é reg­u­la­do sob o sig­no do hedo­nis­mo predatório. 

    Wal­lace morou nas prox­im­i­dades de onde ocorre a feira, mas mes­mo assim lev­ou uma Aju­dante Nati­va como guia em um lugar onde você já é recep­ciona­do com uma faixa com os diz­eres “A gente quer cur­tição!”. As con­ver­sas entre David e a Aju­dante Nati­va são hilárias, mas é bom prestar atenção às con­sid­er­ações do autor, onde a feira aca­ba sendo o pon­to de par­ti­da para uma reflexão maior sobre a vida mod­er­na e suas contradições. 

    A questão é: Esta­mos acos­tu­ma­dos com aglom­er­ações, caos e demais per­tur­bações da vida na cidade grande. Logo, quan­do temos opor­tu­nidade, opta­mos por FICAR LONGE. Ago­ra, quan­do você mora em Illi­nois, onde a noção de espaço é infini­ta (você fica sem­anas sem ver seus viz­in­hos), não há NADA a não ser grandes pas­tos, calor bru­tal, reli­giosos fanáti­cos, como é ir para uma Feira em um lugar que você está já está LONGE DE TUDO e encar­ar dis­trações além da con­ta? A respos­ta é: vocês vão ler e saber, oras. Parem de me olhar com essa cara.

    Ain­da temos no livro o famoso tex­to do cruzeiro (Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da) onde o autor vai nos mostrar o quan­to pode ser triste uma viagem em alto-mar mes­mo sendo papari­ca­do por todos os fun­cionários do navio. O ensaio sobre Kaf­ka e sua veia cômi­ca é inter­es­sante pela pre­ocu­pação de Wal­lace – que foi pro­fes­sor uni­ver­sitário – sobre como ensi­nar um clás­si­co da lit­er­atu­ra para alunos mais inter­es­sa­dos no entreten­i­men­to que só a Améri­ca pode ofer­e­cer a eles. 

    Curioso como Pense na Lagos­ta, uma reportagem encomen­da­da pela revista Gourmet, para cobrir a fes­ta da Lagos­ta do Maine, ger­ou uma dis­cussão no site da revista por causa do rela­to sobre as lagostas serem coz­in­hadas vivas e isso implicar numa con­sid­er­ação do autor sobre o méto­do. E ain­da tem o dis­cur­so Isto é Água (que virou viral no youtube e mantra de mui­ta gente) e o rela­to da par­ti­da entre Fed­er­er e Rafael Nadal que pode pare­cer pouco , mas é o mel­hor primeiro con­ta­to com o autor de Infi­nite Jest.

    Em algu­mas entre­vis­tas recentes, Daniel Galera disse que vai faz­er uma nova orga­ni­za­ção de tex­tos de não ficção de David Fos­ter Wal­lace. E ficamos no aguardo.

    *É bom saber que está sendo fei­ta no momen­to que você lê esse tex­to ver­gonhoso, a tradução de Infi­nite Jest, o mastodonte de 1100 pági­nas, pelo rapaz que atende pela alcun­ha de Cae­tano W. Gallindo. Ele tam­bém está traduzin­do The Pale King. Você pode acom­pan­har tudo no Blog da Com­pan­hia das Letras.

  • Livro: Jack Kerouac — King of the beats, de Barry Miles

    Livro: Jack Kerouac — King of the beats, de Barry Miles

    Assim, ele bebeu até mor­rer. Que é ape­nas mais um jeito de viv­er, ou de lidar com a dor e a inutil­i­dade de saber que tudo não pas­sa de son­ho e de um grande, descon­cer­tante e bobo vazio (Allen Gins­berg sobre a morte de Jack Kerouac)

    Se o livro Jack Ker­ouac: King of the Beats (José Olym­pio, 2012), de Bar­ry Miles tivesse uma tril­ha sono­ra seria algo ao som de Char­lie Park­er, em alguns momen­tos alter­nan­do para a rapi­dez de Dizzy Gille­spie. De fato, Miles, jor­nal­ista e figu­ra con­heci­da dos anos 60, não deixa pas­sar sem tril­ha sono­ra a saga do escritor que é até hoje uma refer­ên­cia quan­do se tra­ta de con­tra­cul­tura e prosa espon­tânea, embal­a­do ao som do jazz ou bebop. Ker­ouac des­de sem­pre ambi­cio­nou ser grandioso, mas pas­sou mais tem­po imer­so no efeito do álcool, dro­gas e prob­le­mas com o ego que acabou como uma boa len­da: sem muito pres­ti­gio, mes­mo com fama inter­na­cional, mor­to sen­ta­do em um sofá, ven­do TV e beben­do cerveja.

    Mes­mo que aparente­mente decep­cio­nante o fim do pai dos beats, a vida de Jack daria um belo romance que Miles con­ta de for­ma dire­ta e sem fôlego, assim como as nar­ra­ti­vas do escritor. Vale lem­brar que Bar­ry escreveu a biografia dos out­ros dois nomes que fig­u­raram ao lado de Jack Ker­ouac: Allen Gins­berg e William Bor­roughs, entre out­ros nomes da con­tra­cul­tura das décadas seguintes. Mes­mo que o autor ten­ha sido ape­nas um ado­les­cente quan­do ouviu falar de Ker­ouac pela primeira vez, ele rela­ta tudo como se estivesse vivi­do cada segun­do com o grupo amer­i­cano, e ain­da, se dá ao dire­ito de repreen­der o biografa­do sem­pre que pos­sív­el. A figu­ra de Jack Ker­ouac é dessacral­iza­da e trans­for­ma­da na imagem de um eter­no garo­to per­di­do com um dom enorme de con­tar histórias.

    Em King of the Beats, Miles faz todo o per­cur­so de Jean-Louis Lebris Ker­ouac, des­de a chega­da da família Ker­ouac — fran­co-canadens­es — para os EUA, na cidade de Low­ell (Mass­a­chus­sets) onde Jack dá seus primeiros pas­sos no dom de reunir pes­soas, dis­cu­tir histórias e mais tarde isso envolve­ria tam­bém mul­heres, dro­gas e bebi­da. Nesse movi­men­to cronológi­co o autor con­strói uma biografia rec­hea­da de detal­h­es, dan­do enfâse para deter­mi­na­dos momen­tos da vida do pai dos beats . Por exem­p­lo, a for­mação do grupo que ele ded­i­ca um capí­tu­lo inteiro, chama­do de A Comu­na da 115th Street, ou ain­da em Cidade do Méx­i­co em que tra­ta a importân­cia desse momen­to em que Ker­ouac tran­si­ta entre várias fas­es, escreven­do sobre jazz, con­viven­do com Bor­roughs e viven­do longe da mãe.

    O bió­grafo con­ta que ouviu falar de Jack no fim dos anos 50, época em que final­mente o escritor gan­hou o mun­do com o lança­men­to de On The Road. Miles con­ta que era impos­sív­el para um ado­les­cente não sen­tir o ven­to no ros­to e a liber­dade ao ler as pági­nas da chama­da bíblia beat. Depois dis­so, con­ta que jamais seria o mes­mo, como de fato nun­ca foi, inclu­sive rela­tan­do os anos 60 que viveu no livro In the Six­ties.

    Jack Ker­ouac começou a escr­ev­er ain­da cri­ança, bas­tante cedo já escrevia para um jor­nal local que seu pai tra­bal­ha­va. Mas o jovem Ker­ouac que­ria mais, era cada vez mais atraí­do pela lit­er­atu­ra e teima­va em trans­for­mar tudo na sua vida em ficção, ninguém escapa­va da visão min­un­ciosa de Jack. Ele não pre­cisa­va de muito esforço para romancear a real­i­dade de for­ma a con­tar óti­mas histórias que sem­pre pare­ci­am bas­tante reais. Seu primeiro livro a ser edi­ta­do, The Town and The City foi o úni­co que man­teve o esti­lo de prosa tradi­cional, mas alta­mente influ­en­ci­a­do pelo amer­i­cano Thomas Wolfe,Jack que­ria mais. Ambi­ciona­va a prosa espon­tânea como veícu­lo das suas histórias, o dese­jo de faz­er uma lit­er­atu­ra foca­da na lin­guagem colo­quial, nar­ra­da con­forme o rit­mo do rela­to, foi lev­a­da até o fim por ele. Ker­ouac se con­sid­er­a­va um mestre nes­sa téc­ni­ca e inclu­sive, escreveu uma espé­cie de man­i­festo sobre o assunto.

