O mês de dezembro dá às caras trazendo em sua costumeira bagagem a época do ano em que histórias de amor, redenção e misericórdia pipocam por todos os lados. Ninguém consegue ficar imune – e duvido que, depois da capitalização do nascimento de Jesus Cristo, alguém tenha conseguido. Em meados de 1843, o escritor inglês Charles Dickens apresenta a jornada espiritual do avarento Ebenezer Scrooge em “Um Conto de Natal” (original “A Christmas Carol”). O conto foi sucesso instantâneo e eternizou a mágica transformação pessoal de um sujeito desprezível – mudança auxiliada diretamente pelos encantos natalinos. É também fruto do mês de dezembro a comovente história da “Pequena Vendedora de Fósforos”, escrita pelo conhecido Hans Christian Andersen. O conto narra a desventura de uma pobre menina que padece de frio, fome e solidão, enquanto o mundo terreno se refestela nas ceias de passagem do ano. A história serve para lembrar homens e mulheres da falta de empatia, solidariedade e caridade, princípios básicos do Natal. No universo artístico, muitos são os exemplos de odes natalinas, incluindo pinturas (a exemplo das obras de Di Cavalcanti, Anitta Malfatti, Goya, Rembrandt, Benjamin West) e músicas (como o CD “25 de dezembro”, da cantora brasileira Simone, que toca em looping eterno por todo o país).
Até mesmo esta coluna cultural foi arrebatada pelo “espírito de natal” ao adiar as impressões sobre um curta-metragem com temática de suspense/terror psicológico para falar da animação “O Natal do Burrinho”, produzida há 31 anos atrás pelo diretor gaúcho Otto Guerra e com co-direção de José Maia e Lancast Mota.
São rápidos cinco minutos para acompanhar a triste história de um burrinho solitário que vaga por terras desérticas. Logo nos primeiros segundos, uma melancólica trilha sonora acompanha a sorumbática caminhada do burrinho noite adentro. O animal guarda certa semelhança com Bisonho, personagem da turma do Ursinho Puff cujas feições cansadas parecem revelar torpor e um “ânimo exausto” – por mais que essa afirmativa soe uma contradição em termos.
Sozinho, o burrinho bebe água, chora no lago e dorme embaixo de uma árvore. A vida seguiria seu curso depressivo se não fosse por uma família que aparece no meio do deserto. Pai, mãe e bebê chamam a atenção do burro, que decide seguí-los e ajudá-los. Os rostos dessas pessoas não são visíveis, mas é possível distinguir os traços de José, Maria e Jesus em sua fuga para o Egito. Esse episódio é amplamente ilustrado nas artes e pode ser inferido no curta-metragem tanto pela indumentária das personagens quanto pela passagem de soldados romanos – representados pelos seus olhos raivosos e pelo estandarte com o acrônimo SPQR, frase latina que pode ser traduzida como “O Senado e o Povo Romano”.
Depois de enfrentar longas distâncias, tempestades de areia e frio, a família e o burrinho conseguem chegar ao destino final. Esse acontecimento transforma a vida do animal, lançando‑o para o encantamento dos finais felizes. No entanto, Otto Guerra nos surpreende com um desfecho inusitado que, em um átimo de segundo, levanta outro ponto importante: o quanto as “mudanças mágicas” são verdadeiras? Elas existem ou são objetos da necessidade ficcional, tão comum em épocas de fim de ciclo? A presença do burrinho soa como uma fábula disfarçada ou sem intenção. Mas está lá, oculta.
O Natal do Burrinho foi selecionado para os festivais de Bilbao (Espanha) e Oberhausen (Alemanha). Também conquistou o prêmio de melhor curta gaúcho no Festival de Gramado de 1984. Em uma época em que o estímulo à produção e circulação de obras nacionais não provocava inveja a ninguém, esbarrando na falta de incentivo, interesse e espaço – fato que, apesar de notáveis melhorias, permanece até hoje -, Otto Guerra e sua equipe apostaram na animação. Se a crença em fábulas for capaz de mudar a concepção dos financiadores e do público do cinema nacional, cabe uma dica: a história “O Cavalo e o Burro”, de Monteiro Lobato.
“Tudo ao meu redor são rostos familiares, lugares desgastados, faces desgastadas. (…) Os sonhos nos quais eu estou morrendo são os melhores que já tive”
(Mad World, composição do Tears for Fears na voz de Gary Jules).
Certos lugares são devastados por catástrofes naturais ou por extermínio bélico. Mas existe um tipo de desolação que chega sem alarde e se instala. Algumas vezes, ela nasce junto com o lugar. Há os que correm desesperadamente para fugir. E há os que ficam. O filme Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (original What’s Eating Gilbert Grape?), do diretor sueco Lasse Hallström, conta a história de um jovem que permaneceu no mesmo lugar, enterrado pela rotina de uma cidade onde o relógio parou.
Gilbert (Johnny Depp) vive em Endora, pequena cidade engolida pelo tempo. Depois do suicídio do pai, ele assume a responsabilidade pelo sustento da família. E não apenas isso: Gilbert vive integralmente para cuidar de seu irmão Arnie (Leonardo DiCaprio), um adolescente com problemas mentais, e de sua mãe (Darlene Cates), que sofre de obesidade mórbida. Há ainda duas irmãs, Amy (Laura Harrington) e Ellen (Mary Kate Schellhardt), criaturas atrapalhadas que tentam auxiliar Gilbert, mas acabam cobrando mais do que ajudando.
Trabalhando como faz-tudo em uma mercearia, Gilbert leva Arnie a todos os lugares. O grande evento do ano para os dois irmãos é a passagem de trailers pela estrada que cruza a cidade. Em uma dessas passagens, um dos veículos quebra e precisa permanecer na minúscula Endora por algum tempo. Esse simples fato fortuito é o ponto de transformação na cabeça de Gilbert, já que ele conhece Becky, garota viajada e cosmopolita, que acompanha a avó em excursões pelo país. Vivida pela atriz Juliette Lewis, Becky é o contraponto de Gilbert: enquanto o jovem tem olhos tristes, pesados pelas obrigações que nunca cessam e precisa conviver com sonhos acorrentados, a jovem é viva, intensa e efusiva. No lugar dos arroubos escandalosos, Becky oferece outro tipo de carpe diem: ela apresenta para Gilbert a imensidão de um mundo que está ali, expresso no pôr do sol ou na possibilidade de observar a poesia no invisível. Esse é um dos pontos interessantes do filme.
O enredo sem pirotecnia começa a ganhar o coração do espectador com a atuação sensacional de Leonardo DiCaprio. Os gritos e brincadeiras de Arnie arrancam emoções do peito e despertam o olhar para a existência interior de pessoas que fogem dos padrões considerados normais. As limitações mentais de Arnie não o impedem de sorrir, ser feliz e procurar o carinho incondicional do irmão. Pelo contrário: o espectador observa um adolescente que consegue viver em Endora sem que a monotonia da cidade o empurre para dentro do poço. Nesse caso, a ignorância do mundo funciona como uma benção. Indicado ao Oscar em 1994 na categoria de melhor ator coadjuvante, DiCaprio merece cada menção honrosa pela atuação. Ele alcança os gestos, olhares e padrões de comportamento de uma pessoa com deficiência mental. Na época com dezenove anos, o ator deixou muito veterano de queixo caído.
Na pele de Gilbert, Depp mostrou ser o homem ideal para viver o papel: os olhos melancólicos e pesados de responsabilidade; o jeito afável e dedicado com o qual tratava seu irmão e o desejo incessante de sair daquele lugar. Todas essas emoções ganharam contornos reais no rosto de Johnny Depp, que ainda não tinha sido possuído pelos trejeitos do famigerado capitão Jack Sparow, personagem que interpretaria uma década depois na série interminável Piratas do Caribe. Mais bonito do que nunca, Depp traz na expressão o desespero silencioso de Gilbert; sua inocência misturada ao comodismo e o medo de abandonar a sua benção e calvário: a própria família. Em Endora, a família Grape é a personificação da imobilidade da cidade: a mãe obesa que não sai de casa há sete anos; a própria residência da família, completamente imutável desde que foi construída pelo pai; a rejeição de Gilbert em conhecer o supermercado novo que abriu na cidade, ameaçando a sobrevivência do mercadinho em que trabalha, e a rotina de vida que leva: de casa para o trabalho e vice-versa. Sua única distração é o assédio constante da mulher do corretor Carver, a dona de casa Betty. Em uma das silenciosas crises existenciais de Gilbert, Betty revela qual é o motivo de querer manter um caso com ele, aumentando consideravelmente o caos interno do jovem Grape.
O longa metragem surpreende pela emoção sincera, dicotomias e dilemas que podem estar perto de nós. Muitas vezes, seguimos mecanicamente os dias porque estamos presos na confortável bolha da vida ou em obrigações pétreas que transformam nossas existências em buracos vazios sem direito à esperança. A felicidade de Arnie, seu modo alegre de viver, a “benção da ignorância” e a capacidade de recomeçar os dias sem remorso são um ponto alto na mudança de perspectiva. O baixo orçamento de Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador provou que existem emoções ocultas na epiderme humana que aguardam a oportunidade de vir à tona, e independem de altos investimentos. O cinema abre espaço para essa pulsação se manifestar.
No conto “O pescador e sua alma”, o escritor irlandês Oscar Wilde narra a dramática história de amor entre seres de dois mundos distintos: de um lado, o homem da terra que, consumido pela paixão, é capaz de abdicar da própria alma. Do outro, a encantadora sereia, figura mitológica que pertence ao mar. Depois de infinitos percalços e dores, o apaixonado pescador encontra a redenção através do amor.
Hans Christian Andersen, famoso criador de contos de fadas, também abordou a figura da sereia, apresentando‑a como uma criatura que ama e sofre em doses cavalares. Anos depois, adoçando consideravelmente a história, os estúdios Disney imortalizaram – e recriaram — a personagem de Andersen com o filme “A Pequena Sereia”, em que a jovem princesa Ariel, ruiva, espirituosa e travessa, vive querendo descobrir como é a vida fora do mar. Ela se apaixona perdidamente por um príncipe humano e seus problemas começam.
Em 2011, a pequena sereia ressurge sem enredos de amor; pelo contrário, ela é a atração macabra de um freak show circense comandado por um sujeito com aparência de Mágico de Oz. Esse é o pano de fundo de “A Pequena Sereia” (original The Little Mermaid), curta-metragem do diretor Nicholas Humphries em parceria com a roteirista Meagan Hotz, autora da versão.
As cenas iniciais do curta carregam nosso imaginário para dentro de um pântano abandonado, salpicado por luzes que balançam como pêndulos em meio à névoa. Uma sensação miasmática de horror e podridão começa a percorrer os olhos e descer até à garganta. Pássaros sobrevoam o lugar, passando como bólide pela tenda do circo de horrores erguida no meio do nada.
