Author: Mara Vanessa Torres

  • O Natal do Burrinho (1984), de Otto Guerra | Curta

    O Natal do Burrinho (1984), de Otto Guerra | Curta

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    O mês de dezem­bro dá às caras trazen­do em sua cos­tumeira bagagem a época do ano em que histórias de amor, redenção e mis­er­icór­dia pipocam por todos os lados. Ninguém con­segue ficar imune – e duvi­do que, depois da cap­i­tal­iza­ção do nasci­men­to de Jesus Cristo, alguém ten­ha con­segui­do. Em mea­d­os de 1843, o escritor inglês Charles Dick­ens apre­sen­ta a jor­na­da espir­i­tu­al do avar­en­to Ebenez­er Scrooge em “Um Con­to de Natal” (orig­i­nal “A Christ­mas Car­ol”). O con­to foi suces­so instan­tâ­neo e eterni­zou a mág­i­ca trans­for­mação pes­soal de um sujeito desprezív­el – mudança aux­il­i­a­da dire­ta­mente pelos encan­tos natal­i­nos. É tam­bém fru­to do mês de dezem­bro a comovente história da “Peque­na Vende­do­ra de Fós­foros”, escri­ta pelo con­heci­do Hans Chris­t­ian Ander­sen. O con­to nar­ra a desven­tu­ra de uma pobre meni­na que padece de frio, fome e solidão, enquan­to o mun­do ter­reno se refestela nas ceias de pas­sagem do ano. A história serve para lem­brar home­ns e mul­heres da fal­ta de empa­tia, sol­i­dariedade e cari­dade, princí­pios bási­cos do Natal. No uni­ver­so artís­ti­co, muitos são os exem­p­los de odes natali­nas, incluin­do pin­turas (a exem­p­lo das obras de Di Cav­al­can­ti, Anit­ta Mal­fat­ti, Goya, Rem­brandt, Ben­jamin West) e músi­cas (como o CD25 de dezem­bro”, da can­to­ra brasileira Simone, que toca em loop­ing eter­no por todo o país).

    Até mes­mo esta col­u­na cul­tur­al foi arrebata­da pelo “espíri­to de natal” ao adi­ar as impressões sobre um cur­ta-metragem com temáti­ca de suspense/terror psi­cológi­co para falar da ani­mação “O Natal do Bur­rin­ho”, pro­duzi­da há 31 anos atrás pelo dire­tor gaú­cho Otto Guer­ra e com co-direção de José Maia e Lan­cast Mota.

    Otto Guerra (Foto: Maurício Capelarri)
    Otto Guer­ra (Foto: Mau­rí­cio Capelarri)

    São rápi­dos cin­co min­u­tos para acom­pan­har a triste história de um bur­rin­ho solitário que vaga por ter­ras desér­ti­cas. Logo nos primeiros segun­dos, uma melancóli­ca tril­ha sono­ra acom­pan­ha a sorum­báti­ca cam­in­ha­da do bur­rin­ho noite aden­tro. O ani­mal guar­da cer­ta semel­hança com Bison­ho, per­son­agem da tur­ma do Ursin­ho Puff cujas feições cansadas pare­cem rev­e­lar tor­por e um “âni­mo exaus­to” – por mais que essa afir­ma­ti­va soe uma con­tradição em termos.

    Soz­in­ho, o bur­rin­ho bebe água, cho­ra no lago e dorme embaixo de uma árvore. A vida seguiria seu cur­so depres­si­vo se não fos­se por uma família que aparece no meio do deser­to. Pai, mãe e bebê chamam a atenção do bur­ro, que decide seguí-los e ajudá-los. Os ros­tos dessas pes­soas não são visíveis, mas é pos­sív­el dis­tin­guir os traços de José, Maria e Jesus em sua fuga para o Egi­to. Esse episó­dio é ampla­mente ilustra­do nas artes e pode ser inferi­do no cur­ta-metragem tan­to pela indu­men­tária das per­son­agens quan­to pela pas­sagem de sol­da­dos romanos – rep­re­sen­ta­dos pelos seus olhos raivosos e pelo estandarte com o acrôn­i­mo SPQR, frase lati­na que pode ser traduzi­da como “O Sena­do e o Povo Romano”.

    Pintura "The Nativity of Christ", de Vladimir Borovikovsky
    Pin­tu­ra “The Nativ­i­ty of Christ”, de Vladimir Borovikovsky

    Depois de enfrentar lon­gas dis­tân­cias, tem­pes­tades de areia e frio, a família e o bur­rin­ho con­seguem chegar ao des­ti­no final. Esse acon­tec­i­men­to trans­for­ma a vida do ani­mal, lançando‑o para o encan­ta­men­to dos finais felizes. No entan­to, Otto Guer­ra nos sur­preende com um des­fe­cho inusi­ta­do que, em um áti­mo de segun­do, lev­an­ta out­ro pon­to impor­tante: o quan­to as “mudanças mág­i­cas” são ver­dadeiras? Elas exis­tem ou são obje­tos da neces­si­dade fic­cional, tão comum em épocas de fim de ciclo? A pre­sença do bur­rin­ho soa como uma fábu­la dis­farça­da ou sem intenção. Mas está lá, oculta.

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    O Natal do Bur­rin­ho foi sele­ciona­do para os fes­ti­vais de Bil­bao (Espan­ha) e Ober­hausen (Ale­man­ha). Tam­bém con­quis­tou o prêmio de mel­hor cur­ta gaú­cho no Fes­ti­val de Gra­ma­do de 1984. Em uma época em que o estí­mu­lo à pro­dução e cir­cu­lação de obras nacionais não provo­ca­va inve­ja a ninguém, esbar­ran­do na fal­ta de incen­ti­vo, inter­esse e espaço – fato que, ape­sar de notáveis mel­ho­rias, per­manece até hoje -, Otto Guer­ra e sua equipe apos­taram na ani­mação. Se a crença em fábu­las for capaz de mudar a con­cepção dos finan­ciadores e do públi­co do cin­e­ma nacional, cabe uma dica: a história “O Cav­a­lo e o Bur­ro”, de Mon­teiro Lobato.

    Assista ao cur­ta com­ple­to abaixo:

  • Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993), de Lasse Hallström | Crítica

    Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993), de Lasse Hallström | Crítica

    Tudo ao meu redor são ros­tos famil­iares, lugares des­gas­ta­dos, faces des­gas­tadas. (…) Os son­hos nos quais eu estou mor­ren­do são os mel­hores que já tive”
    (Mad World, com­posição do Tears for Fears na voz de Gary Jules).

    gilbert-grape-lasse-hallstrom-critica-posterCer­tos lugares são dev­as­ta­dos por catástro­fes nat­u­rais ou por exter­mínio béli­co. Mas existe um tipo de des­o­lação que chega sem alarde e se insta­la. Algu­mas vezes, ela nasce jun­to com o lugar. Há os que cor­rem deses­per­ada­mente para fugir. E há os que ficam. O filme Gilbert Grape – Apren­diz de Son­hador (orig­i­nal What’s Eat­ing Gilbert Grape?), do dire­tor sue­co Lasse Hall­ström, con­ta a história de um jovem que per­maneceu no mes­mo lugar, enter­ra­do pela roti­na de uma cidade onde o reló­gio parou.

    Gilbert (John­ny Depp) vive em Endo­ra, peque­na cidade engol­i­da pelo tem­po. Depois do suicí­dio do pai, ele assume a respon­s­abil­i­dade pelo sus­ten­to da família. E não ape­nas isso: Gilbert vive inte­gral­mente para cuidar de seu irmão Arnie (Leonar­do DiCaprio), um ado­les­cente com prob­le­mas men­tais, e de sua mãe (Dar­lene Cates), que sofre de obesi­dade mór­bi­da. Há ain­da duas irmãs, Amy (Lau­ra Har­ring­ton) e Ellen (Mary Kate Schell­hardt), criat­uras atra­pal­hadas que ten­tam aux­il­iar Gilbert, mas acabam cobran­do mais do que ajudando.

    A família de Gilbert Grape
    A família de Gilbert Grape

    Tra­bal­han­do como faz-tudo em uma mer­cearia, Gilbert leva Arnie a todos os lugares. O grande even­to do ano para os dois irmãos é a pas­sagem de trail­ers pela estra­da que cruza a cidade. Em uma dessas pas­sagens, um dos veícu­los que­bra e pre­cisa per­manecer na minús­cu­la Endo­ra por algum tem­po. Esse sim­ples fato for­tu­ito é o pon­to de trans­for­mação na cabeça de Gilbert, já que ele con­hece Becky, garo­ta via­ja­da e cos­mopoli­ta, que acom­pan­ha a avó em excursões pelo país. Vivi­da pela atriz Juli­ette Lewis, Becky é o con­trapon­to de Gilbert: enquan­to o jovem tem olhos tristes, pesa­dos pelas obri­gações que nun­ca ces­sam e pre­cisa con­viv­er com son­hos acor­renta­dos, a jovem é viva, inten­sa e efu­si­va. No lugar dos arrou­bos escan­dalosos, Becky ofer­ece out­ro tipo de carpe diem: ela apre­sen­ta para Gilbert a imen­sid­ão de um mun­do que está ali, expres­so no pôr do sol ou na pos­si­bil­i­dade de obser­var a poe­sia no invisív­el. Esse é um dos pon­tos inter­es­santes do filme.

    Leonardo DiCaprio, Johnny Depp e Juliette Lewis
    Leonar­do DiCaprio, John­ny Depp e Juli­ette Lewis

    O enre­do sem pirotec­nia começa a gan­har o coração do espec­ta­dor com a atu­ação sen­sa­cional de Leonar­do DiCaprio. Os gri­tos e brin­cadeiras de Arnie arran­cam emoções do peito e des­per­tam o olhar para a existên­cia inte­ri­or de pes­soas que fogem dos padrões con­sid­er­a­dos nor­mais. As lim­i­tações men­tais de Arnie não o impe­dem de sor­rir, ser feliz e procu­rar o car­in­ho incondi­cional do irmão. Pelo con­trário: o espec­ta­dor obser­va um ado­les­cente que con­segue viv­er em Endo­ra sem que a monot­o­nia da cidade o empurre para den­tro do poço. Nesse caso, a ignorân­cia do mun­do fun­ciona como uma benção. Indi­ca­do ao Oscar em 1994 na cat­e­go­ria de mel­hor ator coad­ju­vante, DiCaprio merece cada menção hon­rosa pela atu­ação. Ele alcança os gestos, olhares e padrões de com­por­ta­men­to de uma pes­soa com defi­ciên­cia men­tal. Na época com dezen­ove anos, o ator deixou muito vet­er­a­no de queixo caído.

    Johnny Depp como Gilbert
    John­ny Depp como Gilbert

    Na pele de Gilbert, Depp mostrou ser o homem ide­al para viv­er o papel: os olhos melancóli­cos e pesa­dos de respon­s­abil­i­dade; o jeito afáv­el e ded­i­ca­do com o qual trata­va seu irmão e o dese­jo inces­sante de sair daque­le lugar. Todas essas emoções gan­haram con­tornos reais no ros­to de John­ny Depp, que ain­da não tin­ha sido pos­suí­do pelos tre­jeitos do famiger­a­do capitão Jack Sparow, per­son­agem que inter­pre­taria uma déca­da depois na série inter­mináv­el Piratas do Caribe. Mais boni­to do que nun­ca, Depp traz na expressão o deses­pero silen­cioso de Gilbert; sua inocên­cia mis­tu­ra­da ao comod­is­mo e o medo de aban­donar a sua benção e calvário: a própria família. Em Endo­ra, a família Grape é a per­son­ifi­cação da imo­bil­i­dade da cidade: a mãe obe­sa que não sai de casa há sete anos; a própria residên­cia da família, com­ple­ta­mente imutáv­el des­de que foi con­struí­da pelo pai; a rejeição de Gilbert em con­hecer o super­me­r­ca­do novo que abriu na cidade, ameaçan­do a sobre­vivên­cia do mer­cad­in­ho em que tra­bal­ha, e a roti­na de vida que leva: de casa para o tra­bal­ho e vice-ver­sa. Sua úni­ca dis­tração é o assé­dio con­stante da mul­her do cor­re­tor Carv­er, a dona de casa Bet­ty. Em uma das silen­ciosas crises exis­ten­ci­ais de Gilbert, Bet­ty rev­ela qual é o moti­vo de quer­er man­ter um caso com ele, aumen­tan­do con­sid­er­av­el­mente o caos inter­no do jovem Grape.

    Leonardo DiCaprio como o jovem Arnie
    Leonar­do DiCaprio como o jovem Arnie

     

    O lon­ga metragem sur­preende pela emoção sin­cera, dico­to­mias e dile­mas que podem estar per­to de nós. Muitas vezes, seguimos mecani­ca­mente os dias porque esta­mos pre­sos na con­fortáv­el bol­ha da vida ou em obri­gações pétreas que trans­for­mam nos­sas existên­cias em bura­cos vazios sem dire­ito à esper­ança. A feli­ci­dade de Arnie, seu modo ale­gre de viv­er, a “benção da ignorân­cia” e a capaci­dade de recomeçar os dias sem remor­so são um pon­to alto na mudança de per­spec­ti­va. O baixo orça­men­to de Gilbert Grape – Apren­diz de Son­hador provou que exis­tem emoções ocul­tas na epi­derme humana que aguardam a opor­tu­nidade de vir à tona, e inde­pen­dem de altos inves­ti­men­tos. O cin­e­ma abre espaço para essa pul­sação se manifestar.

  • A Pequena Sereia (2011), de Nicholas Humphries | Curta

    A Pequena Sereia (2011), de Nicholas Humphries | Curta

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    No con­to “O pescador e sua alma”, o escritor irlandês Oscar Wilde nar­ra a dramáti­ca história de amor entre seres de dois mun­dos dis­tin­tos: de um lado, o homem da ter­ra que, con­sum­i­do pela paixão, é capaz de abdicar da própria alma. Do out­ro, a encan­ta­do­ra sereia, figu­ra mitológ­i­ca que per­tence ao mar. Depois de infini­tos per­calços e dores, o apaixon­a­do pescador encon­tra a redenção através do amor.

    Hans Chris­t­ian Ander­sen, famoso cri­ador de con­tos de fadas, tam­bém abor­dou a figu­ra da sereia, apresentando‑a como uma criatu­ra que ama e sofre em dos­es cav­alares. Anos depois, adoçan­do con­sid­er­av­el­mente a história, os estú­dios Dis­ney imor­talizaram – e recri­aram — a per­son­agem de Ander­sen com o filme “A Peque­na Sereia”, em que a jovem prince­sa Ariel, rui­va, espir­i­tu­osa e trav­es­sa, vive queren­do desco­brir como é a vida fora do mar. Ela se apaixona per­di­da­mente por um príncipe humano e seus prob­le­mas começam.

    pequena-sereia-nicholas-humphries-posterEm 2011, a peque­na sereia ressurge sem enre­dos de amor; pelo con­trário, ela é a atração macabra de um freak show circense coman­da­do por um sujeito com aparên­cia de Mági­co de Oz. Esse é o pano de fun­do de “A Peque­na Sereia” (orig­i­nal The Lit­tle Mer­maid), cur­ta-metragem do dire­tor Nicholas Humphries em parce­ria com a roteirista Mea­gan Hotz, auto­ra da versão.

    As cenas ini­ci­ais do cur­ta car­regam nos­so imag­inário para den­tro de um pân­tano aban­don­a­do, salpic­a­do por luzes que bal­ançam como pên­du­los em meio à névoa. Uma sen­sação mias­máti­ca de hor­ror e podridão começa a per­cor­rer os olhos e descer até à gar­gan­ta. Pás­saros sobrevoam o lugar, pas­san­do como bólide pela ten­da do cir­co de hor­rores ergui­da no meio do nada.