    The Sub­ter­raneans foi escrito numa prosa espon­tânea, com fras­es lon­gas a pon­to de se esten­derem por pági­nas inteiras, sem obe­de­cer a regras estri­tas de gramáti­ca, mas con­ser­van­do um fio da mea­da em ter­mos de sen­ti­do. Esse é o esti­lo espon­tâ­neo de Ker­ouac sob seu aspec­to mais pos­i­ti­vo. Tan­to Allen Gins­berg como William Bor­roughs ficaram impres­sion­a­dos como que ele havia real­iza­do e que­ri­am saber mais sobre seu méto­do. Pedi­ram-lhe que escrevesse um pequeno fol­heto com instruções sobre como escr­ev­er daque­la maneira. O resul­ta­do foi o ensaio “Essen­tials of Spon­ta­neous Prose”, escrito ini­cial­mente para seus ami­gos, porém, mais tarde, divul­ga­do ampla­mente em antolo­gias na condição de man­u­al de seu con­teú­do (p.271)

    Mapa desen­hado pelo próprio Kerouac.

    Assim como Thomas Wolfe influ­en­ciou forte­mente Ker­ouac na questão espon­tânea de escr­ev­er, ele deu tam­bém a neces­si­dade de desco­brir a Améri­ca que Jack sen­tia pul­sante. Quan­to mais loucos ambu­lantes ele con­hecia, mais que­ria ter histórias para con­tar. Ape­sar dele já ter via­ja­do muito, incluin­do como aju­dante de coz­in­ha na Mar­in­ha, nun­ca tin­ha aden­tra­do os Esta­dos Unidos e vis­to de per­to seus per­son­agens. Depois da primeira ida para além dos lim­ites de Nova Iorque, Jack jamais parou, levan­do con­si­go sem­pre papel e lápis para ano­tar cada impro­vi­so feito por onde fosse.

    É muito inter­es­sante perce­ber a importân­cia das fig­uras de Allen Gins­berg e William Bor­roughs, o segun­do como o grande guru do restante do grupo Beat. Bas­ta obser­var em On The Road — inclu­sive no filme a figu­ra de Old Bull Lee — a for­ma como todos achavam a lou­cu­ra dele extrema­mente lou­váv­el. Foi Bill — como era chama­do — que apre­sen­tou grandes nomes da lit­er­atu­ra, fala­va sobre liber­dade, William Reich, Freud e dava con­sel­hos para os garo­tos que vivi­am cir­cu­lan­do por todos os lados em bus­ca de algo.

    Bill emprestou-lhes uma pil­ha de livros: Cocteau, Blake, Kaf­ka, Joyce e Céline. Dis­cu­tiu a teo­ria cir­cu­lar da história, de Vico, e mostrou-lhes um vol­ume de ilus­trações dos códices maias. (…) (p.109)

    Um dos pon­tos mais rel­e­vantes de King Of The Beats é a for­ma como a figu­ra de Jack Ker­ouac vai se desmi­ti­f­i­can­do ao lon­go do cam­in­ho. Se você leu ape­nas o clás­si­co On The Road e/ou viu a recente adap­tação do brasileiro Wal­ter Salles no cin­e­ma, pode ir se desar­man­do sobre a figu­ra do escritor. Ape­sar dessa obra con­heci­da ser total­mente basea­da nos primeiros impul­sos de Jack via­jar pelo país, ele lev­ou um bom tem­po para ser escrito, pois Ker­ouac nun­ca acha­va sufi­ciente tudo que vivia. Pas­sa­va muito tem­po dese­qui­li­bra­do com mul­heres, dro­gas, a mãe e questões metafísi­cas que seus livros, por serem espon­tâ­neos, car­regam toda essa força onde somente a coin­cidên­cia com a real­i­dade lig­a­va um livro ao outro.

    Out­ro pon­to inter­es­sante é como Ker­ouac — e claro, toda a impren­sa da época — se pre­ocu­pa­va em definir o ter­mo Beat Gen­er­a­tion. Bar­ry Miles vai con­stru­in­do como cada sig­nifi­ca­do dado foi se agre­gan­do ao grupo, não deixan­do que nen­hum omi­tisse os adje­tivos que defini­am aque­les jovens. O bió­grafo vai bem além de faz­er um grande rela­to da vida de Jack Ker­ouac, ele aca­ba traçan­do um panora­ma com­ple­to da Ger­ação Beat, amar­ran­do as situ­ações e as pes­soas que eram seduzi­das pela vida boêmia, altas dos­es de lit­er­atu­ra e mui­ta filosofia de boteco.

    Em 1948, eu disse a John Clelon Holmes “Essa é mes­mo uma ger­ação beat”. Ele con­cor­dou e, em 1952, pub­li­cou um arti­go no New York Times inti­t­u­la­do “Esta é uma ger­ação beat”, e atribuiu a mim a ver­são orig­i­nal. Desse modo, já dera a ela o nome de Ger­ação Beat nos orig­i­nais de On The Road, escrito em maio de 1951 (Jack Ker­ouac, pre­ocu­pa­do com a reivin­di­cação da pater­nidade do ter­mo, p.208)

    Diria que a Times Square era o cen­tro em torno do qual ficamos vagan­do — Bor­roughs, Ker­ouac e eu — em 1945 e 1948, provavel­mente o perío­do mais for­ma­ti­vo da mente Spen­g­le­ri­ana, em que a lin­guagem que incluía expressões como “Zap”, “Hip”, “Square”, “Beat” nos era ofer­e­ci­da por Huncke às mesas do café Bick­ford. Basi­ca­mente eu diria que Her­bert Hucke foi quem deu origem à noção de beat (…) (p.271)

    Muito se fala sobre o movi­men­to hip­pie, o adven­to do rock e os ques­tion­a­men­tos que vier­am com eles na déca­da de 60 como ele­men­tos car­ac­ter­i­zantes de con­tra­cul­tura. Mas a ver­dade é que os jovens beats, nas décadas de 40 e 50 — descen­dentes da Ger­ação Per­di­da — eram embriões muito poderosos para que depois exis­tisse esse cenário infla­ma­do. Estes jovens vin­ham de um perío­do caóti­co de depressão econômi­ca e uma Segun­da Guer­ra trauma­ti­zante. Que­ri­am mes­mo era se desven­cil­har dos códi­gos soci­ais e o modo de vida amer­i­cano que mostra­va sérios prob­le­mas em se man­ter em pé. Os relatos de Bar­ry Miles sobre as noites de fes­tas em aparta­men­tos, regadas à alcool, ben­zad­ri­na e bebop não deix­am nada a dev­er para as lou­curas que viri­am a ser feitas nas próx­i­mas décadas ao som das gui­tar­ras elétricas.

    Jack Ker­ouac, Allen Gins­berg, Peter Orlovsky e Gre­go­ry Cor­so, em 1956

    Para muito além do sen­so comum de que Jack Ker­ouac e seus pares eram vagabun­dos ambu­lantes que son­havam em ser escritores, King of The Beats rela­ta as aven­turas, per­spec­ti­vas e ten­ta­ti­vas vari­adas de um grupo de jovens encon­trar a sua voz e se perder tan­tas vezes no meio do cam­in­ho, deixan­do para além de obras que recon­stroem em poe­sia, relatos e lou­curas, um sen­ti­men­to de liber­dade que é práti­ca­mente inevitáv­el de não se sen­tir ao ler On The Road, Uivo, Almoço Nu e etc. Um pas­seio há uma época dis­tante que ain­da trans­mite e faz parte do sen­ti­men­to de não acomodação.
     