Dentro do anfiteatro em ruínas, uma dúzia de almas curiosas observam os movimentos de uma sereia dentro da diminuta banheira em que se encontra. Ao contrário da beleza estonteante imortalizada pelos contos de fadas, a sereia do circo é uma criatura híbrida: características humanas se misturam a elementos marinhos, como cauda e escamas. No lugar do rosto parnasiano, uma sequência de cortes que lembram guelras.
Diante da pequena plateia, constituída essencialmente de trabalhadores e pessoas simples, o sádico diretor do circo lança a semente da violência, brutalizando e ridicularizando a sereia. Um dos elementos mais interessantes do curta é a ausência completa de falas: todos os “diálogos” são realizados por meio de imagens visuais e comunicação corporal — no caso da sereia, o olhar significativo grita sozinho.
Diante da falta de compaixão do homem que a mantém prisioneira e da dor de ter seu coração esmagado pela indiferença, a sereia precisa descobrir uma forma de livrar-se dos constantes abusos, agarrando-se à ideia de liberdade.
No filme, o tom sépia enfatiza a nostalgia quente, refletida em um ambiente arruinado, mas que continua despertando interesse por conta da tentação humana em absorver o bizarro. Outro ponto que merece destaque – também pelo uso do sépia — é a aura de sensualidade que brota do desconhecido. A lenda do hipnótico canto da sereia também está presente no curta e tem sua primeira aparição escondida em uma cena. No momento em que o espectador a encontra, ele consegue dialogar com a criatura do mar.
Direcionando o olhar para o terror fantástico, Nicholas Humphries investe em efeitos visuais (luz, maquiagem e edição são primorosos) e na criação de uma atmosfera imaginativa e nebulosa. Para os fãs do escritor Stephen King e de séries como American Horror Story, o curta “A Pequena Sereia” é um verdadeiro banquete.
“Esta grande infelicidade, a de não estar só”, reveladora sentença do ensaísta francês La Bruyère (1645 ‑1696), foi escolhida pelo contista e poeta Edgar Allan Poe, mestre da “beleza mórbida” literária, para ilustrar o conto “O Homem da Multidão”. Publicada em 1840, a história narra as percepções feitas por um homem que observa o trânsito de pessoas na rua. A partir das características físicas, indumentárias e gestuais, o observador vai desnudando a identidade de personagens anônimos. Em dado momento, quando avista um sujeito idoso, com roupas que escondem requinte atrás da sujeira e movimentos ansiosos para se misturar à multidão das ruas, o narrador inicia uma louca perseguição. A cada novo passo, ele percebe que o “homem das multidões” recusa-se a estar só; seu maior desejo é perambular anonimamente entre a turba londrina.
Ser alguém sem nome e sem rosto no furacão coletivo, acalenta a consciência humana com uma falsa sensação de segurança, construindo um castelo de areia contra o medo da morte. A solidão e a morte andam de braços dados, tornando o indivíduo apenas uma partícula inexistente entre tantos organismos vivos. Esse é o sentimento de Almeida, personagem do curta-metragem O Dia M, dirigido por Paulo Leierer. Interpretado pelo ator Caco Ciocler, Almeida é um homem na casa dos trinta anos que descobre, através de exames laboratoriais, que seus dias de vida estão contados. Sozinho em sua casa, ele decide que precisa lidar com a situação e informar às pessoas próximas que está caminhando para a estrada do sono eterno.
No entanto, a notícia de sua morte não parece afetar absolutamente ninguém ao seu redor. Assim como o ‘homem da multidão’ de Poe, Almeida vai perambulando entre casas, ruas, pessoas e cemitérios, misturando-se ao cotidiano de rostos egoístas, cansados, amargurados e indiferentes. Lembrando a novela russa “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstói, mas sem sequer ter a presença confortante de um Gerassim, o solitário moribundo Almeida se vê às voltas com as máscaras humanas. Perto do leito de morte, ele está só. Completamente só.
Duas das cenas mais assombrosas do drama são espremidas na cara do espectador logo no começo do curta, quando Almeida vai à casa dos pais para anunciar sua morte e, em seguida, procura contratar os serviços de um despachante funerário. No meio da incredulidade furiosa do pai e do deboche sarcástico do despachante, Almeida encara silenciosamente a fragilidade de tudo o que imaginava ser e ter.
Vencedor de Melhor Curta no Hollywood Brazilian Film Festival – HBRFEST em 2009 e do Troféu Shoestring no Rochester Internacional Film Festival, também em 2009, O Dia M foi selecionado em inúmeros festivais nacionais e estrangeiros. A anônima trajetória de um homem que percorre a multidão e que deseja desesperadamente ser notado, pois o dia de seu adeus definitivo galopa a passos largos e ele estará mais solitário do que a própria morte, confronta o indivíduo com sua existência: Será que significamos alguma coisa? Alguém sentirá nossa ausência? Atravessaremos sozinhos o abismo da morte? Até que ponto a atomização do homem o faz querer ser partícipe do coletivo, para depois empurrá-lo para a condição real de solidão e esquecimento?
Essas são algumas das questões com as quais o curta-metragem indaga o espectador, dando firmeza à proposta do diretor Paulo Leierer e de toda a equipe. Destaque para a trilha sonora do filme, com a faixa “First Breath After Coma” (álbum The Earth is not a cold dead place), da banda americana de post rock Explosions in the Sky.
Visualmente, O Dia M lembra uma mistura das pinturas solitárias de Edward Hopper com as lúgubres visões da morte retratadas pelo nórdico Hugo Simberg. Ou, nas palavras do poeta Rainer Maria Rilke: “A solidão é como uma chuva. Ergue-se do mar ao encontro das noites; de planícies distantes e remotas sobe ao céu, que sempre a aguarda. E do céu tomba sobre a cidade. (…) Então, a solidão vai com os rios…”.
Boas energias, luz, calor humano e esperança integram o composto do álbum Above the Buried Cry, da banda de alternative/atmospheric rock Aeon Spoke. Falando assim até pode parecer clichê, mas o trabalho capitaneado pelo talentosíssimo guitarrista, compositor e vocalista Paul Masvidal, ao lado do seu fiel companheiro, o baterista Sean Reinert, não poderia ser diferente.
Os dois músicos em questão foram membros da banda Death durante a execução e turnê do álbum Human (1991), considerado um divisor de águas na carreira de uma das maiores bandas de Heavy Metal que já existiram em todos os tempos. Conta-se que Chuck Schuldiner, líder do Death, tentou dissuadir Paul Masvidal a não deixar o grupo, pois considerava‑o um guitarrista excepcional. Mas o fato aconteceu, levando Masvidal e Reinert a retomarem suas atividades com o Cynic, trabalho perene dos músicos.
Paralelo ao Cynic, o ano de 2000 fez emergir a primeira demo do Aeon Spoke, composta por seis faixas, culminando depois em um EP lançado em 2002 e radio sessions em 2003. No ano seguinte, o primeiro álbum da banda vem à tona com sete faixas (o material foi regravado em 2007). Above the Buried Cry introduz mensagens positivas e reflexões acerca do comportamento humano, o que vem a calhar com as crenças do porto-riqueno Paul Masvidal.
Nascido Pablo Alberto Masvidal, o músico cresceu em Miami, Flórida, e estudou música clássica e jazz desde os primeiros anos. Paul é envolvido com a filosofia Oriental e com tudo o que diz respeito à espiritualidade. Ele também é iniciado na prática do Kriya Yoga, expondo suas ideias/experiências nas letras de suas composições, que abarcam Cynic, Aeon Spoke, Portal e outros projetos paralelos.
Sean Reinert tem acompanhado Masvidal desde a década de 1980 e é considerado um proeminente baterista, escrevendo e apresentando performances em programas de televisão e filmes. Reinert parece ter a mesma filosofia de vida do seu amigo Paul, o que resultou em faixas como:
“No Answers”
A felicidade não está em respostas e deve ser procurada com otimismo.
“Grace”
Um pedido de fé bem ao estilo da doutrina oriental, onde paz e amor devem ser perseguidos constantemente.
“Silence”
Crença, desejo, amor, esperança e alusão, uma vez mais, ao sol como fonte de renovação/renascimento.
“Emmanuel”
Belíssima intro, é uma das faixas mais introspectivas do álbum. A música lança o ouvinte para uma irremediável conexão com uma natureza onírica, que se perde em cada nova nota. Minha faixa preferida!
Above the Buried Cry também traz “Pablo at the Park”, “Suicide Boy”, “Face the Wind”, “For Good”, “Nothing” e “Yellowman”, tudo dentro da linha “descubra-se e entregue-se”. De fato, pensamento pra lá de alternativo para um mundo cada vez mais egóico, manipulador e obcecado pela sede de poder. Mas a arte existe para isso: abrir, cativar e estimular consciências.
Muitos de nós, que lemos e relemos livros, assim como sites, blogs e tudo que concerne ao universo literário, costumamos manter o hábito de escrever cartas, artigos, e‑mails, matérias, trabalhos acadêmicos, recados rápidos em redes sociais, um tomo de 1.000 páginas do romance de estreia ou, simplesmente, um informativo para o mural da empresa – algo do tipo “Área reservada ao tempo-livre. Chefes de setores, favor respeitar” (ok, não custa imaginar). Enfim, as opções são extensas. Muitas vezes, nos perguntamos como nos tornar escritores melhores, mais rápidos, concisos, versáteis, criativos e interessantes.
Pois bem, dentre os cultuadores do totem Novas Tecnologias — tudo começou com o profeta Marshall McLuhan, não se culpem — existem aqueles que estão buscando novas formas de melhorar cada vez mais sua capacidade de escrever e produzir conteúdo. Jennifer Blanchard, uma copywriter profissional que até meados de 2013 mantinha o blog Procrastinating Writers, é uma dessas entusiastas e decidiu usar o twitter como prova de que 140 caracteres podem sim fazer de você um escritor melhor. No artigo How Twitter Makes You a Better Writer (Como o Twitter faz de você um escritor melhor), Blanchard dá algumas dicas e testemunhos de como uma rede social, louvada e/ou criticada — mas sempre analisada — nas faculdades de Comunicação ao redor do mundo pode dar um upgrade significativo nas suas habilidades de escrita.
Jennifer defende que o Twitter não é apenas um ótimo espaço para negócios e expansão de marcas, mas também o lugar ideal para organizar as habilidades para escrever. Segundo ela, o “Twitter força você a ser conciso”, ou seja, você precisa ser rápido, hábil e criativo com as palavras. O recurso te oferece apenas 140 caracteres para dizer tudo o que você precisa. “Isso não é um monte de espaço. Letras, números, símbolos, pontuação e espaços, todos contam como caracteres no Twitter”, reforça Jennifer. Você precisa dizer o que tem que dizer utilizando o menor número de palavras possível, o que te obriga a tomar decisões entre a imensidão de vocábulos a usar, reduzindo suas ideias ao essencial. A copywriter dá a entender que para os escritores verborrágicos, que costumam escrever laudas e laudas sem sair do preâmbulo, esboçar sentenças em 140 caracteres é um verdadeiro desafio. Dessa forma, o Twitter — quem diria? — te força a exercitar e ampliar o vocabulário que possui, impulsionando à procura de palavras e expressões novas “para dizer de modo melhor, claro e conciso” toda a mensagem que se quer passar.