    Den­tro do anfiteatro em ruí­nas, uma dúzia de almas curiosas obser­vam os movi­men­tos de uma sereia den­tro da dimin­u­ta ban­heira em que se encon­tra. Ao con­trário da beleza eston­teante imor­tal­iza­da pelos con­tos de fadas, a sereia do cir­co é uma criatu­ra híbri­da: car­ac­terís­ti­cas humanas se mis­tu­ram a ele­men­tos mar­in­hos, como cau­da e esca­mas. No lugar do ros­to par­nasiano, uma sequên­cia de cortes que lem­bram guelras.

    Diante da peque­na plateia, con­sti­tuí­da essen­cial­mente de tra­bal­hadores e pes­soas sim­ples, o sádi­co dire­tor do cir­co lança a semente da vio­lên­cia, bru­tal­izan­do e ridic­u­lar­izan­do a sereia. Um dos ele­men­tos mais inter­es­santes do cur­ta é a ausên­cia com­ple­ta de falas: todos os “diál­o­gos” são real­iza­dos por meio de ima­gens visuais e comu­ni­cação cor­po­ral — no caso da sereia, o olhar sig­ni­fica­ti­vo gri­ta sozinho.

    Diante da fal­ta de com­paixão do homem que a man­tém pri­sioneira e da dor de ter seu coração esma­ga­do pela indifer­ença, a sereia pre­cisa desco­brir uma for­ma de livrar-se dos con­stantes abu­sos, agar­ran­do-se à ideia de liberdade.

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    No filme, o tom sépia enfa­ti­za a nos­tal­gia quente, refleti­da em um ambi­ente arru­ina­do, mas que con­tin­ua des­per­tan­do inter­esse por con­ta da ten­tação humana em absorv­er o bizarro. Out­ro pon­to que merece destaque – tam­bém pelo uso do sépia — é a aura de sen­su­al­i­dade que bro­ta do descon­heci­do. A len­da do hip­nóti­co can­to da sereia tam­bém está pre­sente no cur­ta e tem sua primeira aparição escon­di­da em uma cena. No momen­to em que o espec­ta­dor a encon­tra, ele con­segue dialog­ar com a criatu­ra do mar.

    Dire­cio­nan­do o olhar para o ter­ror fan­tás­ti­co, Nicholas Humphries investe em efeitos visuais (luz, maquiagem e edição são pri­morosos) e na cri­ação de uma atmos­fera imag­i­na­ti­va e neb­u­losa. Para os fãs do escritor Stephen King e de séries como Amer­i­can Hor­ror Sto­ry, o cur­ta “A Peque­na Sereia” é um ver­dadeiro banquete.

    Assista o cur­ta “A Peque­na Sereia” abaixo:

    http://vimeo.com/27233664

     

  • O Dia M (2008), de Paulo Leierer | Curta

    O Dia M (2008), de Paulo Leierer | Curta

    o-dia-m-paulo-leierer-curta-1Esta grande infe­li­ci­dade, a de não estar só”, rev­e­lado­ra sen­tença do ensaís­ta francês La Bruyère (1645 ‑1696), foi escol­hi­da pelo con­tista e poeta Edgar Allan Poe, mestre da “beleza mór­bi­da” literária, para ilus­trar o con­to “O Homem da Mul­ti­dão”. Pub­li­ca­da em 1840, a história nar­ra as per­cepções feitas por um homem que obser­va o trân­si­to de pes­soas na rua. A par­tir das car­ac­terís­ti­cas físi­cas, indu­men­tárias e ges­tu­ais, o obser­vador vai desnudan­do a iden­ti­dade de per­son­agens anôn­i­mos. Em dado momen­to, quan­do avista um sujeito idoso, com roupas que escon­dem requinte atrás da sujeira e movi­men­tos ansiosos para se mis­tu­rar à mul­ti­dão das ruas, o nar­rador ini­cia uma lou­ca perseguição. A cada novo pas­so, ele percebe que o “homem das mul­ti­dões” recusa-se a estar só; seu maior dese­jo é per­am­bu­lar anon­i­ma­mente entre a tur­ba londrina.

    Ser alguém sem nome e sem ros­to no furacão cole­ti­vo, aca­len­ta a con­sciên­cia humana com uma fal­sa sen­sação de segu­rança, con­stru­in­do um caste­lo de areia con­tra o medo da morte. A solidão e a morte andam de braços dados, tor­nan­do o indi­ví­duo ape­nas uma partícu­la inex­is­tente entre tan­tos organ­is­mos vivos. Esse é o sen­ti­men­to de Almei­da, per­son­agem do cur­ta-metragem O Dia M, dirigi­do por Paulo Leier­er. Inter­pre­ta­do pelo ator Caco Cio­cler, Almei­da é um homem na casa dos trin­ta anos que desco­bre, através de exam­es lab­o­ra­to­ri­ais, que seus dias de vida estão con­ta­dos. Soz­in­ho em sua casa, ele decide que pre­cisa lidar com a situ­ação e infor­mar às pes­soas próx­i­mas que está cam­in­han­do para a estra­da do sono eterno.

    No entan­to, a notí­cia de sua morte não parece afe­tar abso­lu­ta­mente ninguém ao seu redor. Assim como o ‘homem da mul­ti­dão’ de Poe, Almei­da vai per­am­bu­lan­do entre casas, ruas, pes­soas e cemitérios, mis­tu­ran­do-se ao cotid­i­ano de ros­tos egoís­tas, cansa­dos, amar­gu­ra­dos e indifer­entes. Lem­bran­do a nov­ela rus­sa “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tol­stói, mas sem sequer ter a pre­sença con­for­t­ante de um Geras­sim, o solitário mori­bun­do Almei­da se vê às voltas com as más­caras humanas. Per­to do leito de morte, ele está só. Com­ple­ta­mente só.

    Sunday, 1926 por Edward Hopper
    Sun­day, 1926 por Edward Hopper

    Duas das cenas mais assom­brosas do dra­ma são espremi­das na cara do espec­ta­dor logo no começo do cur­ta, quan­do Almei­da vai à casa dos pais para anun­ciar sua morte e, em segui­da, procu­ra con­tratar os serviços de um despachante funerário. No meio da incredul­i­dade furiosa do pai e do deboche sar­cás­ti­co do despachante, Almei­da encara silen­ciosa­mente a frag­ili­dade de tudo o que imag­i­na­va ser e ter.

    On the Stream of Life - Hugo Simberg
    On the Stream of Life — Hugo Simberg

    Vence­dor de Mel­hor Cur­ta no Hol­ly­wood Brazil­ian Film Fes­ti­val – HBRFEST em 2009 e do Troféu Shoe­string no Rochester Inter­na­cional Film Fes­ti­val, tam­bém em 2009, O Dia M foi sele­ciona­do em inúmeros fes­ti­vais nacionais e estrangeiros. A anôn­i­ma tra­jetória de um homem que per­corre a mul­ti­dão e que dese­ja deses­per­ada­mente ser nota­do, pois o dia de seu adeus defin­i­ti­vo galopa a pas­sos lar­gos e ele estará mais solitário do que a própria morte, con­fronta o indi­ví­duo com sua existên­cia: Será que sig­nifi­camos algu­ma coisa? Alguém sen­tirá nos­sa ausên­cia? Atrav­es­sare­mos soz­in­hos o abis­mo da morte? Até que pon­to a atom­iza­ção do homem o faz quer­er ser partícipe do cole­ti­vo, para depois empurrá-lo para a condição real de solidão e esquecimento?

    Essas são algu­mas das questões com as quais o cur­ta-metragem inda­ga o espec­ta­dor, dan­do firmeza à pro­pos­ta do dire­tor Paulo Leier­er e de toda a equipe. Destaque para a tril­ha sono­ra do filme, com a faixa “First Breath After Coma” (álbum The Earth is not a cold dead place), da ban­da amer­i­cana de post rock Explo­sions in the Sky.

    Visual­mente, O Dia M lem­bra uma mis­tu­ra das pin­turas solitárias de Edward Hop­per com as lúgubres visões da morte retratadas pelo nórdi­co Hugo Sim­berg. Ou, nas palavras do poeta Rain­er Maria Rilke: “A solidão é como uma chu­va. Ergue-se do mar ao encon­tro das noites; de planí­cies dis­tantes e remo­tas sobe ao céu, que sem­pre a aguar­da. E do céu tom­ba sobre a cidade. (…) Então, a solidão vai com os rios…”.

    Assista o cur­ta-metragem aqui:

  • Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    aeon-spoke-above-the-buried-cry-2004-critica-1Boas ener­gias, luz, calor humano e esper­ança inte­gram o com­pos­to do álbum Above the Buried Cry, da ban­da de alternative/atmospheric rock Aeon Spoke. Falan­do assim até pode pare­cer clichê, mas o tra­bal­ho cap­i­tanea­do pelo tal­en­tosís­si­mo gui­tar­rista, com­pos­i­tor e vocal­ista Paul Masvi­dal, ao lado do seu fiel com­pan­heiro, o bater­ista Sean Rein­ert, não pode­ria ser diferente.

    Os dois músi­cos em questão foram mem­bros da ban­da Death durante a exe­cução e turnê do álbum Human (1991), con­sid­er­a­do um divi­sor de águas na car­reira de uma das maiores ban­das de Heavy Met­al que já exi­s­ti­ram em todos os tem­pos. Con­ta-se que Chuck Schuldin­er, líder do Death, ten­tou dis­suadir Paul Masvi­dal a não deixar o grupo, pois considerava‑o um gui­tar­rista excep­cional. Mas o fato acon­te­ceu, levan­do Masvi­dal e Rein­ert a retomarem suas ativi­dades com o Cyn­ic, tra­bal­ho perene dos músicos.

    Para­le­lo ao Cyn­ic, o ano de 2000 fez emer­gir a primeira demo do Aeon Spoke, com­pos­ta por seis faixas, cul­mi­nan­do depois em um EP lança­do em 2002 e radio ses­sions em 2003. No ano seguinte, o primeiro álbum da ban­da vem à tona com sete faixas (o mate­r­i­al foi regrava­do em 2007). Above the Buried Cry intro­duz men­sagens pos­i­ti­vas e reflexões acer­ca do com­por­ta­men­to humano, o que vem a cal­har com as crenças do por­to-riqueno Paul Masvidal.

    Sean Reinert e Paul Masvidal
    Sean Rein­ert e Paul Masvidal

    Nasci­do Pablo Alber­to Masvi­dal, o músi­co cresceu em Mia­mi, Flóri­da, e estu­dou músi­ca clás­si­ca e jazz des­de os primeiros anos. Paul é envolvi­do com a filosofia Ori­en­tal e com tudo o que diz respeito à espir­i­tu­al­i­dade. Ele tam­bém é ini­ci­a­do na práti­ca do Kriya Yoga, expon­do suas ideias/experiências nas letras de suas com­posições, que abar­cam Cyn­ic, Aeon Spoke, Por­tal e out­ros pro­je­tos paralelos.

    Sean Rein­ert tem acom­pan­hado Masvi­dal des­de a déca­da de 1980 e é con­sid­er­a­do um proem­i­nente bater­ista, escreven­do e apre­sen­tan­do per­for­mances em pro­gra­mas de tele­visão e filmes. Rein­ert parece ter a mes­ma filosofia de vida do seu ami­go Paul, o que resul­tou em faixas como:

    No Answers

    A feli­ci­dade não está em respostas e deve ser procu­ra­da com otimismo.

    Grace

    Um pedi­do de fé bem ao esti­lo da dout­ri­na ori­en­tal, onde paz e amor devem ser persegui­dos constantemente.

    Silence

    Crença, dese­jo, amor, esper­ança e alusão, uma vez mais, ao sol como fonte de renovação/renascimento.

    Emmanuel

    Belís­si­ma intro, é uma das faixas mais intro­spec­ti­vas do álbum. A músi­ca lança o ouvinte para uma irremediáv­el conexão com uma natureza oníri­ca, que se perde em cada nova nota. Min­ha faixa preferida!

    https://www.youtube.com/watch?v=vWeXxBGzKe0&ob=av2e

    Above the Buried Cry tam­bém traz Pablo at the Park, Sui­cide Boy, Face the Wind, For Good, Noth­ing e Yel­low­man, tudo den­tro da lin­ha “des­cubra-se e entregue-se”. De fato, pen­sa­men­to pra lá de alter­na­ti­vo para um mun­do cada vez mais egói­co, manip­u­lador e obceca­do pela sede de poder. Mas a arte existe para isso: abrir, cati­var e estim­u­lar consciências.

  • O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    Muitos de nós, que lemos e rele­mos livros, assim como sites, blogs e tudo que con­cerne ao uni­ver­so literário, cos­tu­mamos man­ter o hábito de escr­ev­er car­tas, arti­gos, e‑mails, matérias, tra­bal­hos acadêmi­cos, reca­dos rápi­dos em redes soci­ais, um tomo de 1.000 pági­nas do romance de estreia ou, sim­ples­mente, um infor­ma­ti­vo para o mur­al da empre­sa – algo do tipo “Área reser­va­da ao tem­po-livre. Chefes de setores, favor respeitar” (ok, não cus­ta imag­i­nar). Enfim, as opções são exten­sas. Muitas vezes, nos per­gun­ta­mos como nos tornar escritores mel­hores, mais rápi­dos, con­cisos, ver­sáteis, cria­tivos e interessantes.

    Marshall McLuhan
    Mar­shall McLuhan

    Pois bem, den­tre os cul­tuadores do totem Novas Tec­nolo­gias — tudo começou com o pro­fe­ta Mar­shall McLuhan, não se culpem — exis­tem aque­les que estão bus­can­do novas for­mas de mel­ho­rar cada vez mais sua capaci­dade de escr­ev­er e pro­duzir con­teú­do. Jen­nifer Blan­chard, uma copy­writer profis­sion­al que até mea­d­os de 2013 man­tinha o blog Pro­cras­ti­nat­ing Writ­ers, é uma dessas entu­si­as­tas e decid­iu usar o twit­ter como pro­va de que 140 car­ac­teres podem sim faz­er de você um escritor mel­hor. No arti­go How Twit­ter Makes You a Bet­ter Writer (Como o Twit­ter faz de você um escritor mel­hor), Blan­chard dá algu­mas dicas e teste­munhos de como uma rede social, lou­va­da e/ou crit­i­ca­da — mas sem­pre anal­isa­da — nas fac­ul­dades de Comu­ni­cação ao redor do mun­do pode dar um upgrade sig­ni­fica­ti­vo nas suas habil­i­dades de escrita.

    Jen­nifer defende que o Twit­ter não é ape­nas um óti­mo espaço para negó­cios e expan­são de mar­cas, mas tam­bém o lugar ide­al para orga­ni­zar as habil­i­dades para escr­ev­er. Segun­do ela, o “Twit­ter força você a ser con­ciso”, ou seja, você pre­cisa ser rápi­do, hábil e cria­ti­vo com as palavras. O recur­so te ofer­ece ape­nas 140 car­ac­teres para diz­er tudo o que você pre­cisa. “Isso não é um monte de espaço. Letras, números, sím­bo­los, pon­tu­ação e espaços, todos con­tam como car­ac­teres no Twit­ter”, reforça Jen­nifer. Você pre­cisa diz­er o que tem que diz­er uti­lizan­do o menor número de palavras pos­sív­el, o que te obri­ga a tomar decisões entre a imen­sid­ão de vocábu­los a usar, reduzin­do suas ideias ao essen­cial. A copy­writer dá a enten­der que para os escritores ver­bor­rági­cos, que cos­tu­mam escr­ev­er lau­das e lau­das sem sair do preâm­bu­lo, esboçar sen­tenças em 140 car­ac­teres é um ver­dadeiro desafio. Dessa for­ma, o Twit­ter — quem diria? — te força a exerci­tar e ampli­ar o vocab­ulário que pos­sui, impul­sio­n­an­do à procu­ra de palavras e expressões novas “para diz­er de modo mel­hor, claro e con­ciso” toda a men­sagem que se quer passar.