    Algu­mas Curiosi­dades:

    Ker­ouac demor­ou mais de 10 anos para con­seguir pub­licar o On The Road e ain­da assim com mui­ta edição e mudanças, pois os edi­tores con­sid­er­avam o tex­to pornográ­fi­co, homos­sex­u­al e incen­ti­vador do uso de dro­gas. O romance que seria a bíblia dos Beats saiu só no fim da déca­da de 50 e no ini­cio acha­va-se que ela per­ten­cia aque­la época. Jack, ape­sar de ser muito lido nesse momen­to, era incom­preen­di­do pois não con­cor­da­va com o novo modo de viv­er dos jovens e acha­va cha­to explicar como as coisas fun­cionavam na déca­da anterior.

    Quan­do man­dou os orig­i­nais the On The Road para o edi­tor, ele man­dou tam­bém o esboço de uma capa que seria, na opinião dele, per­fei­ta para o livro, incluin­do uma foto própria do seu agra­do. Na ver­dade ele tin­ha acha­do hor­rív­el a capa de Town and The City e resolveu sug­erir uma mel­hor para esse livro. Jack Ker­ouac era bas­tante per­fec­cionista (para não diz­er cha­to) em relação à sua obra, man­ten­do uma relação dífi­cil com os editores.

    Jack Ker­ouac não per­doa e con­tin­ua resmungão até na sua últi­ma entre­vista, traduzi­da aqui, pela Revista Bula.

    O man­u­scrito orig­i­nal de On The Road, tem 36 met­ros de com­pri­men­to e foi escrito num rit­mo frenéti­co, rega­do a ben­zad­ri­na e cig­a­r­ros e em ape­nas três sem­anas. São rolos de papel, cola­dos com fita ade­si­va que estarão expos­tos a par­tir desse mês até o fim de 2012 na Bib­liote­ca Britâni­ca, em Londres.

     

    Leia mais sobre a Ger­ação Beat aqui e aqui.

  • Fábulas Vol. 1 – Lendas no Exílio, de Bill Willingham, Lan Medina e Steve Leialoha

    Fábulas Vol. 1 – Lendas no Exílio, de Bill Willingham, Lan Medina e Steve Leialoha

    Os con­tos de fada estão em alta. As famosas histórias cri­adas orig­i­nal­mente pelos Irmãos Grimm, tão acla­madas na infân­cia, têm inspi­ra­do bas­tante autores e dire­tores de cin­e­ma. Só este ano, dois filmes influ­en­ci­a­dos no con­to Bran­ca de Neve e os Sete Anões chegaram às telonas. O primeiro Espel­ho, Espel­ho Meu (Mir­ror, Mir­ror), estre­la­do por Lily Collins (fil­ha de Phill Collins) e o mais recente Bran­ca de Neve e o Caçador (Snow White and the Hunts­man), com o belo papel desem­pen­hado por Char­l­ize Theron como Rain­ha Má. Ape­sar das adap­tações feitas aos roteiros e per­son­agens fugirem um pouco dos con­tos tradi­cionais, a ideia dos ambi­entes e a tra­ma prin­ci­pal con­tin­u­am os mes­mos. A série Once Upon a Time, famosa nos Esta­dos Unidos, tam­bém reúne os per­son­agens dos con­tos de fada, e ape­sar de dis­torcer um pouco a história orig­i­nal, pois os per­son­agens vivem na cidade e não se lem­bram quem real­mente são, eles ain­da pas­sam pelos mes­mos prob­le­mas e esti­mam pelos mes­mos son­hos, serem felizes e encon­trarem o seu ver­dadeiro amor. É aí que a HQ Fábu­las (Devir, 2004), apre­sen­ta o seu difer­en­cial. Nela não existe mais o mes­mo felizes para sem­pre.

    Em Fábu­las Vol. 1 – Lendas no Exílio, com roteiro de Bill Will­ing­ham e arte de Lan Med­i­na e Steve Leialo­ha, após a invasão de um adver­sário enig­máti­co de seu povo em sua ter­ra natal, os per­son­agens foram exi­la­dos e pas­saram a viv­er na cidade de Nova York, ao lado dos humanos, ou “mun­danos como são comu­mente chama­dos. Bran­ca de Neve ago­ra não mais vive para amar e dedicar-se ao seu príncipe, mas sim como uma vice-prefei­ta intol­er­ante, divor­ci­a­da e que não pode nem sequer ouvir falar nos sete anões. O Lobo Mau (Big­by Lobo), aque­le da Chapeuz­in­ho Ver­mel­ho, não é mais gov­er­na­do pela sua bar­ri­ga e sim pela sua mente. Como xerife da cidade, a sua prin­ci­pal ‘refe’ição é deli­ciar-se ao desven­dar os mis­térios que ron­dam os crimes da cidade das Fábu­las. O príncipe encan­ta­do, que aliás é o mes­mo para todas as prince­sas, é um nar­ci­sista aproveita­dor, que pos­sui um reina­do sem val­or no mun­do em que vive ago­ra. Cada per­son­agem apre­sen­ta uma per­son­al­i­dade úni­ca e dis­tor­ci­da dos con­tos orig­i­nais, o que con­tribuiu enorme­mente para faz­er de Fábu­las um quadrin­ho que con­ta algo anti­go, de for­ma total­mente inovadora.

    Um dos pon­tos fortes da orig­i­nal­i­dade de Fábu­las é a com­plex­i­dade dos prob­le­mas vivi­dos pelos per­son­agens. A difi­cul­dade ago­ra não é mais de a prince­sa con­seguir viv­er feliz para sem­pre ao lado de seu príncipe enquan­to a rain­ha má paga pelas suas mal­dades. O que era trági­co vira cômi­co. Dev­i­do aos prob­le­mas cotid­i­anos e finan­ceiros de um casal que perdeu sua for­tu­na, Fera não con­segue con­tro­lar a maldição que tor­na a sua aparên­cia feri­na, prin­ci­pal­mente com o mau humor e recla­mações de sua esposa Bela. Ou o Pinóquio que fica revolta­do com a fada que o trans­for­mou em um meni­no de ver­dade, mas que nun­ca chega à puberdade.

    Neste primeiro vol­ume de Fábu­las, a história prin­ci­pal se pas­sa no desa­parec­i­men­to de Rosa Ver­mel­ha, irmã de Bran­ca de Neve. O cli­ma de inves­ti­gação de romance poli­cial da tra­ma, semel­hante a quadrin­hos como Júlia Kendall: As Aven­turas de uma Crim­inólo­ga envolve o leitor do iní­cio ao fim, com diál­o­gos exce­lentes ricos em iro­nia e fran­queza. Bill Will­ing­ham obtém suces­so ao trans­for­mar os clás­si­cos per­son­agens antes inat­ingíveis, em pes­soas quase comuns que ape­nas procu­ram viv­er suas vidas, ten­tan­do não rev­e­lar sua aparên­cia mág­i­ca ao mun­do humano. No desen­ro­lar da tra­ma, o autor apre­sen­ta assun­tos que você difi­cil­mente pen­saria em ver entre os mocin­hos dos con­tos de fada, como traição, sex­u­al­i­dade e por aí afora.

    As 132 pági­nas de Fábu­las têm ilus­trações fan­tás­ti­cas, com teor mais real­ista e atu­al, mas que em alguns momen­tos são inter­cal­adas com desen­hos de per­son­agens recon­tan­do histórias anti­gas, com aque­le ar dos con­tos mais clás­si­cos. Ao final da história, tam­bém há um con­to ilustra­do pelo próprio roteirista Bill Will­ing­ham chama­do Um lobo entre cordeiros, que rev­ela detal­hada­mente como o lobo obteve sua for­ma humana.

    Pub­li­ca­dos pela Pani­ni Comics, os vol­umes no Brasil encon­tram-se na 11º edição. Para quem gos­ta de boas histórias com um quê de fan­ta­sia, Fábu­las é uma óti­ma opção.

  • Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    A incrív­el tol­erân­cia do leitor (que ele não esten­de­ria a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sen­ti­do se for enten­di­da como uma espé­cie de cumpli­ci­dade entre ele e o bió­grafo numa ativi­dade exci­tante e proibi­da: atrav­es­sar o corre­dor na pon­ta dos pés, parar diante da por­ta do quar­to e espi­ar pelo bura­co da fechadu­ra (p.16)

    Sylvia Plath (1932–1963), foi uma escrito­ra amer­i­cana rad­i­ca­da na Inglater­ra nos anos 50 e uma figu­ra fem­i­ni­na bas­tante forte. Ficou mais con­heci­da por sua poe­sia del­i­ca­da, intimista e em boa parte dela som­bria, dota­da de resquí­cios de uma depressão que aparente­mente era intrin­se­ca à per­son­al­i­dade da escrito­ra. Todas essas car­ac­terís­ti­cas são apre­sen­tadas em A Mul­her Cal­a­da: Sylvia Plath, Ted Hugh­es e os lim­ites da Biografia (reim­pressão de 2012, Com­pan­hia das Letras, Tradução de Ser­gio Flaks­man), uma pro­pos­ta ousa­da de análise biográ­fi­ca da jor­nal­ista Janet Malcolm. 

    Em 1961, Sylvia Plath escreveu A Redo­ma de Vidro, o úni­co romance de sua car­reira e de tom alta­mente con­fes­sion­al. A per­son­agem Esther é uma Sylvia mais cora­josa mas igual­mente sen­sív­el, que ao sofr­er decepções nâo vê out­ra saí­da além da morte. Plath deixou todos ao seu redor assus­ta­dos e temerosos pelas descrições do romance. Já para ela era como um gri­to do que vin­ha enfrentan­do des­de a ado­lescên­cia e a total não aceitação do pos­sív­el com­por­ta­men­to promis­cuo de Hugh­es. Mes­mo ten­do cresci­do numa época de lib­er­tação fem­i­ni­na, muito de uma mul­her tem­pera­men­tal e obses­si­va se escon­dia na pele da moça loira, sim­páti­ca da capa do livro. E é essa Plath que Janet con­strói, uma mul­her comum, forte e tam­bém áci­da, ciu­men­ta e desagradáv­el com um tem­pera­men­to deci­di­do, inclu­sive com a cor­agem de acabar com a própria vida.

    A jor­nal­ista se propõe a ir além de uma biografia comum, já que a vida de Sylvia não era novi­dade para ninguém do meio literário, seja em out­ras ten­ta­ti­vas biográ­fi­cas ou espec­u­lações. Ela ques­tiona o sen­ti­do do gênero, qual o papel de quem o escreve e a importân­cia de man­ter intim­i­dade com o leitor. Mal­colm se atem no perío­do em que Plath con­hece o poeta Ted Hugh­es, quan­do deu ini­cio à uma das relações mais con­tro­ver­sas e polêmi­cas de pares no meio literário, até o sui­cidio em 1963. 

    Janet Mal­colm
    O títu­lo de mul­her cal­a­da é jus­ta­mente pelo grande número de espec­u­lações sobre os fatos e mitos no entorno de Sylvia Plath con­struí­dos des­de sua morte. O casa­men­to com Hugh­es, a relação com a mãe e ami­gos são expostas pela infinidade de car­tas tro­cadas, ver­dadeiros fós­seis de sen­ti­men­tos da época e pos­síveis fatores de recon­sti­tu­ição. Essas mis­si­vas e os diários, que a poet­i­sa escrevia tan­to quan­to res­pi­ra­va, são os maiores ali­men­ta­dores para as biografias já escritas sobre a vida de Plath. A jor­nal­ista ques­tiona e dá sua opinião sobre cada uma das pub­li­cações feitas ao lon­go das décadas que seguiram e o faz com­para­n­do as obras com o próprio mate­r­i­al col­hi­do, uma espé­cie de inves­ti­gação insti­gante, quase em rit­mo detetivesco.

    Sylvia Plath
    E como em uma boa história de sus­pense, a per­son­agem oscilante de Sylvia gan­ha ares de mocin­ha quan­do o assun­to é a família Hugh­es, que durante muito tem­po deteve os dire­itos autorais da escrito­ra. Não bas­tassem as histórias no entorno da figu­ra de Ted Hugh­es, sua irmã Olwyn se apre­sen­ta como a mul­her total­mente indisponív­el e mal humora­da quan­do se tra­ta de fofo­cas sobre sua família. A figu­ra dos Hugh­es con­tra­ce­na com a de Plath, pois depois da morte de Sylvia foram eles os por­ta-vozes para qual­quer tra­bal­ho que envolvesse a figu­ra da escritora.

    A Mul­her Cal­a­da é um desafio ao leitor, o colo­ca como pas­sageiro das via­gens, encon­tros e leituras de car­tas que Janet faz. O tom poli­cial que a jor­nal­ista tra­ta dos fatos colo­ca o leitor na dúvi­da se há algum mocin­ho ou ban­di­do na história mitológ­i­ca de Sylvia Plath, sua mãe e a família Hugh­es. Mal­colm brin­ca com a mais inqui­etante questão literária que é o lim­ite da ficção e real­i­dade. Usan­do a seu favor os fatos e provas escritas do que pode ter acon­te­ci­do, a jor­nal­ista mon­ta toda uma teia com lin­guagem fic­cional para que o leitor pos­sa ape­nas vis­lum­brar a figu­ra da poeta cal­a­da e assim poder decidir em que voz pref­ere confiar.

    Filme

    Para quem se inter­esse por uma fac­eta de Plath, há uma cinebi­ografia inti­t­u­la­da de Sylvia (2003), dirigi­da por Chris­tine Jeffs e inter­pre­ta­da por Gwyneth Pal­trow e Daniel Craig como Ted Hugh­es. O lon­ga mostra clara­mente a vitimiza­ção da escrito­ra per­ante a vul­ner­a­bil­i­dade da relação com o poeta, pare­cen­do que Sylvia era ape­nas uma mul­her com tendên­cias sui­ci­das à beira de seu próprio precipício.

  • Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao —  Junot Díaz

    Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao — Junot Díaz

    A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao (Record, 2009), do escritor domini­cano Junot Díaz, é o livro per­feito para quem gos­ta de história e de apren­der sobre out­ras cul­turas. Esse romance acla­ma­do como um dos mel­hores livros de 2008 ren­deu à Díaz o Prêmio Pulitzer de ficção e esteve na lista dos livros mais ven­di­dos do The New York Times por mais de vinte sem­anas, chegan­do ao segun­do lugar.

    Pro­fes­sor de cri­ação literária do Mass­a­chu­setts Insti­tute of Tech­nol­o­gy (MIT) e edi­tor da Boston Review, Díaz já é con­sid­er­a­do nos EUA como um dos escritores mais promis­sores de lín­gua ingle­sa da atu­al­i­dade. Sim, Junot Díaz escreve em inglês. O autor cariben­ho se mudou para o esta­do amer­i­cano de Nova Jer­sey quan­do tin­ha ape­nas seis anos, o mes­mo esta­do que cede cenário à grande parte do seu romance.

    No começo de A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao, Oscar, o pro­tag­o­nista, é um meni­no tími­do, fã de ficção cien­tí­fi­ca, obe­so e virgem – o típi­co nerd que não sai da frente do vídeo-game. Ele tem dois grandes son­hos: ser o J. R. R. Tolkien de sua ger­ação e ter um grande amor que seja correspondido.

    Junot Diaz
    Nasci­do na Repúbli­ca Domini­cana afe­ta­da pelos desav­i­sos do dita­dor Gen­er­al Rafael Leónidas Tru­jil­lo, da mes­ma for­ma que o próprio Díaz, Oscar aca­ba por aban­donar Nova Jer­sey para voltar às ter­ras domini­canas, ain­da na ânsia do seu primeiro bei­jo e das grandes con­quis­tas que ele alme­ja. Víti­ma do que ele acred­i­ta ser uma maldição de família, con­heci­da na ilha como fukú, tudo dá erra­do na vida do já adul­to Oscar e na de out­ros mem­bros da família de León.