O último argumento da autora versa sobre a possibilidade de melhorar as habilidades de edição através do Twitter. Para Jennifer Blanchard, todo autor deve ser capaz de editar seu próprio texto, e a ferramenta de 140 caracteres serve para deixar a capacidade de edição simplesmente excelente (top-notch). “É quase como jogar um jogo; tentar escrever uma mensagem de 140 caracteres e ainda obter seu ponto de vista de tal forma que inspire seus seguidores a tomar medidas como clicar no seu link ou retwittar seus posts”, afirma Blanchard.
A autora fala ainda sobre como o uso dessa rede social a força a pensar cada vez mais profundo dentro do seu vocabulário até encontrar um modo curto de dizer suas mensagens. Ela, que diz ser usuária do Twitter há algum tempo, revela que a ferramenta não só a tem ajudado a melhorar suas habilidades de escrita como também a realizar cópias (reproduções) de forma mais produtiva.
E você? Também acha que o uso do Twitter é útil para desenvolver habilidades e, ao contrário do que uma parte de pensadores contemporâneos argumenta, pode ajudar a melhorar nossa capacidade no que diz respeito à leitura, escrita, pensamento?
Uma das melhores sensações que eu tenho experimentado na partilha física e mental que acontece nas salas de cinema – basta observar como todos os espectadores parecem estar ligados minimamente pelos acontecimentos que transcorrem na tela – é perceber o exato momento em que um filme hipnotiza toda a plateia, alterando comportamentos e prendendo respirações. Esse é o pêndulo mesmerizador de Ida (2013), filme do diretor polonês Pawel Pawlikowski. O longa conquistou inúmeros prêmios, incluindo European Film Awards e Associação Americana dos Diretores de Fotografia, além de duas indicações ao Oscar 2015 nas categorias “Melhor filme em língua estrangeira” e “Melhor Fotografia”, vencendo na primeira.
Filmado em preto e branco, Ida revisita as máculas do Holocausto através da história de vida da noviça Anna (Agata Trzebuchowska) e sua recém-descoberta tia Wanda (Agata Kulesza). Antes de confirmar os votos no convento onde vive, Anna é enviada pela madre superiora à casa da tia, para que saiba mais sobre a própria vida e decida entrar para a comunidade religiosa de forma consciente. Para Anna, o mundo começa e termina nas paredes do convento e é com insatisfação resignada que ela vai ao encontro da tia.
Wanda é uma mulher dominada por fantasmas amargos, pelo vício do álcool, por amantes passageiros e um secreto histórico de tristezas. No passado, ela integrou a luta do movimento antinazista, tornando-se depois juíza e condenadora implacável dos torturadores/assassinos de judeus. Esse universo é extremamente oposto ao de Anna que, sem eufemismos, descobre que tudo o que conhecia sobre sua vida não passa de um rosário de mentiras. Na verdade, a noviça chama-se Ida Lebenstein e foi entregue na porta do convento quando ainda era bebê. Sem saber do paradeiro dos pais, Ida e a tia partem em busca de respostas; cada qual com suas angústias, medos e dores.
A história se passa em 1962, onde os resquícios da Segunda Guerra Mundial ainda despontavam como feridas abertas, fustigando os espíritos dos sobreviventes e de seus familiares. É nesse mundo novo que Ida mergulha com toda a sua inocência, experimentando a malícia e as chagas emocionais que fazem parte da história de sua família.
O longa-metragem faz uso de uma câmera quase estática, apostando em close-ups. Outro elemento interessante em Ida é a opção pelo formato 4:3 e em preto e branco, apesar da gravação com câmera digital, uma clara referência aos filmes em 16mm. Outra curiosidade é que o filme também foi convertido para película 35mm, sendo exibido nas poucas salas de cinema que ainda suportam esse tipo de película. Com fotografia de cair o queixo – assinada por Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal -, o longa revela a atmosfera silenciosa do interior de seus personagens, enfatizada também pela ausência de trilha sonora e passagens só com sons do ambiente. Como o público brasileiro – do qual posso falar baseada em minha vivência — não está acostumado com a linguagem do silêncio, é difícil manter uma constante em salas de exibição. Por isso, foi emocionante presenciar a interrupção imediata do frisar de sacos de pipoca, papéis de bombom, latas de refrigerante e murmúrios eternos. Naquela sessão, a plateia estava hipnotizada: Ida não faz ruídos, comunica-se pela atenção do olhar. É com esse andar sem deixar rastros que a jovem noviça aprende como lidar com a inocência que vai morrendo aos poucos.
Mistura de reflexão e memória, o filme consegue alcançar a poesia que não grita, não gesticula e não balbucia: ela expressa com olhares e não-ditos. Destaque para a atuação das atrizes Agata Trzebuchowska e Agata Kulesza, intérpretes de Ida e Wanda, respectivamente. Como iniciante, Trzebuchowska comprova seu empenho – que vai além da semelhança física com a atriz Sissy Spacek (conhecida pela atuação em “Carrie, A Estranha” – 1976). Já Agata Kulesza recria as dores de inúmeras mulheres judias, guerrilheiras ou não, que viram suas famílias serem despedaçadas pelo horror nazista e tiveram que olhar para o abismo, evitando mirar em seus próprios reflexos.
Um cortador de grama atravessa em ritmo monocórdio os imensos espaços de um gramado que brilha como móvel novo. Ao fundo, uma canção que nos faz lembrar dias bonitos e frases do tipo “a esperança nunca morre”. Imagens idílicas começam a se misturar até serem sumariamente quebradas pelo barulho do ventilador imerso em fumaça. Deitado em uma cama estreita, um homem fuma e transpira, transpira e fuma. Ao deixar seu santuário pessoal, ele vai de encontro à vida normal de cada dia. Uma vida de trabalho, de tédio, de cansaço, de madames lamentosas e sonhos que se perdem na fumaça do cigarro. No entanto, algumas ideias podem ser o começo de verdadeiras epifanias. É assim que o curta-metragem “Desejo” (2005) lança baforadas no rosto do espectador ao apresentar a história de um homem comum e suas cobiças construídas a partir do olhar fixo para o teto.
No curta, o porteiro Atanásio José (Wagner Moura) faz uma descoberta surpreendente em uma tarde tórrida e estimulante de glândulas sudoríparas. Deitado em sua cama, ele se deu conta da revelação que mudaria os rumos de sua vida, transformando‑o em um indivíduo realizado. Atanásio tinha agora uma obsessão: adentrar o Jockey Club Brasileiro (localizado na Gávea, bairro do Rio de Janeiro), considerado por ele o “santuário dos endinheirados”. Depois de conseguir a façanha, Atanásio saberia o que fazer – mas isso pouca importava. Para chegar ao ponto final da jornada, ele precisaria da ajuda do cunhado, Edmilson André (Lázaro Ramos), responsável pelos cuidados com o gramado do Jockey e considerado por Atanásio como um homem “direito, quieto, honesto e trabalhador – tudo isso até demais”. Preso nessa relação de causa e efeito, o porteiro faz a travessia dos seus dias sem esquecer por um momento da obsessão com o cunhado, o cortador de grama e o Jockey Club.
Com roteiro e direção de Anne Pinheiro Guimarães, “Desejo” remonta aos textos do citado Charles Bukowski e traz à beira da praia nomes como Henry Miller e Nelson Rodrigues, conectando a vida do sujeito ordinário aos devaneios que o fazem resistir, sobreviver e elaborar de um modo menos limitado a sua existência. A narrativa em off é utilizada durante todo o curta e abre espaço para a mistura entre a linguagem fílmica e literária, soprando no ar figuras irônicas, sarcásticas, ácidas e humanas.
Da clássica música “What a Wonderful World” — perpetuada na voz de Louis Armstrong – até o afamado “Melô do Piri Piri”, da popular cantora e casadoura Gretchen, “Desejo” vai além das epifanias do porteiro Atanásio e mostra que o mundo pode ter lá suas maravilhas – se a descobrirmos do nosso jeito.
Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar. (…) E não adianta vir me dedetizar. Pois nem o DDT pode assim me exterminar. Porque você mata uma e vem outra em meu lugar.
Raul Seixas em “Mosca na Sopa”
Sinônimo de incômodo e desprezo, a mosca é um dos insetos mais rechaçados do convívio social. Ela transtorna reuniões familiares, importuna tradições de ordem e controle, desnuda as estruturas assépticas. A mosca na sopa, personificação adotada pelo compositor e músico brasileiro Raul Seixas, é uma anarquista pública e notória: sua presença é hostilizada, mas independe de aceitação; por mais que seja intimidada, violentada, aprisionada e degolada, ela volta em múltiplos pares. E é com tamanha persistência e deboche que elas, as famigeradas moscas, comunicam sua mensagem.
No final da década 1970, as moscas também marcavam presença física e metafórica em território brasileiro. Para os agentes da ditadura militar, todo e qualquer elemento subversivo que atentasse contra a ordem, o governo e o trinômio “tradição – família – propriedade”, deveria ser sumariamente extinto. Naqueles anos de portas fechadas, entre a periferia de Recife e Olinda, cidades do Nordeste brasileiro, o diretor Hilton Lacerda ambientou a história de uma trupe de artistas que criava um universo próprio de irreverência, zombaria e autoria no teatro-cabaré Chão de Estrelas, criação inspirada pelo grupo de teatro Vivencial Diversiones, que existiu entre 1972 e 1981.
Na ficção, o sistema protocolar de regras, ordens, hierarquia e disciplina do sistema militar, exercia influência angustiante em um tímido recruta nascido e criado no interior de Pernambuco, tornando-lhe penoso e mortífero o dever de sustentar uma máscara que mal lhe cabe no rosto. Esse é o fio condutor da pólvora que explode em “Tatuagem” (Brasil, 2013), filme do cineasta pernambucano Hilton Lacerda em sua estreia como diretor depois de longa experiência como roteirista. A trama traz como pano de fundo o romance entre o agitador cultural e performer Clécio Wanderley, interpretado pelo ator Irandhir Santos, e o soldado raso Arlindo Araújo, conhecido como Fininha, personagem vivido por Jesuíta Barbosa.
“Tatuagem” fala de resistência política, criação explosiva, anarquista, debochada, livre; é uma afirmação do espaço daqueles que são esmagados por uma conjuntura armada, mas que resistem, queimam, renovam. Na trama, Chão de Estrelas nasce no seio da periferia, epígrafe acentuada no início do longa-metragem com a fala de Clécio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela”, em clara referência aos internacionalmente conhecidos, cultuados e caros ambientes de apresentação artística e corporal da época. É nesse perímetro de reinvenções que o diretor Hilton Lacerda detém o olhar, criando uma narrativa audaciosa.