    A copywriter Jennifer Blanchard
    A copy­writer Jen­nifer Blanchard

    O últi­mo argu­men­to da auto­ra ver­sa sobre a pos­si­bil­i­dade de mel­ho­rar as habil­i­dades de edição através do Twit­ter. Para Jen­nifer Blan­chard, todo autor deve ser capaz de edi­tar seu próprio tex­to, e a fer­ra­men­ta de 140 car­ac­teres serve para deixar a capaci­dade de edição sim­ples­mente exce­lente (top-notch). “É quase como jog­ar um jogo; ten­tar escr­ev­er uma men­sagem de 140 car­ac­teres e ain­da obter seu pon­to de vista de tal for­ma que inspire seus seguidores a tomar medi­das como clicar no seu link ou retwit­tar seus posts”, afir­ma Blanchard.

    A auto­ra fala ain­da sobre como o uso dessa rede social a força a pen­sar cada vez mais pro­fun­do den­tro do seu vocab­ulário até encon­trar um modo cur­to de diz­er suas men­sagens. Ela, que diz ser usuária do Twit­ter há algum tem­po, rev­ela que a fer­ra­men­ta não só a tem aju­da­do a mel­ho­rar suas habil­i­dades de escri­ta como tam­bém a realizar cópias (repro­duções) de for­ma mais produtiva.

    E você? Tam­bém acha que o uso do Twit­ter é útil para desen­volver habil­i­dades e, ao con­trário do que uma parte de pen­sadores con­tem­porâ­neos argu­men­ta, pode aju­dar a mel­ho­rar nos­sa capaci­dade no que diz respeito à leitu­ra, escri­ta, pensamento?

  • Ida (2013), de Pawel Pawlikowski | Crítica

    Ida (2013), de Pawel Pawlikowski | Crítica

    ida-2013-pawel-pawlikowski-critica-posterUma das mel­hores sen­sações que eu ten­ho exper­i­men­ta­do na par­til­ha físi­ca e men­tal que acon­tece nas salas de cin­e­ma – bas­ta obser­var como todos os espec­ta­dores pare­cem estar lig­a­dos min­i­ma­mente pelos acon­tec­i­men­tos que transcor­rem na tela – é perce­ber o exa­to momen­to em que um filme hip­no­ti­za toda a plateia, alteran­do com­por­ta­men­tos e pren­den­do res­pi­rações. Esse é o pên­du­lo mes­mer­izador de Ida (2013), filme do dire­tor polonês Pawel Paw­likows­ki. O lon­ga con­quis­tou inúmeros prêmios, incluin­do Euro­pean Film Awards e Asso­ci­ação Amer­i­cana dos Dire­tores de Fotografia, além de duas indi­cações ao Oscar 2015 nas cat­e­go­rias “Mel­hor filme em lín­gua estrangeira” e “Mel­hor Fotografia”, ven­cen­do na primeira.

    Fil­ma­do em pre­to e bran­co, Ida revisi­ta as mácu­las do Holo­caus­to através da história de vida da noviça Anna (Aga­ta Trze­bu­chows­ka) e sua recém-descober­ta tia Wan­da (Aga­ta Kulesza). Antes de con­fir­mar os votos no con­ven­to onde vive, Anna é envi­a­da pela madre supe­ri­o­ra à casa da tia, para que sai­ba mais sobre a própria vida e deci­da entrar para a comu­nidade reli­giosa de for­ma con­sciente. Para Anna, o mun­do começa e ter­mi­na nas pare­des do con­ven­to e é com insat­is­fação res­ig­na­da que ela vai ao encon­tro da tia.

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    Wan­da é uma mul­her dom­i­na­da por fan­tas­mas amar­gos, pelo vício do álcool, por amantes pas­sageiros e um secre­to históri­co de tris­tezas. No pas­sa­do, ela inte­grou a luta do movi­men­to anti­nazista, tor­nan­do-se depois juíza e con­de­nado­ra implacáv­el dos torturadores/assassinos de judeus. Esse uni­ver­so é extrema­mente opos­to ao de Anna que, sem eufemis­mos, desco­bre que tudo o que con­hecia sobre sua vida não pas­sa de um rosário de men­ti­ras. Na ver­dade, a noviça chama-se Ida Leben­stein e foi entregue na por­ta do con­ven­to quan­do ain­da era bebê. Sem saber do paradeiro dos pais, Ida e a tia partem em bus­ca de respostas; cada qual com suas angús­tias, medos e dores.

    A história se pas­sa em 1962, onde os resquí­cios da Segun­da Guer­ra Mundi­al ain­da despon­tavam como feri­das aber­tas, fusti­gan­do os espíri­tos dos sobre­viventes e de seus famil­iares. É nesse mun­do novo que Ida mer­gul­ha com toda a sua inocên­cia, exper­i­men­tan­do a malí­cia e as cha­gas emo­cionais que fazem parte da história de sua família.

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    O lon­ga-metragem faz uso de uma câmera quase estáti­ca, apo­s­tan­do em close-ups. Out­ro ele­men­to inter­es­sante em Ida é a opção pelo for­ma­to 4:3 e em pre­to e bran­co, ape­sar da gravação com câmera dig­i­tal, uma clara refer­ên­cia aos filmes em 16mm. Out­ra curiosi­dade é que o filme tam­bém foi con­ver­tido para pelícu­la 35mm, sendo exibido nas pou­cas salas de cin­e­ma que ain­da supor­tam esse tipo de pelícu­la. Com fotografia de cair o queixo – assi­na­da por Ryszard Lenczews­ki e Lukasz Zal -, o lon­ga rev­ela a atmos­fera silen­ciosa do inte­ri­or de seus per­son­agens, enfa­ti­za­da tam­bém pela ausên­cia de tril­ha sono­ra e pas­sagens só com sons do ambi­ente. Como o públi­co brasileiro – do qual pos­so falar basea­da em min­ha vivên­cia — não está acos­tu­ma­do com a lin­guagem do silên­cio, é difí­cil man­ter uma con­stante em salas de exibição. Por isso, foi emo­cio­nante pres­en­ciar a inter­rupção ime­di­a­ta do fris­ar de sacos de pipoca, papéis de bom­bom, latas de refrig­er­ante e mur­múrios eter­nos. Naque­la sessão, a plateia esta­va hip­no­ti­za­da: Ida não faz ruí­dos, comu­ni­ca-se pela atenção do olhar. É com esse andar sem deixar ras­tros que a jovem noviça aprende como lidar com a inocên­cia que vai mor­ren­do aos poucos.

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    Mis­tu­ra de reflexão e memória, o filme con­segue alcançar a poe­sia que não gri­ta, não ges­tic­u­la e não bal­bu­cia: ela expres­sa com olhares e não-ditos. Destaque para a atu­ação das atrizes Aga­ta Trze­bu­chows­ka e Aga­ta Kulesza, intér­pretes de Ida e Wan­da, respec­ti­va­mente. Como ini­ciante, Trze­bu­chows­ka com­pro­va seu empen­ho – que vai além da semel­hança físi­ca com a atriz Sis­sy Spacek (con­heci­da pela atu­ação em “Car­rie, A Estran­ha” – 1976). Já Aga­ta Kulesza recria as dores de inúmeras mul­heres judias, guer­ril­heiras ou não, que viram suas famílias serem despedaçadas pelo hor­ror nazista e tiver­am que olhar para o abis­mo, evi­tan­do mirar em seus próprios reflexos.

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  • Desejo (2005), de Anne Pinheiro Guimarães | Curta

    Desejo (2005), de Anne Pinheiro Guimarães | Curta

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    Um cor­ta­dor de gra­ma atrav­es­sa em rit­mo monocór­dio os imen­sos espaços de um gra­ma­do que bril­ha como móv­el novo. Ao fun­do, uma canção que nos faz lem­brar dias boni­tos e fras­es do tipo “a esper­ança nun­ca morre”. Ima­gens idíli­cas começam a se mis­tu­rar até serem sumari­a­mente que­bradas pelo barul­ho do ven­ti­lador imer­so em fumaça. Deita­do em uma cama estre­i­ta, um homem fuma e tran­spi­ra, tran­spi­ra e fuma. Ao deixar seu san­tuário pes­soal, ele vai de encon­tro à vida nor­mal de cada dia. Uma vida de tra­bal­ho, de tédio, de cansaço, de madames lamen­tosas e son­hos que se per­dem na fumaça do cig­a­r­ro. No entan­to, algu­mas ideias podem ser o começo de ver­dadeiras epi­fa­nias. É assim que o cur­ta-metragem “Dese­jo” (2005) lança baforadas no ros­to do espec­ta­dor ao apre­sen­tar a história de um homem comum e suas cobiças con­struí­das a par­tir do olhar fixo para o teto.

    No cur­ta, o porteiro Ataná­sio José (Wag­n­er Moura) faz uma descober­ta sur­preen­dente em uma tarde tór­ri­da e estim­u­lante de glân­du­las sudorí­paras. Deita­do em sua cama, ele se deu con­ta da rev­e­lação que mudaria os rumos de sua vida, transformando‑o em um indi­ví­duo real­iza­do. Ataná­sio tin­ha ago­ra uma obsessão: aden­trar o Jock­ey Club Brasileiro (local­iza­do na Gávea, bair­ro do Rio de Janeiro), con­sid­er­a­do por ele o “san­tuário dos end­in­heira­dos”. Depois de con­seguir a façan­ha, Ataná­sio saberia o que faz­er – mas isso pou­ca impor­ta­va. Para chegar ao pon­to final da jor­na­da, ele pre­cis­aria da aju­da do cun­hado, Edmil­son André (Lázaro Ramos), respon­sáv­el pelos cuida­dos com o gra­ma­do do Jock­ey e con­sid­er­a­do por Ataná­sio como um homem “dire­ito, qui­eto, hon­esto e tra­bal­hador – tudo isso até demais”. Pre­so nes­sa relação de causa e efeito, o porteiro faz a trav­es­sia dos seus dias sem esque­cer por um momen­to da obsessão com o cun­hado, o cor­ta­dor de gra­ma e o Jock­ey Club.

    Com roteiro e direção de Anne Pin­heiro Guimarães, “Dese­jo” remon­ta aos tex­tos do cita­do Charles Bukows­ki e traz à beira da pra­ia nomes como Hen­ry Miller e Nel­son Rodrigues, conectan­do a vida do sujeito ordinário aos devaneios que o fazem resi­s­tir, sobre­viv­er e elab­o­rar de um modo menos lim­i­ta­do a sua existên­cia. A nar­ra­ti­va em off é uti­liza­da durante todo o cur­ta e abre espaço para a mis­tu­ra entre a lin­guagem fílmi­ca e literária, sopran­do no ar fig­uras irôni­cas, sar­cás­ti­cas, áci­das e humanas.

    Da clás­si­ca músi­ca “What a Won­der­ful World” — per­pet­u­a­da na voz de Louis Arm­strong – até o afama­do “Melô do Piri Piri”, da pop­u­lar can­to­ra e casadoura Gretchen, “Dese­jo” vai além das epi­fa­nias do porteiro Ataná­sio e mostra que o mun­do pode ter lá suas mar­avil­has – se a desco­brir­mos do nos­so jeito.

    Assista ao curta:

  • Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda: irreverência e anarquismo | Análise

    Eu sou a mosca que pousou em sua sopa. Eu sou a mosca que pin­tou pra lhe abusar. (…) E não adi­anta vir me dede­ti­zar. Pois nem o DDT pode assim me exter­mi­nar. Porque você mata uma e vem out­ra em meu lugar.

    Raul Seixas em “Mosca na Sopa”

    Sinôn­i­mo de incô­mo­do e despre­zo, a mosca é um dos inse­tos mais rechaça­dos do con­vívio social. Ela transtor­na reuniões famil­iares, impor­tu­na tradições de ordem e con­t­role, desnu­da as estru­turas assép­ti­cas. A mosca na sopa, per­son­ifi­cação ado­ta­da pelo com­pos­i­tor e músi­co brasileiro Raul Seixas, é uma anar­quista públi­ca e notória: sua pre­sença é hos­tiliza­da, mas inde­pende de aceitação; por mais que seja intim­i­da­da, vio­len­ta­da, apri­sion­a­da e dego­la­da, ela vol­ta em múlti­p­los pares. E é com taman­ha per­sistên­cia e deboche que elas, as famiger­adas moscas, comu­ni­cam sua mensagem.

    tatuagem-hilton-lacerda-analise-posterNo final da déca­da 1970, as moscas tam­bém mar­cavam pre­sença físi­ca e metafóri­ca em ter­ritório brasileiro. Para os agentes da ditadu­ra mil­i­tar, todo e qual­quer ele­men­to sub­ver­si­vo que aten­tasse con­tra a ordem, o gov­er­no e o trinômio “tradição – família – pro­priedade”, dev­e­ria ser sumari­a­mente extin­to. Naque­les anos de por­tas fechadas, entre a per­ife­ria de Recife e Olin­da, cidades do Nordeste brasileiro, o dire­tor Hilton Lac­er­da ambi­en­tou a história de uma trupe de artis­tas que cri­a­va um uni­ver­so próprio de irreverên­cia, zom­baria e auto­ria no teatro-cabaré Chão de Estre­las, cri­ação inspi­ra­da pelo grupo de teatro Viven­cial Diver­siones, que exis­tiu entre 1972 e 1981.

    Na ficção, o sis­tema pro­to­co­lar de regras, ordens, hier­ar­quia e dis­ci­plina do sis­tema mil­i­tar, exer­cia influên­cia angus­tiante em um tími­do recru­ta nasci­do e cri­a­do no inte­ri­or de Per­nam­bu­co, tor­nan­do-lhe penoso e mortífero o dev­er de sus­ten­tar uma más­cara que mal lhe cabe no ros­to. Esse é o fio con­du­tor da pólvo­ra que explode em “Tat­u­agem” (Brasil, 2013), filme do cineas­ta per­nam­bu­cano Hilton Lac­er­da em sua estreia como dire­tor depois de lon­ga exper­iên­cia como roteirista. A tra­ma traz como pano de fun­do o romance entre o agi­ta­dor cul­tur­al e per­former Clé­cio Wan­der­ley, inter­pre­ta­do pelo ator Irand­hir San­tos, e o sol­da­do raso Arlin­do Araújo, con­heci­do como Fin­in­ha, per­son­agem vivi­do por Jesuí­ta Bar­bosa.

    Chão de Estrelas, o Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela
    Chão de Estre­las, o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela

    Tat­u­agem” fala de resistên­cia políti­ca, cri­ação explo­si­va, anar­quista, debocha­da, livre; é uma afir­mação do espaço daque­les que são esma­ga­dos por uma con­jun­tu­ra arma­da, mas que resistem, queimam, ren­o­vam. Na tra­ma, Chão de Estre­las nasce no seio da per­ife­ria, epí­grafe acen­tu­a­da no iní­cio do lon­ga-metragem com a fala de Clé­cio ao destacar que o cabaré é “o Moulin Rouge do sub­úr­bio, a Broad­way dos pobres, o Stu­dio 54 da favela”, em clara refer­ên­cia aos inter­na­cional­mente con­heci­dos, cul­tua­dos e caros ambi­entes de apre­sen­tação artís­ti­ca e cor­po­ral da época. É nesse perímetro de rein­venções que o dire­tor Hilton Lac­er­da detém o olhar, crian­do uma nar­ra­ti­va audaciosa.