    Há quem não acred­ite em fukú e culpe a depressão e tendên­cias sui­ci­das do Oscar, somadas ao azar de ter nasci­do um meni­no sen­sív­el e nerd na cul­tura lati­na de cul­tuação da figu­ra do macho, pelo seu azar. Mas e de onde surgiu a má sorte dos seus par­entes e, na ver­dade, de todos que cruzam o cam­in­ho de Oscar e com­pan­hia? O sen­so de mist­i­cis­mo, super­stição, tradição e até mes­mo mág­i­ca que persegue a família é o que faz deste dra­ma uma obra inesquecível.

    Esta epopeia de uma família imi­grante con­ta um pouco da vida dos mil­hões de lati­nos que vivem tão longe de suas ter­ras e par­entes. Díaz faz exten­so uso da lín­gua espan­ho­la (man­ti­do na tradução para o por­tuguês), gírias e palavrões no seu tex­to, fazen­do pos­sív­el iden­ti­ficar a classe social e nív­el de esco­lar­i­dade dos per­son­agens através da linguagem.

    Pos­sivel­mente, o títu­lo do livro faz uma refer­ên­cia indi­re­ta ao con­to “A Feliz Vida Breve de Fran­cis Macomber”, em tradução livre, do escritor Hem­ing­way. Essen­cial­mente, o con­to fala sobre cor­agem e covar­dia, dois dos temas mais recor­rentes des­ta obra de Díaz.

    O romance é rec­hea­do de notas de rodapé que dão uma aula de história domini­cana e de refer­ên­cias cul­tur­ais que vão de H. P. Love­craft, Frank Her­bert e Matrix a Paulo Coel­ho, A Noviça Rebelde, Gabriel Gar­cía Mar­quez e Oscar Wilde — de onde surgiu o nome do nos­so pro­tag­o­nista. Cer­ta­mente foi necessária mui­ta pesquisa, espe­cial­mente para man­ter os fatos rela­ciona­dos ao Tru­jil­la­to mais próx­i­mos o pos­sív­el da real­i­dade, como prom­ete o autor. Eu asso­cio de cara este livro com A Fes­ta do Bode (Alfaguara, 2011), ficção do gan­hador do Prêmio Nobel Mario Var­gas Llosa que tam­bém retra­ta os últi­mos anos de poder de Trujillo.

    Junot Díaz demor­ou onze anos para escr­ev­er a tumul­tua­da vida breve de Oscar, que, na ver­dade, não é nem tão breve assim. Como disse Abra­ham Lin­coln, não são os anos da vida que con­tam, mas a vida em anos.

  • Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Em 1971 era pub­li­ca­do o livro Hon­ra Teu Pai (Cia das Letras, 512 pági­nas, tradução de Don­ald­son M. Garscha­gen), do jor­nal­ista Gay Talese, que pas­sou sete anos fazen­do pesquisas sobre a família Bon­nano, uma das mais impor­tantes da máfia nos Esta­dos Unidos.

    Hon­ra Teu Pai parte do seque­stro de Joseph Bonan­no em 1964, um dos líderes das Cin­co Famílias de Nova York, e a ten­são que cai nos ombros de seu fil­ho, Sal­va­tore “Bill” Bon­nano, para man­ter a ordem nos negó­cios e evi­tar uma pos­sív­el guer­ra entre gru­pos rivais. Além dis­so, Talese tam­bém vol­ta a Sicília dos anos 1920, na cidade Castel­la­mare, onde nasceu Joseph e a orga­ni­za­ção que hoje em dia é con­heci­da como Cosa Nos­tra, até os dias finais das orga­ni­za­ções Bonnano.

    Os anos 60 foram anos de trans­for­mações tan­to cul­tur­ais quan­to com­por­ta­men­tais, mas para o mun­do de Bill Bon­nano, tudo per­mane­cia igual: as guer­ras feu­dais travadas na Sicília ape­nas se mudaram para os Esta­dos Unidos e ele se con­sid­er­a­va, ape­sar de ter cur­sa­do a fac­ul­dade agrono­mia na cidade de Tuc­son (da qual não con­cluiu), um mero vende­dor de car­roças. A figu­ra pater­na de Joseph Bon­nano era onipresente demais na vida do jovem Bill e este acabou entran­do nos negó­cios do pai sem pes­tane­jar. Hon­ra Teu Pai é um clás­si­co não ape­nas sobre a con­tra­venção, mas de um fil­ho devota­do ao pai a pon­to de colo­car a própria vida em risco se aven­tu­ran­do em seu mundo.

    E não fican­do somente nis­so: as difi­cul­dades vivi­das pelas esposas dos gang­sters na pele de Ros­alie, esposa de Bill, que cria os fil­hos em para­le­lo a vida de seu mari­do con­tra­ven­tor, geran­do muitos prob­le­mas no casa­men­to, que vão de infi­del­i­dade, segu­rança e a fal­ta de din­heiro. (Talese se aproveitou da boa vendagem do livro e mais o din­heiro obti­do na ven­da dos dire­itos de fil­magem* para cri­ar um fun­do para os fil­hos de Ros­alie e Bill pudessem cur­sar a fac­ul­dade quan­do mais velhos)

    Con­sid­er­a­do um dos cri­adores do Jor­nal­is­mo Literário (títu­lo que não faz mui­ta questão de osten­tar), Gay Talese tra­bal­hou no jor­nal The New York Times por 12 anos (exper­iên­cia que ren­deu o livro O Reino e o Poder, tam­bém lança­do pela Cia das Letras) e tam­bém foi colab­o­rador das revis­tas New York­er e Esquire. Em entre­vista a Paris Review, o jor­nal­ista diz que tra­ta a não-ficção com a mes­ma seriedade que um autor de ficção faria, mas faz questão de deixar claro que tudo que se pas­sa em seus livros acon­te­ceu de ver­dade. A imer­são em suas histórias é total. Na pro­dução de Hon­ra Teu Pai, Talese anda­va com Bill Bon­nano e seus segu­ranças, sujeito a ser balea­do ou sofr­er ataques a bom­ba na Guer­ra das Bananas. O jor­nal­ista pas­sa­va bas­tante tem­po com seus per­son­agens entre­vi­s­tan­do-os, toman­do notas sobre tudo que fazi­am. A obsessão per­fec­cionista do autor o lev­ou a sua fama merecida.

    Ques­tion­a­do sobre a razão de ter escrito um livro sobre assas­si­nos, Talese disse que não via muitas difer­enças entre um mafioso e um sol­da­do que mata um ser humano em nome do gov­er­no: ambos vivem sob um rígi­do códi­go de con­du­ta e se pro­tegem uns aos out­ros.

    *Escrito por Lewis John Car­li­no e dirigi­do por Paul Wend­kos, o filme feito para TV de Hon­ra Teu Pai pode ser vis­to na inte­gra aqui:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=Y5pYTR7iPkY

  • Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Nor­mal­mente a primeira coisa que vem em mente quan­do falam­os em Neil Gaiman é Sand­man, ou algu­ma de suas out­ras Graph­ic Nov­el, mas asso­ciar o nome aos seus tra­bal­hos literários ain­da não é algo muito comum. Acred­i­to que como muitos, ini­cial­mente nem sequer sabia que ele pos­suía tra­bal­hos além dos quadrin­hos e deci­di então ini­ciar min­ha leitu­ra nes­ta nova fac­eta — para mim — do autor pelo livro Coisas Frágeis (2010, Con­rad Edi­to­ra), com tradução de Michele de Aguiar Vartuli.

    É inter­es­sante já avis­ar que se você é daque­les que não gos­ta de saber cer­tas infor­mações antes de ler/assistir algo, aí vai uma dica impor­tante: leia a intro­dução só depois que você tiv­er lido Coisas Frágeis inteiro. Porque nela Neil Gaiman con­ta a história do moti­vo e situ­ação em que escreveu cada um dos con­tos, além de muitas vezes citar no esti­lo de quem se influ­en­ciou. Par­tic­u­lar­mente pre­firo deixar esse tipo de leitu­ra para depois, assim como não gos­to de ler críti­cas antes de ver um filme — as vezes evi­to até trail­ers — para assim poder depois com­parar as min­has impressões com aque­la do autor. Mas se você gostar de saber algu­mas par­tic­u­lar­i­dades antes, é garan­ti­do que são infor­mações que aju­dam e muito em uma com­preen­são mel­hor de cada um dos contos.

    Acho que pos­so afir­mar sem­pre ter sus­peita­do que o mun­do fos­se uma farsa bara­ta e tosca, um pés­si­mo dis­farce para algo mais pro­fun­do, mais esquisi­to e infini­ta­mente mais estran­ho, e de algu­ma for­ma sem­pre ter sabido a ver­dade. (p. 105)

    Coisas Frágeis é com­pos­to de nove con­tos e como não tin­ha ideia do que esper­ar e não haven­do ordem para seguir, deci­di escol­her aque­le que tin­ha o títu­lo mais inter­es­sante e par­ti para a leitu­ra. Emper­rei. Não era algo do tipo que eu que­ria ler naque­le momen­to. Próx­i­mo con­to. Depois de mais duas tro­cas, deci­di final­mente parar e ler um até o final. Desco­bri que o iní­cio de alguns deles é meio arras­ta­do mes­mo, pois a apre­sen­tação dos per­son­agens e situ­ações cos­tu­mam ser feitas de maneira bem pon­tu­a­da em um mar de out­ras infor­mações. Mas logo que você avança mais um pouco na leitu­ra e se ambi­en­ta neste mun­do, muitas vezes nada con­ven­cional, o con­to vai gan­han­do um óti­mo rit­mo, as vezes até bem frenéti­co, onde a últi­ma coisa que você quer faz­er é largar o livro de tão ansioso que fica para saber o seu desfecho.

    O inter­es­sante em todos os con­tos do Coisas Frágeis é que por mais cotid­i­anas e nor­mais que algu­mas situ­ações aparentam ser, sem­pre aparece algum ele­men­to fan­tás­ti­co no meio, mas que não que­bra total­mente esta sen­sação de que aqui­lo pode­ria acon­te­cer com qual­quer um a qual­quer momen­to. E por que não acon­te­cer com você tam­bém? Com certeza seria uma aven­tu­ra incrív­el acom­pan­har o mis­te­rioso dete­tive de Um estu­do em esmer­al­da ou assi­s­tir o curioso rit­u­al do O monar­ca do Vale.

    E então seu son­ho se encheu de deuses: deuses vel­hos e esque­ci­dos, mal-ama­dos e aban­don­a­dos, e novos deuses, coisas assus­tadas e tran­sitórias, ilu­di­das e con­fusas. (p. 175)

    Mas um dos con­tos em par­tic­u­lar, enti­t­u­la­do de O Pás­saro-do-Sol, me cativou de maneira sur­preen­dente! Não só pela excên­tri­ca ideia de um grupo cuja mis­são é exper­i­men­tar tudo que é comestív­el no mun­do, mas tam­bém pelos ele­men­tos mais mís­ti­cos e sim­bóli­cos, car­ac­terís­ti­ca que acred­i­to ser a mais inter­es­sante em Neil Gaiman e que é, de cer­ta for­ma, onipresente em seu tra­bal­ho. Se eu fos­se recomen­dar um con­to para alguém começar a ler Coisas Frágeis, com certeza seria este! Mas vou deixar a curiosi­dade pairan­do mes­mo sobre ele, pois ten­ho receio de estra­gar qual­quer agradáv­el sur­pre­sa que pos­sa vir a quem lê-lo.

    As reuniões men­sais dos epi­cu­ri­anos vêm acon­te­cen­do há mais de 150 anos, des­de a época do meu pai, do meu avô e do meu bisavô, e ago­ra temo que seja necessário parar, porque não res­ta mais nada que nós, ou nos­sos ante­ces­sores no clube, já não ten­hamos comi­do. (p. 135)

    O esti­lo dos con­tos de Coisas Frágeis muda dras­ti­ca­mente, poden­do assim causar uma cer­ta sen­sação de estran­heza se forem lidos muito segui­dos. Por isso recomen­do que sejam lidos com um cer­to inter­va­lo de tem­po, até para poder digerir todas as infor­mações de cada um. Por isso tam­bém, pode ser que alguns não sejam do gos­to de todos, mas que em ger­al o livro pos­sa ser do inter­esse de vários tipos difer­entes de pessoas.

    Acred­i­to que a dica mais impor­tante é: este­ja total­mente aber­to para o ines­per­a­do no iní­cio de cada con­to de Coisas Frágeis. Pois no mín­i­mo será uma aven­tu­ra por lugares, pes­soas e criat­uras fasci­nantes que você nun­ca esper­a­va, mas talvez gostaria, encon­trar. Se ao final de todos eles você ain­da sen­tir um gostin­ho de quero mais, como acon­te­ceu comi­go, foi tam­bém lança­do pela Con­rad a con­tin­u­ação Coisas Frágeis 2. Nos vemos no próx­i­mo livro?

  • Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Estas estórias falam desse ter­ritório onde nos vamos refazen­do e vamos mol­han­do de esper­ança o ros­to da chu­va, água aben­son­ha­da. Desse ter­ritório onde todo homem é igual, assim: fin­gin­do que está, son­han­do que vai, inven­tan­do que vol­ta. (Pre­fá­cio de Estórias Abensonhadas)

    Ten­ho uma grande con­vicção de que grandes leitores sem­pre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, con­ver­sas de ônibus e qual­quer out­ro lugar. Ter essa sen­sív­el per­cepção quan­to ao mun­do me parece bas­tante per­ti­nente quan­do você lê livros como se estivesse ouvin­do uma série de boas histórias, assim como acon­tece com Estórias Aben­son­hadas (Com­pan­hia das Letras, 2012) , de Mia Couto.

    É prati­ca­mente indis­pen­sáv­el a apre­sen­tação da figu­ra do escritor Moçam­bi­cano que comu­mente é colo­ca­do no hall dos grandes escritores fan­tás­ti­cos e inven­tivos. Assim como Gabriel Gar­cía Mar­quez, Guimarães Rosa e Manoel de Bar­ros, Mia Couto recria a real­i­dade ressaltan­do situ­ações com tons de magia. Nada é banal na vida dos per­son­agens que com­põem as suas nar­ra­ti­vas e essas fig­uras, com seu próprio por­tuguês e modo de se expres­sar, cir­cu­lam pelo tex­to dire­cio­nan­do o leitor.

    Estórias Aben­son­hadas é um con­jun­to de con­tos e como sinal­iza­do na intro­dução, foram escritos num perío­do pós-guer­ras — em 1994, ano de lança­men­to do livro, fazia ape­nas dois anos que a Guer­ra Civ­il de Moçam­bique soma­da a Guer­ra da Inde­pên­den­cia que se arras­tou des­de os anos 60, havi­am ter­mi­na­do — e o livro é for­ma­do por con­tos onde fig­uras como o sangue e a guer­ra são ele­men­tos de histórias de recomeço e ilu­mi­nações, como se os per­son­agens estivessem apren­den­do a ver a luz nova­mente e assim recon­stru­in­do suas rotinas.

    Mia Couto escreve com a lin­guagem dos son­hos, opera a palavra como um tra­bal­hador opera o seu mel­hor instru­men­to. E vai além, recria seu uso e funções provan­do que a lín­gua Por­tugue­sa se trans­mu­ta con­forme a sua geografia, é viva. E em Estórias Aben­son­hadas essa lín­gua gan­ha ares de esper­ança num ter­reno onde tudo pre­cisa de recon­strução e mes­mo que a morte este­ja pre­sente em boa parte dos con­tos, não há como escon­der a esper­ança de ir adiante.

    Nas Águas do Tem­po, o con­to que abre o livro, o leitor é apre­sen­ta­dos à magia do rela­to e a importân­cia da figu­ra do avô, um sím­bo­lo do con­ta­dor de histórias. O avô per­mite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fan­tas­mas da guer­ra ain­da cir­cu­lam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários out­ros con­tos, a pre­sença maciça da mitolo­gia da região rep­re­sen­ta­da por fig­uras e palavras próprias dá ordem do tom de oral­i­dade de Mia Couto.

    No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para den­tro, ess­es que usamos para ver os son­hos. O que acon­tece, meu fil­ho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver ess­es out­ros que nos visi­tam. Os out­ros? sim, ess­es que nos ace­nam da out­ra margem. E assim lhes causamos uma total tris­teza. Eu levo-lhe lá nos pân­tanos para que você apren­da a ver. Não pos­so ser o últi­mo a ser vis­i­ta­do pelos panos. (p.13)

    Em out­ros tex­tos como em O Cego Estre­lin­ho é a força da palavra que faz recri­ar ima­gens nun­ca vis­tas. Com uma grande sen­si­bil­i­dade os per­son­agens tem nomes muito sug­es­tivos como é o caso de Estre­lin­ho que, ori­en­ta­do pelas mãos de Gig­i­to é apre­sen­ta­do por um mun­do fan­tás­ti­co e pul­sante e quan­do este é man­da­do à guer­ra — mata­do­ra de esper­anças e cores — o cego pas­sa a ser ori­en­ta­do pela irmã, a Infe­lizmi­na que não vê nada demais no mun­do ali fora.

    O erro da pes­soa é pen­sar que os silên­cios são todos iguais. Enquan­to não: há dis­tin­tas qual­i­dades de silên­cio. É assim o escuro, este nada apa­ga­do que estes meus olhos tocam: cada um é um, des­b­o­ta­do à sua maneira. Entende, mano Gig­i­to? (p.23)

    Boa parte dos per­son­agens de Estórias Aben­son­hadas tem seus pares que con­tra­bal­ançam a fal­ta de esper­ança, como a capa da edição brasileira sug­ere, duas cadeiras frente a frente ven­do o sol nascer. Duas pes­soas são capazes de ini­ciar uma guer­ra como sinal­iza A Guer­ra dos Pal­haços onde dois pal­haços brin­cantes, numa acalo­ra­da dis­cussão, começam uma guer­ra entre os espec­ta­dores que ten­tam inter­pre­tar a per­for­mance. Um tex­to cur­to mas imen­so de ale­go­rias sobre a estu­pid­ez de um conflito.

    Com romances pre­mi­a­dos e igual­mente inven­tivos, Mia Couto demon­stra maior ver­sa­til­i­dade ain­da em con­tos ou crôni­cas porque são relatos cur­tos e boa parte deles pub­li­ca­do no jor­nal por­tuguês Públi­co. O fato de estarem pre­sentes em jor­nal, além de dar uma grande vis­i­bil­i­dade, dialo­ga muito inti­ma­mente com o leitor, mes­mo aque­le desacos­tu­ma­do com o seu tom fan­tás­ti­co. Creio que um dos fatos cru­ci­ais do escritor con­seguir cri­ar essa relação de intim­i­dade é a sua profis­são de biól­o­go que per­mite que ele seja inven­ti­vo unin­do o ser humano e sua relação com o espaço, ambi­ente e o lugar.

    Estórias Aben­son­hadas ultra­pas­sa qual­quer relação sim­plória de leitor e obra, é como se olhásse­mos através de uma janela e con­hecesse­mos ess­es per­son­agens como nos­sos viz­in­hos, ami­gos e par­entes. São histórias fan­tás­ti­cas escritas com a liber­dade de um con­ta­dor de histórias, pois além de Mia não se pren­der à con­veções lin­guís­ti­cas, ele dialo­ga de muito per­to com as nos­sas próprias raízes, é a lin­guagem uni­ver­sal dos sonhos.

  • Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    ¨Real­mente os cul­tos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. Esse não foi um erro do escritor. Foi um erro da humanidade¨ (p.30)

    Impos­sív­el não se sen­tir ten­ta­do pela capa da edição brasileira de Fes­ta no Cov­il (Com­pan­hia das Letras, 2012) — inspi­rada­mente desen­ha­da pela artista Elisa v. Randow — o romance de estreia de Juan Pablo Vil­lalo­bos. Fazen­do uso da sim­bolo­gia da clás­si­ca fes­ta de Dia de Muer­tos mex­i­cana, a capa é um incrív­el con­vite para que você escute um meni­no solitário con­tar algu­mas peripécias.

    Tochtli — coel­ho, na lín­gua aste­ca — é uma cri­ança comum, ou pode­ria ser, que como qual­quer out­ra dese­ja muito um pre­sente. Segun­do ele próprio mora numa man­são no Méx­i­co, tem uma vida ente­di­ante, pos­sui uma vas­ta coleção de chapéus e son­ha em ter um casal de hipopó­ta­mos anões da Libéria. Um dese­jo nada con­ven­cional e que nos diz muito sobre o per­son­agem que nar­ra o romance do mex­i­cano Juan Pablo Vil­lalo­bos.

    Fes­ta no Cov­il tra­ta de for­ma muito sen­sív­el, ao pas­so que te faz res­pi­rar a cada novo pará­grafo, a vida solitária de uma cri­ança em pleno cenário do nar­cotrá­fi­co mex­i­cano. O pai, um reno­ma­do profis­sion­al do ramo, pro­tege o fil­ho numa espé­cie de for­t­aleza e é escon­di­do do resto do mun­do que o garo­to rela­ta pecu­liari­dades do seu cotid­i­ano, como o número de pes­soas que con­hece e como é a sua roti­na diária, tudo do seu pon­to de vista infan­til, inteligente e com dos­es de ironia.

    Parece que o país Libéria é um país nefas­to. O Méx­i­co tam­bém é um país nefas­to. É um país tão nefas­to que você não pode con­seguir um hipopó­ta­mo anão da Libéria. O nome dis­so na ver­dade é ser do ter­ceiro mun­do.” (p.20)

    O nar­cotrá­fi­co, talvez a ativi­dade mais ren­táv­el na lati­noaméri­ca, é um plano de fun­do um tan­to quan­to fos­co em Fes­ta no Cov­il pois, difer­ente de uma visão real­ista, esse mun­do se apre­sen­ta cheio de metá­foras e por­tas fechadas, vis­tas pelos olhos de uma cri­ança. A mar­gin­al­iza­ção da sociedade mex­i­cana foge da figu­ra do imi­grante e tra­ta mais de per­to os atu­ais prob­le­mas do país no com­bate da máfia das dro­gas. Na ver­dade, qual­quer país abaixo da fron­teira dos Esta­dos Unidos pode­ria ser o cenário da vida de Tochtli e talvez um dos pon­tos mais fortes do livro seja essa sen­sação de con­hec­i­men­to de causa que temos ao ver uma cri­ança encar­an­do a real­i­dade de for­ma tão ingênua.

    Mas Vil­lal­lo­bos não faz um rela­to comum e muito menos pro­duz uma nar­co­l­it­er­atu­ra fun­da­da em real­is­mos. Ele usa a voz de Tochtli para cri­ar um apego entre o leitor e o per­son­agem e assim cri­ar um enre­do que beira à suavi­dade de histórias infan­tis. Em muitos momen­tos nos vemos olhan­do assus­ta­dos para o garo­to da ficção, todo o dis­cur­so do pequeno Tochtli é mar­ca­da por suas sen­síveis pecu­liari­dades. As vezes ele é mima­do, não quer mais brin­car e em out­ros momen­tos ele demon­stra uma maturi­dade, con­sum­i­da por fras­es pre­co­ces, que nos leva a ques­tionar a solidão infantil.

    Há ape­nas um flerte com a real­i­dade vista por ess­es olhos inocentes. Se out­ro­ra a lit­er­atu­ra fazia uso das metá­foras fan­tás­ti­cas para con­tar um fato real, em Fes­ta no Cov­il são os olhos infan­tis que inter­pre­tam a vida com inocên­cia e em algu­mas situ­ações com a frieza da ver­dade. Tochtli é solitário, tem aulas par­tic­u­lares em casa e con­vive o tem­po todo com adul­tos, por­tan­to é inevitáv­el que em sua voz saiam definições pre­co­ces. Não se sabe ao cer­to se o garo­to é somente mima­do, víti­ma de um pai ausente e mãe que mor­reu, ou pro­fun­da­mente inspi­ra­do pelas pes­soas mis­te­riosas que con­vivem com ele e vivem ensi­nan­do algo.

    O pres­i­dente John Kennedy esta­va fazen­do um pas­seio num car­ro sem teto e ati­raram na cabeça dele. Ou seja, as guil­hoti­nas são para os reis e os tiros, para os pres­i­dentes. (p.47)

    Durante toda a nar­ra­ti­va de Fes­ta no Cov­il fica níti­da uma relação estre­i­ta do meni­no com as palavras, incluin­do o próprio dis­cur­so que ele cui­da que seja bem explica­ti­vo. O pequeno Tochtli não dorme sem ler o dicionário, ele gos­ta de nomear os sen­ti­men­tos e as pes­soas e quan­do se encan­ta com uma palavra a usa em vários con­tex­tos, inde­pen­dente se elas con­tin­u­am ou não com o mes­mo significado. 

    Juan Pablo Vil­lalo­bos, até pouco tem­po atrás, era um nome descon­heci­do da lit­er­atu­ra lati­noamer­i­cana. O mex­i­cano, casa­do com uma brasileira e res­i­dente no país, diz que sua visão sobre o Méx­i­co é de quem obser­va de longe e que nesse pon­to de fora con­segue ver com muito mais clareza a situ­ação vivi­da pelo país. Quan­do ques­tion­a­do se ele espera que no Brasil haja iden­ti­fi­cação com o pequeno Tochtli, diz que sim mas que no Brasil ele vê mais otimis­mo, uma das car­ac­terís­ti­cas impres­sio­n­antes no per­son­agem-garo­to de A Fes­ta no Cov­il.

    É impos­sív­el sair imune de Tochtli e seus son­hos mima­dos. Enquan­to o Méx­i­co, e con­se­quente­mente seu pai, vivem perío­dos de lim­bos, o garo­to ape­nas anseia em encon­trar o casal de ani­mais que fal­ta para seu zoológi­co. Pequenos nuances detal­ham a real­i­dade do per­son­agem que faz de Fes­ta no Cov­il uma fábu­la de uma cri­ança — lem­bran­do o sig­nifi­ca­do do seu nome aste­ca — den­tro de um bura­co, alheio ao mun­do caóti­co e sem esper­ança de fora.

  • Livro: Precisamos Falar sobre o Kevin — Lionel Shriver

    Livro: Precisamos Falar sobre o Kevin — Lionel Shriver

    Goza­do como a gente vai esca­v­an­do o bura­co com uma col­her­in­ha de chá – uma con­cessão mín­i­ma, um arredonda­men­to insignif­i­cante ou uma lev­ís­si­ma refor­mu­lação de deter­mi­na­da emoção para out­ra que seja um tiquin­ho mais sim­páti­ca ou lisonjeira.

    Capa Precisamos falar sobre o KevinKevin Khatch­adouri­an é autor de uma chaci­na esco­lar que lev­ou quase uma dezena de pes­soas à morte. Nat­u­ral­mente ao saber­mos dessa infor­mação, são inevitáveis as per­gun­tas que bus­cam elu­ci­dar a razão de tal ato. “O que leva jovens com uma vida aparente­mente boa a tomarem tal ati­tude, tiran­do a vida de pes­soas inocentes?” “Por quê?” é a per­gun­ta que sin­te­ti­za muitas vezes nos­sa per­plex­i­dade diante do fato.

    Porém, ao lon­go da leitu­ra de Pre­cisamos falar sobre o Kevin (2007, Intrínse­ca), de Lionel Shriv­er, esse ato bru­tal pas­sa muitas vezes esque­ci­do, nos parece menor, ou pior ain­da, soa ape­nas como o des­fe­cho de uma sucessão de pecu­liares even­tos que pon­tu­am a vida da família Khatch­adouri­an e de seu filho.

    A história de Kevin é con­ta­da por sua mãe, de sim­bóli­co nome Eva. Por meio de car­tas ao mari­do Franklin, Eva remon­ta sua tra­jetória como uma moça solteira com um desta­ca­do sen­so críti­co aos EUA e com ímpetos de explo­rar o mun­do. Sua vida muda ao con­hecer (e se casar com) aque­le que muitas vezes seria seu opos­to, Franklin, um típi­co norte-amer­i­cano enam­ora­do por seu próprio país.

    A opção de nar­rar as lem­branças de Eva por meio de epís­to­las já nos diz muito sobre a história da qual vamos com­par­til­har em Pre­cisamos falar sobre o Kevin, uma vez que essa escri­ta con­fes­sion­al parece a mais ade­qua­da para que a nar­rado­ra pontue sua cul­pa, seu remor­so e as con­cessões inde­v­i­das que Eva fez ao mari­do des­de que engravi­dara. Seu rela­to é pon­tu­a­do pelo silên­cio e pela resignação.

    Eva não que­ria, de fato, uma cri­ança, mas não pôde “negar” ao mari­do a von­tade de ter um reben­to em casa. Mes­mo durante a gravidez ela se sen­tia descon­fortáv­el, como se a cri­ança anu­lasse sua indi­vid­u­al­i­dade, sua fem­i­nil­i­dade, sua inde­pendên­cia e, pior, seu casamento.

    Capa Precisamos Falar sobre o Kevin
    Capa da primeira edição

    Des­de a ges­tação, Eva tra­va lutas silen­ciosas com seu fil­ho, em um cli­ma hos­til que per­du­ra por toda nar­ra­ti­va. O cli­ma de Pre­cisamos falar sobre o Kevin nun­ca é leve, e por vezes a leitu­ra dos acon­tec­i­men­tos choca, magoa, deman­da um respiro ao leitor.

    Isso porque as memórias de Eva são retomadas com sin­ceri­dade e bru­tal­i­dade extremas. É pos­sív­el acom­pan­har niti­da­mente cada pas­so erra­do e dado em fal­so pela família, e o oneroso peso que eles têm de pagar por isso. Kevin não é sociáv­el, não é uma cri­ança de desen­volvi­men­to nor­mal – os papéis muitas vezes se invertem e é ele quem força seus pais a crescerem, os provo­ca com sua apa­tia, ques­tiona-os enquan­to pais. A vio­lên­cia, a intran­sigên­cia e o vazio que partem de Kevin per­me­iam a história e é impos­sív­el ficar indifer­ente a ela.

    Nat­u­ral­mente é fácil obser­var os Khatch­adouri­an e tachá-los de cul­pa­dos ou de neg­li­gentes… Ago­ra, a história dessa família, até cer­to pon­to, não se afas­ta muito da nos­sa: quan­tas vezes, em nos­sas relações, não nos vemos força­dos a ced­er a con­tragos­to, a tomar par­tido, a optar por lados? Obvi­a­mente a história de Kevin é um rela­to extrema­do de uma atmos­fera doen­tia e prob­lemáti­ca, mas por isso mes­mo Pre­cisamos falar sobre o Kevin é um livro tão mar­cante – antes de se encer­rar sobre o tema dos assas­si­natos em si, ele se abre ao dialog­ar com nos­sas relações famil­iares, com nos­sos arran­jos soci­ais e com nos­sas crenças.