Clécio e Fininha se conhecem por meio de Paulete (Rodrigo Garcia), irmão da então namorada do recruta. Enquanto Clécio dirigia um espetáculo debochado, Fininha vivia aprisionado nos ditames do quartel, detalhe exposto logo nos minutos iniciais, com a visão do rapaz enquadrado pelas barras dos beliches — efeito criado pela utilização do movimento de zoom-out. O envolvimento desse casal improvável, vai descortinando uma nova visualização e entendimento do mundo, abrindo espaço para as sensibilidades de dois universos distintos. Rodeado pela liberdade em todos os sentidos, Fininha vai, aos poucos, sentindo seu corpo como parte do processo artístico e vivencial que explode no teatro do Chão de Estrelas. Assim como o mitológico canto da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encantar o jovem recruta, mostrando-lhe um ambiente de troca de relações bem mais autêntico do que costumava vivenciar.
Cena do filme “Tatuagem” mostrando o “aprisionamento” de Fininha
No filme, o “cair da noite” assume uma simbologia extremamente importante ao abrir novas pontes de resistência. Pontes que podem ser observadas no público que frequenta o teatro-cabaré, formado por homossexuais, simpatizantes, militantes da luta de classes e intelectuais esquerdistas – esta última figura é adotada pelo professor Joubert (Sílvio Restiffe) e seus poemas de cunho político e libertário, além da sua produção experimental, feita com uma câmera Super‑8, direcionada para registrar os momentos marcantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estrelas. É através da noite, do erotismo, da luxúria escancarada, do cuspe anárquico em forma de performances ousadas com o corpo e a linguagem, que “Tatuagem” vai traçando novas rotas de peregrinação de forma arrojada.
O diretor Hilton Lacerda vem de uma longa caminhada como roteirista, trazendo na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parceria com o cineasta Cláudio Assis, e “Cartola – Música para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Ferreira. A energia em construir detalhes faz a assinatura de Lacerda um diferencial palpável em “Tatuagem”.
A opção por contar a história de amor entre dois homens ganha contornos autênticos: Clécio e Fininha dividem o afeto íntimo com os espectadores; o romance – claro, direto, cru – não está ali apenas para inquietar os que ainda desviam o olhar diante das cenas de beijo ou de sexo entre dois homens; o amor homossexual e o choque de vivências que ele representa (o agitador cultural e o militar) ultrapassam a acomodação da militância padronizada: nessa relação de polos opostos está o grito dos amores, grupos, movimentos, pensamentos, vidas e sentimentos rotulados como periféricos. É esse o elemento de pulsão levantando por “Tatuagem”, levando à derrocada da hegemonia das instituições sagradas e do desfile dos triunfantes. Para o palco e o público do Chão de Estrelas, não há lugar para preconceitos, não há mártires para castrações. O que existe no cabaré-teatro é o rompimento de tradições; um lugar onde múltiplas jornadas não se chocam, mas se complementam, tendo como exemplo máximo a figura de Clécio: diretor, poeta, agitador, anarquista, amante e pai.
A liberdade e a vivência consciente também estão presentes no conceito de família apresentando no filme. Tuca — fruto do relacionamento do agitador cultural com Deusa, mãe solteira, adepta dos mesmos ideais — circula livremente pelas dependências do cabaré, observando os trabalhos de produção do pai. Em uma cena significativa, Clécio pede à Deusa que não traga mais o menino ao cabaré pois aquele “não é lugar para criança”. Nesse gancho, a mãe responde que “não há lugar adequado, e sim educação adequada”, fazendo referência direta a um modelo educacional que aposta na liberdade, consciência e tolerância.
Toda essa provocação clara e subversiva deixa rastros pelo filme e encontra outra forte representante com a personagem Paulete. É na alegria do escândalo que Paulete alimenta o sonho de ser ator reconhecido, dando mais vida ao longa-metragem com suas piadas espirituosas, seus berros e gestos corporais esfuziantes. É difícil destacar uma única cena dramatizada pelo ator Rodrigo García na pele de Paulete: ele consegue fazer os holofotes circularem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despudoradas ou caras e bocas risíveis. García tem o poder de transformar a caricatura do artista gay transvestido em indumentárias femininas, em uma verdadeira metamorfose artística.
Há muita intensidade e autenticidade em “Tatuagem” – fato que rendeu sucesso de crítica, prêmios e menções honrosas para o filme e seus atores. Mais uma prova de que rotas alternativas são possíveis, tanto no âmbito do pensamento quanto na ação. O audiovisual brasileiro precisa de olhares diferenciais, novas linguagens, desafios, posturas e riscos, não só da parte dos produtores, mas também de espectadores. Cinema é feito de sensibilidades e da persistência de “moscas” que não se intimidam com o que está dito e feito, trazendo para si a tarefa de questionar a naturalização do mundo. Construir panoramas é como tatuar a pele: na marca eternizada, passado, presente e futuro se comunicam em um mesmo traço. E é no caminho que percorre esse traço que está o novo.
Louis Aragon (1897 – 1982), poeta, editor e romancista francês, expressou como “os homens vivem” no poema que carrega a força desses versos:
(…)
Eram tempos insanos,
Tínhamos posto os mortos à mesa
Fazíamos castelos de areia
Confundíamos lobos com cães
Apropriando-se do poema, nossas falecidas memórias voltam do passado como uma visão fantasmagórica, triunfante e ameaçadora, que olha ao redor para se certificar de sua onipresença. A insegurança e a vontade incontrolável de lembrar, salvar e regular tudo nos torna construtores e plateia de uma História documentada, cujo efeito de real seja imanente. Durante séculos, esse raciocínio foi seguido pela necessidade de diferenciar rigidamente “fato e ficção”, “mito e história”, “real e imaginário”. A narrativa historiográfica passou por longas fases de restrição, limitada ao positivismo, às exigências de vestígios e documentos. Separar história e literatura como dois entes de planetas opostos foi o primeiro passo para determinar caminhos, impor sentidos, fixar padrões. Ao analisar o pensamento de Gilles Deleuze (1925–1995) sobre a linguagem literária e o de-fora, o autor brasileiro Roberto Machado traz à tona a ideia que o francês possuía sobre a escrita como “uma tentativa de libertar a vida daquilo que a aprisiona, é procurar uma saída, encontrar novas possibilidades, novas potências de vida”. Se continuamos a todo instante pondo nossos mortos à mesa, por que ignorar a estreita relação entre linguagem histórica e ficcional?
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, que faleceu em abril deste ano em consequência de complicações geradas pelo câncer, criou um novo sentido para o envelhecer por meio do protagonista de “Memória de minhas putas tristes”, livro lançado em 2005 e divulgado no Brasil pela editora Record em 2008, com tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se da emblemática história de um senhor no auge dos seus noventa anos que, completamente perdido em uma vida comum, sem amores, sem expectativas, sem ânsias e desejos, se vê às voltas com a desordem que só sentimentos como o amor podem acarretar. O sábio decide comemorar sua entrada em uma nova década na companhia de uma moça, ninfeta e virgem. Para isso, entra em contato com uma antiga conhecida, a cafetina Rosa Cabarcas, e encomenda a menina.
Em todo o texto, a mistura de realidade e ficção é um dos pontos altos, levando o leitor a questionar: É possível sentir saudades do que você nunca viveu? Como resistir a um tempo de começo, meio e fim, atribuindo-lhe sentidos que, muitas vezes, o próprio tempo desconhece? O historiador Hayden White entende as narrativas históricas como ficções verbais. Para ele, o historiador “não pode mais ignorar a estreita relação entre história e mito. A história não é uma ciência porque não é realista, o discurso histórico não apreende um mundo exterior, porque o real é produzido pelo discurso”. White afirma que o historiador produz “construções poéticas”, sendo a linguagem o elemento que constitui sentido. Para ele, é inegável a influência do estilo literário do autor na escrita historiográfica, bem como dos recursos estilísticos empregados para destacar posicionamentos e seleções. Como retoma o teórico, os acontecimentos são neutros, isto é, não trazem em si nenhuma carga valorativa. No entanto, são convertidos em trágicos, emocionantes, cômicos, românticos ou irônicos pelo próprio enredo atribuído.
Para o nonagenário criado por García Márquez, atravessar décadas de fatos históricos e registrados não significa absorvê-los de uma única forma; em toda a trama, o velho homem é refamiliarizado com os acontecimentos vividos por meio de suas lembranças. A forma como o mundo se descortinou diante dos seus olhos quase centenários é vista de modo interpretativo, e não metódico e projetado. Essa mesma atmosfera pode ser sentida nos contos do italiano Antonio Tabucchi (1943–2012), reunidos no sugestivo livro “O tempo envelhece depressa” (2009), e no romance “Enquanto Agonizo” (1930), do norte-americano William Faulkner (1897–1962). Apesar de investirem em linguagens narrativas diferentes, as duas obras tocam a mesma questão no que diz respeito à memória e a construção de diferentes pontos de vista. É essa disputa entre relato e subjetividade que traça o contorno da narrativa histórica. A união entre história e literatura permite “delírios significativos”, epifanias que abrem espaço para o pensamento escapar do sistema dominante. O imaginário traz uma carga devastadora que parece sondar o vazio, enxergar nas trevas e escutar através dos portões fechados.
A “imanência”, termo usado por Deleuze, está em descobrir-se além das cortinas; é não ter medo, por exemplo, de se perder nos labirintos de ilusão de óptica criados por M. C. Escher (1898–1972) ou na beleza mórbida das pinturas do polonês Zdzislaw Beksinski (1929–2005) e seus humanos-esqueletos, árvores retorcidas e ambientes cercados pela névoa. É saber reconhecer traços da história na expressão subjetiva.
A união da literatura e da história abre caminho para ver através das palavras, transformar pensamento em sensação e ser capaz de traçar linhas de fuga. Os sentidos da história não são neutros, objetivos e rigorosamente científicos. Eles são fluidos, optam por pontes e descobrem novas rotas. É preciso ter coragem para reconhecer que as “coisas têm dimensões que são intrínsecas ao valor que damos”, e que mascarar esse fato — como se tal atitude fosse crucial para manter a zona de conforto – só abre mais espaços, mais abismos, mais fossos. Como lembraria o jornalista e escritor brasileiro Daniel Piza (1970–2011): “Quanto mais escravizado pelo costume, mais o homem sonha com o clarão salvador”. Portanto, coragem! Vamos colocar nossos mortos à mesa e oferecer o banquete.
O buraco do espelho está fechado, agora eu tenho que ficar agora. Fui pelo abandono abandonado, aqui dentro do lado de fora.