    Clé­cio e Fin­in­ha se con­hecem por meio de Paulete (Rodri­go Gar­cia), irmão da então namora­da do recru­ta. Enquan­to Clé­cio diri­gia um espetácu­lo debocha­do, Fin­in­ha vivia apri­sion­a­do nos dita­mes do quar­tel, detal­he expos­to logo nos min­u­tos ini­ci­ais, com a visão do rapaz enquadra­do pelas bar­ras dos belich­es — efeito cri­a­do pela uti­liza­ção do movi­men­to de zoom-out. O envolvi­men­to desse casal improváv­el, vai descorti­nan­do uma nova visu­al­iza­ção e entendi­men­to do mun­do, abrindo espaço para as sen­si­bil­i­dades de dois uni­ver­sos dis­tin­tos. Rodea­do pela liber­dade em todos os sen­ti­dos, Fin­in­ha vai, aos poucos, sentin­do seu cor­po como parte do proces­so artís­ti­co e viven­cial que explode no teatro do Chão de Estre­las. Assim como o mitológi­co can­to da sereia, a magia que nasce no cabaré começa a encan­tar o jovem recru­ta, mostran­do-lhe um ambi­ente de tro­ca de relações bem mais autên­ti­co do que cos­tu­ma­va vivenciar.

    Cena do filme “Tat­u­agem” mostran­do o “apri­sion­a­men­to” de Fininha

    No filme, o “cair da noite” assume uma sim­bolo­gia extrema­mente impor­tante ao abrir novas pontes de resistên­cia. Pontes que podem ser obser­vadas no públi­co que fre­quen­ta o teatro-cabaré, for­ma­do por homos­sex­u­ais, sim­pa­ti­zantes, mil­i­tantes da luta de class­es e int­elec­tu­ais esquerdis­tas – esta últi­ma figu­ra é ado­ta­da pelo pro­fes­sor Jou­bert (Sílvio Res­tiffe) e seus poe­mas de cun­ho políti­co e lib­ertário, além da sua pro­dução exper­i­men­tal, fei­ta com uma câmera Super‑8, dire­ciona­da para reg­is­trar os momen­tos mar­cantes de produção/apresentação dos números do Chão de Estre­las. É através da noite, do ero­tismo, da luxúria escan­car­a­da, do cuspe anárquico em for­ma de per­for­mances ousadas com o cor­po e a lin­guagem, que “Tat­u­agem” vai traçan­do novas rotas de pere­gri­nação de for­ma arrojada.

    Hilton Lac­er­da

    O dire­tor Hilton Lac­er­da vem de uma lon­ga cam­in­ha­da como roteirista, trazen­do na bagagem filmes como “Febre de Rato” (2011), “Amare­lo Man­ga” (2002), “Baixio das Bestas” (2006), em parce­ria com o cineas­ta Cláu­dio Assis, e “Car­to­la – Músi­ca para os Olhos” (2006), onde divide a direção com Lírio Fer­reira. A ener­gia em con­stru­ir detal­h­es faz a assi­natu­ra de Lac­er­da um difer­en­cial palpáv­el em “Tat­u­agem”.

    A opção por con­tar a história de amor entre dois home­ns gan­ha con­tornos autên­ti­cos: Clé­cio e Fin­in­ha divi­dem o afe­to ínti­mo com os espec­ta­dores; o romance – claro, dire­to, cru – não está ali ape­nas para inqui­etar os que ain­da desvi­am o olhar diante das cenas de bei­jo ou de sexo entre dois home­ns; o amor homos­sex­u­al e o choque de vivên­cias que ele rep­re­sen­ta (o agi­ta­dor cul­tur­al e o mil­i­tar) ultra­pas­sam a aco­modação da mil­itân­cia padroniza­da: nes­sa relação de polos opos­tos está o gri­to dos amores, gru­pos, movi­men­tos, pen­sa­men­tos, vidas e sen­ti­men­tos rotu­la­dos como per­iféri­cos. É esse o ele­men­to de pul­são lev­an­tan­do por “Tat­u­agem”, levan­do à der­ro­ca­da da hege­mo­nia das insti­tu­ições sagradas e do des­file dos tri­un­fantes. Para o pal­co e o públi­co do Chão de Estre­las, não há lugar para pre­con­ceitos, não há már­tires para cas­trações. O que existe no cabaré-teatro é o rompi­men­to de tradições; um lugar onde múlti­plas jor­nadas não se chocam, mas se com­ple­men­tam, ten­do como exem­p­lo máx­i­mo a figu­ra de Clé­cio: dire­tor, poeta, agi­ta­dor, anar­quista, amante e pai.

    o performer Clécio Wanderley (Irandhir Santos) e o soldado raso Fininha (Jesuíta Barbosa)
    o per­former Clé­cio Wan­der­ley (Irand­hir San­tos) e o sol­da­do raso Fin­in­ha (Jesuí­ta Barbosa)

    A liber­dade e a vivên­cia con­sciente tam­bém estão pre­sentes no con­ceito de família apre­sen­tan­do no filme. Tuca — fru­to do rela­ciona­men­to do agi­ta­dor cul­tur­al com Deusa, mãe solteira, adep­ta dos mes­mos ideais — cir­cu­la livre­mente pelas dependên­cias do cabaré, obser­van­do os tra­bal­hos de pro­dução do pai. Em uma cena sig­ni­fica­ti­va, Clé­cio pede à Deusa que não tra­ga mais o meni­no ao cabaré pois aque­le “não é lugar para cri­ança”. Nesse gan­cho, a mãe responde que “não há lugar ade­qua­do, e sim edu­cação ade­qua­da”, fazen­do refer­ên­cia dire­ta a um mod­e­lo edu­ca­cional que apos­ta na liber­dade, con­sciên­cia e tolerância.

    Toda essa provo­cação clara e sub­ver­si­va deixa ras­tros pelo filme e encon­tra out­ra forte rep­re­sen­tante com a per­son­agem Paulete. É na ale­gria do escân­da­lo que Paulete ali­men­ta o son­ho de ser ator recon­heci­do, dan­do mais vida ao lon­ga-metragem com suas piadas espir­i­tu­osas, seus berros e gestos cor­po­rais esfuziantes. É difí­cil destacar uma úni­ca cena drama­ti­za­da pelo ator Rodri­go Gar­cía na pele de Paulete: ele con­segue faz­er os holo­fotes cir­cu­larem em torno de si, seja com expressões jocosas, canções despu­do­radas ou caras e bocas risíveis. Gar­cía tem o poder de trans­for­mar a car­i­catu­ra do artista gay trans­vesti­do em indu­men­tárias fem­i­ni­nas, em uma ver­dadeira meta­mor­fose artística.

    Rodrigo Garcia como a personagem Paulete
    Rodri­go Gar­cia como a per­son­agem Paulete

    Há mui­ta inten­si­dade e aut­en­ti­ci­dade em “Tat­u­agem” – fato que ren­deu suces­so de críti­ca, prêmios e menções hon­rosas para o filme e seus atores. Mais uma pro­va de que rotas alter­na­ti­vas são pos­síveis, tan­to no âmbito do pen­sa­men­to quan­to na ação. O audio­vi­su­al brasileiro pre­cisa de olhares difer­en­ci­ais, novas lin­gua­gens, desafios, pos­turas e riscos, não só da parte dos pro­du­tores, mas tam­bém de espec­ta­dores. Cin­e­ma é feito de sen­si­bil­i­dades e da per­sistên­cia de “moscas” que não se intim­i­dam com o que está dito e feito, trazen­do para si a tare­fa de ques­tionar a nat­u­ral­iza­ção do mun­do. Con­stru­ir panora­mas é como tat­u­ar a pele: na mar­ca eterniza­da, pas­sa­do, pre­sente e futuro se comu­ni­cam em um mes­mo traço. E é no cam­in­ho que per­corre esse traço que está o novo.

  • Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Swans, de M. C. Escher (Gravura em Madeira) - 1956
    Swans, de M. C. Esch­er (Gravu­ra em Madeira) — 1956

    Louis Aragon (1897 – 1982), poeta, edi­tor e romancista francês, expres­sou como “os home­ns vivem” no poe­ma que car­rega a força dess­es versos:

    (…)

    Eram tem­pos insanos,

    Tín­hamos pos­to os mor­tos à mesa

    Fazíamos caste­los de areia

    Con­fundíamos lobos com cães

    Apro­prian­do-se do poe­ma, nos­sas fale­ci­das memórias voltam do pas­sa­do como uma visão fan­tas­magóri­ca, tri­un­fante e ameaçado­ra, que olha ao redor para se cer­ti­ficar de sua onipresença. A inse­gu­rança e a von­tade incon­troláv­el de lem­brar, sal­var e reg­u­lar tudo nos tor­na con­stru­tores e plateia de uma História doc­u­men­ta­da, cujo efeito de real seja ima­nente. Durante sécu­los, esse raciocínio foi segui­do pela neces­si­dade de difer­en­ciar rigi­da­mente “fato e ficção”, “mito e história”, “real e imag­inário”. A nar­ra­ti­va his­to­ri­ográ­fi­ca pas­sou por lon­gas fas­es de restrição, lim­i­ta­da ao pos­i­tivis­mo, às exigên­cias de vestí­gios e doc­u­men­tos. Sep­a­rar história e lit­er­atu­ra como dois entes de plan­e­tas opos­tos foi o primeiro pas­so para deter­mi­nar cam­in­hos, impor sen­ti­dos, fixar padrões. Ao anal­is­ar o pen­sa­men­to de Gilles Deleuze (1925–1995) sobre a lin­guagem literária e o de-fora,  o autor brasileiro Rober­to Macha­do traz à tona a ideia que o francês pos­suía sobre a escri­ta como “uma ten­ta­ti­va de lib­er­tar a vida daqui­lo que a apri­siona, é procu­rar uma saí­da, encon­trar novas pos­si­bil­i­dades, novas potên­cias de vida”. Se con­tin­u­amos a todo instante pon­do nos­sos mor­tos à mesa, por que igno­rar a estre­i­ta relação entre lin­guagem históri­ca e ficcional?

    Zdzisław Beksiński
    Zdzisław Bek­sińs­ki

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-ggmO escritor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, que fale­ceu em abril deste ano em con­se­quên­cia de com­pli­cações ger­adas pelo câncer, criou um novo sen­ti­do para o envel­he­cer por meio do pro­tag­o­nista de “Memória de min­has putas tristes”, livro lança­do em 2005 e divul­ga­do no Brasil pela edi­to­ra Record em 2008, com tradução de Eric Nepo­mu­ceno. Tra­ta-se da emblemáti­ca história de um sen­hor no auge dos seus noven­ta anos que, com­ple­ta­mente per­di­do em uma vida comum, sem amores, sem expec­ta­ti­vas, sem ânsias e dese­jos, se vê às voltas com a des­or­dem que só sen­ti­men­tos como o amor podem acar­retar. O sábio decide comem­o­rar sua entra­da em uma nova déca­da na com­pan­hia de uma moça, nin­fe­ta e virgem. Para isso, entra em con­ta­to com uma anti­ga con­heci­da, a cafeti­na Rosa Cabar­cas, e encomen­da a menina.

    Em todo o tex­to, a mis­tu­ra de real­i­dade e ficção é um dos pon­tos altos, levan­do o leitor a ques­tionar: É pos­sív­el sen­tir saudades do que você nun­ca viveu? Como resi­s­tir a um tem­po de começo, meio e fim, atribuin­do-lhe sen­ti­dos que, muitas vezes, o próprio tem­po descon­hece? O his­to­ri­ador Hay­den White entende as nar­ra­ti­vas históri­c­as como ficções ver­bais. Para ele, o his­to­ri­ador “não pode mais igno­rar a estre­i­ta relação entre história e mito. A história não é uma ciên­cia porque não é real­ista, o dis­cur­so históri­co não apreende um mun­do exte­ri­or, porque o real é pro­duzi­do pelo dis­cur­so”. White afir­ma que o his­to­ri­ador pro­duz “con­struções poéti­cas”, sendo a lin­guagem o ele­men­to que con­sti­tui sen­ti­do. Para ele, é inegáv­el a influên­cia do esti­lo literário do autor na escri­ta his­to­ri­ográ­fi­ca, bem como dos recur­sos estilís­ti­cos empre­ga­dos para destacar posi­ciona­men­tos e seleções. Como retoma o teóri­co, os acon­tec­i­men­tos são neu­tros, isto é, não trazem em si nen­hu­ma car­ga val­o­rati­va. No entan­to, são con­ver­tidos em trági­cos, emo­cio­nantes, cômi­cos, român­ti­cos ou irôni­cos pelo próprio enre­do atribuído.

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-agonizoPara o nona­genário cri­a­do por Gar­cía Márquez, atrav­es­sar décadas de fatos históri­cos e reg­istra­dos não sig­nifi­ca absorvê-los de uma úni­ca for­ma; em toda a tra­ma, o vel­ho homem é refa­mil­iar­iza­do com os acon­tec­i­men­tos vivi­dos por meio de suas lem­branças. A for­ma como o mun­do se descorti­nou diante dos seus olhos quase cen­tenários é vista de modo inter­pre­ta­ti­vo, e não metódi­co e pro­je­ta­do. Essa mes­ma atmos­fera pode ser sen­ti­da nos con­tos do ital­iano Anto­nio Tabuc­chi (1943–2012), reunidos no sug­es­ti­vo livro “O tem­po envel­hece depres­sa” (2009), e no romance “Enquan­to Ago­ni­zo” (1930), do norte-amer­i­cano William Faulkn­er (1897–1962). Ape­sar de inve­stirem em lin­gua­gens nar­ra­ti­vas difer­entes, as duas obras tocam a mes­ma questão no que diz respeito à memória e a con­strução de difer­entes pon­tos de vista. É essa dis­pu­ta entre rela­to e sub­je­tivi­dade que traça o con­torno da nar­ra­ti­va históri­ca. A união entre história e lit­er­atu­ra per­mite “delírios sig­ni­fica­tivos”, epi­fa­nias que abrem espaço para o pen­sa­men­to escapar do sis­tema dom­i­nante. O imag­inário traz uma car­ga dev­as­ta­do­ra que parece son­dar o vazio, enx­er­gar nas trevas e escu­tar através dos portões fechados.

    A “imanên­cia”, ter­mo usa­do por Deleuze, está em desco­brir-se além das corti­nas; é não ter medo, por exem­p­lo, de se perder nos labir­in­tos de ilusão de ópti­ca cri­a­dos por M. C. Esch­er (1898–1972) ou na beleza mór­bi­da das pin­turas do polonês Zdzis­law Beksin­s­ki (1929–2005) e seus humanos-esquele­tos, árvores retor­ci­das e ambi­entes cer­ca­dos pela névoa. É saber recon­hecer traços da história na expressão subjetiva.

    Relativity, de M. C. Escher (litografia) - 1953
    Rel­a­tiv­i­ty, de M. C. Esch­er (litografia) — 1953

    A união da lit­er­atu­ra e da história abre cam­in­ho para ver através das palavras, trans­for­mar pen­sa­men­to em sen­sação e ser capaz de traçar lin­has de fuga. Os sen­ti­dos da história não são neu­tros, obje­tivos e rig­orosa­mente cien­tí­fi­cos. Eles são flu­i­dos, optam por pontes e desco­brem novas rotas. É pre­ciso ter cor­agem para recon­hecer que as “coisas têm dimen­sões que são intrínse­cas ao val­or que damos”, e que mas­carar esse fato — como se tal ati­tude fos­se cru­cial para man­ter a zona de con­for­to – só abre mais espaços, mais abis­mos, mais fos­sos. Como lem­braria o jor­nal­ista e escritor brasileiro Daniel Piza (1970–2011): “Quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. Por­tan­to, cor­agem! Vamos colo­car nos­sos mor­tos à mesa e ofer­e­cer o banquete.

  • Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    Bicho de Sete Cabeças (2001): Reflexos Roubados | Análise

    O bura­co do espel­ho está fecha­do, ago­ra eu ten­ho que ficar ago­ra. Fui pelo aban­dono aban­don­a­do, aqui den­tro do lado de fora.

    bicho-de-sete-cabecas-2001-reflexos-roubados-analise-posterO tre­cho aci­ma faz parte da músi­ca “O Bura­co do Espel­ho”, do can­tor e com­pos­i­tor brasileiro Arnal­do Antunes. A canção inte­gra a tril­ha sono­ra do filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), um retra­to duro, áci­do e humana­mente cru­el sobre a real­i­dade viven­ci­a­da pelos inter­nos de hos­pi­tais psiquiátri­cos. Dirigi­do pela cineas­ta Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolog­ne­si, “Bicho de Sete Cabeças” nar­ra a história de um jovem inter­na­do pelo pai em um man­icômio depois de ter sido fla­gra­do com cig­a­r­ros de macon­ha. O enre­do foi basea­do no livro “Can­to dos Malditos”, uma auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno (1957–2008), ex-inter­no de uma insti­tu­ição man­i­co­mi­al e, como muitos out­ros, víti­ma dos abu­sos, espan­ca­men­tos e tor­turas comu­mente prat­i­ca­dos nesse tipo de lugar.

    No lon­ga-metragem, Neto (pro­tag­on­i­za­do pelo ator Rodri­go San­toro) é um jovem de classe média baixa que vive con­fli­tos famil­iares por não se enquadrar no padrão de com­por­ta­men­to social­mente aceito, irri­tan­do espe­cial­mente seu pai (vivi­do por Oth­on Bas­tos). Atrav­es­san­do uma fase asso­ci­a­da à rebel­dia, Neto gos­ta de andar de skate, pichar muros, usar brin­cos e cabe­los com­pri­dos, fato que a figu­ra pater­na não acei­ta e oprime. A ausên­cia de diál­o­go e a repressão desme­di­da resul­tam no estremec­i­men­to da comu­ni­cação entre pai e fil­ho, levan­do-os à con­stante tro­ca de acusações e rompantes de agres­sivi­dade. A con­tínua ten­são e descon­fi­ança faz com que Wil­son, pai de Neto, deci­da internar o fil­ho em um hos­pí­cio depois de encon­trar cig­a­r­ros de macon­ha entre os per­tences do rapaz. A par­tir desse momen­to, a vida de Neto trans­for­ma-se em um ver­dadeiro abis­mo esque­ci­do den­tro do inferno.

    Encar­cer­a­do con­tra sua von­tade, o jovem tam­bém é igno­ra­do pelo psiquia­tra da insti­tu­ição, profis­sion­al que rara­mente aparece no lugar e cuja úni­ca pre­ocu­pação é con­seguir finan­cia­men­to, ain­da que isso sig­nifique cap­turar e internar pes­soas indis­crim­i­nada­mente. O padec­i­men­to de Neto e dos out­ros inter­nos ocorre das mais difer­entes for­mas, seja por meio de dro­gas anestési­cas e de sub­stân­cias como o metil­fenida­to, con­heci­do como “sossega leão”; ou da tor­tu­rante “camisa de força”, colete que apri­siona os mem­bros supe­ri­ores; bem como através de trata­men­tos com Eletro­con­vul­soter­apia (ECT), pop­u­lar­mente chama­dos de eletro­choques. Além dos tor­men­tos físi­cos, os “pacientes-pri­sioneiros” são humil­ha­dos, hos­tiliza­dos, bar­bariza­dos e esque­ci­dos, sofren­do forte coação de médi­cos e enfer­meiros, e sentin­do a indifer­ença e pre­con­ceito vin­dos da própria família. São seres humanos estigma­ti­za­dos, coisi­fi­ca­dos e trans­for­ma­dos em per­son­agens invisíveis, per­den­do sua liber­dade, dig­nidade, autono­mia e subjetividade.

    Autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno
    Auto­bi­ografia de Aus­tregési­lo Car­ra­no Bueno

    A cica­triz da inter­nação psiquiátri­ca cobra seu preço, e mes­mo depois de lib­er­a­do, Neto não con­segue se adap­tar ao mod­e­lo impos­to pela sociedade e pela família, e é nova­mente encar­cer­a­do no hos­pí­cio. O rapaz só con­segue sair após incen­di­ar a cela em que está e, final­mente, chamar a atenção do pai. No des­fe­cho do filme, acom­pan­hamos Neto envel­he­ci­do pelo sofri­men­to e pela dor. Depois de tudo o que enfren­tou, o rapaz trans­for­ma-se em uma som­bra de si mes­mo, angus­ti­a­do como o quadro “O gri­to” (1893), de Edvard Munch; des­en­can­ta­do como o gri­to de ‘Nun­ca mais’, do poe­ma “O Cor­vo” (1845), de Edgar Allan Poe, e abati­do como as com­posições der­radeiras do com­pos­i­tor clás­si­co alemão Robert Schu­mann.

    Pre­mi­a­do em fes­ti­vais nacionais e inter­na­cionais, “Bicho de Sete Cabeças” pos­sui uma atmos­fera que com­bi­na cin­e­matográ­fi­co e doc­u­men­tal, evi­den­ci­a­da pela nat­u­ral­i­dade dos diál­o­gos e atu­ação dos atores. O tema tam­bém for­t­alece a luta anti­man­i­co­mi­al ao apon­tar a dor e a desin­te­gração encon­tradas em espaços que con­tro­lam e reprimem para — toman­do de emprés­ti­mo a expressão cun­ha­da pelo filó­so­fo e pesquisador francês Michel Fou­cault — trans­for­mar sub­je­tivi­dades humanas em “cor­pos dis­ci­plina­dos, cor­pos dóceis”. Por não faz­er parte do enquadra­men­to social e com­por­ta­men­to impos­to pelas redes micro­bianas de poder, Neto foi apri­sion­a­do, cas­ti­ga­do e sub­meti­do a mecan­is­mos de remodelação.

    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”
    Cena do filme “Bicho de Sete Cabeças”

    Situ­ações como as do pro­tag­o­nista do filme — de não adap­tação aos parâmet­ros esta­b­ele­ci­dos — tam­bém fiz­er­am com que muitas mul­heres fos­sem sen­ten­ci­adas à inter­nação em insti­tu­ições asi­lares, como o Hos­pí­cio do Juquery. O estu­do detal­ha­do de Maria Clementi­na Pereira Cun­ha em livros (O espel­ho do mun­do. Juquery, a história de um asi­lo – 1986), arti­gos (De his­to­ri­ado­ras, brasileiras e escan­di­navas: Lou­curas, folias e relações de gêneros no Brasil (sécu­lo XIX e iní­cio do XX)) e pesquisas mostra que a imposição de padrões ditos nor­mais para o com­por­ta­men­to fem­i­ni­no exer­cia papel deci­si­vo na inter­nação psiquiátri­ca. Assim como a per­son­agem do filme “Bicho de Sete Cabeças”, as mul­heres que estavam fora do padrão social esper­a­do eram con­sid­er­adas inad­e­quadas e, dessa for­ma, obri­gadas à cor­reção exemplar.

    “O grito” (1893), de Edvard Munch
    “O gri­to” (1893), de Edvard Munch

    A imposição do padrão de nor­mal­i­dade, difun­di­da com toda força pelos dis­cur­sos de natureza médi­ca de menos de um sécu­lo atrás, foi uti­liza­da den­tro dos hos­pi­tais psiquiátri­cos para jus­ti­ficar inter­nações e ações arbi­trárias. Além do grupo fem­i­ni­no, os demais mar­gin­al­iza­dos – pes­soas pobres, mis­eráveis, moradores de cor­tiços, operários, mendi­gos e todos os que sub­ver­ti­am a ordem esta­b­ele­ci­da – eram con­sid­er­a­dos propen­sos à devas­sidão, per­ver­são, lou­cu­ra e criminalidade.

    Out­ro pon­to inter­es­sante dev­i­da­mente rep­re­sen­ta­do no lon­ga-metragem de Laís Bodanzky diz respeito à figu­ra do psiquia­tra como autori­dade com­pe­tente, ates­ta­da cien­tifi­ca­mente para pro­duzir dis­cur­sos autor­iza­dos. No iní­cio de sua inter­nação, Neto ques­tiona enfer­meiros sobre o fato de estar ali, afir­man­do que eles não pode­ri­am man­tê-lo inter­na­do, pois não esta­va doente. Um dos enfer­meiros afir­ma a Neto que os pais do jovem já tin­ham con­ver­sa­do com o médi­co e expli­ca­do toda a situ­ação. No pron­tuário de Neto con­sta­va que ele era um rapaz “agres­si­vo, rebelde, que não respeita­va seus pais, mes­mo ten­do muito amor e diál­o­go em casa”, ou seja, o jovem já esta­va ficha­do e rotu­la­do assim que entrou no hos­pí­cio, e nada do que dissesse ou fizesse mod­i­fi­caria ou aten­uar­ia sua situ­ação. Neto perdeu a autono­mia, sua capaci­dade de decidir e sua liber­dade de ir e vir. Como expres­sa Alfre­do Naf­fah Neto em arti­go inti­t­u­la­do ‘O estig­ma da lou­cu­ra e a per­da da autono­mia’:

    Des­de o instante em que o estig­ma da lou­cu­ra lhe foi imputa­do, é como se no lugar do sujeito apare­cesse a doença men­tal; então, o dis­cur­so e as ações expres­sas pelo louco ces­sam de sig­nificar em si próprias, tor­nan­do-se ape­nas sin­tomas da doença.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    Dessa for­ma, aque­les que são mar­ca­dos com o estig­ma da lou­cu­ra são con­sid­er­a­dos inca­pazes – jurídi­ca, social e emo­cional­mente – de decidir sobre o seu próprio des­ti­no. Nas palavras de Naf­fah Neto: “O louco é trans­for­ma­do num fan­toche que deve ser manip­u­la­do pelo poder/saber médi­co”. Na lit­er­atu­ra, o poder dis­cricionário das autori­dades médi­cas, “cien­tí­fi­cas e com­pe­tentes”, pode ser obser­va­do no con­to “Só vim tele­fonar”, do autor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, e no con­to-nov­ela “O Alienista”, do escritor brasileiro Macha­do de Assis. De difer­entes maneiras, ambos tratam de ques­tionar a visão do saber médi­co como dis­cur­so incon­testáv­el, capaz de manip­u­lar, sub­ju­gar e aniquilar iden­ti­dades. Tan­to o hos­pí­cio como a prisão atu­am como insti­tu­ições de dis­ci­plina e con­t­role, crian­do novas modal­i­dades de fis­cal­iza­ção e domínio jus­ti­fi­cadas pela legit­im­i­dade científica.

    Rodrigo Santoro em  “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Marlene Bérgamo)
    Rodri­go San­toro em “Bicho de Sete Cabeças” (Foto: Mar­lene Bérgamo)

    Em arti­go inti­t­u­la­do “Lou­cu­ra e Crim­i­nal­i­dade: Desven­dan­do os mis­térios das moral­i­dades anô­malas”, Felipe da Cun­ha Lopes e Íta­lo Cris­tiano Sil­va e Souza dis­cor­rem sobre a asso­ci­ação entre lou­cu­ra e crim­i­nal­i­dade fei­ta pelo dis­cur­so médi­co teresinense entre as décadas de 1870 e final da déca­da de 1930. Segun­do o arti­go, os arti­c­ulis­tas que escrevi­am para jor­nais piauiens­es da época asso­ci­avam lou­cu­ra à práti­ca de crimes, ale­gan­do a existên­cia da insanidade em crim­i­nosos e da crim­i­nal­i­dade em loucos (basea­d­os na teo­ria da degenerescên­cia). Com base nes­sa ideia, percebe-se a “prob­lema­ti­za­ção da lou­cu­ra em função da vir­tu­al­i­dade crim­i­nosa”. Os autores do arti­go lem­bram que “(…) a psiquia­tria foi uma das prin­ci­pais fer­ra­men­tas uti­lizadas para jus­ti­ficar e elab­o­rar estraté­gias de con­t­role e trans­for­mação do com­por­ta­men­to do homem em sociedade”. Assim, a med­i­c­i­na trans­for­mou-se em fer­ra­men­ta indis­pen­sáv­el para man­ter dis­pos­i­tivos de con­t­role social.

    Hospício de Barbacena (MG)
    Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG)

    O regime de ver­dade e a imposição de uma supos­ta nor­mal­i­dade exigem trib­u­tos caros; preço que é pago a sangue e alma por um número ines­timáv­el de pes­soas que foram e con­tin­u­am sendo excluí­das, tran­cafi­adas e esque­ci­das. Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade extrap­o­lam pági­nas de livros e dados de pesquisas. Eles estão mar­ca­dos no coração dos sobre­viventes do Hos­pí­cio de Bar­ba­ce­na (MG), do Juquery e muitas out­ras insti­tu­ições de con­t­role e domínio.

  • A parceria entre Eduardo Baptistão e Daniel Piza

    A parceria entre Eduardo Baptistão e Daniel Piza

    Eduardo Baptistão
    Eduar­do Baptistão

    Dez anos. Esse foi o tem­po que durou a parce­ria entre o ilustrador Eduar­do Bap­tistão e o jor­nal­ista Daniel Piza. Durante esse perío­do, Bap­tistão foi respon­sáv­el pelas ilus­trações da col­u­na Sinopse, assi­na­da por Piza e pub­li­ca­da aos domin­gos no Cader­no 2 do jor­nal Estadão (Esta­do de S. Paulo).

    Pre­mi­a­do den­tro e fora do Brasil, Bap­tistão é dono de um traço incon­fundív­el, insti­gante e lúdi­co, car­ac­terís­ti­ca que impactou Daniel Piza. Gen­til­mente, Eduar­do abriu seu arqui­vo pes­soal para com­par­til­har com todos os leitores e leitoras do inter­ro­gAção algu­mas das ilus­trações que fez de Piza.

    Con­fi­ra tam­bém as impressões do ilustrador sobre a parce­ria de uma década:

    Começo da parceria

    Daniel já havia tra­bal­ha­do no Estadão no iní­cio dos anos 1990, depois pas­sou pela Fol­ha de São Paulo e Gaze­ta Mer­can­til. Voltou ao Estadão em 2000 como edi­tor exec­u­ti­vo e col­u­nista de cul­tura e esportes. No iní­cio da pub­li­cação — uma col­u­na sem­anal no Cader­no 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jor­nal o esti­lo que mais se adap­ta­va à ideia que tin­ha, e acabou optan­do pelo meu. Durante todo o perío­do em que pub­li­cou a col­u­na Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domin­gos em que eu não a ilus­trei. Nes­sas ocasiões, em que eu esta­va em férias ou de fol­ga em algum feri­ado, quem nor­mal­mente me sub­sti­tuía era o meu ami­go e cole­ga Car­lin­hos Muller. Coube ao Car­lin­hos, por sinal, ilus­trar a últi­ma col­u­na que Daniel escreveu, pois eu cumpria a fol­ga de Natal.

    Daniel Piza no dia a dia

    Daniel gosta­va de con­ver­sar. Por ser um cara muito cul­to e infor­ma­do, eram sem­pre óti­mos papos! Não éramos ínti­mos a pon­to de abor­dar assun­tos pes­soais, mas sem­pre trocá­va­mos ideias sobre a col­u­na, sobre o tema pro­pos­to e, muitas vezes, eu lhe per­gun­ta­va se tin­ha algu­ma imagem em mente para a col­u­na da sem­ana. Ele sem­pre con­fiou na min­ha inter­pre­tação e me deu car­ta bran­ca para cri­ar. Em vez de enviar o tex­to por e‑mail, coisa que rara­mente fazia, Daniel prefe­ria levar o tex­to impres­so até a min­ha mesa, e sem­pre fazia algum comen­tário sobre o assun­to prin­ci­pal da col­u­na. Nes­sas ocasiões, eram tam­bém comuns as con­ver­sas sobre fute­bol, paixão que tín­hamos em comum, emb­o­ra fôsse­mos “rivais” – ele cor­in­tiano, eu palmeirense. Cheguei a jog­ar fute­bol com ele muitas vezes, nas peladas notur­nas orga­ni­zadas pelo pes­soal da redação. Daniel tin­ha muito bom domínio de bola e vocação de artil­heiro – mas, devo diz­er, isso era facil­i­ta­do pelo fato de jog­ar sem­pre “na ban­heira” [posição de impedimento].

    Repercussão das ilustrações

    É difí­cil falar sobre a reper­cussão das ilus­trações, porque rara­mente eu tin­ha algum retorno do públi­co sobre elas. De maneira ger­al, os leitores comen­tavam muito as col­u­nas, mas eram rarís­si­mos os comen­tários sobre as ilus­trações. Lem­bro de um desen­ho, de um fil­ho cor­ren­do em direção ao pai sen­ta­do no chão, que fiz para uma col­u­na sobre o dia dos pais, em que um leitor se declar­ou emo­ciona­do não só pelo tex­to, mas tam­bém pela imagem.

     'filho correndo para o pai sentado no chão'  (Eduardo Baptistão)
    Fil­ho cor­ren­do para o pai sen­ta­do no chão (Eduar­do Baptistão)

    Traços marcantes de Daniel Piza

    Algu­mas col­u­nas do Daniel eram escritas tão em primeira pes­soa que me sug­e­ri­am usar a figu­ra dele como per­son­agem da ilus­tração. Mas, nes­sas ocasiões, eu opta­va por ape­nas sug­erir o Daniel nos desen­hos, sem me pre­ocu­par muito com a semel­hança. No con­jun­to de ilus­trações que fiz para a col­u­na ao lon­go do tem­po, foram muitas em que o Daniel apare­cia de algu­ma forma.

    O que mais admi­ra­va no Daniel era a ver­sa­til­i­dade e a pro­dução cau­dalosa. Era notáv­el a sua capaci­dade de escr­ev­er sobre qual­quer assun­to, do fute­bol à culinária, da arquite­tu­ra à religião, da políti­ca à ciên­cia. E era notáv­el tam­bém a quan­ti­dade absur­da de col­u­nas, reporta­gens, resen­has, arti­gos e livros que ele escrevia, assim como a quan­ti­dade de livros lidos, de shows, con­cer­tos, peças e filmes assis­ti­dos e de dis­cos ouvi­dos para pro­duzir às vezes uma úni­ca col­u­na! Eu sem­pre o usa­va como refer­ên­cia, pelo tan­to que ele pro­duz­iu em tão poucos anos de vida em com­para­ção comi­go, qua­tro anos mais vel­ho e infini­ta­mente menos pro­du­ti­vo. Mas eu acred­i­to que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, aci­ma da média.

    Veja abaixo as ilus­trações cri­adas pelo Eduar­do Bap­tistão de Daniel Piza:

  • Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Have you run your fin­gers down the wall and have you felt your neck skin crawl when you’re search­ing for the light? Some­times when you’re scared to take a look at the cor­ner of the room, you’ve sensed that some­thing’s watch­ing you.”

    (Você já cor­reu seus dedos pela parede e sen­tiu a pele da sua nuca arrepi­ar quan­do está procu­ran­do pela luz? Algu­mas vezes, quan­do você está com medo de olhar no can­to da sala, você sente que algu­ma coisa está lhe obser­van­do. – tradução livre).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livroNa músi­ca “Fear of the Dark”, com­pos­ta pela idol­a­tra­da ban­da Iron Maid­en, o medo do escuro con­some, gera angús­tia e provo­ca o ator­men­ta­do pro­tag­o­nista, que pas­sa a apre­sen­tar uma fobia incon­troláv­el. Para ele, a ausên­cia de luz rev­ela o pavor impalpáv­el e arrepi­ante da “certeza de que há alguém lá”, escon­di­do nas som­bras. Essa mes­ma ideia está pre­sente no livro “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” (edi­to­ra Bagaço, 2007, 127 pági­nas), coletânea de relatos, con­tos e cau­sos sele­ciona­dos por Rober­to Bel­trão. Os acon­tec­i­men­tos fazem refer­ên­cia à cidade de Recife, cap­i­tal de Per­nam­bu­co, con­heci­da no país como pal­co de fenô­menos sobre­nat­u­rais e ativi­dades fantasmagóricas.

    A ideia da coletânea nasceu da paixão de três jovens ami­gos pelo assun­to, impul­sion­a­dos pela leitu­ra do livro “Assom­brações do Recife Vel­ho”, de Gilber­to Freyre. Na época, os rapazes estavam plane­jan­do pub­licar um jor­nal ou escr­ev­er um livro sobre o tema, mas o assun­to foi abafa­do com o pas­sar do tem­po. No entan­to, no iní­cio de 2000, a temáti­ca voltou à tona com força total na vida do trio, resul­tan­do na cri­ação do site O Recife Assom­bra­do, espaço onde os inter­nau­tas podem colab­o­rar com depoi­men­tos, con­tos e nar­ra­ti­vas de ficção sobre exper­iên­cias inexplicáveis.

    Em 2002, o site foi indi­ca­do pelo insti­tu­to iBEST como um dos dez mel­hores sites pro­duzi­dos em Per­nam­bu­co. No espaço, os con­tos ficam lado a lado com quadrin­hos, relatos, nar­ra­ti­vas em áudio e links de vídeos. Todo esse mate­r­i­al foi sele­ciona­do pelo jor­nal­ista Rober­to Bel­trão, um dos rapazes do trio, e pub­li­ca­do como coletânea.

    The Haunted House (Daniele Montella)
    The Haunt­ed House (Daniele Montella)

    Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” mis­tu­ra a ficção do uni­ver­so literário (con­tos) com relatos de teste­munhas, iden­ti­fi­cadas ou não. Entre lendas urbanas, estórias e ficções, o leitor entra em con­ta­to com o uni­ver­so intangív­el da vida após a morte, tema que con­tin­ua impres­sio­n­an­do e per­tur­ban­do o homem.

    Ghosts (Joe-Roberts)
    Ghosts (Joe-Roberts)

    Muito antes do pre­domínio do cin­e­ma, tele­visão, rádio e inter­net, as nar­ra­ti­vas orais eram respon­sáveis pela con­strução do con­hec­i­men­to e das exper­iên­cias, repas­sadas de ger­ação em ger­ação. Na roda de con­ver­sas, criat­uras medonhas exer­ci­am papel essen­cial na hora de “edu­car” cri­anças, repri­m­in­do-as. Cau­sos como “o vel­ho do saco” (sujeito que rap­ta e come cri­anças), “a loira do ban­heiro” (aparição que escol­he ban­heiros esco­lares para se mate­ri­alizar) e a “per­na cabe­lu­da” (per­na licantropa que agride transe­untes em ple­na madru­ga­da) eram repas­sa­dos de boca em boca, deixan­do os pequenos, assim como os mar­man­jos, ater­ror­iza­dos. Ativi­dades mediúni­cas, como a con­heci­da “brin­cadeira do copo” (uma supos­ta invo­cação de espíri­tos) são trans­mi­ti­das até hoje entre gru­pos, cau­san­do grande fris­son. Fan­tas­mas, chama­dos muitas vezes de ‘almas penadas’, ain­da são os campeões de audiên­cia no que se ref­ere a relatos fantásticos.

    Residên­cias mal assom­bradas, sons de gri­tos, choros, ranger de dentes, vul­tos brux­u­leantes e mor­tais apa­vo­ra­dos com a pos­si­bil­i­dade de con­ta­to com o além estão entre as nar­ra­ti­vas espal­hadas pelo livro de Bel­trão. Há sem­pre um espíri­to incon­for­ma­do para faz­er com­pan­hia a moradores apa­vo­ra­dos. Den­tre os relatos e con­tos, destaque para Casarão de Setúbal, O baú, O pré­dio do Espin­heiro, A casa, O caseiro e Madru­ga­da no quar­tel, por retratarem histórias de man­i­fes­tações para­nor­mais fazen­do asso­ci­ação a obje­tos e lugares. A série Haunt­ed Col­lec­tor, veic­u­la­da pelo canal de TV por assi­natu­ra Syfy, abor­da exata­mente essa conexão entre matéria (físi­co, cor­po) e ener­gia (espíri­to, metafísica).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livro-3Na parte aber­ta­mente fic­cional, não pude deixar de notar a semel­hança entre o con­to “O demônio e a rosa”, escrito por Lil­iane Batista de Moura, com a ficção de Robert Louis Steven­son (1850–1894) em “Janet do pescoço tor­ci­do” (Thrawn Janet). Steven­son ficou con­heci­do mundial­mente pela nov­ela “O médi­co e o mon­stro” (The strange case of Doc­tor Jekyll and Mis­ter Hyde), pub­li­ca­da em 1886.

    Janet do pescoço tor­ci­do” e “O demônio e a rosa” falam sobre mul­heres amaldiçoadas por faz­erem pacto com o demônio, cuja aparên­cia e com­por­ta­men­to reme­tem a um esta­do “mor­to-vivo”, que enche de hor­ror todos os que se aprox­i­mam. A semel­hança entre Rosa e Janet é grande, des­de o aci­dente que sofrem até a aparên­cia físi­ca que adquirem.

    Em “Vírginia”, o con­to chama a atenção pelo caráter ultra­r­român­ti­co, onde é pos­sív­el localizar car­ac­terís­ti­cas como fuga da real­i­dade para o mun­do da fan­ta­sia, ide­al­iza­ção da mul­her ama­da, escapis­mo e con­sciên­cia da solidão. O nar­rador nun­ca chegou a con­hecer Virgí­nia, mul­her por quem se apaixo­nou, já que a moça mor­reu muitos anos antes. Ao olhar seu retra­to em uma lápi­de no cemitério, o pro­tag­o­nista começa a imag­i­nar a mor­ta e dese­já-la. A con­se­quên­cia desse amor tran­scende expli­cações razoáveis e cul­mi­na em ativi­dades paranormais.

    "Saturno devorando seu filho'' (Francisco Goya)
    “Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho” (Fran­cis­co Goya)

    Histórias Medonhas” é inter­es­sante, diver­tido e, antes de provo­car ter­ror ou espan­to, inci­ta a imag­i­nação do leitor. São histórias de criat­uras bizarras e almas penadas que começam a causar pal­pi­tações na infân­cia, seguin­do para out­ras fas­es da vida com maior ou menor inten­si­dade. O mis­tério da morte ain­da obce­ca o homem, desafian­do sua pre­ten­são de explicar, à luz da ciên­cia, todos os fenô­menos que o cercam.

    Para quem é fasci­na­do pelas histórias de Edgar Allan Poe, Robert Louis Steven­son, Charles Dick­ens, Álvares de Azeve­do, Guy de Mau­pas­sant e Hen­ry James, as pági­nas de “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” vão con­seguir atrair, diver­tir ou, quem sabe, assombrar.

  • Décimo Segundo (2007), de Leonardo Lacca | Curta

    Décimo Segundo (2007), de Leonardo Lacca | Curta

    curta-decimo-segundo-2007-leonardo-lacca-cartazO silên­cio que pesa, arras­ta e guar­da, trans­for­man­do a ausên­cia de palavras em uma cur­va mís­ti­ca, enevoa­da. Essa descrição é uma das pos­si­bil­i­dades de “Déci­mo Segun­do” (2007), tra­bal­ho do dire­tor per­nam­bu­cano Leonar­do Lac­ca. Pre­mi­a­do em ter­ritório nacional e inter­na­cional, o cur­ta-metragem traz um recur­so ain­da pouco uti­liza­do na lin­guagem cin­e­matográ­fi­ca brasileira: o silêncio.

    As cenas avançam em direção a dois pro­tag­o­nistas, um homem e uma mul­her, que pare­cem estar em um pal­co cer­ca­do por corti­nas que abrem e fecham simul­tane­a­mente. Acom­pan­hamos a chega­da do homem e de suas malas a um deter­mi­na­do aparta­men­to, e logo somos sur­preen­di­dos por uma refer­ên­cia clara ao filme “Estra­da Per­di­da” (Lost High­way), do cineas­ta David Lynch. A clás­si­ca voz sotur­na que sol­ta no inter­fone “Dick Lau­rent is dead” (Dick Lau­rent está mor­to), pre­sente no filme de Lynch, tam­bém está no cur­ta, acom­pan­han­do até mes­mo o número exa­to de toques na cam­painha. Essa alusão é perce­bi­da como um jogo pes­soal entre o casal, já que a mul­her tam­bém faz uma brin­cadeira com seu vis­i­tante, ao escon­der as malas que ele deixa no elevador.

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    O reen­con­tro do casal, com o abraço do homem em sua anfitriã feito de for­ma inten­sa e ao mes­mo tem­po con­strangi­da, é um dos frag­men­tos do não-dito, da ponte que vai nos pos­si­bil­i­tan­do entrar na mente dos per­son­agens. Os close-ups, o plano-sequên­cia, a câmera na mão — tremen­do cal­a­da como a própria história – e o efeito intimista de todo o enre­do per­mitem cri­ar canais de prox­im­i­dade entre per­son­agem e espec­ta­dor. Por meio das fras­es engas­gadas, surgem inda­gações curiosas sobre o casal que se encara de olhos baixos. Como teste­munhas onipresentes, pas­samos a nos per­gun­tar: “quem são essas pes­soas?”, “elas foram amantes?”, “como e quan­do tudo ter­mi­nou?”, além de notar que a importân­cia do que acon­tece ali reside, na ver­dade, no ambi­ente fora-de-cena.

    Alphonse Osbert, o pintor do silêncio (La Riviére, 1890)
    Alphonse Osbert, o pin­tor do silên­cio (La Riv­iére, 1890)

    Déci­mo Segun­do cria con­strang­i­men­tos, dis­tân­cias e expressões abafadas. Vivi­da pela atriz e dire­to­ra teatral Rita Carel­li, a anfitriã do cur­ta parece con­seguir super­ar mel­hor a invasão do pas­sa­do, per­son­ifi­ca­da pela pre­sença do homem que está ali na sua frente, com o olhar per­di­do. Na pele do vis­i­tante tími­do, o ator per­nam­bu­cano Irand­hir San­tos gan­ha força e bril­ho ao con­seguir repro­duzir todo o embaraço do reen­con­tro. Pre­mi­a­do por sua atu­ação no lon­ga “Tat­u­agem” (2013), Irand­hir reforçou o elen­co de várias pro­duções nacionais, como as con­heci­das “Tropa de Elite 2” (2010) e “O som ao redor” (2012). O ator inte­grou o elen­co da Rede Globo nas minis­séries “A Pedra do Reino” (2007) e “Amores Rou­ba­dos” (2014), e atual­mente dá vida ao per­son­agem Zelão, o cap­ataz anal­fa­beto que se apaixon­a­da pela bela e meiga pro­fes­so­ra na nov­ela “Meu Pedac­in­ho de Chão”.

    Assim como as enig­máti­cas pin­turas do francês Alphonse Osbert (1857–1939), dis­solvi­das no iso­la­men­to de luzes e névoas mis­te­riosas, Déci­mo Segun­do vai descorti­nan­do a anato­mia do silên­cio, suas pos­si­bil­i­dades e dimen­sões, e deixa a car­go do expec­ta­dor a trav­es­sia – ou não – para o inte­ri­or dos per­son­agens, suas rev­oluções, emoções e sensações.

    Assista o curta:

  • Entrevista com o jornalista Daniel Piza ao programa Provocações (2000)

    Entrevista com o jornalista Daniel Piza ao programa Provocações (2000)

    Em novem­bro de 2000, o jor­nal­ista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) con­cedeu uma entre­vista dire­ta e polêmi­ca ao apre­sen­ta­dor do pro­gra­ma Provo­cações (TV Cul­tura), Antônio Abu­jam­ra.