O trecho acima faz parte da música “O Buraco do Espelho”, do cantor e compositor brasileiro Arnaldo Antunes. A canção integra a trilha sonora do filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), um retrato duro, ácido e humanamente cruel sobre a realidade vivenciada pelos internos de hospitais psiquiátricos. Dirigido pela cineasta Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolognesi, “Bicho de Sete Cabeças” narra a história de um jovem internado pelo pai em um manicômio depois de ter sido flagrado com cigarros de maconha. O enredo foi baseado no livro “Canto dos Malditos”, uma autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno (1957–2008), ex-interno de uma instituição manicomial e, como muitos outros, vítima dos abusos, espancamentos e torturas comumente praticados nesse tipo de lugar.
No longa-metragem, Neto (protagonizado pelo ator Rodrigo Santoro) é um jovem de classe média baixa que vive conflitos familiares por não se enquadrar no padrão de comportamento socialmente aceito, irritando especialmente seu pai (vivido por Othon Bastos). Atravessando uma fase associada à rebeldia, Neto gosta de andar de skate, pichar muros, usar brincos e cabelos compridos, fato que a figura paterna não aceita e oprime. A ausência de diálogo e a repressão desmedida resultam no estremecimento da comunicação entre pai e filho, levando-os à constante troca de acusações e rompantes de agressividade. A contínua tensão e desconfiança faz com que Wilson, pai de Neto, decida internar o filho em um hospício depois de encontrar cigarros de maconha entre os pertences do rapaz. A partir desse momento, a vida de Neto transforma-se em um verdadeiro abismo esquecido dentro do inferno.
Encarcerado contra sua vontade, o jovem também é ignorado pelo psiquiatra da instituição, profissional que raramente aparece no lugar e cuja única preocupação é conseguir financiamento, ainda que isso signifique capturar e internar pessoas indiscriminadamente. O padecimento de Neto e dos outros internos ocorre das mais diferentes formas, seja por meio de drogas anestésicas e de substâncias como o metilfenidato, conhecido como “sossega leão”; ou da torturante “camisa de força”, colete que aprisiona os membros superiores; bem como através de tratamentos com Eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente chamados de eletrochoques. Além dos tormentos físicos, os “pacientes-prisioneiros” são humilhados, hostilizados, barbarizados e esquecidos, sofrendo forte coação de médicos e enfermeiros, e sentindo a indiferença e preconceito vindos da própria família. São seres humanos estigmatizados, coisificados e transformados em personagens invisíveis, perdendo sua liberdade, dignidade, autonomia e subjetividade.
A cicatriz da internação psiquiátrica cobra seu preço, e mesmo depois de liberado, Neto não consegue se adaptar ao modelo imposto pela sociedade e pela família, e é novamente encarcerado no hospício. O rapaz só consegue sair após incendiar a cela em que está e, finalmente, chamar a atenção do pai. No desfecho do filme, acompanhamos Neto envelhecido pelo sofrimento e pela dor. Depois de tudo o que enfrentou, o rapaz transforma-se em uma sombra de si mesmo, angustiado como o quadro “O grito” (1893), de Edvard Munch; desencantado como o grito de ‘Nunca mais’, do poema “O Corvo” (1845), de Edgar Allan Poe, e abatido como as composições derradeiras do compositor clássico alemão Robert Schumann.
Premiado em festivais nacionais e internacionais, “Bicho de Sete Cabeças” possui uma atmosfera que combina cinematográfico e documental, evidenciada pela naturalidade dos diálogos e atuação dos atores. O tema também fortalece a luta antimanicomial ao apontar a dor e a desintegração encontradas em espaços que controlam e reprimem para — tomando de empréstimo a expressão cunhada pelo filósofo e pesquisador francês Michel Foucault — transformar subjetividades humanas em “corpos disciplinados, corpos dóceis”. Por não fazer parte do enquadramento social e comportamento imposto pelas redes microbianas de poder, Neto foi aprisionado, castigado e submetido a mecanismos de remodelação.
Situações como as do protagonista do filme — de não adaptação aos parâmetros estabelecidos — também fizeram com que muitas mulheres fossem sentenciadas à internação em instituições asilares, como o Hospício do Juquery. O estudo detalhado de Maria Clementina Pereira Cunha em livros (O espelho do mundo. Juquery, a história de um asilo – 1986), artigos (De historiadoras, brasileiras e escandinavas: Loucuras, folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX)) e pesquisas mostra que a imposição de padrões ditos normais para o comportamento feminino exercia papel decisivo na internação psiquiátrica. Assim como a personagem do filme “Bicho de Sete Cabeças”, as mulheres que estavam fora do padrão social esperado eram consideradas inadequadas e, dessa forma, obrigadas à correção exemplar.
A imposição do padrão de normalidade, difundida com toda força pelos discursos de natureza médica de menos de um século atrás, foi utilizada dentro dos hospitais psiquiátricos para justificar internações e ações arbitrárias. Além do grupo feminino, os demais marginalizados – pessoas pobres, miseráveis, moradores de cortiços, operários, mendigos e todos os que subvertiam a ordem estabelecida – eram considerados propensos à devassidão, perversão, loucura e criminalidade.
Outro ponto interessante devidamente representado no longa-metragem de Laís Bodanzky diz respeito à figura do psiquiatra como autoridade competente, atestada cientificamente para produzir discursos autorizados. No início de sua internação, Neto questiona enfermeiros sobre o fato de estar ali, afirmando que eles não poderiam mantê-lo internado, pois não estava doente. Um dos enfermeiros afirma a Neto que os pais do jovem já tinham conversado com o médico e explicado toda a situação. No prontuário de Neto constava que ele era um rapaz “agressivo, rebelde, que não respeitava seus pais, mesmo tendo muito amor e diálogo em casa”, ou seja, o jovem já estava fichado e rotulado assim que entrou no hospício, e nada do que dissesse ou fizesse modificaria ou atenuaria sua situação. Neto perdeu a autonomia, sua capacidade de decidir e sua liberdade de ir e vir. Como expressa Alfredo Naffah Neto em artigo intitulado ‘O estigma da loucura e a perda da autonomia’:
Desde o instante em que o estigma da loucura lhe foi imputado, é como se no lugar do sujeito aparecesse a doença mental; então, o discurso e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias, tornando-se apenas sintomas da doença.
Dessa forma, aqueles que são marcados com o estigma da loucura são considerados incapazes – jurídica, social e emocionalmente – de decidir sobre o seu próprio destino. Nas palavras de Naffah Neto: “O louco é transformado num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico”. Na literatura, o poder discricionário das autoridades médicas, “científicas e competentes”, pode ser observado no conto “Só vim telefonar”, do autor colombiano Gabriel García Márquez, e no conto-novela “O Alienista”, do escritor brasileiro Machado de Assis. De diferentes maneiras, ambos tratam de questionar a visão do saber médico como discurso incontestável, capaz de manipular, subjugar e aniquilar identidades. Tanto o hospício como a prisão atuam como instituições de disciplina e controle, criando novas modalidades de fiscalização e domínio justificadas pela legitimidade científica.
Em artigo intitulado “Loucura e Criminalidade: Desvendando os mistérios das moralidades anômalas”, Felipe da Cunha Lopes e Ítalo Cristiano Silva e Souza discorrem sobre a associação entre loucura e criminalidade feita pelo discurso médico teresinense entre as décadas de 1870 e final da década de 1930. Segundo o artigo, os articulistas que escreviam para jornais piauienses da época associavam loucura à prática de crimes, alegando a existência da insanidade em criminosos e da criminalidade em loucos (baseados na teoria da degenerescência). Com base nessa ideia, percebe-se a “problematização da loucura em função da virtualidade criminosa”. Os autores do artigo lembram que “(…) a psiquiatria foi uma das principais ferramentas utilizadas para justificar e elaborar estratégias de controle e transformação do comportamento do homem em sociedade”. Assim, a medicina transformou-se em ferramenta indispensável para manter dispositivos de controle social.
O regime de verdade e a imposição de uma suposta normalidade exigem tributos caros; preço que é pago a sangue e alma por um número inestimável de pessoas que foram e continuam sendo excluídas, trancafiadas e esquecidas. Os exemplos de desrespeito e invisibilidade extrapolam páginas de livros e dados de pesquisas. Eles estão marcados no coração dos sobreviventes do Hospício de Barbacena (MG), do Juquery e muitas outras instituições de controle e domínio.
Dez anos. Esse foi o tempo que durou a parceria entre o ilustrador Eduardo Baptistão e o jornalista Daniel Piza. Durante esse período, Baptistão foi responsável pelas ilustrações da coluna Sinopse, assinada por Piza e publicada aos domingos no Caderno 2 do jornal Estadão (Estado de S. Paulo).
Premiado dentro e fora do Brasil, Baptistão é dono de um traço inconfundível, instigante e lúdico, característica que impactou Daniel Piza. Gentilmente, Eduardo abriu seu arquivo pessoal para compartilhar com todos os leitores e leitoras do interrogAção algumas das ilustrações que fez de Piza.
Confira também as impressões do ilustrador sobre a parceria de uma década:
Começo da parceria
Daniel já havia trabalhado no Estadão no início dos anos 1990, depois passou pela Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil. Voltou ao Estadão em 2000 como editor executivo e colunista de cultura e esportes. No início da publicação — uma coluna semanal no Caderno 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jornal o estilo que mais se adaptava à ideia que tinha, e acabou optando pelo meu. Durante todo o período em que publicou a coluna Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domingos em que eu não a ilustrei. Nessas ocasiões, em que eu estava em férias ou de folga em algum feriado, quem normalmente me substituía era o meu amigo e colega Carlinhos Muller. Coube ao Carlinhos, por sinal, ilustrar a última coluna que Daniel escreveu, pois eu cumpria a folga de Natal.
Daniel Piza no dia a dia
Daniel gostava de conversar. Por ser um cara muito culto e informado, eram sempre ótimos papos! Não éramos íntimos a ponto de abordar assuntos pessoais, mas sempre trocávamos ideias sobre a coluna, sobre o tema proposto e, muitas vezes, eu lhe perguntava se tinha alguma imagem em mente para a coluna da semana. Ele sempre confiou na minha interpretação e me deu carta branca para criar. Em vez de enviar o texto por e‑mail, coisa que raramente fazia, Daniel preferia levar o texto impresso até a minha mesa, e sempre fazia algum comentário sobre o assunto principal da coluna. Nessas ocasiões, eram também comuns as conversas sobre futebol, paixão que tínhamos em comum, embora fôssemos “rivais” – ele corintiano, eu palmeirense. Cheguei a jogar futebol com ele muitas vezes, nas peladas noturnas organizadas pelo pessoal da redação. Daniel tinha muito bom domínio de bola e vocação de artilheiro – mas, devo dizer, isso era facilitado pelo fato de jogar sempre “na banheira” [posição de impedimento].
Repercussão das ilustrações
É difícil falar sobre a repercussão das ilustrações, porque raramente eu tinha algum retorno do público sobre elas. De maneira geral, os leitores comentavam muito as colunas, mas eram raríssimos os comentários sobre as ilustrações. Lembro de um desenho, de um filho correndo em direção ao pai sentado no chão, que fiz para uma coluna sobre o dia dos pais, em que um leitor se declarou emocionado não só pelo texto, mas também pela imagem.
Traços marcantes de Daniel Piza
Algumas colunas do Daniel eram escritas tão em primeira pessoa que me sugeriam usar a figura dele como personagem da ilustração. Mas, nessas ocasiões, eu optava por apenas sugerir o Daniel nos desenhos, sem me preocupar muito com a semelhança. No conjunto de ilustrações que fiz para a coluna ao longo do tempo, foram muitas em que o Daniel aparecia de alguma forma.
O que mais admirava no Daniel era a versatilidade e a produção caudalosa. Era notável a sua capacidade de escrever sobre qualquer assunto, do futebol à culinária, da arquitetura à religião, da política à ciência. E era notável também a quantidade absurda de colunas, reportagens, resenhas, artigos e livros que ele escrevia, assim como a quantidade de livros lidos, de shows, concertos, peças e filmes assistidos e de discos ouvidos para produzir às vezes uma única coluna! Eu sempre o usava como referência, pelo tanto que ele produziu em tão poucos anos de vida em comparação comigo, quatro anos mais velho e infinitamente menos produtivo. Mas eu acredito que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, acima da média.
Veja abaixo as ilustrações criadas pelo Eduardo Baptistão de Daniel Piza:
“Have you run your fingers down the wall and have you felt your neck skin crawl when you’re searching for the light? Sometimes when you’re scared to take a look at the corner of the room, you’ve sensed that something’s watching you.”
(Você já correu seus dedos pela parede e sentiu a pele da sua nuca arrepiar quando está procurando pela luz? Algumas vezes, quando você está com medo de olhar no canto da sala, você sente que alguma coisa está lhe observando. – tradução livre).
Na música “Fear of the Dark”, composta pela idolatrada banda Iron Maiden, o medo do escuro consome, gera angústia e provoca o atormentado protagonista, que passa a apresentar uma fobia incontrolável. Para ele, a ausência de luz revela o pavor impalpável e arrepiante da “certeza de que há alguém lá”, escondido nas sombras. Essa mesma ideia está presente no livro “Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado” (editora Bagaço, 2007, 127 páginas), coletânea de relatos, contos e causos selecionados por Roberto Beltrão. Os acontecimentos fazem referência à cidade de Recife, capital de Pernambuco, conhecida no país como palco de fenômenos sobrenaturais e atividades fantasmagóricas.
A ideia da coletânea nasceu da paixão de três jovens amigos pelo assunto, impulsionados pela leitura do livro “Assombrações do Recife Velho”, de Gilberto Freyre. Na época, os rapazes estavam planejando publicar um jornal ou escrever um livro sobre o tema, mas o assunto foi abafado com o passar do tempo. No entanto, no início de 2000, a temática voltou à tona com força total na vida do trio, resultando na criação do site O Recife Assombrado, espaço onde os internautas podem colaborar com depoimentos, contos e narrativas de ficção sobre experiências inexplicáveis.
Em 2002, o site foi indicado pelo instituto iBEST como um dos dez melhores sites produzidos em Pernambuco. No espaço, os contos ficam lado a lado com quadrinhos, relatos, narrativas em áudio e links de vídeos. Todo esse material foi selecionado pelo jornalista Roberto Beltrão, um dos rapazes do trio, e publicado como coletânea.
“Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado” mistura a ficção do universo literário (contos) com relatos de testemunhas, identificadas ou não. Entre lendas urbanas, estórias e ficções, o leitor entra em contato com o universo intangível da vida após a morte, tema que continua impressionando e perturbando o homem.
Muito antes do predomínio do cinema, televisão, rádio e internet, as narrativas orais eram responsáveis pela construção do conhecimento e das experiências, repassadas de geração em geração. Na roda de conversas, criaturas medonhas exerciam papel essencial na hora de “educar” crianças, reprimindo-as. Causos como “o velho do saco” (sujeito que rapta e come crianças), “a loira do banheiro” (aparição que escolhe banheiros escolares para se materializar) e a “perna cabeluda” (perna licantropa que agride transeuntes em plena madrugada) eram repassados de boca em boca, deixando os pequenos, assim como os marmanjos, aterrorizados. Atividades mediúnicas, como a conhecida “brincadeira do copo” (uma suposta invocação de espíritos) são transmitidas até hoje entre grupos, causando grande frisson. Fantasmas, chamados muitas vezes de ‘almas penadas’, ainda são os campeões de audiência no que se refere a relatos fantásticos.
Residências mal assombradas, sons de gritos, choros, ranger de dentes, vultos bruxuleantes e mortais apavorados com a possibilidade de contato com o além estão entre as narrativas espalhadas pelo livro de Beltrão. Há sempre um espírito inconformado para fazer companhia a moradores apavorados. Dentre os relatos e contos, destaque para Casarão de Setúbal, O baú, O prédio do Espinheiro, A casa, O caseiro e Madrugada no quartel, por retratarem histórias de manifestações paranormais fazendo associação a objetos e lugares. A série Haunted Collector, veiculada pelo canal de TV por assinatura Syfy, aborda exatamente essa conexão entre matéria (físico, corpo) e energia (espírito, metafísica).
Na parte abertamente ficcional, não pude deixar de notar a semelhança entre o conto “O demônio e a rosa”, escrito por Liliane Batista de Moura, com a ficção de Robert Louis Stevenson (1850–1894) em “Janet do pescoço torcido” (Thrawn Janet). Stevenson ficou conhecido mundialmente pela novela “O médico e o monstro” (The strange case of Doctor Jekyll and Mister Hyde), publicada em 1886.
“Janet do pescoço torcido” e “O demônio e a rosa” falam sobre mulheres amaldiçoadas por fazerem pacto com o demônio, cuja aparência e comportamento remetem a um estado “morto-vivo”, que enche de horror todos os que se aproximam. A semelhança entre Rosa e Janet é grande, desde o acidente que sofrem até a aparência física que adquirem.
Em “Vírginia”, o conto chama a atenção pelo caráter ultrarromântico, onde é possível localizar características como fuga da realidade para o mundo da fantasia, idealização da mulher amada, escapismo e consciência da solidão. O narrador nunca chegou a conhecer Virgínia, mulher por quem se apaixonou, já que a moça morreu muitos anos antes. Ao olhar seu retrato em uma lápide no cemitério, o protagonista começa a imaginar a morta e desejá-la. A consequência desse amor transcende explicações razoáveis e culmina em atividades paranormais.
“Histórias Medonhas” é interessante, divertido e, antes de provocar terror ou espanto, incita a imaginação do leitor. São histórias de criaturas bizarras e almas penadas que começam a causar palpitações na infância, seguindo para outras fases da vida com maior ou menor intensidade. O mistério da morte ainda obceca o homem, desafiando sua pretensão de explicar, à luz da ciência, todos os fenômenos que o cercam.
Para quem é fascinado pelas histórias de Edgar Allan Poe, Robert Louis Stevenson, Charles Dickens, Álvares de Azevedo, Guy de Maupassant e Henry James, as páginas de “Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado” vão conseguir atrair, divertir ou, quem sabe, assombrar.
O silêncio que pesa, arrasta e guarda, transformando a ausência de palavras em uma curva mística, enevoada. Essa descrição é uma das possibilidades de “Décimo Segundo” (2007), trabalho do diretor pernambucano Leonardo Lacca. Premiado em território nacional e internacional, o curta-metragem traz um recurso ainda pouco utilizado na linguagem cinematográfica brasileira: o silêncio.
As cenas avançam em direção a dois protagonistas, um homem e uma mulher, que parecem estar em um palco cercado por cortinas que abrem e fecham simultaneamente. Acompanhamos a chegada do homem e de suas malas a um determinado apartamento, e logo somos surpreendidos por uma referência clara ao filme “Estrada Perdida” (Lost Highway), do cineasta David Lynch. A clássica voz soturna que solta no interfone “Dick Laurent is dead” (Dick Laurent está morto), presente no filme de Lynch, também está no curta, acompanhando até mesmo o número exato de toques na campainha. Essa alusão é percebida como um jogo pessoal entre o casal, já que a mulher também faz uma brincadeira com seu visitante, ao esconder as malas que ele deixa no elevador.
O reencontro do casal, com o abraço do homem em sua anfitriã feito de forma intensa e ao mesmo tempo constrangida, é um dos fragmentos do não-dito, da ponte que vai nos possibilitando entrar na mente dos personagens. Os close-ups, o plano-sequência, a câmera na mão — tremendo calada como a própria história – e o efeito intimista de todo o enredo permitem criar canais de proximidade entre personagem e espectador. Por meio das frases engasgadas, surgem indagações curiosas sobre o casal que se encara de olhos baixos. Como testemunhas onipresentes, passamos a nos perguntar: “quem são essas pessoas?”, “elas foram amantes?”, “como e quando tudo terminou?”, além de notar que a importância do que acontece ali reside, na verdade, no ambiente fora-de-cena.
Décimo Segundo cria constrangimentos, distâncias e expressões abafadas. Vivida pela atriz e diretora teatral Rita Carelli, a anfitriã do curta parece conseguir superar melhor a invasão do passado, personificada pela presença do homem que está ali na sua frente, com o olhar perdido. Na pele do visitante tímido, o ator pernambucano Irandhir Santos ganha força e brilho ao conseguir reproduzir todo o embaraço do reencontro. Premiado por sua atuação no longa “Tatuagem” (2013), Irandhir reforçou o elenco de várias produções nacionais, como as conhecidas “Tropa de Elite 2” (2010) e “O som ao redor” (2012). O ator integrou o elenco da Rede Globo nas minisséries “A Pedra do Reino” (2007) e “Amores Roubados” (2014), e atualmente dá vida ao personagem Zelão, o capataz analfabeto que se apaixonada pela bela e meiga professora na novela “Meu Pedacinho de Chão”.
Assim como as enigmáticas pinturas do francês Alphonse Osbert (1857–1939), dissolvidas no isolamento de luzes e névoas misteriosas, Décimo Segundo vai descortinando a anatomia do silêncio, suas possibilidades e dimensões, e deixa a cargo do expectador a travessia – ou não – para o interior dos personagens, suas revoluções, emoções e sensações.
Em novembro de 2000, o jornalista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) concedeu uma entrevista direta e polêmica ao apresentador do programa Provocações (TV Cultura), Antônio Abujamra.
Nela, Daniel Piza fala sobre a prática do jornalismo cultural no Brasil e sua descaracterização: “O jornalismo cultural, em geral, é o jornalismo que eles chamam de variedades. Então, é a pequena reseinha [resenha] do último disco pop que saiu na Inglaterra, ou uma entrevista pingue-pongue com algum ator de Hollywood. Isso é o que chamam de jornalismo cultural no Brasil”, dispara.
Piza destaca que o público brasileiro tem “medo de opinião, medo de discussão, um público que prefere o populismo, o ‘da boca pra fora’, do que realmente você discutir coisas que tenham a ver, que façam sentido, que digam respeito à qualidade”.
As declarações do jornalista possuem um tom controverso, mas eruditamente fundamentado, estilo que acompanhou Daniel Piza durante toda sua carreira. Essa é uma das características marcantes nas reflexões e discursos que permeiam o trabalho de Piza, reconhecido como um dos maiores nomes do jornalismo cultural brasileiro. Reconhecimento e valorização que continuam após sua morte precoce, ocorrida no final de 2011.
“E a rachadura na xícara de chá abre uma trilha para a terra dos mortos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partindo dessa imagem, percebemos uma alameda silenciosa e intrincada de caos, dúvidas e inseguranças invadindo o rotineiro e confortável espaço social, personificado pela figura de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem volta, pois penetra no estado de espírito de um grupo, nação ou comunidade, desnudando simulações e fazendo cair máscaras. Esse é o cenário esboçado pelo filme Dogville (2003), dirigido pelo diretor dinamarquês Lars von Trier, e cuja temática será objeto de mapeamento, reflexão e análise no que concerne ao imaginário material da cidade e dos personagens fictícios.
A história do longa-metragem se passa em uma vila chamada Dogville, habitada por pessoas simples, com anseios modestos e sem perspectivas de mudança. Situado entre montanhas, o vilarejo tem pouquíssimo contato com o mundo exterior, isolando os moradores aos limites do lugar. A rotina mecanizada de Dogville reflete em uma comunidade acomodada, sem capacidade criativa e completamente entorpecida. Um de seus moradores, o aspirante a escritor Tom Edison (interpretado pelo ator Paul Bettany), avoca para si a autoridade de “líder-comunitário” e tenta inserir novas ideias e discussões no seio da comunidade.
Em um dado momento, a empoeirada vila é tomada de assalto pela presença de Grace (vivida pela atriz Nicole Kidman), forasteira que chega furtivamente à Dogville. Tom é o primeiro a ter contato com Grace, intercedendo por ela perante os outros membros do grupo. Depois de uma assembleia, fica decidido que Grace terá duas semanas para conquistar a confiança do povoado e, sugestionada por Tom, a forasteira decide oferecer sua ajuda aos habitantes.
A “rachadura na xícara”, iniciada com o aparecimento de Grace, se estende durante toda a sequência do filme, dividido em nove capítulos. No decorrer da trama, mudanças substanciais acontecem no pequeno vilarejo e o ar de felicidade idílica dá lugar à nuvem de fumaça densa, fúnebre e tenebrosa. A população de Dogville começa mostrando medo e desconfiança em relação à permanência de Grace na cidade, modificando o pensamento pouco depois, já que todos os quinze habitantes estavam sendo beneficiados pelo trabalho da forasteira. O enredo segue até revelar a verdadeira face de Dogville: de amigos acolhedores, os habitantes passam a predadores vorazes, tratando Grace como objeto, esmagando sua identidade, desumanizando‑a.
Para entender como se dá a construção do imaginário material da cidade e de seus habitantes, cabe destacar a aposta do diretor Lars von Trier em um estilo cinematográfico híbrido, em que figuram elementos teatrais e literários. Com essa mistura, as noções de real e irreal se entrelaçam e subvertem os modelos padrões, alterando também a percepção de verdadeiro e falso. O longa-metragem apresenta características do teatro grego (instiga o desejo do espectador pela violência crua), teatro do absurdo (interação dos atores com objetos imaginários), bem como a ausência de fundo musical. Outro fator decisivo na construção do filme é a utilização de cenários destacados no chão, marcando a presença de cada habitante no ambiente um do outro, e o uso de paredes pretas (teatro caixa-preta), valorizando assim um formato mais intimista, voltado à dramaticidade e tensão.
A falta de “distrações cênicas” permite que o espectador concentre a atenção nas relações que se embaraçam e desembaraçam na cadeia dos acontecimentos. Dessa forma, observa-se a construção de Dogville como uma cidade parada no tempo, vítima de sua própria amargura e solidão. A cultura da repetição, mediocridade e imutabilidade toma conta do pequeno espaço, afogando os moradores em uma espécie de torpor cego. Presos em ideias fixas, eles não conseguem enxergar além dos seus próprios muros, e mesmo integrando o todo — representado pelo espaço comunitário — os membros de Dogville não se reconhecem como indivíduos.
Os moradores perdem a maior parte das horas do dia em suas atividades cotidianas, cuja única orientação vem do badalo monocórdio do sino da igreja, administrado por uma habitante da vila, já que nenhum padre jamais apareceu no local. Dentre os habitantes, estão casais infelizes e apáticos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e educar os filhos; fabricantes de objetos e produtos sem qualidade, mas que logram em cima da comunidade através de preços exorbitantes (família Henson e senhora Ginger); homens hipocondríacos ou que se recusam a aceitar a enfermidade (dois extremos, representados pelo ex-médico Thomas Edison, pai do autointitulado escritor Tom, e o irascível cego McKay); além do transportador de carga (Ben) que frequenta prostíbulos e tenta esconder o fato por vergonha, e a faxineira solitária e sua filha deficiente.
Em um primeiro momento, a inércia bucólica do lugar encanta Grace que, cansada de fugir de suposta máfia, faz tudo para permanecer no local. Quando os habitantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a desconhecida tem de ser entregue à polícia ou aos mafiosos, há uma ruptura gradativa no modo de tratamento. De “recém-integrante” do espaço comunitário, a forasteira se transforma em escrava física e sexual, sendo explorada de todas as maneiras possíveis.
A partir desse ponto, Dogville começa a se construída como “cidade do cão”, onde pessoas agem por instinto animalesco de poder e controle, forçando Grace a ser um de seus objetos. Toda a mesquinharia da cidade é camuflada pela afirmação medonha dos habitantes de que “só queremos o seu bem” ou “não gostaríamos de fazer isso com você”, representando a imagem do algoz que açoita e flagela, alegando que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a barbárie perpetrada pela Santa Inquisição contra supostos hereges e o contínuo massacre étnico e religioso cometido nas terras do Oriente Médio, por exemplo).
O ideal conservador, tradicionalista e pacato da cidade camufla o medo da mudança que assola o íntimo dos moradores, deixando-os capazes de qualquer selvageria para conservar a atmosfera inerte e o comodismo. No imaginário dos moradores de Dogville, a cidade funciona perfeitamente bem, integrada por ideais democráticos e solidários de manutenção de valores tradicionais e familiares. Mas com a chegada de Grace, o espectador começa a acompanhar o declínio moral e social da vila; ruínas que estavam escondidas na cegueira da cidade, em sua natureza amorfa e imutável.
Ao penetrar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace transforma-se no dedo em riste, uma espécie de questionamento vivo às imagens construídas sobre a vila e seus habitantes. As certezas de Tom Edison começam a ser removidas, revelando ao próprio “escritor” que a última coisa que ele gostaria que acontecesse era passar por mudanças ou confrontar sua vida. Por outro lado, Grace prova através de suas ações e reações diante de todas as brutalidades das quais é vítima que “não estar morto não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaísta E.E Cummings. A criatividade e humanidade da jovem forasteira lembram à Dogville como a vila é pequena em espírito, limitada geograficamente, trancafiada em um mosaico de rotinas, perfeitamente adaptada e estabilizada em situações que sequer conhece ou entende.
Compreendendo o imaginário como a cultura de um grupo, percebe-se a desconstrução das imagens de Dogville, desnudando o caráter tirânico de pessoas catatônicas, incapazes de lidar com rupturas. A vila imaginária de Lars von Trier é um emblema das grandes cidades e sua “filosofia do absurdo”, onde a individualidade se perde no meio de relações superficiais e a sede do “poder de vida e de morte” afugenta sentimentos, criando hierarquias.
Para superar tamanho desgaste, Grace faz referência ao estoicismo e sua ética do “imperturbável, extirpação das paixões e aceitação resignada do destino” como forma de atingir à sabedoria. Dores, sofrimentos e infortúnios são esquecidos e personificados na imagem de uma mulher doce, meiga, com voz açucarada e capaz de suportar as adversidades. A construção dessa imagem faz referência a aceitação da sociedade atual, silenciosa e cativa, subjugada por “poderes microscópicos”, expressão cunhada pelo pensador francês Michel Foucault, que dominam, martirizam e devastam sua existência.
Dogville remonta imagens do nosso quadro social, assassino de individualidades e tomado por mesquinharias. Como os habitantes desse pequeno povoado esquecido, alimentamos a ideia de que somos formados por “justiça, igualdade e fraternidade”, escondendo o rosto ao desumanizar e estigmatizar o outro. A caricatura do covarde personagem Tom Edison mostra o lado intragável do medo de encarar inseguranças e mudanças, da submissão a uma ordem social imposta, do ideal de fetiche gregário e da ação instintiva, com a busca da satisfação de necessidades físicas e dos próprios interesses.
O desfecho do filme, trágico e intenso – a exemplo da dramaturgia grega -, apresenta imagens dicotômicas e míticas, presentes no imaginário social. Inicialmente concebida como Prometeu, titã mitológico que, guiado pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civilização e as artes e é amaldiçoado por Júpiter (Zeus), sendo severamente castigado, Grace vai assumindo a forma do quadro de Goya (Saturno devorando seu filho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.
Dogville é formada por símbolos de apreensão do real, emblema de imagens que são transformadas em pessoas, sentimentos, situações e coisas. Os personagens da “cidade do cão” são metáforas que unem objetividade e subjetividade. Refletir sobre o imaginário é compreender sua importância na construção da realidade e na formação da identidade humana, em toda sua inquietação e complexidade.
A cineasta paulista Juliana Rojas tem conquistado destaque no cenário cinematográfico brasileiro com o curta-metragem “O Duplo” (2012), trabalho premiado em Cannes e em diversos festivais nacionais e estrangeiros. Na trama, a professora Silvia (Sabrina Greve) é confrontada com a imagem de seu duplo, uma espécie de clone soturno e negativo, e entra em colapso. A história toma por base o mito europeu conhecido como Doppelgänger, que é considerado um sinal nada auspicioso. Segundo a lenda, quem vê seu duplo enfrenta o risco de maus presságios e morte iminente.
A história do curta foi baseada em um depoimento real sobre a aparição do Doppelgänger, fato registrado no começo do filme e que dá o pontapé inicial para abrir as comportas do universo fantástico e das fábulas de horror, assinatura de Juliana. Assim como em “Lençol Branco” (2004) e “Um Ramo” (2007), trabalhos produzidos em parceria com o diretor Marco Dutra, a cineasta concilia com precisão a trivialidade da vida de mulheres que, abruptamente desestabilizadas, precisam lidar de forma pavorosa com elementos surreais ligados ao macabro e à transformação física ou mental.
As imagens envelhecidas e com tonalidade marrom de “O Duplo” fortalecem a aura silenciosa e sinistra que cerca a escola, espaço principal dos acontecimentos. Ao encarar o seu clone maligno, os olhos da professora Silvia ganham um brilho novo, algo que se move com a ferocidade e carnificina de um tubarão-branco. Há elementos de horror e tensão espalhados do começo ao fim dos vinte e cinco minutos do curta, com destaque para a apocalíptica cena em que a personagem da atriz Gilda Nomacce, presença marcante nas produções de Rojas, estica e puxa o elástico de uma pasta de forma frenética e perturbadora. Nestes poucos segundos que parecem durar uma eternidade, há a certeza absoluta do desfecho trágico. Simplesmente fenomenal!
“O Duplo” faz emergir a qualidade de um trabalho que explora o terror e o fantástico de forma consistente, dando força a um gênero ainda pouco difundido entre as produções nacionais.
Se a dor da invisibilidade está por trás de uma doença social, parte da cura está em tornar-se visível.
O trecho acima dá a tônica do livro “O mistério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis” (editora Papirus, 2006, págs. 192), escrito pelo jornalista Gilberto Dimenstein, conhecido por atuar em importantes veículos de comunicação brasileiros e idealizar projetos sociais e culturais, dentre eles o Cidade Escola Aprendiz e o site cultural Catraca Livre. Fincada em investigações jornalísticas e registros de viagens, ordenados como um diário pessoal, a obra percorre o universo de seres humanos marginalizados, rejeitados e excluídos da teia social. O jornalista faz emergir a dolorosa sobrevivência de homens, mulheres e crianças que, ignorados e evitados por uma sociedade cega e cancerígena, não se sentem parte do mundo, membros efetivos de um lugar.
Entre os excluídos estão prostitutas, viciados, traficantes, mães adolescentes, meninos de rua, crianças exploradas e escravizadas sexualmente, portadores do vírus HIV e chefes de facções criminosas. Por meio da narrativa em primeira pessoa, intercalada pelas vozes das personagens de cada história verídica, acompanhamos relatos que chocam, depoimentos que machucam e dados estatísticos espantosamente reais.
Gilberto Dimenstein fala sobre os paradoxos encontrados nas mais diferentes regiões brasileiras, onde bolsões de miséria contrastam com mansões suntuosas. Se de um lado, meninas são obrigadas a leiloar sua virgindade para continuarem vivas, no outro extremo há filhos de latifundiários dispostos a pagar peso de ouro para “desvirginar” crianças de doze anos. Enquanto pessoas vivem em meio a restos de comida, excrementos e drogas, completamente entorpecidas pelo uso do narcótico, a força policial espanca, hostiliza e mata.
Os exemplos de desrespeito e invisibilidade são muitos: crianças escravizadas para o mercado do sexo, adolescentes jurados de morte por chefes do tráfico, bebês espancados até a morte por pais desequilibrados, internos torturados dentro de instituições repressoras, portadores da AIDS tratados com preconceito e aversão. Essas são algumas das realidades descortinadas pelo jornalista, mostrando que por trás das fachadas megalomaníacas da famosa Avenida Paulista, localizada na maior metrópole brasileira, escondem-se histórias de indivíduos que há muito tempo esqueceram-se de sua condição de pessoa humana, tendo o direito à cidadania cotidianamente usurpado.
No entanto, ao lado da tragédia, Dimenstein também aborda as “pontes de resistência” criadas por pessoas cujo objetivo é transformar a injusta e deprimente realidade em algo melhor. Tendo como armas a persistência, teimosia e amor ao próximo, voluntários se reúnem doando tempo e recursos para mudar a vida de outras pessoas. O livro elenca exemplos de projetos que nasceram dentro de favelas, organizações não governamentais de apoio as mais variadas causas, cidadãos anônimos que não esperaram financiamento governamental para investir em jovens e adolescentes em situações de risco social, entre muitos outros.
A arte, a música, a poesia, a educação e o trabalho se transformam em refúgio, proporcionando reflexão e mudança. Se, como propõe a obra de Gilberto Dimenstein, a violência está diretamente ligada à sensação de marginalidade e invisibilidade, esse é o ponto de partida para a mudança que faz nascer o sentimento de pertença e reconhecimento do outro como ser humano, que partilha dos mesmos direitos e deveres. A cooperação faz parte do desenvolvimento humano e social, equilibrando e proporcionando condições justas.
“O mistério das bolas de gude” esboça novas rotas e propostas para a reconquista da cidadania, bem tão caro para pessoas em situação de risco, além de trazer à tona temas delicados e necessários. O livro peca pelo deslumbramento inocente que Gilberto Dimenstein apresenta ao escrever sobre os exemplos de sucesso norte-americanos – observados no período em que o jornalista foi correspondente do jornal Folha de São Paulo em Nova York –, bem como a ausência de críticas às práticas nada igualitárias de instituições e grupos brasileiros que detém o poder e manipulam o aparelho estatal; organismos estes que financiam o tráfico, exploram a mão de obra trabalhadora e fecham os olhos para todos aqueles que não fazem parte da engrenagem imposta, transformando o que está fora do jogo em meras peças invisíveis.
Um trauma emocional é o tipo de veneno com grande concentração de substâncias mortíferas. Agindo internamente e induzindo a um grande sofrimento, o trauma quase sempre vem acompanhado de estados físicos ou psíquicos lesionados pelo tempo e pelas vivências negativas acumuladas. Sorrateiramente, ele vai crescendo em dimensões e poder destrutivo, e tal qual uma epidemia, é difícil extirpá-lo.
Retalhos de diferentes traumas compõem a obra “Boneco de Neve” (original Snømannen, tradução de Grete Skevik, editora Record, 2013, págs. 420), sétimo livro da série “inspetor Harry Hole”, trabalho do escritor, músico e economista norueguês Jo Nesbø. Aclamado na Europa e em franca ascensão pelo mundo, Nesbø já vendeu mais de 20 milhões de livros, conquistando o Prêmio Glass Key como melhor romance nórdico de 1998.
Na obra “Boneco de Neve”, o terror psicológico dos thrillers policiais lançados pelo autor norueguês retorna com força total, personificado agora pela presença do assassino em série que, antes de sumir com as vítimas, deixa um “simpático” bonequinho feito de gelo em frente ao local em que comete os sequestros. O lunático costuma atacar sempre quando cai a primeira neve do ano, agindo dentro de um padrão. Descobrir que tipo de linha de ação e quais são os modelos (e segredos) que orientam o serial killer é tarefa do problemático inspetor Harry Hole.
Marcado pelas trágicas lembranças de um passado tumultuado, Hole amarga o rompimento de um relacionamento, a morte de amigos em missão, o definhamento da mãe em um leito de hospital, além de situações familiares complicadas e a dependência do álcool. Quando donas de casa começam a desaparecer misteriosamente, com a posterior desova de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o traumatizado inspetor começa a medir pistas, contando com a ajuda da policial Katrine Bratt, recém-integrada à corporação em que Harry é lotado.
A trama é estruturada com idas e vindas na ordem cronológica, além de digressões dos personagens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A narrativa é intensa, repleta de picos de tensão, misturando elementos macabros e perturbadores, mas sem apelar para a escatologia visceral de livros como “O Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis. O grande trunfo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enigma ao desafiar a percepção do leitor; a todo o momento, o senso de observação é colocado à prova, pois cada detalhe revela mais – ou menos – do que aparenta.
Confesso que antes de começar a leitura, subestimei o emblema do boneco de neve como assinatura de um assassino perverso. Ligada à figura do ‘homem de gelo’ como metáfora natalina próxima do universo infantil, não consegui perceber de imediato que nessa escolha também reside uma pista importante. De objeto lúdico à marca de crime, a imagem do boneco atravessa ciclos diferentes, que ajudam a compreender um pouco do universo que o autor apresentou.
Seguindo o ritmo frenético da obra, deslumbrei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e continuassem em marcha, afinal, são 420 páginas vorazes. Interessante notar que a descrição física do policial Harry Hole me fez supor que a personagem pode se tratar de um alter ego de Jo Nesbø, pois as associações são imediatas. Fora isso, Nesbø criou uma espécie de “certidão pessoal e profissional” para o protagonista de suas séries, com direito a descrições de personalidade, curriculum vitae, interesses, ambições e planos futuros. Gostei de descobrir que estou ligada ao detetive atormentado pelo gosto musical (Sex Pistols e Neil Young) e pela ambição pessoal, que consiste em entender o que é a maldade e o amor.
Comparado pelo jornal britânico The Sunday Times ao influente “O silêncio dos inocentes”, do escritor Thomas Harris, a carnificina silenciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a penetrar em uma versão moderna do mitológico labirinto de Dédalo, onde uma besta movida por emoções humanas sequestra e aniquila suas vítimas, deixando um rastro silencioso de terror. Jo Nesbø cativa o leitor ao trazer o diabólico e a redenção lado a lado, em capítulos que pulsam, dilatam e escondem. Uma dica preciosa: esteja atento aos mínimos detalhes e símbolos espalhados em toda a narrativa. Como escreveu o dramaturgo William Shakespeare na peça “Macbeth”: “Pelo comichar do meu polegar, sei que deste lado vem vindo um malvado”.
Assista o book trailer sensacional do livro (versão do Reino Unido):
“Não estar morto não é estar vivo”. O aforismo de E.E Cummings, poeta e ensaísta norte-americano, traduz em palavras o véu que cobre homens e mulheres formados pelo mosaico de rotinas, perfeitamente adaptados e estabilizados em situações que sequer conhecem ou entendem. Quando acontece uma ruptura no modo de vida já petrificado, a comunidade entra em catatonia.
A animação “Wind” (2012), criada pelo designer e ilustrador Robert Löbel, emerge essa panorâmica. O curta traz o dia-a-dia de uma população que vive em um local inóspito, assolado por uma ventania infindável. Todas as atividades, ações e comportamentos do grupo circulam em torno dos ventos fortes. Como a condição climática é aceita sem questionamentos, a rotina é lançada ao ar, feito folha seca guiada sem direção.
No entanto, repentinamente o vendaval cessa e a população, atônita, é descaracterizada. Como o barman vai servir os clientes sem o auxílio do vento? Sobreviverão os cortes de cabelo padronizados sem a tempestade de ar? Ao que a animação indica, parece que não.
“Wind” é o resultado do projeto final de graduação de Robert Löbel na Universidade de Ciências Aplicadas de Hamburgo, conquistando mais de 18 prêmios internacionais. Além disso, a produção leva na bagagem indicações em festivais de várias partes do mundo. A animação é feita sem diálogos, com traços limpos e deliciosamente irônicos e lúdicos, deixando como mensagem uma pergunta sem rodeios: Se a humanidade é feita de comodismo e resignação, somos ou não guiados pela mão fatalista do destino?