    Nela, Daniel Piza fala sobre a práti­ca do jor­nal­is­mo cul­tur­al no Brasil e sua descar­ac­ter­i­za­ção: “O jor­nal­is­mo cul­tur­al, em ger­al, é o jor­nal­is­mo que eles chamam de var­iedades. Então, é a peque­na resein­ha [resen­ha] do últi­mo dis­co pop que saiu na Inglater­ra, ou uma entre­vista pingue-pongue com algum ator de Hol­ly­wood. Isso é o que chamam de jor­nal­is­mo cul­tur­al no Brasil”, dispara.

    Piza desta­ca que o públi­co brasileiro tem “medo de opinião, medo de dis­cussão, um públi­co que pref­ere o pop­ulis­mo, o ‘da boca pra fora’, do que real­mente você dis­cu­tir coisas que ten­ham a ver, que façam sen­ti­do, que digam respeito à qualidade”.

    As declar­ações do jor­nal­ista pos­suem um tom con­tro­ver­so, mas eru­di­ta­mente fun­da­men­ta­do, esti­lo que acom­pan­hou Daniel Piza durante toda sua car­reira. Essa é uma das car­ac­terís­ti­cas mar­cantes nas reflexões e dis­cur­sos que per­me­iam o tra­bal­ho de Piza, recon­heci­do como um dos maiores nomes do jor­nal­is­mo cul­tur­al brasileiro. Recon­hec­i­men­to e val­oriza­ção que con­tin­u­am após sua morte pre­coce, ocor­ri­da no final de 2011.

    Con­fi­ra a entre­vista na íntegra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=H8HAIuMBq28

  • Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    Dogville (2003): Imaginário e símbolos de apreensão do real | Análise

    dogville-analise-posterE a rachadu­ra na xícara de chá abre uma tril­ha para a ter­ra dos mor­tos”, escreveu o poeta W.H Auden. Partin­do dessa imagem, percebe­mos uma alame­da silen­ciosa e intrin­ca­da de caos, dúvi­das e inse­gu­ranças invadin­do o rotineiro e con­fortáv­el espaço social, per­son­ifi­ca­do pela figu­ra de uma xícara de chá. Um tipo de invasão sem vol­ta, pois pen­e­tra no esta­do de espíri­to de um grupo, nação ou comu­nidade, desnudan­do sim­u­lações e fazen­do cair más­caras. Esse é o cenário esboça­do pelo filme Dogville (2003), dirigi­do pelo dire­tor dina­mar­quês Lars von Tri­er, e cuja temáti­ca será obje­to de mapea­men­to, reflexão e análise no que con­cerne ao imag­inário mate­r­i­al da cidade e dos per­son­agens fictícios.

    A história do lon­ga-metragem se pas­sa em uma vila chama­da Dogville, habita­da por pes­soas sim­ples, com anseios modestos e sem per­spec­ti­vas de mudança. Situ­a­do entre mon­tan­has, o vilare­jo tem pouquís­si­mo con­ta­to com o mun­do exte­ri­or, isolan­do os moradores aos lim­ites do lugar. A roti­na mecan­iza­da de Dogville reflete em uma comu­nidade aco­moda­da, sem capaci­dade cria­ti­va e com­ple­ta­mente entor­peci­da. Um de seus moradores, o aspi­rante a escritor Tom Edi­son (inter­pre­ta­do pelo ator Paul Bet­tany), avo­ca para si a autori­dade de “líder-comu­nitário” e ten­ta inserir novas ideias e dis­cussões no seio da comunidade.

    Em um dado momen­to, a empoeira­da vila é toma­da de assalto pela pre­sença de Grace (vivi­da pela atriz Nicole Kid­man), forasteira que chega furtiva­mente à Dogville. Tom é o primeiro a ter con­ta­to com Grace, interce­den­do por ela per­ante os out­ros mem­bros do grupo. Depois de uma assem­bleia, fica deci­di­do que Grace terá duas sem­anas para con­quis­tar a con­fi­ança do povoa­do e, sug­es­tion­a­da por Tom, a forasteira decide ofer­e­cer sua aju­da aos habitantes.

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    A “rachadu­ra na xícara”, ini­ci­a­da com o aparec­i­men­to de Grace, se estende durante toda a sequên­cia do filme, divi­di­do em nove capí­tu­los. No decor­rer da tra­ma, mudanças sub­stan­ci­ais acon­te­cem no pequeno vilare­jo e o ar de feli­ci­dade idíli­ca dá lugar à nuvem de fumaça den­sa, fúne­bre e tene­brosa. A pop­u­lação de Dogville começa mostran­do medo e descon­fi­ança em relação à per­manên­cia de Grace na cidade, mod­i­f­i­can­do o pen­sa­men­to pouco depois, já que todos os quinze habi­tantes estavam sendo ben­e­fi­ci­a­dos pelo tra­bal­ho da forasteira. O enre­do segue até rev­e­lar a ver­dadeira face de Dogville: de ami­gos acol­he­do­res, os habi­tantes pas­sam a predadores vorazes, tratan­do Grace como obje­to, esma­gan­do sua iden­ti­dade, desumanizando‑a.

    Para enten­der como se dá a con­strução do imag­inário mate­r­i­al da cidade e de seus habi­tantes, cabe destacar a apos­ta do dire­tor Lars von Tri­er em um esti­lo cin­e­matográ­fi­co híbri­do, em que fig­u­ram ele­men­tos teatrais e literários. Com essa mis­tu­ra, as noções de real e irre­al se entre­laçam e sub­vertem os mod­e­los padrões, alteran­do tam­bém a per­cepção de ver­dadeiro e fal­so. O lon­ga-metragem apre­sen­ta car­ac­terís­ti­cas do teatro grego (insti­ga o dese­jo do espec­ta­dor pela vio­lên­cia crua), teatro do absur­do (inter­ação dos atores com obje­tos imag­inários), bem como a ausên­cia de fun­do musi­cal. Out­ro fator deci­si­vo na con­strução do filme é a uti­liza­ção de cenários desta­ca­dos no chão, mar­can­do a pre­sença de cada habi­tante no ambi­ente um do out­ro, e o uso de pare­des pre­tas (teatro caixa-pre­ta), val­orizan­do assim um for­ma­to mais intimista, volta­do à dra­mati­ci­dade e tensão.

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    A fal­ta de “dis­trações cêni­cas” per­mite que o espec­ta­dor con­cen­tre a atenção nas relações que se embaraçam e desem­baraçam na cadeia dos acon­tec­i­men­tos. Dessa for­ma, obser­va-se a con­strução de Dogville como uma cidade para­da no tem­po, víti­ma de sua própria amar­gu­ra e solidão. A cul­tura da repetição, medioc­ridade e imutabil­i­dade toma con­ta do pequeno espaço, afo­gan­do os moradores em uma espé­cie de tor­por cego. Pre­sos em ideias fixas, eles não con­seguem enx­er­gar além dos seus próprios muros, e mes­mo inte­gran­do o todo — rep­re­sen­ta­do pelo espaço comu­nitário — os mem­bros de Dogville não se recon­hecem como indivíduos.

    Os moradores per­dem a maior parte das horas do dia em suas ativi­dades cotid­i­anas, cuja úni­ca ori­en­tação vem do bada­lo monocór­dio do sino da igre­ja, admin­istra­do por uma habi­tante da vila, já que nen­hum padre jamais apare­ceu no local. Den­tre os habi­tantes, estão casais infe­lizes e apáti­cos (Chuck e Vera), pais que não sabem amar e edu­car os fil­hos; fab­ri­cantes de obje­tos e pro­du­tos sem qual­i­dade, mas que logram em cima da comu­nidade através de preços exor­bi­tantes (família Hen­son e sen­ho­ra Gin­ger); home­ns hipocon­dría­cos ou que se recusam a aceitar a enfer­mi­dade (dois extremos, rep­re­sen­ta­dos pelo ex-médi­co Thomas Edi­son, pai do autoin­ti­t­u­la­do escritor Tom, e o irascív­el cego McK­ay); além do trans­porta­dor de car­ga (Ben) que fre­quen­ta prostíbu­los e ten­ta escon­der o fato por ver­gonha, e a fax­ineira solitária e sua fil­ha deficiente.

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    Em um primeiro momen­to, a inér­cia bucóli­ca do lugar encan­ta Grace que, cansa­da de fugir de supos­ta máfia, faz tudo para per­manecer no local. Quan­do os habi­tantes de Dogville percebem o poder que exercem sobre Grace, apelando para o medo que a descon­heci­da tem de ser entregue à polí­cia ou aos mafiosos, há uma rup­tura grada­ti­va no modo de trata­men­to. De “recém-inte­grante” do espaço comu­nitário, a forasteira se trans­for­ma em escra­va físi­ca e sex­u­al, sendo explo­ra­da de todas as maneiras possíveis.

    A par­tir desse pon­to, Dogville começa a se con­struí­da como “cidade do cão”, onde pes­soas agem por instin­to ani­male­sco de poder e con­t­role, forçan­do Grace a ser um de seus obje­tos. Toda a mesquin­haria da cidade é camu­fla­da pela afir­mação medonha dos habi­tantes de que “só quer­e­mos o seu bem” ou “não gostaríamos de faz­er isso com você”, rep­re­sen­tan­do a imagem do algoz que açoi­ta e fla­gela, ale­gan­do que o faz pela graça de Deus e bem de toda a humanidade (vide a bar­bárie per­pe­tra­da pela San­ta Inquisição con­tra supos­tos hereges e o con­tín­uo mas­sacre étni­co e reli­gioso cometi­do nas ter­ras do Ori­ente Médio, por exemplo).

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    O ide­al con­ser­vador, tradi­cional­ista e paca­to da cidade camu­fla o medo da mudança que asso­la o ínti­mo dos moradores, deixan­do-os capazes de qual­quer sel­vage­ria para con­ser­var a atmos­fera inerte e o comod­is­mo. No imag­inário dos moradores de Dogville, a cidade fun­ciona per­feita­mente bem, integra­da por ideais democráti­cos e solidários de manutenção de val­ores tradi­cionais e famil­iares. Mas com a chega­da de Grace, o espec­ta­dor começa a acom­pan­har o declínio moral e social da vila; ruí­nas que estavam escon­di­das na cegueira da cidade, em sua natureza amor­fa e imutável.

    Ao pen­e­trar no nevoeiro que é a “cidade do cão”, Grace trans­for­ma-se no dedo em riste, uma espé­cie de ques­tion­a­men­to vivo às ima­gens con­struí­das sobre a vila e seus habi­tantes. As certezas de Tom Edi­son começam a ser removi­das, rev­e­lando ao próprio “escritor” que a últi­ma coisa que ele gostaria que acon­te­cesse era pas­sar por mudanças ou con­frontar sua vida. Por out­ro lado, Grace pro­va através de suas ações e reações diante de todas as bru­tal­i­dades das quais é víti­ma que “não estar mor­to não é estar vivo”, como disse o poeta e ensaís­ta E.E Cum­mings. A cria­tivi­dade e humanidade da jovem forasteira lem­bram à Dogville como a vila é peque­na em espíri­to, lim­i­ta­da geografi­ca­mente, tran­cafi­a­da em um mosaico de roti­nas, per­feita­mente adap­ta­da e esta­bi­liza­da em situ­ações que sequer con­hece ou entende.

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    Com­preen­den­do o imag­inário como a cul­tura de um grupo, percebe-se a descon­strução das ima­gens de Dogville, desnudan­do o caráter tirâni­co de pes­soas catatôni­cas, inca­pazes de lidar com rup­turas. A vila imag­inária de Lars von Tri­er é um emble­ma das grandes cidades e sua “filosofia do absur­do”, onde a indi­vid­u­al­i­dade se perde no meio de relações super­fi­ci­ais e a sede do “poder de vida e de morte” afu­gen­ta sen­ti­men­tos, crian­do hierarquias.

    Para super­ar taman­ho des­gaste, Grace faz refer­ên­cia ao esto­icis­mo e sua éti­ca do “imper­tur­báv­el, extir­pação das paixões e aceitação res­ig­na­da do des­ti­no” como for­ma de atin­gir à sabedo­ria. Dores, sofri­men­tos e infortúnios são esque­ci­dos e per­son­ifi­ca­dos na imagem de uma mul­her doce, meiga, com voz açu­cara­da e capaz de supor­tar as adver­si­dades. A con­strução dessa imagem faz refer­ên­cia a aceitação da sociedade atu­al, silen­ciosa e cati­va, sub­ju­ga­da por “poderes microscópi­cos”, expressão cun­ha­da pelo pen­sador francês Michel Fou­cault, que dom­i­nam, mar­t­i­rizam e dev­as­tam sua existência.

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    Dogville remon­ta ima­gens do nos­so quadro social, assas­si­no de indi­vid­u­al­i­dades e toma­do por mesquin­harias. Como os habi­tantes desse pequeno povoa­do esque­ci­do, ali­men­ta­mos a ideia de que somos for­ma­dos por “justiça, igual­dade e frater­nidade”, escon­den­do o ros­to ao desumanizar e estigma­ti­zar o out­ro. A car­i­catu­ra do covarde per­son­agem Tom Edi­son mostra o lado intragáv­el do medo de encar­ar inse­gu­ranças e mudanças, da sub­mis­são a uma ordem social impos­ta, do ide­al de fetiche gregário e da ação instin­ti­va, com a bus­ca da sat­is­fação de neces­si­dades físi­cas e dos próprios interesses.

    Saturno devorando seu filho
    Sat­urno devo­ran­do seu filho

    O des­fe­cho do filme, trági­co e inten­so – a exem­p­lo da dra­matur­gia gre­ga -, apre­sen­ta ima­gens dicotômi­cas e míti­cas, pre­sentes no imag­inário social. Ini­cial­mente con­ce­bi­da como Prom­e­teu, titã mitológi­co que, guia­do pelo amor aos humanos, decide ensiná-los a civ­i­liza­ção e as artes e é amaldiçoa­do por Júpiter (Zeus), sendo sev­era­mente cas­ti­ga­do, Grace vai assu­min­do a for­ma do quadro de Goya (Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho), e engole a cidade inteira, queimando‑a e trucidando‑a.

    Dogville é for­ma­da por sím­bo­los de apreen­são do real, emble­ma de ima­gens que são trans­for­madas em pes­soas, sen­ti­men­tos, situ­ações e coisas. Os per­son­agens da “cidade do cão” são metá­foras que unem obje­tivi­dade e sub­je­tivi­dade. Refle­tir sobre o imag­inário é com­preen­der sua importân­cia na con­strução da real­i­dade e na for­mação da iden­ti­dade humana, em toda sua inqui­etação e complexidade.

  • O Duplo (2012), de Juliana Rojas | Curta

    O Duplo (2012), de Juliana Rojas | Curta

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    A cineas­ta paulista Juliana Rojas tem con­quis­ta­do destaque no cenário cin­e­matográ­fi­co brasileiro com o cur­ta-metragem “O Dup­lo” (2012), tra­bal­ho pre­mi­a­do em Cannes e em diver­sos fes­ti­vais nacionais e estrangeiros. Na tra­ma, a pro­fes­so­ra Sil­via (Sab­ri­na Greve) é con­fronta­da com a imagem de seu dup­lo, uma espé­cie de clone soturno e neg­a­ti­vo, e entra em colap­so. A história toma por base o mito europeu con­heci­do como Dop­pel­gänger, que é con­sid­er­a­do um sinal nada aus­pi­cioso. Segun­do a len­da, quem vê seu dup­lo enfrenta o risco de maus pressá­gios e morte iminente.

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    A história do cur­ta foi basea­da em um depoi­men­to real sobre a aparição do Dop­pel­gänger, fato reg­istra­do no começo do filme e que dá o pon­tapé ini­cial para abrir as com­por­tas do uni­ver­so fan­tás­ti­co e das fábu­las de hor­ror, assi­natu­ra de Juliana. Assim como em “Lençol Bran­co” (2004) e “Um Ramo” (2007), tra­bal­hos pro­duzi­dos em parce­ria com o dire­tor Mar­co Dutra, a cineas­ta con­cil­ia com pre­cisão a triv­i­al­i­dade da vida de mul­heres que, abrup­ta­mente deses­ta­bi­lizadas, pre­cisam lidar de for­ma pavorosa com ele­men­tos sur­reais lig­a­dos ao macabro e à trans­for­mação físi­ca ou mental.

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    As ima­gens envel­he­ci­das e com tonal­i­dade mar­rom de “O Dup­lo” for­t­ale­cem a aura silen­ciosa e sin­is­tra que cer­ca a esco­la, espaço prin­ci­pal dos acon­tec­i­men­tos. Ao encar­ar o seu clone malig­no, os olhos da pro­fes­so­ra Sil­via gan­ham um bril­ho novo, algo que se move com a fero­ci­dade e carnific­i­na de um tubarão-bran­co. Há ele­men­tos de hor­ror e ten­são espal­ha­dos do começo ao fim dos vinte e cin­co min­u­tos do cur­ta, com destaque para a apoc­alíp­ti­ca cena em que a per­son­agem da atriz Gil­da Nomac­ce, pre­sença mar­cante nas pro­duções de Rojas, esti­ca e puxa o elás­ti­co de uma pas­ta de for­ma frenéti­ca e per­tur­bado­ra. Nestes poucos segun­dos que pare­cem durar uma eternidade, há a certeza abso­lu­ta do des­fe­cho trági­co. Sim­ples­mente fenomenal!

    O Dup­lo” faz emer­gir a qual­i­dade de um tra­bal­ho que explo­ra o ter­ror e o fan­tás­ti­co de for­ma con­sis­tente, dan­do força a um gênero ain­da pouco difun­di­do entre as pro­duções nacionais.

    Assista abaixo ao curta:

  • O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    Se a dor da invis­i­bil­i­dade está por trás de uma doença social, parte da cura está em tornar-se visível.

    o-misterio-das-bolas-de-gude-de-gilberto-dimenstein-livro-capaO tre­cho aci­ma dá a tôni­ca do livro “O mis­tério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis” (edi­to­ra Papirus, 2006, págs. 192), escrito pelo jor­nal­ista Gilber­to Dimen­stein, con­heci­do por atu­ar em impor­tantes veícu­los de comu­ni­cação brasileiros e ide­alizar pro­je­tos soci­ais e cul­tur­ais, den­tre eles o Cidade Esco­la Apren­diz e o site cul­tur­al Catra­ca Livre. Fin­ca­da em inves­ti­gações jor­nalís­ti­cas e reg­istros de via­gens, orde­na­dos como um diário pes­soal, a obra per­corre o uni­ver­so de seres humanos mar­gin­al­iza­dos, rejeita­dos e excluí­dos da teia social. O jor­nal­ista faz emer­gir a dolorosa sobre­vivên­cia de home­ns, mul­heres e cri­anças que, igno­ra­dos e evi­ta­dos por uma sociedade cega e can­cerí­ge­na, não se sen­tem parte do mun­do, mem­bros efe­tivos de um lugar.

    Entre os excluí­dos estão pros­ti­tu­tas, vici­a­dos, traf­i­cantes, mães ado­les­centes, meni­nos de rua, cri­anças explo­radas e escrav­izadas sex­ual­mente, por­ta­dores do vírus HIV e chefes de facções crim­i­nosas. Por meio da nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, inter­cal­a­da pelas vozes das per­son­agens de cada história verídi­ca, acom­pan­hamos relatos que chocam, depoi­men­tos que machu­cam e dados estatís­ti­cos espan­tosa­mente reais.

    Gilber­to Dimen­stein fala sobre os para­dox­os encon­tra­dos nas mais difer­entes regiões brasileiras, onde bol­sões de mis­éria con­trastam com man­sões sun­tu­osas. Se de um lado, meni­nas são obri­gadas a leiloar sua vir­gin­dade para con­tin­uarem vivas, no out­ro extremo há fil­hos de lat­i­fundiários dis­pos­tos a pagar peso de ouro para “desvir­ginar” cri­anças de doze anos. Enquan­to pes­soas vivem em meio a restos de comi­da, excre­men­tos e dro­gas, com­ple­ta­mente entor­peci­das pelo uso do nar­cóti­co, a força poli­cial espan­ca, hos­tiliza e mata.

    Gilberto Dimenstein
    Gilber­to Dimenstein

    Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade são muitos: cri­anças escrav­izadas para o mer­ca­do do sexo, ado­les­centes jura­dos de morte por chefes do trá­fi­co, bebês espan­ca­dos até a morte por pais dese­qui­li­bra­dos, inter­nos tor­tu­ra­dos den­tro de insti­tu­ições repres­so­ras, por­ta­dores da AIDS trata­dos com pre­con­ceito e aver­são. Essas são algu­mas das real­i­dades descorti­nadas pelo jor­nal­ista, mostran­do que por trás das fachadas mega­lo­manía­cas da famosa Aveni­da Paulista, local­iza­da na maior metró­pole brasileira, escon­dem-se histórias de indi­ví­du­os que há muito tem­po esque­ce­r­am-se de sua condição de pes­soa humana, ten­do o dire­ito à cidada­nia cotid­i­ana­mente usurpado.

    No entan­to, ao lado da tragé­dia, Dimen­stein tam­bém abor­da as “pontes de resistên­cia” cri­adas por pes­soas cujo obje­ti­vo é trans­for­mar a injus­ta e depri­mente real­i­dade em algo mel­hor. Ten­do como armas a per­sistên­cia, teimosia e amor ao próx­i­mo, vol­un­tários se reúnem doan­do tem­po e recur­sos para mudar a vida de out­ras pes­soas. O livro elen­ca exem­p­los de pro­je­tos que nasce­r­am den­tro de fave­las, orga­ni­za­ções não gov­er­na­men­tais de apoio as mais vari­adas causas, cidadãos anôn­i­mos que não esper­aram finan­cia­men­to gov­er­na­men­tal para inve­stir em jovens e ado­les­centes em situ­ações de risco social, entre muitos outros.

    Gilberto Dimenstein
    O autor

    A arte, a músi­ca, a poe­sia, a edu­cação e o tra­bal­ho se trans­for­mam em refú­gio, pro­por­cio­nan­do reflexão e mudança. Se, como propõe a obra de Gilber­to Dimen­stein, a vio­lên­cia está dire­ta­mente lig­a­da à sen­sação de mar­gin­al­i­dade e invis­i­bil­i­dade, esse é o pon­to de par­ti­da para a mudança que faz nascer o sen­ti­men­to de pertença e recon­hec­i­men­to do out­ro como ser humano, que par­til­ha dos mes­mos dire­itos e deveres. A coop­er­ação faz parte do desen­volvi­men­to humano e social, equi­li­bran­do e pro­por­cio­nan­do condições justas.

    O mis­tério das bolas de gude” esboça novas rotas e pro­postas para a recon­quista da cidada­nia, bem tão caro para pes­soas em situ­ação de risco, além de traz­er à tona temas del­i­ca­dos e necessários. O livro peca pelo deslum­bra­men­to inocente que Gilber­to Dimen­stein apre­sen­ta ao escr­ev­er sobre os exem­p­los de suces­so norte-amer­i­canos – obser­va­dos no perío­do em que o jor­nal­ista foi cor­re­spon­dente do jor­nal Fol­ha de São Paulo em Nova York –, bem como a ausên­cia de críti­cas às práti­cas nada igual­itárias de insti­tu­ições e gru­pos brasileiros que detém o poder e manip­u­lam o apar­el­ho estatal; organ­is­mos estes que finan­ciam o trá­fi­co, explo­ram a mão de obra tra­bal­hado­ra e fecham os olhos para todos aque­les que não fazem parte da engrenagem impos­ta, trans­for­man­do o que está fora do jogo em meras peças invisíveis.

  • Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    boneco-de-neve-de-jo-nesbo-livro-capaUm trau­ma emo­cional é o tipo de veneno com grande con­cen­tração de sub­stân­cias mortíferas. Agin­do inter­na­mente e induzin­do a um grande sofri­men­to, o trau­ma quase sem­pre vem acom­pan­hado de esta­dos físi­cos ou psíquicos lesion­a­dos pelo tem­po e pelas vivên­cias neg­a­ti­vas acu­mu­ladas. Sor­rateira­mente, ele vai crescen­do em dimen­sões e poder destru­ti­vo, e tal qual uma epi­demia, é difí­cil extirpá-lo.

    Retal­hos de difer­entes trau­mas com­põem a obra “Boneco de Neve” (orig­i­nal Snø­man­nen, tradução de Grete Ske­vik, edi­to­ra Record, 2013, págs. 420), séti­mo livro da série “inspetor Har­ry Hole”, tra­bal­ho do escritor, músi­co e econ­o­mista norueguês Jo Nes­bø. Acla­ma­do na Europa e em fran­ca ascen­são pelo mun­do, Nes­bø já vendeu mais de 20 mil­hões de livros, con­qui­s­tan­do o Prêmio Glass Key como mel­hor romance nórdi­co de 1998.

    Na obra “Boneco de Neve”, o ter­ror psi­cológi­co dos thrillers poli­ci­ais lança­dos pelo autor norueguês retor­na com força total, per­son­ifi­ca­do ago­ra pela pre­sença do assas­si­no em série que, antes de sumir com as víti­mas, deixa um “sim­páti­co” bonequin­ho feito de gelo em frente ao local em que comete os seque­stros. O lunáti­co cos­tu­ma atacar sem­pre quan­do cai a primeira neve do ano, agin­do den­tro de um padrão. Desco­brir que tipo de lin­ha de ação e quais são os mod­e­los (e seg­re­dos) que ori­en­tam o ser­i­al killer é tare­fa do prob­lemáti­co inspetor Har­ry Hole.

    Mar­ca­do pelas trág­i­cas lem­branças de um pas­sa­do tumul­tua­do, Hole amar­ga o rompi­men­to de um rela­ciona­men­to, a morte de ami­gos em mis­são, o defin­hamen­to da mãe em um leito de hos­pi­tal, além de situ­ações famil­iares com­pli­cadas e a dependên­cia do álcool. Quan­do donas de casa começam a desa­pare­cer mis­te­riosa­mente, com a pos­te­ri­or des­o­va de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o trauma­ti­za­do inspetor começa a medir pis­tas, con­tan­do com a aju­da da poli­cial Katrine Bratt, recém-integra­da à cor­po­ração em que Har­ry é lotado.

    Jo Nesbø por Cato Lein
    Jo Nes­bø por Cato Lein

    A tra­ma é estru­tu­ra­da com idas e vin­das na ordem cronológ­i­ca, além de digressões dos per­son­agens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A nar­ra­ti­va é inten­sa, reple­ta de picos de ten­são, mis­tu­ran­do ele­men­tos macabros e per­tur­badores, mas sem apelar para a escat­olo­gia vis­cer­al de livros como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, de Bret Eas­t­on Ellis. O grande trun­fo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enig­ma ao desafi­ar a per­cepção do leitor; a todo o momen­to, o sen­so de obser­vação é colo­ca­do à pro­va, pois cada detal­he rev­ela mais – ou menos – do que aparenta.

    Con­fes­so que antes de começar a leitu­ra, subes­timei o emble­ma do boneco de neve como assi­natu­ra de um assas­si­no per­ver­so. Lig­a­da à figu­ra do ‘homem de gelo’ como metá­fo­ra natali­na próx­i­ma do uni­ver­so infan­til, não con­segui perce­ber de ime­di­a­to que nes­sa escol­ha tam­bém reside uma pista impor­tante. De obje­to lúdi­co à mar­ca de crime, a imagem do boneco atrav­es­sa cic­los difer­entes, que aju­dam a com­preen­der um pouco do uni­ver­so que o autor apresentou.

    O autor por Niklas R. Lello
    O autor por Niklas R. Lello

    Seguin­do o rit­mo frenéti­co da obra, deslum­brei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e con­tin­u­assem em mar­cha, afi­nal, são 420 pági­nas vorazes. Inter­es­sante notar que a descrição físi­ca do poli­cial Har­ry Hole me fez supor que a per­son­agem pode se tratar de um alter ego de Jo Nes­bø, pois as asso­ci­ações são ime­di­atas. Fora isso, Nes­bø criou uma espé­cie de “cer­tidão pes­soal e profis­sion­al” para o pro­tag­o­nista de suas séries, com dire­ito a descrições de per­son­al­i­dade, cur­ricu­lum vitae, inter­ess­es, ambições e planos futur­os. Gostei de desco­brir que estou lig­a­da ao dete­tive ator­men­ta­do pelo gos­to musi­cal (Sex Pis­tols e Neil Young) e pela ambição pes­soal, que con­siste em enten­der o que é a mal­dade e o amor.

    Com­para­do pelo jor­nal britâni­co The Sun­day Times ao influ­ente “O silên­cio dos inocentes”, do escritor Thomas Har­ris, a carnific­i­na silen­ciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a pen­e­trar em uma ver­são mod­er­na do mitológi­co labir­in­to de Déda­lo, onde uma besta movi­da por emoções humanas seques­tra e aniquila suas víti­mas, deixan­do um ras­tro silen­cioso de ter­ror. Jo Nes­bø cati­va o leitor ao traz­er o dia­bóli­co e a redenção lado a lado, em capí­tu­los que pul­sam, dilatam e escon­dem. Uma dica pre­ciosa: este­ja aten­to aos mín­i­mos detal­h­es e sím­bo­los espal­ha­dos em toda a nar­ra­ti­va. Como escreveu o dra­matur­go William Shake­speare na peça “Mac­beth”: “Pelo comichar do meu pole­gar, sei que deste lado vem vin­do um malvado”.

    Assista o book trail­er sen­sa­cional do livro (ver­são do Reino Unido):

  • Wind

    Wind

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    Não estar mor­to não é estar vivo”. O aforis­mo de E.E Cum­mings, poeta e ensaís­ta norte-amer­i­cano, traduz em palavras o véu que cobre home­ns e mul­heres for­ma­dos pelo mosaico de roti­nas, per­feita­mente adap­ta­dos e esta­bi­liza­dos em situ­ações que sequer con­hecem ou enten­dem. Quan­do acon­tece uma rup­tura no modo de vida já pet­ri­fi­ca­do, a comu­nidade entra em catatonia.

    A ani­mação “Wind” (2012), cri­a­da pelo design­er e ilustrador Robert Löbel, emerge essa panorâmi­ca. O cur­ta traz o dia-a-dia de uma pop­u­lação que vive em um local inóspi­to, asso­la­do por uma ven­ta­nia infind­áv­el. Todas as ativi­dades, ações e com­por­ta­men­tos do grupo cir­cu­lam em torno dos ven­tos fortes. Como a condição climáti­ca é acei­ta sem ques­tion­a­men­tos, a roti­na é lança­da ao ar, feito fol­ha seca guia­da sem direção.

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    No entan­to, repenti­na­mente o ven­daval ces­sa e a pop­u­lação, atôni­ta, é descar­ac­ter­i­za­da. Como o bar­man vai servir os clientes sem o auxílio do ven­to? Sobre­viverão os cortes de cabe­lo padroniza­dos sem a tem­pes­tade de ar? Ao que a ani­mação indi­ca, parece que não.

    Wind” é o resul­ta­do do pro­je­to final de grad­u­ação de Robert Löbel na Uni­ver­si­dade de Ciên­cias Apli­cadas de Ham­bur­go, con­qui­s­tan­do mais de 18 prêmios inter­na­cionais. Além dis­so, a pro­dução leva na bagagem indi­cações em fes­ti­vais de várias partes do mun­do. A ani­mação é fei­ta sem diál­o­gos, com traços limpos e deli­ciosa­mente irôni­cos e lúdi­cos, deixan­do como men­sagem uma per­gun­ta sem rodeios: Se a humanidade é fei­ta de comod­is­mo e res­ig­nação, somos ou não guia­dos pela mão fatal­ista do destino?

    Con­fi­ra a animação: