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  • O Natal do Burrinho (1984), de Otto Guerra | Curta

    O Natal do Burrinho (1984), de Otto Guerra | Curta

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    O mês de dezem­bro dá às caras trazen­do em sua cos­tumeira bagagem a época do ano em que histórias de amor, redenção e mis­er­icór­dia pipocam por todos os lados. Ninguém con­segue ficar imune – e duvi­do que, depois da cap­i­tal­iza­ção do nasci­men­to de Jesus Cristo, alguém ten­ha con­segui­do. Em mea­d­os de 1843, o escritor inglês Charles Dick­ens apre­sen­ta a jor­na­da espir­i­tu­al do avar­en­to Ebenez­er Scrooge em “Um Con­to de Natal” (orig­i­nal “A Christ­mas Car­ol”). O con­to foi suces­so instan­tâ­neo e eterni­zou a mág­i­ca trans­for­mação pes­soal de um sujeito desprezív­el – mudança aux­il­i­a­da dire­ta­mente pelos encan­tos natal­i­nos. É tam­bém fru­to do mês de dezem­bro a comovente história da “Peque­na Vende­do­ra de Fós­foros”, escri­ta pelo con­heci­do Hans Chris­t­ian Ander­sen. O con­to nar­ra a desven­tu­ra de uma pobre meni­na que padece de frio, fome e solidão, enquan­to o mun­do ter­reno se refestela nas ceias de pas­sagem do ano. A história serve para lem­brar home­ns e mul­heres da fal­ta de empa­tia, sol­i­dariedade e cari­dade, princí­pios bási­cos do Natal. No uni­ver­so artís­ti­co, muitos são os exem­p­los de odes natali­nas, incluin­do pin­turas (a exem­p­lo das obras de Di Cav­al­can­ti, Anit­ta Mal­fat­ti, Goya, Rem­brandt, Ben­jamin West) e músi­cas (como o CD25 de dezem­bro”, da can­to­ra brasileira Simone, que toca em loop­ing eter­no por todo o país).

    Até mes­mo esta col­u­na cul­tur­al foi arrebata­da pelo “espíri­to de natal” ao adi­ar as impressões sobre um cur­ta-metragem com temáti­ca de suspense/terror psi­cológi­co para falar da ani­mação “O Natal do Bur­rin­ho”, pro­duzi­da há 31 anos atrás pelo dire­tor gaú­cho Otto Guer­ra e com co-direção de José Maia e Lan­cast Mota.

    Otto Guerra (Foto: Maurício Capelarri)
    Otto Guer­ra (Foto: Mau­rí­cio Capelarri)

    São rápi­dos cin­co min­u­tos para acom­pan­har a triste história de um bur­rin­ho solitário que vaga por ter­ras desér­ti­cas. Logo nos primeiros segun­dos, uma melancóli­ca tril­ha sono­ra acom­pan­ha a sorum­báti­ca cam­in­ha­da do bur­rin­ho noite aden­tro. O ani­mal guar­da cer­ta semel­hança com Bison­ho, per­son­agem da tur­ma do Ursin­ho Puff cujas feições cansadas pare­cem rev­e­lar tor­por e um “âni­mo exaus­to” – por mais que essa afir­ma­ti­va soe uma con­tradição em termos.

    Soz­in­ho, o bur­rin­ho bebe água, cho­ra no lago e dorme embaixo de uma árvore. A vida seguiria seu cur­so depres­si­vo se não fos­se por uma família que aparece no meio do deser­to. Pai, mãe e bebê chamam a atenção do bur­ro, que decide seguí-los e ajudá-los. Os ros­tos dessas pes­soas não são visíveis, mas é pos­sív­el dis­tin­guir os traços de José, Maria e Jesus em sua fuga para o Egi­to. Esse episó­dio é ampla­mente ilustra­do nas artes e pode ser inferi­do no cur­ta-metragem tan­to pela indu­men­tária das per­son­agens quan­to pela pas­sagem de sol­da­dos romanos – rep­re­sen­ta­dos pelos seus olhos raivosos e pelo estandarte com o acrôn­i­mo SPQR, frase lati­na que pode ser traduzi­da como “O Sena­do e o Povo Romano”.

    Pintura "The Nativity of Christ", de Vladimir Borovikovsky
    Pin­tu­ra “The Nativ­i­ty of Christ”, de Vladimir Borovikovsky

    Depois de enfrentar lon­gas dis­tân­cias, tem­pes­tades de areia e frio, a família e o bur­rin­ho con­seguem chegar ao des­ti­no final. Esse acon­tec­i­men­to trans­for­ma a vida do ani­mal, lançando‑o para o encan­ta­men­to dos finais felizes. No entan­to, Otto Guer­ra nos sur­preende com um des­fe­cho inusi­ta­do que, em um áti­mo de segun­do, lev­an­ta out­ro pon­to impor­tante: o quan­to as “mudanças mág­i­cas” são ver­dadeiras? Elas exis­tem ou são obje­tos da neces­si­dade fic­cional, tão comum em épocas de fim de ciclo? A pre­sença do bur­rin­ho soa como uma fábu­la dis­farça­da ou sem intenção. Mas está lá, oculta.

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    O Natal do Bur­rin­ho foi sele­ciona­do para os fes­ti­vais de Bil­bao (Espan­ha) e Ober­hausen (Ale­man­ha). Tam­bém con­quis­tou o prêmio de mel­hor cur­ta gaú­cho no Fes­ti­val de Gra­ma­do de 1984. Em uma época em que o estí­mu­lo à pro­dução e cir­cu­lação de obras nacionais não provo­ca­va inve­ja a ninguém, esbar­ran­do na fal­ta de incen­ti­vo, inter­esse e espaço – fato que, ape­sar de notáveis mel­ho­rias, per­manece até hoje -, Otto Guer­ra e sua equipe apos­taram na ani­mação. Se a crença em fábu­las for capaz de mudar a con­cepção dos finan­ciadores e do públi­co do cin­e­ma nacional, cabe uma dica: a história “O Cav­a­lo e o Bur­ro”, de Mon­teiro Lobato.

    Assista ao cur­ta com­ple­to abaixo:

  • Canta tua aldeia | Crônica

    Canta tua aldeia | Crônica

    Em Paranaguá, min­ha cidade natal, ain­da não há ciclis­tas, cli­cloa­t­ivis­tas, nem bikeiros. Há pes­soas que usam a bici­cle­ta como meio de trans­porte. É uma sen­sação con­fortáv­el estar na min­ha cidade natal com músi­cos na praça e bici­cle­tas. Em vez de ouvir “The Wall”, eu pen­so em “Cin­e­ma Par­adiso”. Em breve esta aldeia será igual a todas as out­ras, com a insta­lação de dois shop­ping cen­ters — todos os que ain­da andam de bici­cle­ta terão seu car­ro. Há tem­pos li que o fotó­grafo Pedro Mar­tinel­li foi morar na Amazô­nia para reg­is­trar os últi­mos momen­tos da flo­res­ta em pé. Tam­bém quero acom­pan­har esse momen­to de trans­for­mação em que a min­ha peque­na cidade vai ser se tornar igual a out­ra qualquer.

    Empresários indo trabalhar de bicicleta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan - Bridgepix)
    Empresários indo tra­bal­har de bici­cle­ta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan — Bridgepix)

    Na Ale­man­ha, na Holan­da e na Bél­gi­ca, na Chi­na e no Japão, país­es em que a bici­cle­ta não é meio de mobil­i­dade alter­na­ti­va, mas pref­er­en­cial, as pes­soas lev­am tudo sobre duas rodas. Os japone­ses, mais ele­gantes: exec­u­tivos ped­alam de ter­no e gra­va­ta e hábeis, empun­ham o guar­da-chu­va numa das mãos e com a out­ra agar­ram o pun­ho do guidão; sen­ho­ras alin­hadas na últi­ma moda des­fil­am com graça. Os chi­ne­ses já se pare­cem mais com os caiçaras, lev­am a mul­her e o fil­ho e a mudança de casa sobre a bike.

    No filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid”, Paul New­man tem uma famosa cena de bici­cle­ta com Kather­ine Ross. Lá, expli­ca que para os chi­ne­ses, quan­do uma mul­her e um homem andam jun­tos numa bici­cle­ta estão namorando.

    31Dada a pro­fusão de bici­cle­tas na cidade, meu avô, Kingo Kub­o­ta, ao insta­lar-se na cidade, teve visão de negó­cios. Abriu a Bici­cle­taria San­ta Cecília, hom­e­nage­an­do a cidade que morou ante­ri­or­mente, no norte do Paraná: San­ta Cecília do Pavão. Como todo bom japonês, meu avô cul­tua­va rit­u­ais e ado­ra­va hom­e­na­gens. Meu nome, por exem­p­lo, é uma hom­e­nagem a out­ra cidade em que morou, no inte­ri­or de São Paulo: Marília.

    Cena do filme "Butch Cassidy and Sundance Kid" (1969)
    Cena do filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid” (1969)

    Fui uma cri­ança cujo pai era dono de uma bici­cle­taria. Meus cole­gas de esco­la achavam que eu era a cri­ança mais sor­tu­da do mun­do. Era o tem­po em que nos­so son­ho con­sum­ista era gan­har uma Caloi, graças à pro­pa­gan­da tele­vi­si­va: “Eu quero a min­ha Caloi”, anun­ci­avam em todas as telas. Apren­di a andar de bici­cle­ta com rod­in­has e depois, sem rod­in­has, cain­do algu­mas vezes. Cer­ta vez, min­ha esco­la pro­moveu um pas­seio de bici­cle­ta e não fui. Todos me olharam espantados.

    Além de vender bici­cle­tas que ele mes­mo mon­ta­va, com a car­caça de bici­cle­tas usadas, meu pai tam­bém tin­ha uma ofic­i­na. Os pri­mos de meu pai e meus dois irmãos tra­bal­haram na ofic­i­na. Um dia meu irmão mais vel­ho foi para a esco­la com a mão suja de graxa. A pro­fes­so­ra per­gun­tou o que era aqui­lo. Ele ficou com ver­gonha e nun­ca mais quis voltar pra escola.

    Meu pai, Satoru Kubota e minha mãe, Tijiro, ao lado de minha tia Tereza, o trio em frente à Bicicletaria Central. (Foto: Kingo Kubota)
    Meu pai, Satoru Kub­o­ta e min­ha mãe, Tijiro, ao lado de min­ha tia Tereza, o trio em frente à Bici­cle­taria Cen­tral. (Foto: Kingo Kubota)

    Depois de anos, meu pai decid­iu ampli­ar o negó­cio de duas rodas para qua­tro. E pas­sou a vender peças de automóveis. Os pri­mos já não tra­bal­havam com ele, meu avô havia par­tido, e o irmão enver­gonhado não suja­va a mão com graxa. No ano de 1995, meus pais foram ao Japão pela primeira vez e viram de per­to como o japonês se movia nas grandes cidades com bici­cle­tas. Aban­don­avam suas bici­cle­tas no esta­ciona­men­to e pegavam out­ras, como guar­da-chu­vas. Já não se comovi­am com as magrelas.

    Des­de que o cicloa­t­ivis­mo começou a gan­har força em Curiti­ba e nas grandes metrópoles, impul­sion­a­do pelo exem­p­lo das cidades europeias, pas­sei a ver a bici­cle­ta com os olhos de out­ros. Não era mais o gan­ha-pão de min­ha família, que pagou meus estu­dos. A bici­cle­ta ago­ra é trans­porte alter­na­ti­vo na mobil­i­dade urbana.

    Em Paranaguá as magre­las con­tin­u­am em sua condição provin­ciana. Indo e vin­do, levan­do o mun­do sobre duas rodas. Pen­so que voltei numa hora boa para reci­clar meus con­ceitos sobre a min­ha aldeia.

  • Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993), de Lasse Hallström | Crítica

    Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993), de Lasse Hallström | Crítica

    Tudo ao meu redor são ros­tos famil­iares, lugares des­gas­ta­dos, faces des­gas­tadas. (…) Os son­hos nos quais eu estou mor­ren­do são os mel­hores que já tive”
    (Mad World, com­posição do Tears for Fears na voz de Gary Jules).

    gilbert-grape-lasse-hallstrom-critica-posterCer­tos lugares são dev­as­ta­dos por catástro­fes nat­u­rais ou por exter­mínio béli­co. Mas existe um tipo de des­o­lação que chega sem alarde e se insta­la. Algu­mas vezes, ela nasce jun­to com o lugar. Há os que cor­rem deses­per­ada­mente para fugir. E há os que ficam. O filme Gilbert Grape – Apren­diz de Son­hador (orig­i­nal What’s Eat­ing Gilbert Grape?), do dire­tor sue­co Lasse Hall­ström, con­ta a história de um jovem que per­maneceu no mes­mo lugar, enter­ra­do pela roti­na de uma cidade onde o reló­gio parou.

    Gilbert (John­ny Depp) vive em Endo­ra, peque­na cidade engol­i­da pelo tem­po. Depois do suicí­dio do pai, ele assume a respon­s­abil­i­dade pelo sus­ten­to da família. E não ape­nas isso: Gilbert vive inte­gral­mente para cuidar de seu irmão Arnie (Leonar­do DiCaprio), um ado­les­cente com prob­le­mas men­tais, e de sua mãe (Dar­lene Cates), que sofre de obesi­dade mór­bi­da. Há ain­da duas irmãs, Amy (Lau­ra Har­ring­ton) e Ellen (Mary Kate Schell­hardt), criat­uras atra­pal­hadas que ten­tam aux­il­iar Gilbert, mas acabam cobran­do mais do que ajudando.

    A família de Gilbert Grape
    A família de Gilbert Grape

    Tra­bal­han­do como faz-tudo em uma mer­cearia, Gilbert leva Arnie a todos os lugares. O grande even­to do ano para os dois irmãos é a pas­sagem de trail­ers pela estra­da que cruza a cidade. Em uma dessas pas­sagens, um dos veícu­los que­bra e pre­cisa per­manecer na minús­cu­la Endo­ra por algum tem­po. Esse sim­ples fato for­tu­ito é o pon­to de trans­for­mação na cabeça de Gilbert, já que ele con­hece Becky, garo­ta via­ja­da e cos­mopoli­ta, que acom­pan­ha a avó em excursões pelo país. Vivi­da pela atriz Juli­ette Lewis, Becky é o con­trapon­to de Gilbert: enquan­to o jovem tem olhos tristes, pesa­dos pelas obri­gações que nun­ca ces­sam e pre­cisa con­viv­er com son­hos acor­renta­dos, a jovem é viva, inten­sa e efu­si­va. No lugar dos arrou­bos escan­dalosos, Becky ofer­ece out­ro tipo de carpe diem: ela apre­sen­ta para Gilbert a imen­sid­ão de um mun­do que está ali, expres­so no pôr do sol ou na pos­si­bil­i­dade de obser­var a poe­sia no invisív­el. Esse é um dos pon­tos inter­es­santes do filme.

    Leonardo DiCaprio, Johnny Depp e Juliette Lewis
    Leonar­do DiCaprio, John­ny Depp e Juli­ette Lewis

    O enre­do sem pirotec­nia começa a gan­har o coração do espec­ta­dor com a atu­ação sen­sa­cional de Leonar­do DiCaprio. Os gri­tos e brin­cadeiras de Arnie arran­cam emoções do peito e des­per­tam o olhar para a existên­cia inte­ri­or de pes­soas que fogem dos padrões con­sid­er­a­dos nor­mais. As lim­i­tações men­tais de Arnie não o impe­dem de sor­rir, ser feliz e procu­rar o car­in­ho incondi­cional do irmão. Pelo con­trário: o espec­ta­dor obser­va um ado­les­cente que con­segue viv­er em Endo­ra sem que a monot­o­nia da cidade o empurre para den­tro do poço. Nesse caso, a ignorân­cia do mun­do fun­ciona como uma benção. Indi­ca­do ao Oscar em 1994 na cat­e­go­ria de mel­hor ator coad­ju­vante, DiCaprio merece cada menção hon­rosa pela atu­ação. Ele alcança os gestos, olhares e padrões de com­por­ta­men­to de uma pes­soa com defi­ciên­cia men­tal. Na época com dezen­ove anos, o ator deixou muito vet­er­a­no de queixo caído.

    Johnny Depp como Gilbert
    John­ny Depp como Gilbert

    Na pele de Gilbert, Depp mostrou ser o homem ide­al para viv­er o papel: os olhos melancóli­cos e pesa­dos de respon­s­abil­i­dade; o jeito afáv­el e ded­i­ca­do com o qual trata­va seu irmão e o dese­jo inces­sante de sair daque­le lugar. Todas essas emoções gan­haram con­tornos reais no ros­to de John­ny Depp, que ain­da não tin­ha sido pos­suí­do pelos tre­jeitos do famiger­a­do capitão Jack Sparow, per­son­agem que inter­pre­taria uma déca­da depois na série inter­mináv­el Piratas do Caribe. Mais boni­to do que nun­ca, Depp traz na expressão o deses­pero silen­cioso de Gilbert; sua inocên­cia mis­tu­ra­da ao comod­is­mo e o medo de aban­donar a sua benção e calvário: a própria família. Em Endo­ra, a família Grape é a per­son­ifi­cação da imo­bil­i­dade da cidade: a mãe obe­sa que não sai de casa há sete anos; a própria residên­cia da família, com­ple­ta­mente imutáv­el des­de que foi con­struí­da pelo pai; a rejeição de Gilbert em con­hecer o super­me­r­ca­do novo que abriu na cidade, ameaçan­do a sobre­vivên­cia do mer­cad­in­ho em que tra­bal­ha, e a roti­na de vida que leva: de casa para o tra­bal­ho e vice-ver­sa. Sua úni­ca dis­tração é o assé­dio con­stante da mul­her do cor­re­tor Carv­er, a dona de casa Bet­ty. Em uma das silen­ciosas crises exis­ten­ci­ais de Gilbert, Bet­ty rev­ela qual é o moti­vo de quer­er man­ter um caso com ele, aumen­tan­do con­sid­er­av­el­mente o caos inter­no do jovem Grape.

    Leonardo DiCaprio como o jovem Arnie
    Leonar­do DiCaprio como o jovem Arnie

     

    O lon­ga metragem sur­preende pela emoção sin­cera, dico­to­mias e dile­mas que podem estar per­to de nós. Muitas vezes, seguimos mecani­ca­mente os dias porque esta­mos pre­sos na con­fortáv­el bol­ha da vida ou em obri­gações pétreas que trans­for­mam nos­sas existên­cias em bura­cos vazios sem dire­ito à esper­ança. A feli­ci­dade de Arnie, seu modo ale­gre de viv­er, a “benção da ignorân­cia” e a capaci­dade de recomeçar os dias sem remor­so são um pon­to alto na mudança de per­spec­ti­va. O baixo orça­men­to de Gilbert Grape – Apren­diz de Son­hador provou que exis­tem emoções ocul­tas na epi­derme humana que aguardam a opor­tu­nidade de vir à tona, e inde­pen­dem de altos inves­ti­men­tos. O cin­e­ma abre espaço para essa pul­sação se manifestar.

  • Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Os poet­as Lau Siqueira, Vás­sia Sil­veira e Marília Kub­o­ta encon­traram-se no últi­mo dia 24 de out­ubro em Curiti­ba e repetem a dose no próx­i­mo dia 05 de dezem­bro em Flo­ri­anópo­lis e no dia 06 em Joinville, para realizar o lança­men­to de seus livros de poe­sia “Livro Arbítrio” (Casa Verde, 2015), “microp­o­lis” (Lumme Edi­tor, 2014) e “Febre-Terçã” (Off Flip, 2013), os três pub­li­ca­dos por peque­nas edi­toras. Reuni­mos os autores nes­ta entre­vista para um pingue-pongue de ideias sobre poe­sia e a aven­tu­ra das edições inde­pen­dentes e uma reflexão sobre a função social da poesia:

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    Vás­sia Sil­veira, Lau Siqueira e Marília Kubota

    Por que mes­mo não sendo autor ini­ciante, você edi­tou seu livro por uma peque­na editora?

    Vás­sia Sil­veira: Porque não me atrai essa lóg­i­ca do mer­ca­do das grandes edi­toras. Não ten­ho inter­esse em aper­tar, de for­ma automáti­ca, como crit­i­ca­va Chap­lin em “Tem­pos Mod­er­nos”, os para­fu­sos des­ta máquina. E muito menos ser um deles. O prob­le­ma é que essa lóg­i­ca é tão per­ver­sa que mes­mo algu­mas edi­toras peque­nas acabam sucumbindo a estraté­gias que mostram cer­to despre­zo, desre­speito pelo autor — quan­do, do pon­to de vista da peque­na edi­to­ra, ele não é um nome “vendáv­el”, não faz parte de pan­elas, não tem cacife para con­cor­rer a edi­tais do gov­er­no nem está incluí­do no mun­do das feiras literárias. O que me faz pen­sar que o cam­in­ho está no arte­sanal e na força da cole­tivi­dade, em ini­cia­ti­vas onde o autor é tam­bém um faze­dor de livros. Acho fan­tás­ti­co, por exem­p­lo, o movi­men­to car­tonero na Améri­ca Lati­na! Ele rompe com toda essa lóg­i­ca de mer­ca­do, é cul­tur­al, políti­co, social, filosó­fi­co, poéti­co e de resistência.

    Lau Siqueira: As peque­nas edi­toras são, atual­mente, o prin­ci­pal cam­po de batal­ha da lit­er­atu­ra con­tem­porânea. O mer­ca­do edi­to­r­i­al está por demais con­cen­tra­do e as grandes edi­toras estão transna­cional­izadas. Não se inter­es­sam por lit­er­atu­ra brasileira. Menos ain­da pela lit­er­atu­ra con­tem­porânea. Se limi­tam, no máx­i­mo, à repub­li­cação dos canôni­cos. O que se vê pre­dom­i­nar nas grandes livrarias é uma lit­er­atu­ra estrangeira de baixa qual­i­dade ou mes­mo livros de auto-aju­da. As peque­nas edi­toras vêm cumprindo um papel impor­tan­tís­si­mo na con­dução da lit­er­atu­ra e espe­cial­mente da poe­sia con­tem­porânea. Com rarís­si­mas exceções, a lit­er­atu­ra brasileira con­tem­porânea tem pas­sa­do “muito bem, obri­ga­do” por fora das grandes edi­toras e até mes­mo por fora do mer­ca­do for­mal do livro. Não acho isso ruim. Pois o mer­ca­do do livro é algo extrema­mente per­ver­so, mafioso. Nós não exis­ti­mos para eles e eles não exis­tem para nós. E a vida continua.

    Marília Kub­o­ta: “microp­o­lis” é meu ter­ceiro livro de poe­mas. Escre­vo des­de os 15 anos, mas demor­ei para pub­licar o primeiro de livro poe­mas, “Sel­va de sen­ti­dos”, pro­duzi­do pela artista Jus­sara Salazar, em selo de sua auto­ria, o Água-forte Edições, em 2008; o segun­do foi “Esperan­do as bár­baras”, pub­li­ca­do pela Blanche, de Curiti­ba, em 2012. A Lumme é con­heci­da pela pub­li­cação de boa poe­sia, brasileira e estrangeira. Optei por esta edi­to­ra por causa de seu catál­o­go e qual­i­dade no tra­bal­ho de edição de Fran­cis­co San­tos. Se pudesse, gostaria de ser pub­li­ca­da pela Cosac Naify ou Record, mas sei que atual­mente só pagan­do um agente literário ou fazen­do lob­by se con­segue entrar numa grande editora.

    Você acha que poe­sia não vende, como reza a lenda?

    Vás­sia Sil­veira: Acho que quem lê poe­sia, com­pra poe­sia. Ago­ra é claro, vive­mos em uma sociedade onde o con­sumo está cada vez mais vin­cu­la­do ao mar­ket­ing. E no caso do livro parece que as estraté­gias têm que par­tir tam­bém do autor: o cara (ou a cara) tem que ser bom (ou boa) em mar­ket­ing pes­soal. Isso pra mim é um prob­le­ma, sabe? Porque sou meio bicho do mato e não ten­ho dis­posição para cri­ar um per­son­agem fora da literatura.

    Lau Siqueira: Não vende? Como assim? Baude­laire con­tin­ua venden­do. Fer­nan­do Pes­soa con­tin­ua venden­do. Drum­mond con­tin­ua venden­do. Sem­anal­mente são lançadas dezenas de livros de poe­sia no país inteiro. Alguns com óti­mos índices de ven­da. A pesquisa Retratos da Leitu­ra no Brasil, nos mostra que em algu­mas regiões, como a região do Pajeú (PE), a poe­sia é mais pop­u­lar que livro reli­gioso. Essa história de “poe­sia não vende” é que é uma len­da. É cer­to que ninguém está enrique­cen­do com ven­da de livro, mas diz­er que poe­sia não vende é uma blas­fêmia. Vende sim! O que não há é um úni­co autor venden­do demais. Há um cer­to equi­líbrio. Ain­da não está sendo pos­sív­el excur­sion­ar pela Europa com nos­sos livros, mas já é pos­sív­el via­jar para Curiti­ba e Flo­ri­anópo­lis, por exemplo.

    Marília Kub­o­ta: Lemins­ki uma vez escreveu num ensaio que os poet­as devi­am reju­bi­lar-se porque poe­sia não vende. Não vende porque é um inuten­sílio, não serve a ninguém nem a nada, a não ser para dar praz­er a quem cria e a quem apre­cia. Tem o mes­mo val­or de um bei­jo, o ato sex­u­al, con­tem­plar saguis no Par­que Bar­reir­in­ha ou matar o tra­bal­ho para ir ao cin­e­ma. Hoje, quan­do tudo, até a nos­sa opinião e gos­tos se trans­for­maram em mer­cado­ria para as empre­sas pon­to­com, a poe­sia segue como peça de resistên­cia. O mer­can­til­is­mo ten­ta a todo cus­to com­prar o poeta, espe­cial­mente o ini­ciante, que se deslum­bra com prêmios, para­tex­tos literários e a mídia. Mas a poe­sia resiste, diverte-se à margem do sis­tema, encar­na­da em pal­haços como o per­former Hélio Leite, que poucos críti­cos doutores con­sid­er­ari­am poeta, mas até se tornou per­son­agem de Adélia Pra­do. Glau­co Mat­toso, Ricar­do Cha­cal, Alice Ruiz, Leila Mic­co­l­is, Nicholas Behr, Dou­glas Diegues, Jose Koz­er, Rey­nal­do Jimenez são a evo­cação da graça, seguin­do a máx­i­ma de Oswald de Andrade: a ale­gria é a pro­va dos 9. Se não existe diver­são não é poe­sia. Vender ou não vender não faz parte dos ócios do poeta.

    poeta Marília Kubota
    Marília Kub­o­ta

    Que estraté­gias os poet­as devem usar para dis­tribuir seu livro?

    Vás­sia Sil­veira: Olha, min­ha exper­iên­cia não aju­da a respon­der esta questão. A úni­ca coisa que enten­do de dis­tribuição é o que fiz com o “Febre Terçã”: saí dis­tribuin­do, lit­eral­mente, entre ami­gos e leitores de poesia.

    Lau Siqueira: Acho que a prin­ci­pal estraté­gia é a ven­da dire­ta. Faz­er tardes, noites,manhãs de autó­grafo. Olhar no olho do leitor. Usar as redes soci­ais para dis­tribuí-lo nacional e inter­na­cional­mente. Os esque­mas de dis­tribuição nas redes de livraria são char­mosos, mas extrema­mente des­fa­voráveis aos poet­as em todos os sen­ti­dos. Bus­car os lugares alter­na­tivos é a prin­ci­pal estraté­gia. Mon­teiro Loba­to já fazia isso nos anos 30. Escreveu uma car­ta para com­er­ciantes do país inteiro com a seguinte per­gun­ta: “você quer vender, tam­bém, uma coisa chama­da livro?” Com isso abriu mais de 2.000 pos­tos de ven­da para os seus livros, em armazéns, far­má­cias, esta­b­elec­i­men­tos diver­sos espal­ha­dos no Brasil. A cul­tura alter­na­ti­va, aliás, pos­sui um mer­ca­do bem gen­eroso e razoavel­mente democráti­co espal­ha­do pelo Brasil.

    Marília Kub­o­ta: O bacana da poe­sia é encon­trar out­ros poet­as. As estraté­gias vão acon­te­cen­do com os encon­tros. Dois poet­as jun­tos são pólos que atraem ener­gias pos­i­ti­vas e poten­cial­izam a cri­ação do com­bustív­el mais poderoso do plan­e­ta, a ale­gria. O encon­tro entre dois cri­adores gera feli­ci­dade; estraté­gias para dis­tribuir livros surgem das faís­cas de feli­ci­dade: os poet­as podem doar seus livros uns aos out­ros — como fazem com fre­quên­cia — ou con­tratar uma dis­tribuido­ra — o que é pouco prováv­el — ou par­tic­i­par de even­tos para vender seus par­cos exem­plares. O fato é que os livros de poe­sia são mila­grosa­mente dis­tribuí­dos. Uma pesquisa fei­ta na últi­ma FLIP rev­el­ou que os livros mais ven­di­dos foram de poe­sia. Mas a poe­sia sem­pre sobre­viveu fora dos megaeven­tos de mer­ca­do, porque em cada can­to do plan­e­ta há poet­as juve­nis, poet­as madames, poet­as empreende­dores, poet­as eru­di­tos, que se gal­va­nizam à voz dos men­estréis, ou seja, ain­da há neces­si­dade de cul­ti­var algo que não tem util­i­dade para o mercado.

    Qual a sua visão sobre a poe­sia contemporânea?

    Vás­sia Sil­veira: Ten­ho curiosi­dade e descon­fi­ança ao mes­mo tem­po. Curiosi­dade em desco­brir o que de bom está sendo pro­duzi­do e descon­fi­ança com o que o mer­ca­do (e as redes soci­ais) me diz que é bom. Movi­da por ess­es dois sen­ti­men­tos, acabo me refu­gian­do muitas vezes na poe­sia de autores que me acom­pan­ham des­de sem­pre, o que não deixa de ser uma grande ironia…

    Lau Siqueira: Está acon­te­cen­do, ape­sar de tudo. Há uma diver­si­dade imen­sa. Numa quan­ti­dade assus­ta­do­ra. Um bom garim­po nos per­mite encon­trar poet­as impor­tantes como Sér­gio de Cas­tro Pin­to, Antônio Brasileiro, Líria Por­to, Glau­co Mat­toso e muitos out­ros. Existe um panora­ma nacional se con­sol­i­dan­do cada vez mais, entre dilu­idores e sui­ci­das. As pes­soas estão, de for­ma muito saudáv­el, se afa­s­tan­do dos chama­dos “cabeças de rede”. Mas, acho que ain­da é cedo para um olhar mais definidor. Alguém já disse que o cenário atu­al se parece com um liq­uid­i­fi­cador lig­a­do. Ain­da não dá pra medir a qual­i­dade do suco.

    Marília Kub­o­ta: não é difer­ente a poe­sia con­tem­porânea da poe­sia do pas­sa­do. Alguém já disse que as redes soci­ais democ­ra­ti­zaram a imbe­ciliza­ção. Não sabíamos que havia tan­tos poet­as por aí, ago­ra esbar­ramos com eles em todos os lugares. Creio que na ver­dade há poucos poet­as, isto é, poucos de fato se dedicam à pesquisa de lin­guagem, a cri­ar algo novo. No Brasil, depois dos anos 90, temos Paulo Hen­riques Brit­to, Arman­do Fre­itas Fil­ho, a poe­sia demoli­do­ra de Sebastião Nunes, Lucila Nogueira, Deb­o­ra Bren­nand. Entre os mais novos, Car­l­i­to Azeve­do, Clau­dio Daniel, Miche­liny Verun­schk, Jus­sara Salazar e Rodri­go Gar­cia Lopes. Da safra da nova ger­ação (00), a sin­gu­lar­i­dade e insu­lar­i­dade de Nydia Bonet­ti, emb­o­ra ela ten­ha 50 anos. Uma novi­dade é a poe­sia étni­ca, isto é, poet­as negros com con­sciên­cia de sua iden­ti­dade étni­ca, como Edim­il­son de Almei­da Pereira e Nina Rizzi, trazen­do à baila não ape­nas a reivin­di­cação da negri­tude, mas vozes estra­nhas ao dis­cur­so canônico.

    poeta Vássia Silveira
    Vás­sia Silveira

    Como vê a ansiedade dos novos autores em relação a prêmios literários ou indi­cações, a neces­si­dade de ser legit­i­ma­do a qual­quer cus­to, seja nego­cian­do pre­fá­cios com críti­cos ou matérias em jornais?

    Vás­sia Sil­veira: Acho engraça­do e des­o­lador ao mes­mo tem­po. Engraça­do porque parece que isso real­mente tem fun­ciona­do (e daí a descon­fi­ança sobre a qual falei ante­ri­or­mente). E des­o­lador porque essa práti­ca mostra que a lit­er­atu­ra, em alguns casos, está deixan­do de ser um proces­so de reflexão e amadurec­i­men­to do autor com o tex­to. E veja, estou dizen­do isso e me colo­can­do, tam­bém, como uma auto­ra nova. Porque min­ha relação com o tex­to está sem­pre inacaba­da, é um per­cur­so que me sin­to obri­ga­da a faz­er. E que não depende da legit­i­mação do out­ro. Pra ser bem hon­es­ta, toda vez que leio ou ouço alguém se referir a mim como “poeta”, sin­to um calafrio na espin­ha. Porque ten­ho medo do peso e da respon­s­abil­i­dade des­ta palavra. Pre­firo pen­sar que estou no entre-lugar da poesia.

    Lau Siqueira: Per­da de tem­po. Esse tipo de coisa a psi­canálise resolve. Cada poeta é abso­lu­ta­mente respon­sáv­el pela sua poe­sia. A pre­ocu­pação cen­tral do poeta (novo ou vel­ho) deve ser com a met­alur­gia da palavra. Escr­ev­er um poe­ma é uma ativi­dade muito difí­cil. Dividir essa pre­ocu­pação com a neces­si­dade de alpin­is­mo é a negação da própria poe­sia. Os prêmios não rep­re­sen­tam nada. Abso­lu­ta­mente nada. Os pre­fá­cios robus­tos aju­dam na ter­apia, mas não resolvem a cura. Matéria em jor­nal não rep­re­sen­ta nada, porque os jor­nal­is­tas não leem nem o próprio jor­nal que edi­tam, imag­ine livros de poe­sia. A “fama postiça” resolve ape­nas a neces­si­dade de afir­mação social de cer­tos poet­as, jovens de qual­quer idade.

    Marília Kub­o­ta: Vejo com pre­ocu­pação a ansiedade do poeta jovem em ser con­sagra­do ime­di­ata­mente. “Poeta bom é poeta mor­to” é um adá­gio que con­sidero váli­do para man­ter a autocríti­ca em alta. Flo­ra Sussekind escreveu, no ano de 2005, o arti­go “Hagiografias”, em que anal­isa­va a poe­sia de três autores da Poe­sia Mar­gin­al: Caca­so, Ana Cristi­na César e Paulo Lemins­ki, mor­tos e em vias de serem can­on­iza­dos. Dois seri­am sui­ci­das, ape­nas Caca­so mor­re­ria por fatores nat­u­rais, mas emped­ernido críti­co da ditadu­ra mil­i­tar. O que impor­ta hoje para o poeta – ou escritor – é o recon­hec­i­men­to críti­co antes que o autor encon­tre a voz poéti­ca. Para isto, vale tudo, des­de ser empreende­dor mambe­m­be até baju­lar novos edi­tores, críti­cos e out­ros poet­as. Há novos autores que declar­am não ter capaci­dade para comen­tar o tra­bal­ho de seus pares e se colo­cam à frente de sites que emu­lam revis­tas literárias. Para ser poeta é pre­ciso ter lido muito, e de for­ma vari­a­da, ou seja, lou­ca­mente. A leitu­ra fornece o sen­so críti­co para sep­a­rar o joio do tri­go. Ao recon­hecer que não têm sen­so críti­co, tais autores fazem auto­pro­pa­gan­da neg­a­ti­va: não têm leitu­ra sufi­ciente para se auto-avaliar, como poderão ser avali­a­dos por out­ros leitores ? Numa dis­cussão sobre os aten­ta­dos em Paris, lem­brei o final de “A mon­tan­ha mág­i­ca”, de Thomas Mann: “Será que tam­bém da fes­ta uni­ver­sal da morte, da per­ni­ciosa febre que ao nos­so redor infla­ma o céu des­ta noite chu­vosa, sur­girá um dia de amor?” Um autor que escre­va um tex­to como este não pre­cisa ser dis­tin­gui­do com um prêmio. O prêmio é sua lin­guagem ter atingi­do o mais alto nív­el de com­preen­são e beleza sobre a com­plex­i­dade da natureza humana.

    Quais são seus livros de cabe­ceira ? Há um autor que pode ser con­sid­er­a­do uma influên­cia literária?

    Vás­sia Sil­veira: Con­tin­uo me encon­tran­do e me des­en­con­tran­do no “Grande Sertão: Veredas”, no “Livro do Desas­sossego” e em “Água Viva”. E fun­da­men­tal­mente em um livrin­ho pequeno que gan­hei aos 15 anos de meu pai e que inclu­sive dei de pre­sente tam­bém para min­ha fil­ha mais vel­ha: o “Car­tas a um jovem poeta”, do Rilke. Então acho que pos­so diz­er que estes são meus livros de cabe­ceira. Sobre a influên­cia literária, é com­pli­ca­do… Não sei se pos­so apon­tar o nome de um autor ou auto­ra somente. Porque tudo o que me afe­ta pas­sa, de algu­ma maneira, a faz­er parte de min­has angús­tias em relação à escri­ta. O que pos­so diz­er é que min­ha aven­tu­ra como leito­ra foi mar­ca­da a fer­ro e fogo, e ain­da na ado­lescên­cia, por Dos­toievs­ki e pela poe­sia de Manuel Ban­deira, Muri­lo Mendes, Drum­mond… Eu não acharia nada ruim se pudesse escr­ev­er como eles ou como a Clarice, a Ana Cristi­na César, a Hilst.

    Lau Siqueira: Não sei se ten­ho livros de cabe­ceira. Mas, autores de cabe­ceira. Sem­pre leio Antônio Cân­di­do, Ezra Pound, João Alexan­dre Bar­bosa, Joan Brossa, Maiakovs­ki, Fer­nan­do Pes­soa, João Cabral, Augus­to de Cam­pos, Drum­mond e alguns poucos autores. Mis­turo poet­as e teóri­cos, mas ando lendo poucos romances. No entan­to, sou aber­to às influên­cias não ape­nas de poet­as, mas de músi­cos como Jards Macalé, Ita­mar Assunção, Chico Cesar, Zeca Baleiro e out­ros tantos.

    Marília Kub­o­ta: Con­sidero Manuel Ban­deira e Jorge de Lima os poet­as maiores do Brasil. Ten­ho lido tam­bém e apre­ci­a­do a obra de Muri­lo Mendes. Mas Paulo Hen­riques Brit­to e Arman­do Fre­itas Fil­ho são hoje nos­sos poet­as maiores. Me admi­ra quan­tos leitores ain­da se deix­am cati­var por Emi­ly Dick­in­son, auto­ra que cultuei na juven­tude, e Clarice Lispec­tor. Por com­pro­mis­sos profis­sion­ais leio mui­ta lit­er­atu­ra japone­sa, entre estes Banana Yoshi­mo­to e o best sell­er Haru­ki Muraka­mi, mas sei que a lit­er­atu­ra deles é bobagem. Gos­to dos tankas de Takuboku Ishikawa e Akiko Yosano, além dos qua­tro grandes mestres haicais­tas, Bashô, Buson, Issa e Shi­ki e de haicais­tas do Brasil, Nen­puku Sato, Masu­da Goga e Teruko Oda. E adoro a poe­sia pop­u­lar brasileira, a MPB: ouço de Chico Buar­que a Edval­do San­tana, Estrela e Téo Ruiz e os incríveis PoETs, a ban­da dos poet­as Alexan­dre Brito, Ricar­do Sil­vestrim e Ronald Augusto.

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    Lau Siqueira

    O que faz­er com o cânone literário ? O cânone é uma refer­ên­cia para a obra de vocês ou estão na tur­ma do deixa isto pra lá?

    Vás­sia Sil­veira: A ideia de cânone me inco­mo­da quan­do pen­so que há, por trás dela, uma relação históri­ca de poder que pas­sa não só pela acad­e­mia e por aqui­lo que ela legit­i­ma como “alta lit­er­atu­ra”, mas tam­bém pelo olhar do oci­dente em relação ao ori­ente; ou da Europa em relação à África, Ásia e Améri­ca Lati­na. Por isso pre­firo pen­sar no que não faz­er com o cânone: ter uma pos­tu­ra ingênua frente a ele. Isso não sig­nifi­ca, de for­ma algu­ma, ignorá-lo (ou ignorá-los, já que o cânone é diver­so e mutáv­el). Porque seria mui­ta estu­pid­ez min­ha “deixar para lá” autores como Dos­toievs­ki, Tol­stói, Shake­speare, Goethe, Kaf­ka, Virgí­nia Woolf, Home­ro, Cer­vantes, Borges, Pound e Mal­lar­mé para falar de alguns estrangeiros que li e sin­to a neces­si­dade de rel­er; ou de Macha­do de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispec­tor, Gra­cil­iano Ramos, Oswald de Andrade, Harol­do de Cam­pos, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Muri­lo Mendes, Manuel Ban­deira. Enfim… Acho que é impor­tante lê-los com fome sufi­ciente para saber que há out­ras leituras inqui­etantes e não can­on­izadas. É pre­ciso desco­bri-las também.

    Lau Siqueira: Geral­mente isso tem mais a ver com políti­ca literária que com poe­sia. Eu vejo isso de for­ma muito lib­ertária. Não é assun­to que deva pre­ocu­par um poeta. Que os gen­erais da cena que deci­dam quem deve viv­er ou mor­rer. Não me inter­es­sa. Não per­co meu tem­po escol­hen­do fita métri­ca para saber quem é maior ou menor. Quan­do gos­to de um autor, não inter­es­sas se é con­sid­er­a­do canôni­co ou não.

    Marília Kub­o­ta: Ulti­ma­mente leio poucos autores canôni­cos. Gostaria de ler mais Shake­speare e lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa e france­sa. Mas ten­ho descober­to os autores de lín­gua por­tugue­sa, de Por­tu­gal e ex-colô­nias: Sara­m­a­go, Gonça­lo Tavares, Sophia de Mel­lo Breyn­er Andresen, Hel­ber­to Helder, Adília Lopes. Por isto me vêm a ideia de ler mais Camões, ape­sar de que quase todo bom autor em lín­gua por­tugue­sa difi­cil­mente deixará de sofr­er a influên­cia do autor de Os Lusíadas. Emb­o­ra não seja con­sid­er­a­do no cânone oci­den­tal, um pro­je­to meu é ler o Heike mono­gatari, clás­si­co que mar­ca a ascen­são do shogu­na­to no Japão.

    Como fica a questão da solidão cria­ti­va hoje, quan­do vive­mos numa sociedade hiperconectada?

    Vás­sia Sil­veira: A min­ha vai muito bem, obri­ga­da. Primeiro porque gos­to e pre­ciso da solidão. E segun­do porque sou lou­ca o bas­tante para me man­ter conec­ta­da com a min­ha própria vida, o que já rende matéria sufi­ciente para me tirar o sono, a fome e muitas vezes o riso. E quan­do falo da min­ha própria vida não estou me referindo às mis­érias cotid­i­anas da Vás­sia enquan­to mãe, mul­her, fil­ha. Mas das angús­tias da Vás­sia enquan­to ser, estar e ver o mun­do. Isso sig­nifi­ca, por exem­p­lo, que você não vai me encon­trar, na rua ou no ônibus, com os olhos pre­ga­dos a uma tela, porque ten­ho o pés­si­mo hábito de obser­var as pais­agens, as pes­soas, aque­la “vida besta” que fala­va Drum­mond. Então, para mim, a hiper­conec­tivi­dade é uma grande farsa, uma distração.

    Lau Siqueira: A solidão, hoje, é cole­ti­va. Exerci­ta­mos nos­sa solidão nas redes soci­ais sem nen­hum pudor. Meu últi­mo livro, o Livro arbítrio, foi inte­gral­mente escrito no Face­book. É fru­to de uma solidão com­par­til­ha­da, cur­ti­da e comen­ta­da. Esta­mos viven­do no sécu­lo XXI e não no sécu­lo XIX. Na solidão do sécu­lo XIX não tin­ha Wi-fi.

    Marília Kub­o­ta: Ten­ho neces­si­dade de solidão para cri­ar. Quan­do estou em casa, em Curiti­ba, pas­so quase a maior parte do tem­po a sós, lendo ou escreven­do. Através da inter­net con­si­go con­ver­sar com par­ceiros para pro­duzir pro­je­tos ou even­tos literários. Por força de com­pro­mis­sos profis­sion­ais e famil­iares, ten­ho menos momen­tos de solidão do que gostaria. Muitos falam que o autor deve se iso­lar para escr­ev­er – ir para a pra­ia, fora de tem­po­ra­da, ou a algum lugar dis­tante. Gostaria de poder faz­er isto, mas é quase impos­sív­el. Se eu fos­se para um paraí­so ecológi­co ou uma aldeia, duvi­do que ficas­se desconectada.

    Vocês moram em cidades peque­nas. Acham que não é necessário morar no eixo Rio-São Paulo para pro­je­tar suas obras?

    Vás­sia Sil­veira: Bem, acho que temos exem­p­los recentes provan­do que não…

    Lau Siqueira: No eixo-Rio/Sam­pa pre­dom­i­nam as per­ife­rias, onde a sobre­vivên­cia se assemel­ha às peque­nas cidades onde moramos. O país foi con­stru­in­do novas refer­ên­cias, sem que se faça necessário bus­car um “cen­tro de pro­jeção”. No mais, pra que pro­jeção? Vamos viven­do o que nos cabe.

    Marília Kub­o­ta: Com a sociedade con­ste­la­da cri­a­da pela conexão por satélite, não parece mais necessário morar em metrópoles, como Rio e São Paulo. Mas o eixo cul­tur­al con­tin­ua sendo as duas cidades, no Brasil. Se você é artista, não pode deixar de mostrar seu tra­bal­ho no Rio e em São Paulo para se pro­je­tar nacional­mente. Mas não é pre­ciso mais morar e tra­bal­har nes­tas cidades.

    A questão social em poe­sia é ultra­pas­sa­da ? Poe­sia enga­ja­da é sem­pre pan­fletária? Como vê a apoli­ti­za­ção de parte dos poet­as con­tem­porâ­neos, que optam por um ativis­mo sele­ti­vo — em relação a questões étni­cas ou de gênero, ou à ecolo­gia, por exem­p­lo, deixan­do de se posi­cionar sobre grandes questões da humanidade, como as guer­ras e a políti­ca nacional e internacional?

    Vás­sia Sil­veira: Não acho que seja ultra­pas­sa­da e tam­bém não gos­to de rotu­lar como “pan­fletária” a poe­sia enga­ja­da. Sin­to inve­ja dos autores que con­seguiram ou con­seguem levar para a poe­sia, e de for­ma clara, as grandes questões de seu tem­po. Ten­ho con­sciên­cia de que não con­si­go faz­er isso, pelo menos não ain­da. Sou lenta, demoro a proces­sar aqui­lo que me impacta, o que faz com que eu facil­mente seja encaix­a­da nesse per­fil que você traçou e criti­cou na últi­ma per­gun­ta. Acho mais fácil, por exem­p­lo, me posi­cionar de for­ma inci­si­va em relação a questões étni­cas e/ou de gênero porque tive mais tem­po para digerir a vio­lên­cia embu­ti­da nelas. E não por ser apolíti­ca, muito menos por não me inter­es­sarem as guer­ras civis, o dra­ma dos refu­gia­dos, o fun­da­men­tal­is­mo, o ódio ao PT, as manobras da políti­ca inter­na­cional e seus des­do­bra­men­tos na Améri­ca Lati­na, na África ou na Ásia. Essas são questões que me afligem e sobre as quais procuro refle­tir e me posi­cionar em out­ras instân­cias. Ago­ra veja, estou falan­do de min­ha exper­iên­cia. Não pos­so respon­der pelo silên­cio dos outros.

    Lau Siqueira: A poe­sia tran­si­ta livre­mente pelo tem­po. Em qual­quer tem­po. As temáti­cas escol­hi­das não alter­am o pro­du­to final do poe­ma. Nen­hu­ma questão social ou políti­ca é ultra­pas­sa­da. Na ver­dade são questões desafi­ado­ras para a usi­na cria­ti­va de cada um. Cada qual sabe por onde cam­in­ha, mas existe até mes­mo um cer­to pre­con­ceito quan­to às escol­has temáti­cas desse tipo, o que eu acho uma bobagem. A matéria da poe­sia é a palavra. O resto é cenário.

    Marília Kub­o­ta: A sociedade con­ste­la­da facil­i­tou a seg­men­tação e for­t­ale­ceu a iden­ti­dade cole­ti­va. Stu­art Hall fala sobre as iden­ti­dades móveis, em que o indi­ví­duo aban­dona a iden­ti­dade com a nação e o ter­ritório, bus­can­do out­ro tipo de sub­je­tivi­dade, nômade. Durante muito tem­po me iden­ti­fiquei como nipo-brasileira até perce­ber que a hif­eniza­ção não faz sen­ti­do: sou brasileira. Mas a aceitação de um biótipo difer­ente do europeu ain­da está em proces­so na sociedade brasileira. A luta das mino­rias soci­ais, dos imi­grantes, das fem­i­nistas, dos negros, dos homos­sex­u­ais, emb­o­ra pareça assim­i­la­da, ain­da está em processo.

    Acho impor­tante dis­cu­tir estas questões, porque em tem­pos de recrude­sci­men­to políti­co, tais mino­rias são as primeiras a serem social­mente rechaçadas. Creio que o poeta jamais abstém-se de ter uma posição políti­ca. Eu me recu­sei a faz­er parte de duas antolo­gias patroci­nadas pelo gov­er­no do Esta­do do Paraná. Uma de con­tos, orga­ni­za­da pelo escritor Luiz Ruf­fat­to, e out­ra de poe­sia, orga­ni­za­da por Ademir Demarchi. Foi numa época em que o gov­er­no fechou vários espaços cul­tur­ais em Curiti­ba, can­celou ver­bas para pro­je­tos cul­tur­ais no esta­do e apro­pri­ou-se dos dire­itos autorais dos colab­o­radores do JORNAL NICOLAU, para faz­er uma edição fac-sim­i­lar, que até hoje está à ven­da. O NICOLAU, cri­a­do por uma equipe coman­da­da pelo artista grá­fi­co Luis Antônio Guin­s­ki e pelo poeta Wil­son Bueno fez história na cul­tura do Paraná e do Brasil. A recusa foi um protesto con­tra os des­man­dos deste gov­er­no, que cul­mi­nou no episó­dio de 29 de abril, o Mas­sacre do Cen­tro Cívi­co. Na época em que come­cei a denun­ciar os abu­sos do gov­er­no do Paraná nas redes soci­ais, muitos me adver­ti­ram para ficar cal­a­da. Nun­ca con­segui ficar cal­a­da, por isto jamais rece­bi indi­cações para par­tic­i­par de even­tos literários, mas os cole­gas mais dóceis rece­ber­am. Declinei de par­tic­i­par da antolo­gia “O ver­so da vio­lên­cia”, pub­li­ca­do pela Edi­to­ra Patuá. Emb­o­ra tra­ga reg­istros impor­tantes, feitos pelos fotó­grafos Lina Faria e Bruno Cov­el­lo, me pare­ceu que a pub­li­cação da antolo­gia não faria difer­ença na oposição a este gov­er­no arbi­trário, no qual muitos se aproveitam para pro­mover inter­ess­es pes­soais através da máquina pública.

  • A Pequena Sereia (2011), de Nicholas Humphries | Curta

    A Pequena Sereia (2011), de Nicholas Humphries | Curta

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    No con­to “O pescador e sua alma”, o escritor irlandês Oscar Wilde nar­ra a dramáti­ca história de amor entre seres de dois mun­dos dis­tin­tos: de um lado, o homem da ter­ra que, con­sum­i­do pela paixão, é capaz de abdicar da própria alma. Do out­ro, a encan­ta­do­ra sereia, figu­ra mitológ­i­ca que per­tence ao mar. Depois de infini­tos per­calços e dores, o apaixon­a­do pescador encon­tra a redenção através do amor.

    Hans Chris­t­ian Ander­sen, famoso cri­ador de con­tos de fadas, tam­bém abor­dou a figu­ra da sereia, apresentando‑a como uma criatu­ra que ama e sofre em dos­es cav­alares. Anos depois, adoçan­do con­sid­er­av­el­mente a história, os estú­dios Dis­ney imor­talizaram – e recri­aram — a per­son­agem de Ander­sen com o filme “A Peque­na Sereia”, em que a jovem prince­sa Ariel, rui­va, espir­i­tu­osa e trav­es­sa, vive queren­do desco­brir como é a vida fora do mar. Ela se apaixona per­di­da­mente por um príncipe humano e seus prob­le­mas começam.

    pequena-sereia-nicholas-humphries-posterEm 2011, a peque­na sereia ressurge sem enre­dos de amor; pelo con­trário, ela é a atração macabra de um freak show circense coman­da­do por um sujeito com aparên­cia de Mági­co de Oz. Esse é o pano de fun­do de “A Peque­na Sereia” (orig­i­nal The Lit­tle Mer­maid), cur­ta-metragem do dire­tor Nicholas Humphries em parce­ria com a roteirista Mea­gan Hotz, auto­ra da versão.

    As cenas ini­ci­ais do cur­ta car­regam nos­so imag­inário para den­tro de um pân­tano aban­don­a­do, salpic­a­do por luzes que bal­ançam como pên­du­los em meio à névoa. Uma sen­sação mias­máti­ca de hor­ror e podridão começa a per­cor­rer os olhos e descer até à gar­gan­ta. Pás­saros sobrevoam o lugar, pas­san­do como bólide pela ten­da do cir­co de hor­rores ergui­da no meio do nada.

    Den­tro do anfiteatro em ruí­nas, uma dúzia de almas curiosas obser­vam os movi­men­tos de uma sereia den­tro da dimin­u­ta ban­heira em que se encon­tra. Ao con­trário da beleza eston­teante imor­tal­iza­da pelos con­tos de fadas, a sereia do cir­co é uma criatu­ra híbri­da: car­ac­terís­ti­cas humanas se mis­tu­ram a ele­men­tos mar­in­hos, como cau­da e esca­mas. No lugar do ros­to par­nasiano, uma sequên­cia de cortes que lem­bram guelras.

    Diante da peque­na plateia, con­sti­tuí­da essen­cial­mente de tra­bal­hadores e pes­soas sim­ples, o sádi­co dire­tor do cir­co lança a semente da vio­lên­cia, bru­tal­izan­do e ridic­u­lar­izan­do a sereia. Um dos ele­men­tos mais inter­es­santes do cur­ta é a ausên­cia com­ple­ta de falas: todos os “diál­o­gos” são real­iza­dos por meio de ima­gens visuais e comu­ni­cação cor­po­ral — no caso da sereia, o olhar sig­ni­fica­ti­vo gri­ta sozinho.

    Diante da fal­ta de com­paixão do homem que a man­tém pri­sioneira e da dor de ter seu coração esma­ga­do pela indifer­ença, a sereia pre­cisa desco­brir uma for­ma de livrar-se dos con­stantes abu­sos, agar­ran­do-se à ideia de liberdade.

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    No filme, o tom sépia enfa­ti­za a nos­tal­gia quente, refleti­da em um ambi­ente arru­ina­do, mas que con­tin­ua des­per­tan­do inter­esse por con­ta da ten­tação humana em absorv­er o bizarro. Out­ro pon­to que merece destaque – tam­bém pelo uso do sépia — é a aura de sen­su­al­i­dade que bro­ta do descon­heci­do. A len­da do hip­nóti­co can­to da sereia tam­bém está pre­sente no cur­ta e tem sua primeira aparição escon­di­da em uma cena. No momen­to em que o espec­ta­dor a encon­tra, ele con­segue dialog­ar com a criatu­ra do mar.

    Dire­cio­nan­do o olhar para o ter­ror fan­tás­ti­co, Nicholas Humphries investe em efeitos visuais (luz, maquiagem e edição são pri­morosos) e na cri­ação de uma atmos­fera imag­i­na­ti­va e neb­u­losa. Para os fãs do escritor Stephen King e de séries como Amer­i­can Hor­ror Sto­ry, o cur­ta “A Peque­na Sereia” é um ver­dadeiro banquete.

    Assista o cur­ta “A Peque­na Sereia” abaixo:

    http://vimeo.com/27233664

     

  • Olhai para o céu | Crônica

    Olhai para o céu | Crônica

    Imagem do telescópio Hubble, da NASA
    Imagem do telescó­pio Hub­ble, da NASA

    Nestes dias de super­lua e pôr-de-sol alaran­ja­do todos olham para o céu. Diante de fenô­menos astronômi­cos e geofísi­cos extra­ordinários volta­mos a ser mul­heres e home­ns pale­olíti­cos, embas­ba­ca­dos pelo poder das forças nat­u­rais, Pas­samos a girar em torno de satélites, astros e estre­las do zodía­co. Não como sim­ples con­sulentes de horós­co­pos, mas como seres deslum­bra­dos sob o cos­mo desconcertante.

    Não por aca­so há uma cor­re­spondên­cia entre os sig­nos celestes e os sig­nos lin­guís­ti­cos. “As estre­las no céu lem­bram as letras no papel”, can­tou o poeta. Nos primór­dios, a lua e as estre­las eram fonte de inspi­ração para os aedos. Can­ta­va-se para uma noite român­ti­ca, que ocul­ta­va em seu man­to negro galáx­i­as a serem descober­tas por cien­tis­tas e astrônomos, sécu­los adi­ante. Munidos de lune­tas e telescó­pios potentes, os cien­tis­tas desmisti­ficaram a abóba­da celeste. Ape­sar de hoje saber­mos que as estre­las que vemos no céu são cor­pos moven­do-se a anos-luz da Ter­ra, o encan­to não se diluiu.

    Falan­do em roman­tismo, emb­o­ra para a maio­r­ia dos oci­den­tais esta face não seja a mais visív­el, o japonês tem sua porção sen­ti­men­tal­ista bem acen­tu­a­da. Evo­can­do o mote “olhar para o céu”, lem­bro uma canção que fez suces­so nos anos 60: Ue wo muite aruk­ou. Na voz de Kyu Sakamo­to, a canção japone­sa, cuja tradução do títu­lo é Ande olhan­do para o céu, cru­zou os mares e ecoou nas Améri­c­as, reba­ti­za­da nos Esta­dos Unidos como Sukiya­ki.

    A letra aparente­mente abor­da um fra­cas­so amoroso e inci­ta o amante rejeita­do a seguir em frente, de cabeça ergui­da. A canção, que em 1963 atingiu o topo das paradas de suces­so amer­i­canas, tornou-se um hino para os japone­ses. Não se tra­ta de uma sim­ples canção român­ti­ca. Seu autor, Rokusuke Ei, escreveu a letra enquan­to ia para casa, voltan­do de protesto estu­dantes japone­ses con­tra a pre­sença mil­i­tar dos amer­i­canos no Japão. Des­de a der­ro­ta na 2a. Guer­ra Mundi­al, o Japão se tornou uma nação ocu­pa­da e até hoje a ilha de Oki­nawa man­tém uma base mil­i­tar amer­i­cana, tor­nan­do-se um pon­to estratégi­co dos EUA no mapa geopolíti­co da Ásia. Vários can­tores do mun­do todo gravaram a canção, inclu­sive brasileiros. Há uma ver­são da canção em que Daniela Mer­cury a can­ta, em japonês, com sotaque e rit­mos brasileiros. Para lev­an­tar os âni­mos dos japone­ses desabri­ga­dos pelo tsunâ­mi de 2011, vários músi­cos japone­ses gravaram a canção, com arran­jos que vão do pop ao jazz.

    Isto eu escrevi porque hoje faz 6 meses com­ple­tos de luto pela morte de meu com­pan­heiro. Durante 6 meses a ale­gria muitas vezes bateu à min­ha por­ta e eu a ignor­ei. Hoje à noite, olhan­do para céu, perce­bi que não pos­so mais deixar a por­ta tran­ca­da. Não pos­so chorar pelo ama­do que se foi pelo restante da vida. Ten­ho ami­gos que se enlu­taram e até hoje con­tin­u­am choran­do suas per­das. Mas não con­si­go mais resi­s­tir ao clam­or do céu.

    O céu que se alaran­jou na últi­ma sem­ana de out­ubro é a con­fir­mação de uma nova pri­mav­era. Pri­mav­era que per­gun­ta, em sus­sur­ro: “você perdeu seu com­pan­heiro e tem 51 anos. E ago­ra?” Ago­ra só pos­so con­tin­uar ouvin­do Ue wo muite aruk­ou e andar olhan­do para o céu.

  • Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    cada-homem-e-uma-raca-mia-couto-livroCon­heci a lit­er­atu­ra de Mia Couto durante o perío­do em que fiz Doutora­do em Recife. Jun­tei-me a um grupo de estu­dos denom­i­na­do Lit­er­atu­ra Africana: nar­ra­ti­vas da des­col­o­niza­ção, sob a coor­de­nação de Sil­via Cortez Sil­va, min­ha pro­fes­so­ra e ori­en­ta­do­ra. Entre cafez­in­hos, bolos, livros e boa con­ver­sa, Mia Couto foi sendo assim­i­la­do por mim, ou mel­hor, ele foi comi­do, cheira­do, absorvi­do pela min­ha fome de lit­er­atu­ra e poesia.

    Mia Couto nasceu em Beira, Moçam­bique, no ano de 1955. Faz parte de uma ger­ação de escritores africanos de lín­gua por­tugue­sa. Her­dou da cul­tura oral africana a habil­i­dade de ouvir e con­tar nar­ra­ti­vas. Na min­ha edição do livro “Cada homem é uma raça: con­tos” (edi­to­ra Cia das Letras, 2013), inspi­rador dessa resen­ha afe­ti­va e reflex­i­va, ten­ho reg­istra­do na con­tra­ca­pa um breve autó­grafo do autor: “À Ana Cristi­na. Bei­jo. Mia Couto. 2013.” Guar­do com muito car­in­ho esse “quase” encon­tro, já que a obra foi um pre­sente de min­ha ex-ori­en­tan­da do cur­so de História, que ter­mi­nou por se encan­tar com a obra do autor após a leitu­ra de um arti­go meu sobre out­ro de seus livros: “O Out­ro pé da sereia”. Mia Couto é um dess­es autores que encan­ta pela per­for­mance estilista, pela notáv­el capaci­dade que tem de mover para sua escri­ta a sen­si­bil­i­dade e a del­i­cadeza de quem apren­deu que a mel­hor batal­ha não é trava­da nos cam­pos de guer­ra, mas nos domínios da escrita.

    O livro “Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de onze con­tos escritos em uma lin­guagem colo­quial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sen­ti­dos fáceis. Assim como a rep­re­sen­tação do numer­al onze, na numerolo­gia, diz respeito ao desafio e batal­ha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intri­g­ante por sen­ti­dos, já que os con­tos se ref­er­em a uma prob­lemáti­ca bas­tante opor­tu­na para nos­sa con­tem­po­ranei­dade: se cada pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual, qual é a intenção em se lev­an­tar ban­deiras e pre­con­ceitos con­tra o Out­ro? Se cada indi­ví­duo é uma fron­teira, quem me garante que não esta­mos todos em trân­si­to, em amar­go e sin­istro esta­do de embriaguez?

    Os onze con­tos se dis­tribuem pelo espaço do livro, mas ape­nas para que não o per­camos de vista. Eles infini­tam as fron­teiras do leitor e da leitu­ra, os levan­do para out­ros cenários atem­po­rais com per­son­agens que mais pare­cem humanos (talvez sejam). Ain­da no começo da obra, em for­ma­to de frag­men­to, Mia Couto nos faz pensar:

    Min­ha raça sou eu mes­mo. A pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual. Cada homem é uma raça, sen­hor Polícia.

    Toda essa advertên­cia para que o leitor se pre­pare para uma desci­da aos sub­ter­râ­neos do son­ho, da lou­cu­ra, da amar­gu­ra, do ciúme, da ausên­cia e da solidão. O que faze­mos quan­do nos­sa humanidade vaga em oscilantes dese­qui­líbrios de desumanidade? O que somos quan­do nos res­ta ape­nas o pesade­lo e a desilusão?

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de dese­qui­líbrios nar­ra­tivos equi­li­bra­dos pela suavi­dade e per­spicá­cia do autor, que enche de sen­ti­men­tos e ressen­ti­men­tos os sujeitos que tran­si­tam sob o espaço da obra. No con­to A Rosa Caramela, a per­son­agem é cor­cun­da e magra e tem uma des­ori­en­tação bas­tante ina­bit­u­al: vivia apaixon­a­da por está­tuas. Son­dam alguns que o moti­vo ten­ha sido o son­ho frustra­do de ser noi­va. Ela inven­tara-se noi­va no desas­sossego dos seus son­hos em ter uma fes­ta de casa­men­to com bril­hos e corte­jos. Enam­orou-se de está­tuas com a lev­eza de quem se apaixona pela frieza do amor não cor­re­spon­di­do. Era sua lou­cu­ra que a fazia perder o juí­zo? Ou teria sido a fal­ta de afe­tivi­dade com aque­la que era sem beleza para se aco­modar na (ir)realidade de um casamento?

    A lou­cu­ra de Rosa Caramela cruza-se na nar­ra­ti­va com a do Tio Geguê e do seu sobrin­ho, que pas­sam a nar­ra­ti­va viven­do em um uni­ver­so de insanidade e alu­ci­nação. Os dois per­son­agens vivem cada um a seu modo a desilusão da guer­ra e da orfan­dade. O Tio Geguê havia se tor­na­do par­tic­i­pante de um grupo de vig­ilân­cia e saben­do somente mar­char foi para guer­ra. O sobrin­ho, que vivia tem­pos de alu­ci­nação, acha­va ter fal­a­do com a mãe que nun­ca con­hecera. Ele imag­i­na­va que seu pais não quis­er­am “ver tran­si­tan­do de bicho para meni­no, ran­han­do bar­bas, magro até na tosse.” Ambos cam­in­ham pela nar­ra­ti­va ébrios de nascença e de ausên­cia e descon­fi­avam que “a morte se tor­na­va tão fre­quente que só a vida fazia espan­to”.

    Mas não é somente lou­cu­ra e alu­ci­nação que indi­vid­u­al­iza, human­iza e frag­iliza os per­son­agens da obra de Mia Couto. O moí­do cotid­i­ano do sofri­men­to cas­ti­ga e chega a cri­ar uma ilusão de per­tenci­men­to. Ros­alin­da é gor­da, cheia de saudades do sofri­men­to que havia vivi­do com seu fina­do mari­do Jac­in­to. No cemitério, por vin­gança, tro­ca as inscrições dos túmu­los viz­in­hos para que suas anti­gas namoradas não lhe aco­mo­dem saudades e choros. Espan­ca­da e traí­da, via no gesto sua últi­ma for­ma de vencer os ter­ríveis anos que havia pas­sa­do em sua com­pan­hia. Somente na morte seu sofri­men­to fin­d­a­va; somente na morte e na tro­ca do aqui jaz pode­ria ser final­mente esposa.

    A temáti­ca sobre machis­mo é recor­rente na obra de Mia Couto que inven­ta out­ro per­son­agem quase míti­co, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não acei­ta que sua mul­her fos­se pescar e desse ordem no bar­co. No intu­ito de desmo­bi­lizar a mul­her de suas intenções, ele leva o bar­co — jun­ta­mente com os fil­hos — para o alto das dunas. Fiz­era daque­la embar­cação primeiro sua mora­dia e depois o incen­deia a golpes de insanidade na frente dos fil­hos e da mul­her. Vivia a procu­rar seus olhos no mar e sem quer­er enx­er­gar que a mul­her pre­cisou ir tra­bal­har para traz­er man­ti­men­tos para casa. Des­de o princí­pio da nar­ra­ti­va, o leitor é adver­tido: “vive­mos longe de nós, em dis­tante fin­g­i­men­to. Desa­pare­ce­mo-nos. Porque nos prefe­r­i­mos nes­sa escuridão inte­ri­or?”.

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é uma lit­er­atu­ra de denún­cia sobre as difer­entes maneiras que ergue­mos muros e fin­camos ban­deiras.  A aparên­cia como req­ui­si­to de sofri­men­to é um bom gan­cho de pen­sa­men­to para refle­tir­mos a par­tir de qual momen­to nos­sa aparên­cia físi­ca pas­sa a ser deter­mi­nante para defin­i­mos quem somos. Os estrangeiros que per­am­bu­lam pelos con­tos de Mia Couto são víti­mas do olhar sem­pre indifer­ente do Out­ro. São persegui­dos e vivem sob olhar aten­to da descon­fi­ança e do medo. A len­da de amor entre um forasteiro e sua ama­da, que vivia em uma aldeia, é sig­ni­fica­ti­vo para perce­ber­mos como somos rápi­dos em faz­er jul­ga­men­tos e lentos em apri­morar nos­sa humanidade.

    O con­to O embodeiro que son­ha­va pás­saro nar­ra a história de um vende­dor de pás­saros que pas­sa a ser o prin­ci­pal sus­peito em uma colô­nia de estrangeiros, que viam com descon­fi­ança aque­la difí­cil con­vivên­cia com um homem pobre e pre­to, que vivia a andar pelo lugar venden­do pás­saros e a roubar das cri­anças des­cuida­dos inter­ess­es. Aque­les que não gostavam daque­la inad­e­qua­da junção sen­ti­am ciúmes do pas­sa­do, da feliz arru­mação das criat­uras pela aparên­cia. Em um des­fe­cho fenom­e­nal, o autor nos leva a pen­sar sob quais gaio­las vive­mos pre­sos? Somos pás­saros que son­hamos com voo, mas ape­nas raste­jamos pelo chão?

    Os con­tos em trân­si­to deix­am os leitores ton­tos. Somos lev­a­dos a refle­tir que ape­nas quan­do repen­samos nos­sas ati­tudes nos abri­mos para rever­mos nos­sas certezas.  Duarte Fortin, coxo e encar­rega­do ger­al dos cri­a­dos em uma min­er­ado­ra, em con­fis­são ao padre admite: — “Se Deus for negro, sen­hor padre, estou frito: nun­ca mais vou ter perdão”. Se exis­tem certezas elas nos man­tém cegos pela vida. Deve­mos procu­rar nos­sos olhos não no mar, mas na fun­dura de nos­so Ser. É a par­tir de um movi­men­to de reflexão e de respon­s­abil­i­dade éti­ca com o Out­ro que poder­e­mos abrir nos­sos escuros para mel­hor enx­er­gar­mos nos­sas tes­si­turas. Vag­amos pela leitu­ra de Mia Couto procu­ran­do com­preen­der e jun­tar os sen­ti­dos que habitam nos seus con­tos, mas ape­nas somos lev­a­dos a uma viagem inte­ri­or, em bus­ca de nos­so próprio proces­so de (des)humanização.

  • Distrações Ambulantes | Crônica

    Distrações Ambulantes | Crônica

    Quan­do come­cei a tra­bal­har em jor­nal, min­ha primeira incum­bên­cia como estag­iária foi faz­er a pági­na de óbitos. Eu detes­ta­va aqui­lo. Que­ria escr­ev­er críti­cas de livros e de filmes e ser céle­bre. Mas nem um estag­iário é con­trata­do para escr­ev­er críti­cas de livros e filmes. Para não ter que ape­nas dig­i­tar a pági­na com o nome dos mor­tos do dia, inven­ta­va nomes estapafúr­dios como Epaminon­das Pan­ta­gru­el e metia no meio da lista. Se alguém perce­beu a peque­na traquinagem, nun­ca fiquei sabendo.

    A primeira reportagem que fiz na vida foi sobre irreg­u­lar­i­dades de esta­ciona­men­tos pri­va­dos na cidade. Eu não lia jor­nais locais, só revis­tas sem­anais e as pági­nas de cul­tura, além de 4 ou 5 livros de ficção por sem­ana. Não sabia como fun­ciona­va a admin­is­tração públi­ca, nem os negó­cios. Tra­bal­hei durante muito tem­po na edi­to­ria “Ger­al”, como se chamavam os cader­nos que trazi­am notí­cias e reporta­gens sobre a cidade. Entre­vis­tei muito bura­co de rua. Hoje nem sei como escrevi essas matérias. Além de tími­da (não sabia faz­er per­gun­tas), não sabia escr­ev­er matérias para a edi­to­ria de notí­cias locais. Algu­mas devem ter sido estapafúr­dias, e pos­so ter meti­do um poe­ma ou citação literária no meio.

    Até hoje não sei como con­segui ser aprova­da em todos os cur­sos vestibu­lares para os quais prestei con­cur­so. No cur­so de jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Estad­ual de Lon­d­ri­na, nos cur­sos de Letras da Pon­tí­fice Uni­ver­si­dade Católi­ca do Paraná e da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná e no cur­so de Jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná. Se tivesse juí­zo, teria mora­do 4 anos em Lon­d­ri­na. Um dos pro­fes­sores do cur­so dizia que o jor­nal­is­mo era arte, como a arquite­tu­ra. E que teve uma alu­na que não con­seguia orga­ni­zar as ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Me iden­ti­fiquei ime­di­ata­mente. Nun­ca con­segui orga­ni­zar ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Não sei como fiz entre­vis­tas e escrevi reporta­gens durante 25 anos de profissão.

    Revi­sores e edi­tores sem­pre sofr­eram comi­go. Na ver­dade, jamais publiquei poe­mas meus nos jor­nais em que tra­bal­hei. Tam­bém não escrevia tex­tos poéti­cos em reporta­gens jor­nalís­ti­cas, emb­o­ra algu­mas notí­cias — pela min­ha fal­ta de con­ta­to com a real­i­dade conc­re­ta — fos­sem estapafúrdias.

    Com o tem­po, apren­di a não levar tudo tão a sério. Mas ain­da é difí­cil ser sim­páti­ca e agradáv­el o tem­po todo. Em grupo, gos­to de ficar em silên­cio, mais obser­van­do do que falan­do. Soz­in­ha, gos­to de cur­tir melan­co­l­ia e ler sobre tipos esquisi­tos. Se um poe­ma, crôni­ca ou nov­ela tra­ta da vida de um tipo esquisi­to, me apaixono, como os bizarros de J.D. Salinger ou os solitários de Dostoievski.

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    Hoje em dia pre­firo seguir o cam­in­ho con­trário ao dos que se apres­sam para chegar a algum lugar. Ando em ruas solitárias e des­cubro que alguns con­sen­sos podem ser rompi­dos. Andan­do a pé, con­ver­so com moradores de rua e muitos pare­cem não ser perigosos. Pelo con­trário, têm medo de rece­ber um não. Não devia con­ver­sar com descon­heci­dos. Isso acon­tece por aci­dente. Alguém pede din­heiro e eu digo que não ten­ho, mas dou um sor­riso. Daí o mar­gin­al perde o medo e começa a conversar.

    Algu­mas pes­soas me acham insu­portáv­el por esque­cer tudo. Des­de acon­tec­i­men­tos a nomes de pes­soas. Esque­cia o chu­veiro lig­a­do ou a chave na por­ta de casa. Cheguei a esque­cer de pegar doc­u­men­tos para ir via­jar, as pas­sagens de avião ou as malas. Min­ha dis­tração chega a tal pon­to que acabo esque­cen­do mui­ta gente. Nesse caso, cor­roboro o dita­do “há males que vêm para bem”. Esque­cer se tor­na uma dádi­va quan­do é pre­ciso apa­gar ofen­sas e ressen­ti­men­tos da alma. Já dizia o inesquecív­el Mário Quin­tana; “ten­ta esque­cer-me… Ser lem­bra­do é como evocar/Um fan­tas­ma”. Assim é…

  • O Dia M (2008), de Paulo Leierer | Curta

    O Dia M (2008), de Paulo Leierer | Curta

    o-dia-m-paulo-leierer-curta-1Esta grande infe­li­ci­dade, a de não estar só”, rev­e­lado­ra sen­tença do ensaís­ta francês La Bruyère (1645 ‑1696), foi escol­hi­da pelo con­tista e poeta Edgar Allan Poe, mestre da “beleza mór­bi­da” literária, para ilus­trar o con­to “O Homem da Mul­ti­dão”. Pub­li­ca­da em 1840, a história nar­ra as per­cepções feitas por um homem que obser­va o trân­si­to de pes­soas na rua. A par­tir das car­ac­terís­ti­cas físi­cas, indu­men­tárias e ges­tu­ais, o obser­vador vai desnudan­do a iden­ti­dade de per­son­agens anôn­i­mos. Em dado momen­to, quan­do avista um sujeito idoso, com roupas que escon­dem requinte atrás da sujeira e movi­men­tos ansiosos para se mis­tu­rar à mul­ti­dão das ruas, o nar­rador ini­cia uma lou­ca perseguição. A cada novo pas­so, ele percebe que o “homem das mul­ti­dões” recusa-se a estar só; seu maior dese­jo é per­am­bu­lar anon­i­ma­mente entre a tur­ba londrina.

    Ser alguém sem nome e sem ros­to no furacão cole­ti­vo, aca­len­ta a con­sciên­cia humana com uma fal­sa sen­sação de segu­rança, con­stru­in­do um caste­lo de areia con­tra o medo da morte. A solidão e a morte andam de braços dados, tor­nan­do o indi­ví­duo ape­nas uma partícu­la inex­is­tente entre tan­tos organ­is­mos vivos. Esse é o sen­ti­men­to de Almei­da, per­son­agem do cur­ta-metragem O Dia M, dirigi­do por Paulo Leier­er. Inter­pre­ta­do pelo ator Caco Cio­cler, Almei­da é um homem na casa dos trin­ta anos que desco­bre, através de exam­es lab­o­ra­to­ri­ais, que seus dias de vida estão con­ta­dos. Soz­in­ho em sua casa, ele decide que pre­cisa lidar com a situ­ação e infor­mar às pes­soas próx­i­mas que está cam­in­han­do para a estra­da do sono eterno.

    No entan­to, a notí­cia de sua morte não parece afe­tar abso­lu­ta­mente ninguém ao seu redor. Assim como o ‘homem da mul­ti­dão’ de Poe, Almei­da vai per­am­bu­lan­do entre casas, ruas, pes­soas e cemitérios, mis­tu­ran­do-se ao cotid­i­ano de ros­tos egoís­tas, cansa­dos, amar­gu­ra­dos e indifer­entes. Lem­bran­do a nov­ela rus­sa “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tol­stói, mas sem sequer ter a pre­sença con­for­t­ante de um Geras­sim, o solitário mori­bun­do Almei­da se vê às voltas com as más­caras humanas. Per­to do leito de morte, ele está só. Com­ple­ta­mente só.

    Sunday, 1926 por Edward Hopper
    Sun­day, 1926 por Edward Hopper

    Duas das cenas mais assom­brosas do dra­ma são espremi­das na cara do espec­ta­dor logo no começo do cur­ta, quan­do Almei­da vai à casa dos pais para anun­ciar sua morte e, em segui­da, procu­ra con­tratar os serviços de um despachante funerário. No meio da incredul­i­dade furiosa do pai e do deboche sar­cás­ti­co do despachante, Almei­da encara silen­ciosa­mente a frag­ili­dade de tudo o que imag­i­na­va ser e ter.

    On the Stream of Life - Hugo Simberg
    On the Stream of Life — Hugo Simberg

    Vence­dor de Mel­hor Cur­ta no Hol­ly­wood Brazil­ian Film Fes­ti­val – HBRFEST em 2009 e do Troféu Shoe­string no Rochester Inter­na­cional Film Fes­ti­val, tam­bém em 2009, O Dia M foi sele­ciona­do em inúmeros fes­ti­vais nacionais e estrangeiros. A anôn­i­ma tra­jetória de um homem que per­corre a mul­ti­dão e que dese­ja deses­per­ada­mente ser nota­do, pois o dia de seu adeus defin­i­ti­vo galopa a pas­sos lar­gos e ele estará mais solitário do que a própria morte, con­fronta o indi­ví­duo com sua existên­cia: Será que sig­nifi­camos algu­ma coisa? Alguém sen­tirá nos­sa ausên­cia? Atrav­es­sare­mos soz­in­hos o abis­mo da morte? Até que pon­to a atom­iza­ção do homem o faz quer­er ser partícipe do cole­ti­vo, para depois empurrá-lo para a condição real de solidão e esquecimento?

    Essas são algu­mas das questões com as quais o cur­ta-metragem inda­ga o espec­ta­dor, dan­do firmeza à pro­pos­ta do dire­tor Paulo Leier­er e de toda a equipe. Destaque para a tril­ha sono­ra do filme, com a faixa “First Breath After Coma” (álbum The Earth is not a cold dead place), da ban­da amer­i­cana de post rock Explo­sions in the Sky.

    Visual­mente, O Dia M lem­bra uma mis­tu­ra das pin­turas solitárias de Edward Hop­per com as lúgubres visões da morte retratadas pelo nórdi­co Hugo Sim­berg. Ou, nas palavras do poeta Rain­er Maria Rilke: “A solidão é como uma chu­va. Ergue-se do mar ao encon­tro das noites; de planí­cies dis­tantes e remo­tas sobe ao céu, que sem­pre a aguar­da. E do céu tom­ba sobre a cidade. (…) Então, a solidão vai com os rios…”.

    Assista o cur­ta-metragem aqui:

  • A criação de Pico do Petróleo, parte 1: minha escolha do tema

    A criação de Pico do Petróleo, parte 1: minha escolha do tema

    Acabo de lançar meu mais recente e maior quadrin­ho, o Pico do Petróleo.

    Man­ten­do min­ha tradição de pub­licar arti­gos sobre a cri­ação de meus tra­bal­hos, dis­cu­tirei aqui min­has reflexões sobre o proces­so cria­ti­vo do Pico do Petróleo.

    Este é o primeiro, de uma série de sete arti­gos, que abor­dam vários aspec­tos do proces­so de cri­ação dos quadrinhos.

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    Meu papel como cartunista-comunicador de ciências

    Como um car­tunista-comu­ni­cador de ciên­cias, eu escol­ho delib­er­ada­mente tópi­cos que são pouco com­preen­di­dos pelo públi­co em geral.

    Meu obje­ti­vo é atrair tem­po­rari­a­mente a atenção dos leitores através de quadrin­hos pro­fun­dos e bem desen­hados, e depois desviar essa atenção de mim e dire­cioná-la para espe­cial­is­tas que têm soluções e infor­mações abrangentes.

    Flavor Flav e Chuck D., do grupo de hip hop norte-americano Public Enemy
    Fla­vor Flav e Chuck D., do grupo de hip hop norte-amer­i­cano Pub­lic Enemy

    Em out­ras palavras, sou uma espé­cie de Fla­vor Flav, e Hub­bert, de Chuck D.

    Sou ape­nas um hype-man para a ‘voz da autori­dade’, M. King Hubbert.

    Hub­bert: “Não acred­ite no hype sobre o cresci­men­to da pro­dução de petróleo!
    McMillen: “Yo Hub, eles devem estar fuman­do um, tá lig­a­do?

    Escolhendo um tema sobre o qual o público tem pouco conhecimento

    O Pico do Petróleo é um exce­lente exem­p­lo de um tema impor­tante que é mal com­preen­di­do pelo públi­co em ger­al. Ten­ho con­hec­i­men­to do prob­le­ma há 10 anos e ain­da me deparo com uma ignorân­cia gigan­tesca ao falar com out­ras pes­soas sobre o assunto:

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    • Ah, o petróleo vai acabar? Bom, nós podemos sim­ples­mente mudar para out­ro combustível.”
    • Mas eu ouvi diz­er que encon­traram um novo cam­po de petróleo enorme na cos­ta [do Brasil, da Rús­sia, da Suazilândia…].”
    • Mas o preço baixou. Prob­le­ma resolvi­do, certo?”
    • Óti­mo! Mal pos­so esper­ar pelo Pico do Petróleo! Final­mente os árabes vão falir!”

    Ess­es são exem­p­los do calei­doscó­pio de respostas mal infor­madas que ouço sem­pre que cito o Pico do Petróleo, ou out­ras questões rela­cionadas à sus­tentabil­i­dade energética.

    Meu quadrin­ho não abor­da questões mês-a-mês, como a que­da do preço de Dezem­bro de 2014. Tam­bém não entra em temas impor­tantes como EROEI (sigla em inglês para Ener­gia Retor­na­da sobre Ener­gia Investi­da).

    Eu que­ria que meu quadrin­ho fos­se mais “gen­er­al­iza­do e atem­po­ral”, em vez de “atu­al, mas prestes a se tornar obsoleto”.

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    Meu objetivo: criar a cartilha definitiva sobre o Pico do Petróleo

    Eu sabia que não con­seguiria pro­duzir um com­pên­dio abso­lu­to sobre o Pico do Petróleo por meio de um quadrin­ho. Eu não pode­ria sim­ples­mente incluir todos os fatos, números e nuances do assunto.

    Em vez dis­so, deci­di escr­ev­er a car­til­ha defin­i­ti­va sobre o Pico do Petróleo, que fun­cionar­ia para o leitor como um cur­so bási­co de 20 min­u­tos sobre o tema.

    Meu obje­ti­vo era faz­er um quadrin­ho que lev­asse uma pes­soa com nen­hum con­hec­i­men­to sobre o Pico do Petróleo a uma com­preen­são razoáv­el den­tro de 20 minutos.

    Mais impor­tante: eu que­ria que fos­se um recur­so online gra­tu­ito, disponív­el no maior número pos­sív­el de idiomas, depen­den­do ape­nas de quan­tos tradu­tores vol­un­tários eu con­seguisse recru­tar. Ele está disponív­el atual­mente em francês, alemão, espan­hol, chinês, por­tuguês do Brasil e out­ros idiomas (clique na ‘ban­deira’ no can­to dire­ito supe­ri­or do meu web­site: en_GB).

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    Uma plataforma de lançamento para pesquisa independente

    Espero que, após lerem meu quadrin­ho, os leitores sin­tam o dese­jo de apren­der mais sobre o assun­to por meio de suas próprias pesquisas e reflexões.

    É através delas que as pes­soas enten­derão a EROEI (Ener­gia Retor­na­da sobre Ener­gia Investi­da, em inglês). É através da pesquisa que as pes­soas perce­berão que a que­da de preços em dezem­bro de 2014 não altera o prob­le­ma fun­da­men­tal: de que nós esta­mos queiman­do petróleo a uma veloci­dade muito maior do que o proces­so geológi­co da Ter­ra o regen­era.

    Meu quadrin­ho leva os leitores à metade do cam­in­ho do con­hec­i­men­to, mas con­ta que eles com­ple­tarão a jor­na­da por con­ta própria.

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    Pico do Petróleo: o irmão incompreendido do aquecimento global

    Na min­ha exper­iên­cia, a maio­r­ia das pes­soas já ouviu falar de aque­c­i­men­to glob­al, mas nun­ca ouviu falar do Pico do Petróleo. O que é uma grande ver­gonha, pois acred­i­to que ambos os fenô­menos têm a mes­ma importân­cia. Além dis­so, ess­es dois fenô­menos provavel­mente acon­te­cerão simultaneamente.

    Uma vez que o públi­co já detém um con­hec­i­men­to sóli­do sobre o aque­c­i­men­to glob­al, tratei o Pico do Petróleo como um fenô­meno iso­la­do no meu quadrinho.

    Na real­i­dade, o Pico do Petróleo e o aque­c­i­men­to glob­al serão fenô­menos politi­ca­mente rela­ciona­dos, com influên­cias de um resp­in­gan­do no outro.

    O Pico do Petróleo vai acon­te­cer inde­pen­dente do aque­c­i­men­to glob­al e vice-ver­sa. Mas ser­e­mos força­dos a con­sid­erá-los como parte de um prob­le­ma interligado.

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    Por exem­p­lo, a neces­si­dade de descar­bonizar nos­sas econo­mias pode resul­tar em uma “bol­ha de car­bono não-uti­lizáv­el” de com­bustíveis fós­seis cuja queima con­sid­er­amos incon­ce­bív­el, dado aos con­heci­dos efeitos do aumen­to de gas­es do efeito-est­u­fa. Isso resp­in­gará nos mer­ca­dos de ações, e então, em econo­mias maiores.

    Nes­sa situ­ação, a incli­nação da “mon­tan­ha-rus­sa” será muito difer­ente do fun­ciona­men­to da cur­va do Pico do Petróleo. Podemos ser obri­ga­dos a reduzir rap­i­da­mente a nos­sa uti­liza­ção de petróleo, con­stru­in­do uma mon­tan­ha-rus­sa que cai rap­i­da­mente e deixan­do muitas de nos­sas ‘tre­liças’ tran­cadas no estoque.

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    Ess­es são cenários além da min­ha pre­visão, e além do escopo do quadrin­ho. Com o Pico do Petróleo eu quis sim­ples­mente aumen­tar o con­hec­i­men­to públi­co sobre o fenô­meno de Hub­bert, para que dis­cussões bem infor­madas pos­sam ser feitas sobre as decisões que pre­cisam ser feitas.

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    Um chamado para apoiadores

    Se você dese­jar, pode con­tribuir para a sua próx­i­ma exper­iên­cia de leitu­ra de quadrin­hos no stuartmcmillen.com

    Caso pos­sa, por favor, com­pre uma cópia de $5 do Pico do Petróleo via Pay­Pal, cartão de crédi­to ou Bit­coin. Caso dese­je faz­er uma doação maior, bas­ta edi­tar o val­or de $5 no car­rin­ho de com­pras. Uma out­ra alter­na­ti­va é se tornar um apoiador men­sal via Patreon.com. Des­de já, agradeço!

    Outros artigos sobre a ‘criação do Pico do Petróleo’

    Este é o primeiro, de uma série de sete arti­gos, que abor­dam vários aspec­tos do proces­so de cri­ação dos quadrin­hos. O próx­i­mo da série é A Cri­ação do Pico do Petróleo, parte 2: a filosofia do sto­ry­telling.

     

    Tradução: Alana Carvalho
    Revisão: Daniel Koss­mann Fer­raz e Mara Vanes­sa Torres
    O inter­ro­gAção é o tradu­tor ofi­cial do Stu­art McMillen. (Tex­to Orig­i­nal)

  • Mukashi Mukashi* | Crônica

    Mukashi Mukashi* | Crônica

    Masa Sato e todos os netos, Sorocaba, anos 40
    Masa Sato e todos os netos, Soro­ca­ba, anos 40

    Seu nome, Miya, dev­e­ria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japone­sas nasci­das no cam­po usarem o ideogra­ma KO [子]. O uso era per­mi­ti­do ape­nas às mul­heres de origem nobre. O ideogra­ma miya [宮] sig­nifi­ca tem­p­lo xin­toís­ta, príncipe ou prince­sa da família impe­r­i­al. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometi­da a um noi­vo que não gosta­va, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deser­dou. Miya tin­ha um irmão mais vel­ho, Sada­ji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kame­ki. Muito jovem, min­ha avó se inter­es­sou por lit­er­atu­ra. Em sua cidade, que fica na provín­cia de Saga, região sul, per­to de Nagasa­ki, só havia bib­liote­cas na igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Ela se con­ver­teu, só para fre­quen­tar a bib­liote­ca e ler a obra do escritor francês Vic­tor Hugo. Sada­ji e Kame­ki vier­am para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a tra­bal­har no cafezal da família Shi­nobu, na Colô­nia Nipolân­dia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vier­am Miya e Tome.

    Museu de Etnografia de Paranaguá (Foto:  Kingo Kubota)
    Museu de Etno­grafia de Paranaguá (Foto: Kingo Kubota)

    Kun­yo Tiba, meu avô, mar­in­heiro, tam­bém veio para o Brasil, com a mis­são de bus­car a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aven­tu­rar no “País dos fru­tos doura­dos”, como era chama­do pela Imi­gração Japone­sa. Veio como agre­ga­da da família Shi­nobu, um expe­di­ente comum na época. Famílias eram com­postas por mem­bros de difer­entes ori­gens, for­jan­do doc­u­men­tos. Miyoko mora­va na “casa grande”, com a família arti­fi­cial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anex­a­do a Manchúria e começaram os con­fli­tos com a Chi­na. No cafezal, con­heceu Miya e casou com ela.

    No Brasil, Miya con­tin­u­ou fre­quen­tan­do a igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Prat­i­ca­va a arte do tan­ka — uma das for­mas poéti­cas japone­sas. Kuniyo toca­va shakuhachi — a flau­ta de bam­bu japone­sa. Como ele era era mar­in­heiro, poucos ofí­cios restavam em ter­ra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro moran­do na colô­nia japone­sa de Birigui. Decid­iu fab­ricar carvão veg­e­tal e mudou para Tapi­raí, no Sul paulista, que veio a se tornar um impor­tante cen­tro de pro­dução da matéria-pri­ma. A mul­her e os três fil­hos o aju­davam a queimar carvão. Por causa do ofí­cio do patri­ar­ca, a família morou em diver­sos pon­tos da cidade. Kame­ki, o caçu­la Tiba, ficou doente e foi se tratar em Cam­pos de Jordão. Cura­do, decid­iu faz­er um cur­so de far­ma­cêu­ti­co, em São Paulo. Quan­do se for­mou, os irmãos mon­taram uma peque­na far­má­cia no cen­tro de Tapi­raí. Kuniyo decid­iu mon­tar um bar, viz­in­ho à farmácia.

    Família Tiba, Sorocaba, anos 40.
    Família Tiba, Soro­ca­ba, anos 40.

    Meu tio mais vel­ho começou car­reira mil­i­tar e pôde com­prar um sobra­do para os pais, no bair­ro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em mea­d­os dos anos 60. Toda vez que íamos vis­itá-lo, Kuniyo fazia algo­dão-doce para nós. Ele ven­dia o doce nas ruas de São Paulo. Cri­ança, não sabia como o açú­car col­ori­do se trans­for­ma­va em nuvem de algo­dão. A casa de meus avós era meio mág­i­ca. Na coz­in­ha havia um grande telescó­pio. Um dos tios havia entra­do para a Aeronáu­ti­ca e tin­ha mania por ape­tre­chos de avi­ação e aeronáutica.

    Meu avô mor­reu em 1974, de câncer no intesti­no. Na época era uma doença dev­as­ta­do­ra. A família cuidou dele por meses. Depois que o mari­do mor­reu, Miya vin­ha pas­sar férias com min­ha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que fala­va. Sin­to pena de não ter estu­da­do a lín­gua japone­sa quan­do cri­ança. Só desco­bri o que era shakuhachi e tan­ka com quase 40 anos. Zan­nen.**

    * Em japonês: anti­go, anti­go. Em ger­al, as histórias de tradição oral japone­sas começam com “Mukashi, mukashi…”
    **Em japonês: Que pena !

  • Corpo Ancestral de Maikon K, em Curitiba

    Corpo Ancestral de Maikon K, em Curitiba

    Corpo Ancestral - Foto de Lauro Borges
    Cor­po Ances­tral — Foto de Lau­ro Borges

    A par­tir do dia dois de jun­ho, o artista Maikon K apre­sen­ta seu solo Cor­po Ances­tral no Teatro Lon­d­ri­na, no Memo­r­i­al de Curiti­ba. O tra­bal­ho cumpre tem­po­ra­da até dia 14 de jun­ho, de terça a domin­go, às 19h com entra­da gra­tui­ta. Nos sába­dos e domin­gos são real­izadas sessões extras às 17h.

    Cor­po Ances­tral é uma dança de Maikon K, em colab­o­ração com os artis­tas Kysy Fis­ch­er, Fae­tusa Tezel­li, Fábia Regi­na e Beto Kloster. Neste tra­bal­ho, o artista inves­ti­ga suas memórias e mitolo­gias pes­soais para cri­ar um “cor­po de pas­sagem”. A dra­matur­gia se con­strói na relação com a plateia, que se local­iza per­to do per­former, e na cri­ação de um fluxo de ima­gens e sensações.

    A primeira ver­são de Cor­po Ances­tral estre­ou em 2013. Segun­do o artista, com este pro­je­to, sua inves­ti­gação tem como pon­to de par­ti­da o cor­po xam­âni­co. “Bus­co com este tra­bal­ho, um cor­po “devir”, capaz de con­stru­ir diver­sas real­i­dades através do som não ver­bal, do movi­men­to, de sig­nos visuais e ativi­dades rit­u­al­izadas. Um cor­po sem iden­ti­dade fixa, em con­stante trans­for­mação, que expres­sa as forças e arquéti­pos que nele habitam”, argu­men­ta o per­former Maikon K.

    Seu tra­bal­ho situa-se nas fron­teiras entre dança, per­for­mance e rit­u­al, ele­gen­do o cor­po como matriz sim­bóli­ca e cam­po de exper­i­men­tação. Em 2015, sua dança-insta­lação “DNA de DAN” foi sele­ciona­da pela artista sérvia Mari­na Abramovic para inte­grar a mostra “Oito Per­for­mances”, den­tro da exposição Ter­ra Comunal.

    As apre­sen­tações de Cor­po Ances­tral acon­te­cem de 2 a 14 de jun­ho, de terça a domin­go, sem­pre às 19h, no Teatro Lon­d­ri­na, no Memo­r­i­al de Curiti­ba. Nos sába­dos e domin­gos ocor­rem sessões extras às 17h. A ofic­i­na “Cor­po do Abis­mo” será ofer­e­ci­da gra­tuita­mente ao públi­co em ger­al, no dia 13 de jun­ho, com­par­til­han­do as práti­cas de cri­ação do artista. Os inter­es­sa­dos devem man­dar e‑mail para maikonk[arroba]gmail[ponto]com .

    Serviço: Cor­po Ances­tral de Maikon K.
    Teatro Lon­d­ri­na — Memo­r­i­al de Curitiba
    de 2 à 14 de jun­ho às 19h
    sessões extras aos sába­dos e domin­go às 17h
    Entra­da Franca
    Para mais infor­mações ou quais­quer dúvi­das, favor entrar em contato.
    Vic­tor Hugo (41) 9684–9506

  • Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    aeon-spoke-above-the-buried-cry-2004-critica-1Boas ener­gias, luz, calor humano e esper­ança inte­gram o com­pos­to do álbum Above the Buried Cry, da ban­da de alternative/atmospheric rock Aeon Spoke. Falan­do assim até pode pare­cer clichê, mas o tra­bal­ho cap­i­tanea­do pelo tal­en­tosís­si­mo gui­tar­rista, com­pos­i­tor e vocal­ista Paul Masvi­dal, ao lado do seu fiel com­pan­heiro, o bater­ista Sean Rein­ert, não pode­ria ser diferente.

    Os dois músi­cos em questão foram mem­bros da ban­da Death durante a exe­cução e turnê do álbum Human (1991), con­sid­er­a­do um divi­sor de águas na car­reira de uma das maiores ban­das de Heavy Met­al que já exi­s­ti­ram em todos os tem­pos. Con­ta-se que Chuck Schuldin­er, líder do Death, ten­tou dis­suadir Paul Masvi­dal a não deixar o grupo, pois considerava‑o um gui­tar­rista excep­cional. Mas o fato acon­te­ceu, levan­do Masvi­dal e Rein­ert a retomarem suas ativi­dades com o Cyn­ic, tra­bal­ho perene dos músicos.

    Para­le­lo ao Cyn­ic, o ano de 2000 fez emer­gir a primeira demo do Aeon Spoke, com­pos­ta por seis faixas, cul­mi­nan­do depois em um EP lança­do em 2002 e radio ses­sions em 2003. No ano seguinte, o primeiro álbum da ban­da vem à tona com sete faixas (o mate­r­i­al foi regrava­do em 2007). Above the Buried Cry intro­duz men­sagens pos­i­ti­vas e reflexões acer­ca do com­por­ta­men­to humano, o que vem a cal­har com as crenças do por­to-riqueno Paul Masvidal.

    Sean Reinert e Paul Masvidal
    Sean Rein­ert e Paul Masvidal

    Nasci­do Pablo Alber­to Masvi­dal, o músi­co cresceu em Mia­mi, Flóri­da, e estu­dou músi­ca clás­si­ca e jazz des­de os primeiros anos. Paul é envolvi­do com a filosofia Ori­en­tal e com tudo o que diz respeito à espir­i­tu­al­i­dade. Ele tam­bém é ini­ci­a­do na práti­ca do Kriya Yoga, expon­do suas ideias/experiências nas letras de suas com­posições, que abar­cam Cyn­ic, Aeon Spoke, Por­tal e out­ros pro­je­tos paralelos.

    Sean Rein­ert tem acom­pan­hado Masvi­dal des­de a déca­da de 1980 e é con­sid­er­a­do um proem­i­nente bater­ista, escreven­do e apre­sen­tan­do per­for­mances em pro­gra­mas de tele­visão e filmes. Rein­ert parece ter a mes­ma filosofia de vida do seu ami­go Paul, o que resul­tou em faixas como:

    No Answers

    A feli­ci­dade não está em respostas e deve ser procu­ra­da com otimismo.

    Grace

    Um pedi­do de fé bem ao esti­lo da dout­ri­na ori­en­tal, onde paz e amor devem ser persegui­dos constantemente.

    Silence

    Crença, dese­jo, amor, esper­ança e alusão, uma vez mais, ao sol como fonte de renovação/renascimento.

    Emmanuel

    Belís­si­ma intro, é uma das faixas mais intro­spec­ti­vas do álbum. A músi­ca lança o ouvinte para uma irremediáv­el conexão com uma natureza oníri­ca, que se perde em cada nova nota. Min­ha faixa preferida!

    https://www.youtube.com/watch?v=vWeXxBGzKe0&ob=av2e

    Above the Buried Cry tam­bém traz Pablo at the Park, Sui­cide Boy, Face the Wind, For Good, Noth­ing e Yel­low­man, tudo den­tro da lin­ha “des­cubra-se e entregue-se”. De fato, pen­sa­men­to pra lá de alter­na­ti­vo para um mun­do cada vez mais egói­co, manip­u­lador e obceca­do pela sede de poder. Mas a arte existe para isso: abrir, cati­var e estim­u­lar consciências.

  • Pico do Petróleo, por Stuart McMillen | Quadrinho

    Pico do Petróleo, por Stuart McMillen | Quadrinho

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    O inter­ro­gAção é o tradu­tor ofi­cial das HQs do Stu­art McMillen.

  • O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    Muitos de nós, que lemos e rele­mos livros, assim como sites, blogs e tudo que con­cerne ao uni­ver­so literário, cos­tu­mamos man­ter o hábito de escr­ev­er car­tas, arti­gos, e‑mails, matérias, tra­bal­hos acadêmi­cos, reca­dos rápi­dos em redes soci­ais, um tomo de 1.000 pági­nas do romance de estreia ou, sim­ples­mente, um infor­ma­ti­vo para o mur­al da empre­sa – algo do tipo “Área reser­va­da ao tem­po-livre. Chefes de setores, favor respeitar” (ok, não cus­ta imag­i­nar). Enfim, as opções são exten­sas. Muitas vezes, nos per­gun­ta­mos como nos tornar escritores mel­hores, mais rápi­dos, con­cisos, ver­sáteis, cria­tivos e interessantes.

    Marshall McLuhan
    Mar­shall McLuhan

    Pois bem, den­tre os cul­tuadores do totem Novas Tec­nolo­gias — tudo começou com o pro­fe­ta Mar­shall McLuhan, não se culpem — exis­tem aque­les que estão bus­can­do novas for­mas de mel­ho­rar cada vez mais sua capaci­dade de escr­ev­er e pro­duzir con­teú­do. Jen­nifer Blan­chard, uma copy­writer profis­sion­al que até mea­d­os de 2013 man­tinha o blog Pro­cras­ti­nat­ing Writ­ers, é uma dessas entu­si­as­tas e decid­iu usar o twit­ter como pro­va de que 140 car­ac­teres podem sim faz­er de você um escritor mel­hor. No arti­go How Twit­ter Makes You a Bet­ter Writer (Como o Twit­ter faz de você um escritor mel­hor), Blan­chard dá algu­mas dicas e teste­munhos de como uma rede social, lou­va­da e/ou crit­i­ca­da — mas sem­pre anal­isa­da — nas fac­ul­dades de Comu­ni­cação ao redor do mun­do pode dar um upgrade sig­ni­fica­ti­vo nas suas habil­i­dades de escrita.

    Jen­nifer defende que o Twit­ter não é ape­nas um óti­mo espaço para negó­cios e expan­são de mar­cas, mas tam­bém o lugar ide­al para orga­ni­zar as habil­i­dades para escr­ev­er. Segun­do ela, o “Twit­ter força você a ser con­ciso”, ou seja, você pre­cisa ser rápi­do, hábil e cria­ti­vo com as palavras. O recur­so te ofer­ece ape­nas 140 car­ac­teres para diz­er tudo o que você pre­cisa. “Isso não é um monte de espaço. Letras, números, sím­bo­los, pon­tu­ação e espaços, todos con­tam como car­ac­teres no Twit­ter”, reforça Jen­nifer. Você pre­cisa diz­er o que tem que diz­er uti­lizan­do o menor número de palavras pos­sív­el, o que te obri­ga a tomar decisões entre a imen­sid­ão de vocábu­los a usar, reduzin­do suas ideias ao essen­cial. A copy­writer dá a enten­der que para os escritores ver­bor­rági­cos, que cos­tu­mam escr­ev­er lau­das e lau­das sem sair do preâm­bu­lo, esboçar sen­tenças em 140 car­ac­teres é um ver­dadeiro desafio. Dessa for­ma, o Twit­ter — quem diria? — te força a exerci­tar e ampli­ar o vocab­ulário que pos­sui, impul­sio­n­an­do à procu­ra de palavras e expressões novas “para diz­er de modo mel­hor, claro e con­ciso” toda a men­sagem que se quer passar.

    A copywriter Jennifer Blanchard
    A copy­writer Jen­nifer Blanchard

    O últi­mo argu­men­to da auto­ra ver­sa sobre a pos­si­bil­i­dade de mel­ho­rar as habil­i­dades de edição através do Twit­ter. Para Jen­nifer Blan­chard, todo autor deve ser capaz de edi­tar seu próprio tex­to, e a fer­ra­men­ta de 140 car­ac­teres serve para deixar a capaci­dade de edição sim­ples­mente exce­lente (top-notch). “É quase como jog­ar um jogo; ten­tar escr­ev­er uma men­sagem de 140 car­ac­teres e ain­da obter seu pon­to de vista de tal for­ma que inspire seus seguidores a tomar medi­das como clicar no seu link ou retwit­tar seus posts”, afir­ma Blanchard.

    A auto­ra fala ain­da sobre como o uso dessa rede social a força a pen­sar cada vez mais pro­fun­do den­tro do seu vocab­ulário até encon­trar um modo cur­to de diz­er suas men­sagens. Ela, que diz ser usuária do Twit­ter há algum tem­po, rev­ela que a fer­ra­men­ta não só a tem aju­da­do a mel­ho­rar suas habil­i­dades de escri­ta como tam­bém a realizar cópias (repro­duções) de for­ma mais produtiva.

    E você? Tam­bém acha que o uso do Twit­ter é útil para desen­volver habil­i­dades e, ao con­trário do que uma parte de pen­sadores con­tem­porâ­neos argu­men­ta, pode aju­dar a mel­ho­rar nos­sa capaci­dade no que diz respeito à leitu­ra, escri­ta, pensamento?

  • Ida (2013), de Pawel Pawlikowski | Crítica

    Ida (2013), de Pawel Pawlikowski | Crítica

    ida-2013-pawel-pawlikowski-critica-posterUma das mel­hores sen­sações que eu ten­ho exper­i­men­ta­do na par­til­ha físi­ca e men­tal que acon­tece nas salas de cin­e­ma – bas­ta obser­var como todos os espec­ta­dores pare­cem estar lig­a­dos min­i­ma­mente pelos acon­tec­i­men­tos que transcor­rem na tela – é perce­ber o exa­to momen­to em que um filme hip­no­ti­za toda a plateia, alteran­do com­por­ta­men­tos e pren­den­do res­pi­rações. Esse é o pên­du­lo mes­mer­izador de Ida (2013), filme do dire­tor polonês Pawel Paw­likows­ki. O lon­ga con­quis­tou inúmeros prêmios, incluin­do Euro­pean Film Awards e Asso­ci­ação Amer­i­cana dos Dire­tores de Fotografia, além de duas indi­cações ao Oscar 2015 nas cat­e­go­rias “Mel­hor filme em lín­gua estrangeira” e “Mel­hor Fotografia”, ven­cen­do na primeira.

    Fil­ma­do em pre­to e bran­co, Ida revisi­ta as mácu­las do Holo­caus­to através da história de vida da noviça Anna (Aga­ta Trze­bu­chows­ka) e sua recém-descober­ta tia Wan­da (Aga­ta Kulesza). Antes de con­fir­mar os votos no con­ven­to onde vive, Anna é envi­a­da pela madre supe­ri­o­ra à casa da tia, para que sai­ba mais sobre a própria vida e deci­da entrar para a comu­nidade reli­giosa de for­ma con­sciente. Para Anna, o mun­do começa e ter­mi­na nas pare­des do con­ven­to e é com insat­is­fação res­ig­na­da que ela vai ao encon­tro da tia.

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    Wan­da é uma mul­her dom­i­na­da por fan­tas­mas amar­gos, pelo vício do álcool, por amantes pas­sageiros e um secre­to históri­co de tris­tezas. No pas­sa­do, ela inte­grou a luta do movi­men­to anti­nazista, tor­nan­do-se depois juíza e con­de­nado­ra implacáv­el dos torturadores/assassinos de judeus. Esse uni­ver­so é extrema­mente opos­to ao de Anna que, sem eufemis­mos, desco­bre que tudo o que con­hecia sobre sua vida não pas­sa de um rosário de men­ti­ras. Na ver­dade, a noviça chama-se Ida Leben­stein e foi entregue na por­ta do con­ven­to quan­do ain­da era bebê. Sem saber do paradeiro dos pais, Ida e a tia partem em bus­ca de respostas; cada qual com suas angús­tias, medos e dores.

    A história se pas­sa em 1962, onde os resquí­cios da Segun­da Guer­ra Mundi­al ain­da despon­tavam como feri­das aber­tas, fusti­gan­do os espíri­tos dos sobre­viventes e de seus famil­iares. É nesse mun­do novo que Ida mer­gul­ha com toda a sua inocên­cia, exper­i­men­tan­do a malí­cia e as cha­gas emo­cionais que fazem parte da história de sua família.

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    O lon­ga-metragem faz uso de uma câmera quase estáti­ca, apo­s­tan­do em close-ups. Out­ro ele­men­to inter­es­sante em Ida é a opção pelo for­ma­to 4:3 e em pre­to e bran­co, ape­sar da gravação com câmera dig­i­tal, uma clara refer­ên­cia aos filmes em 16mm. Out­ra curiosi­dade é que o filme tam­bém foi con­ver­tido para pelícu­la 35mm, sendo exibido nas pou­cas salas de cin­e­ma que ain­da supor­tam esse tipo de pelícu­la. Com fotografia de cair o queixo – assi­na­da por Ryszard Lenczews­ki e Lukasz Zal -, o lon­ga rev­ela a atmos­fera silen­ciosa do inte­ri­or de seus per­son­agens, enfa­ti­za­da tam­bém pela ausên­cia de tril­ha sono­ra e pas­sagens só com sons do ambi­ente. Como o públi­co brasileiro – do qual pos­so falar basea­da em min­ha vivên­cia — não está acos­tu­ma­do com a lin­guagem do silên­cio, é difí­cil man­ter uma con­stante em salas de exibição. Por isso, foi emo­cio­nante pres­en­ciar a inter­rupção ime­di­a­ta do fris­ar de sacos de pipoca, papéis de bom­bom, latas de refrig­er­ante e mur­múrios eter­nos. Naque­la sessão, a plateia esta­va hip­no­ti­za­da: Ida não faz ruí­dos, comu­ni­ca-se pela atenção do olhar. É com esse andar sem deixar ras­tros que a jovem noviça aprende como lidar com a inocên­cia que vai mor­ren­do aos poucos.

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    Mis­tu­ra de reflexão e memória, o filme con­segue alcançar a poe­sia que não gri­ta, não ges­tic­u­la e não bal­bu­cia: ela expres­sa com olhares e não-ditos. Destaque para a atu­ação das atrizes Aga­ta Trze­bu­chows­ka e Aga­ta Kulesza, intér­pretes de Ida e Wan­da, respec­ti­va­mente. Como ini­ciante, Trze­bu­chows­ka com­pro­va seu empen­ho – que vai além da semel­hança físi­ca com a atriz Sis­sy Spacek (con­heci­da pela atu­ação em “Car­rie, A Estran­ha” – 1976). Já Aga­ta Kulesza recria as dores de inúmeras mul­heres judias, guer­ril­heiras ou não, que viram suas famílias serem despedaçadas pelo hor­ror nazista e tiver­am que olhar para o abis­mo, evi­tan­do mirar em seus próprios reflexos.

    Trail­er:

  • A persistência da infância | Crônica

    A persistência da infância | Crônica

    No livrin­ho “Infân­cia”, o escritor J. Coet­zee con­ta que ele e seus irmãos se escon­di­am quan­do os par­entes do lado mater­no chegavam para vis­itá-los. Ele descreve a hipocrisia das gen­tilezas soci­ais e a ten­ta­ti­va da mãe em ensi­nar “bons mod­os” aos fil­hos. Fora do ambi­ente domés­ti­co, denun­cia o apartheid da África do Sul, dan­do como exem­p­lo sua exper­iên­cia esco­lar. Cri­anças não europeias, ou seus fil­hos, eram espan­cadas pelas europeias. Coet­zee con­tou numa palestra em Curiti­ba que seus livros pas­saram pelo cri­vo da cen­sura ofi­cial, mas foram lib­er­a­dos sob a ale­gação de que a lin­guagem eru­di­ta só seria enten­di­da pela elite letrada.

    O escritor moçam­bi­cano Mia Couto diz que a mãe pas­sa­va apuros com o pai, poeta, que não con­seguia aju­dar em nen­hum tra­bal­ho da vida domés­ti­ca. E ela reza­va para que não sur­gisse na família mais poet­as. Uma vez, man­dou o fil­ho à padaria, a algu­mas quadras de casa. No cam­in­ho, Mia se dis­traiu seguin­do uma bor­bo­le­ta e esque­ceu o que ia faz­er. Sen­ta­do na calça­da, pas­sou horas ven­do formi­gas. Em sua casa, uma con­fusão: o pai havia pas­sa­do mal. O meni­no ficou na rua até que, tarde da noite, quan­do lem­braram dele o foram bus­car. Encon­traram-no ain­da a obser­var o formigueiro.

    ( Desenho por: Gervasio Troche )
    ( Desen­ho por: Ger­va­sio Troche )

    Essas duas histórias me vier­am à cabeça, quan­do volta­va da con­sul­ta à min­ha médi­ca home­opa­ta. De repente, o ônibus parou. Lá atrás uma pas­sageira gri­tou: “o que acon­te­ceu?” Um bar­bu­do com camisa do Atléti­co respon­deu: “Quer saber o que acon­te­ceu? Quer mes­mo saber ? Veja aqui, já te mostro.” Remexeu na mochi­la e por alguns segun­dos, os pas­sageiros ficaram apreen­sivos. Como o sujeito demor­ou remex­en­do na mochi­la, um out­ro pas­sageiro, a seu lado, gri­tou “Vai demor­ar pra dar o tiro?” O ner­vos­in­ho acabou sacan­do da mochi­la uma bar­ra de banana-pas­sa. “Olha aqui a banana de dina­mite”, brin­cou, cain­do na gargalhada.

    Uma pas­sageira mudou de lugar, per­gun­tan­do por que o ônibus havia para­do. “Não sei”, respon­di. Ouvi o motorista ao celu­lar: uma car­reta blo­quea­va o trân­si­to. As cobrado­ras desce­r­am do ônibus e con­vi­daram o torce­dor do Atléti­co a aju­dar. “Sair daqui só na con­tramão”, disse o motorista. As cobrado­ras e o pas­sageiro blo­quear­am os car­ros, como se fos­sem guardas. Os três pare­ci­am cri­anças trav­es­sas brin­can­do de guardas de trân­si­to. Apoiamos o trio para poder con­tin­uar seguin­do viagem.

    As moças, coradas, e o torce­dor do Atléti­co retornaram. Alguém gri­tou que mais um pas­sageiro havia desci­do. Tin­ha que parar o ônibus pra ele reem­bar­car. Quan­do o ônibus voltou a nave­g­ar, me sen­ti estran­ha. Da janelin­ha do cole­ti­vo avis­tei uma mãe e uma fil­ha rindo uma com a out­ra, numa luta de saco­las de supermercado.

    Nos últi­mos tem­pos pen­so se é necessário preser­var a infân­cia em nós. Se, adul­tos, não cor­re­mos o risco de nos infan­tilizar. Para mim, ler ou escr­ev­er poe­sia é uma for­ma de cul­ti­var o lado cri­ança. Quan­to mais envel­he­ce­mos, a cri­ança se tor­na solitária. Algu­mas se sufo­cam comen­do choco­lates, indo à Dis­neylân­dia, ou pro­ferindo dis­cur­sos sobre caixotes de madeira. Out­ras, desen­ham histórias em quadrin­hos, recitam versin­hos, can­tam e tocam vio­lão. As que nun­ca mor­rem são as bufonas, como o torce­dor do Atléti­co. Que sabem que tudo na vida é pas­sageiro, menos quem con­duz a graça.

  • Aniversário de 5 anos | Editorial

    Aniversário de 5 anos | Editorial

    niver

    Com­par­til­har. Esta é a palavra que ini­ciou uma série de ações, pesquisas e aven­turas que fiz­er­am sur­gir e abaste­cer o inter­ro­gAção durante estes 5 anos de vida. De uma peque­na faís­ca ini­ci­a­da por um blog pes­soal, hoje somos um por­tal cul­tur­al com uma equipe de 6 pes­soas fixas, espal­ha­dos por qua­tro cidades do Brasil e uma nos EUA, e com con­teú­do de mais de out­ros 15 colab­o­radores. E foi por causa de peque­nas e grandes ações que cada um deles tomou, que o inter­ro­gAção é o que ele é hoje.

    Sou pro­fun­da­mente agrade­ci­do a Mara, que é mais que par­ceira no movi­men­to catár­ti­co de ten­tar faz­er o impos­sív­el e rev­olu­cionar a pro­dução de con­teú­do cul­tur­al, a Marília, que está sem­pre res­pi­ran­do poe­sia e pos­sui um olhar incrív­el, ao Rafael, que é um furacão na pro­dução dos mais diver­sos tex­tos e entre­vis­tas, ao Aris­tides, que está sem­pre com­par­til­han­do suas aven­turas pelos mares da con­tra­cul­tura, ao Lau­ro, por dis­sem­i­nar que a arte é inevitáv­el, a Déb­o­ra, por sua visão afi­a­da e certeira, ao Faw, por acred­i­tar e colab­o­rar na con­strução de novos cam­in­hos, e a Car­ol, por aju­dar a espal­har a nos­sa paixão. Con­sidero todos vocês mais que impor­tantes com­pan­heiros nes­sa jor­na­da, mas ver­dadeiros ami­gos, daque­les que con­ta­mos nos dedos das mãos.

    Alguns deles tam­bém tem o que falar dessa jor­na­da, segue abaixo seus depoimentos:

    Uma das coisas que eu ten­ho apren­di­do com a vida é que o entu­si­as­mo nos faz nave­g­ar em águas pro­fun­das, sub­ter­râneas, abis­sais. Esse é o sen­ti­men­to que ten­ho exper­i­men­ta­do nestes 3 anos em que faço parte do interrogAção.

    Com as imer­sões que faço por meio do tra­bal­ho que desen­volve­mos no site – e através das con­ver­sas que ten­ho com o Daniel, edi­tor-chefe, nas reuniões de fechamen­to de pau­ta e de edição, con­tin­uo man­ten­do meu entu­si­as­mo vivo, flame­jante, res­pi­ran­do min­has três palavras mág­i­cas — son­ho, galáx­ia e saudade.

    No inter­ro­gAção, nós son­hamos em viv­er pela e para a cul­tura; não achamos que a galáx­ia é o lim­ite e man­te­mos a saudade do que ain­da não vive­mos como ele­men­to de pul­são. É essa crença em paixões avas­sal­ado­ras, no poder dos livros, na magia da músi­ca e na imer­são cul­tur­al que eu quero con­tin­uar des­per­tan­do no meu coração, na min­ha mente e no meu espíri­to. E tudo isso eu ten­ho encon­tra­do em dobro no interrogAção.

    Obri­ga­da a quem me indi­cou e a quem abraçou a causa ao meu lado e ao lado do Daniel – a quem chamo de mel­hor ami­go. Eu sem­pre leio livros ou ouço músi­ca para son­har, para ser trans­porta­da den­tro de uma visão nova, de uma partícu­la de vida espe­cial. Obri­ga­da por isso e muito mais, inter­ro­ga! Parabéns!


    perfil-maraMara Vanes­sa Torres
    Edi­to­ra-Exec­u­ti­va

    Min­ha relação com o site inter­ro­gAção é de pura afe­tivi­dade. É uma equipe jovem, apaixon­a­da por cul­tura e artes, que em vez de seguir regras e padrões, procu­ra desco­brir ou cri­ar sua iden­ti­dade, seu espaço.

    Escr­ev­er para o site inter­ro­gAção é uma exper­iên­cia inter­es­sante. Estim­u­la a orga­ni­zar a escri­ta e a dialog­ar com a lit­er­atu­ra con­tem­porânea. Nun­ca tive méto­do para escr­ev­er, para mim a lit­er­atu­ra e a poe­sia são neces­si­dades ínti­mas, tan­to de leitu­ra quan­to de com­posição. Pub­licar no site per­mite com­par­til­har paixões e dialog­ar com o admiráv­el mun­do novo em que vivemos.

    perfil-mariliaMar­il­ia Kubota
    Reda­to­ra

    O inter­ro­gAção é o cam­po livre da expressão e do apro­fun­da­men­to do int­elec­to. É nele que encon­tramos textos/artigos/crônicas/dossiês que nos per­mitem ir além do con­hec­i­men­to. É o atal­ho para a sabedoria.

    Foi o inter­ro­gAção que me per­mi­tiu explo­rar áreas e poten­cial­i­dades que até então só vis­lum­bra­va em um hor­i­zonte dis­tante. A parce­ria está no começo. Em breve ire­mos lançar o ‘Dos­siê Musas da Boca’, solid­i­f­i­can­do essa parceria.

    Foi tam­bém graças ao inter­ro­gAção que tive a opor­tu­nidade de con­hecer dois ami­gos que levarei pra sem­pre: Daniel Koss­mann e Mara Vanes­sa Torres.

    perfil-rafaelRafael Spaca
    Reda­tor

    Mas não vamos parar a fes­ta por aí! Para comem­o­rar esta meia déca­da de mui­ta paixão pela cul­tura, ire­mos lançar durante o mês de março uma nova ver­são do site, total­mente foca­da na exper­iên­cia da leitu­ra, novas seções de con­teú­do e várias out­ras novi­dades. Fiquem aten­tos aos anún­cios neste edi­to­r­i­al e nas nos­sas redes sociais.

    Para finalizar, que­ria tam­bém agrade­cer a todos os nos­sos leitores, par­ceiros e apoiadores, por acred­itarem e aju­darem a man­ter essa chama do inter­ro­gAção ace­sa, que é ali­men­ta­da por muito suor, tesão e sonhos.

    Obri­ga­do!!!

  • Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    poema-sujo-ferreira-gullar-livro-capaCatarse (do grego: kathar­sis) é o proces­so de depu­ração dos sen­ti­men­tos, purifi­cação ou pur­gação do espíri­to sen­sív­el. No teatro grego, o herói dramáti­co pre­cisa sofr­er para purificar o espíri­to. Em psi­canálise, é a lib­er­tação de um trau­ma. A gênese da mais famosa obra dos últi­mos 40 anos da poe­sia brasileira, o Poe­ma sujo, é catár­ti­ca, segun­do seu autor, Fer­reira Gullar.

    Gullar esta­va no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quan­do escreveu o poe­ma. Depois de pas­sar anos moran­do em diver­sas cidades do mun­do (Moscou, San­ti­a­go do Chile e Lima), viu ditaduras mil­itares se insta­larem nos país­es sul-amer­i­canos. Com o fra­cas­so da utopia comu­nista no Brasil, depois de um tem­po na Rús­sia, emi­grou para o Chile e assis­tiu à que­da de Allende. Mudou para a Argenti­na em 1974 e reviveu o pesade­lo de ver os ami­gos ao redor serem pre­sos ou fugir. Saben­do que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cer­co no país viz­in­ho, decid­iu escr­ev­er um poe­ma que fos­se um teste­munho final.

    O Poe­ma sujo, escrito em cin­co meses, em esta­do de transe ver­tig­i­noso, foi aca­len­ta­do por anos. Tem como fio con­du­tor a ideia de res­gatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maran­hão. As condições de penúria no exílio e a eminên­cia de calar-se para sem­pre o forçaram a ultra­pas­sar o tom memo­ri­alís­ti­co. O Poe­ma sujo dá voz ao deses­pero do poeta. Deses­pero que, para­doxal­mente, englo­ba grande esper­ança, por situ­ar-se na infân­cia, como demon­stra seu tre­cho mais con­heci­do, trans­for­ma­do na letra da canção O tren­z­in­ho caipi­ra, a toca­ta da Bachi­ana no. 2, de Vil­la-Lobos:

    Lá vai o trem com o menino
    Lá vai a vida a rodar
    Lá vai ciran­da e destino
    Cidade e noite a girar
    Lá vai o trem sem destino
    Pro dia novo encontrar
    Cor­ren­do vai pela terra
    Vai pela serra
    Vai pelo mar
    Can­tan­do pela ser­ra o luar
    Cor­ren­do entre as estre­las a voar
    No ar, no ar…

    A evo­cação da memória da infân­cia em rede­moin­ho é o pon­to de par­ti­da para com­por um poe­ma em vários tons, com momen­tos de inten­si­dade e de banal­i­dade, como cita o poeta, con­struí­dos por frag­men­tos de lem­branças “das pes­soas às coisas, das plan­tas aos bichos, tudo, água, lama, noite estre­la­da, fome, esper­ma, son­ho, humil­hações, tudo era gora matéria poéti­ca”. Antítese entre o claro do pre­sente e o tur­vo da infân­cia, mais que res­gate, é a recom­posição do pas­sa­do no presente.

    A memória da infân­cia é um reg­istro infiel, sujo, recom­pos­ta por destroços: tel­has encar­di­das, gar­fos e facas que se que­braram, e se perder­am nas fal­has do assoal­ho para con­viv­er com baratas e ratos no quin­tal esque­ci­dos entre os pés de erva cidreira. Des­or­dem que é ordem “per­feita­mente fora do rig­or cronológi­co”, do labir­in­to do tem­po inte­ri­or. A casa per­di­da no tem­po, com tal­heres enfer­ru­ja­dos, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gas­tas, armários obso­le­tos raste­jam “pelos túneis das noites clan­des­ti­nas” esperan­do “que o dia ven­ha”. A infân­cia é o úni­co refú­gio para quem perdeu tudo. O cor­po, a úni­ca casa, o úni­co ter­ritório, a pos­si­bil­i­dade de êxtase quan­do já não se per­tence a lugar nenhum.

    A iden­ti­dade são-luisense se con­cretiza no cor­po do poeta, o pas­sa­do se esmiúça, como cita Alcides Vil­laça: o “sujo do poe­ma ref­ere-se tan­to ao impuro quan­to pela com­posição das difer­enças, pelas águas revolvi­das, pelo esti­lo que vai da mão sol­ta no papel à cadên­cia rig­orosa de uma avali­ação […] Mas sujo tam­bém porque par­tic­i­pa de uma história não ofi­cial, sec­re­ta, que soma a con­sciên­cia abafa­da e o cor­po pri­sioneiro de von­tades cal­adas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apo­drece lentamente.

    A canção de exílio dos anos de chum­bo é Sabiá, de Chico Buar­que e Tom Jobim, com­pos­ta em 1968 para um fes­ti­val. A canção traz refer­ên­cias claras ao “dia que virá”, dia em que os exi­la­dos retornar­i­am à pátria. Gullar ante­ci­pa a pátria destruí­da, memória dev­as­ta­da e ilu­mi­na­da ape­nas pelo facho das lem­branças da cidade de infân­cia. Os obje­tos da casa pri­mor­dial gas­taram-se no tem­po e por isso sua lem­brança é de sujeira, ou algo que foi sujo.

    O teste­munho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacional­is­mo insu­fla­do por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tan­to mais comovente quan­to bus­ca negar qual­quer resquí­cio român­ti­co ou pan­fletário. Em nem um momen­to rev­ela tex­tual­mente a dor pela per­da dos ami­gos, o esface­la­men­to famil­iar e a melan­co­l­ia da desterritorialização.

    Depois de con­cluir o poe­ma, Gullar o leu a Viní­cius de Morais, que lev­ou uma gravação da leitu­ra para o Brasil. Gru­pos se for­mavam para ouvir a voz do poeta exi­la­do. O edi­tor Ênio Sil­veira pediu cópia para pub­licá-lo. Com a pub­li­cação, ami­gos, jor­nal­is­tas e escritores cla­ma­ram ao gov­er­no mil­i­tar o fim do exílio de Gullar. O gov­er­no não aten­deu. O poeta, porém cansa­do, resolveu voltar por con­ta própria. Quan­do chegou, foi lev­a­do ao DOI-Codi e inter­ro­ga­do, acarea­do e ameaça­do. Mas graças ao poe­ma, pôde ficar no Brasil.

    A catarse do ago­ra con­tra o futuro marginal

    A repub­li­cação do Poe­ma sujo, em 2013, pela José Olym­pio, o cel­e­bra como mar­co na luta con­tra a repressão mil­i­tar. Mas antes de se tor­na per­sona non gra­ta no país, Gullar já guer­rea­va, e muito, mas por razões estéti­cas, con­tra out­ros adver­sários. Con­trapôs-se ao movi­men­to de van­guar­da da poe­sia conc­re­ta, com­pos­ta pelos irmãos Augus­to e Harol­do de Cam­pos e Décio Pig­natari, defend­en­do o nacional­is­mo da arte brasileira e crian­do a poe­sia neo­conc­re­ta. A prin­ci­pal críti­ca de Gullar aos con­cre­tos era de que com­par­a­vam a poe­sia à matemáti­ca e pre­tendi­am atu­ar em todos os cam­pos, jor­nais, pub­li­ci­dade, da músi­ca (canção pop­u­lar), tevê, rádio, cinema.

    Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.
    Augus­to de Cam­pos, Décio Pig­natari e Harol­do de Cam­pos, a Tríade Concretista.

    Provo­cador, polêmi­co, jamais pací­fi­co, o poeta Paulo Lemins­ki é herdeiro de uma tradição poéti­ca de van­guar­da (ou tradição de rup­tura, como quer Octávio Paz) que no Brasil ren­deu movi­men­tos como o Mod­ernismo, a Poe­sia Conc­re­ta e o Trop­i­cal­is­mo. Por causa do tem­po históri­co de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erronea­mente situ­a­do den­tro da Poe­sia Mar­gin­al, movi­men­to ao qual nun­ca se fil­iou (não gos­to da poe­sia de Caca­so, um dos líderes da poe­sia mar­gin­al car­i­o­ca dos 70/80, afir­mou, em entre­vista ao jor­nal­ista Aramis Mil­larch, em 1986) e con­tra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Críp­ti­cos” (1986).

    Lemins­ki her­dou a briga com os neo­con­cre­tos. Ape­sar de propa­gar a teo­ria da arte como  inuten­sílio, nun­ca fez ape­nas arte pela arte. É o que se com­pro­va na canção Ver­du­ra, veta­da pela cen­sura em 1978.

    De repente
    me lem­bro do verde
    da cor verde
    a mais verde que existe
    a cor mais alegre
    a cor mais triste
    o verde que vestes
    o verde que vestiste
    o dia em que te vi
    o dia em que me viste
    De repente
    ven­di meus filhos
    a uma família americana
    eles têm carro
    eles têm grana
    eles têm casa
    a gra­ma é bacana
    só assim eles podem voltar
    e pegar um sol em Copacabana

    O poeta Fab­rí­cio Mar­ques asso­cia o ver­so de repente me lem­bro do verde ao Trop­i­cal­is­mo, conectan­do o verde cita­do com uma das cores-sím­bo­lo do Brasil:

    todas as suas nuances e con­tradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poe­ma atinge um tom quase lisér­gi­co, no qual ressaltam ecos do trop­i­cal­is­mo: super­ba­cana, de Cae­tano Veloso, e ai de ti, Copaca­bana, de Torqua­to. Ocorre então uma inver­são paródi­ca do nacional­is­mo, prin­ci­pal­mente na segun­da estrofe, que fun­ciona como uma espé­cie de críti­ca políti­ca avant la let­tre à emi­gração de brasileiros em bus­ca de mel­hores condições de vida, numa pro­gressão desen­f­rea­da, prin­ci­pal­mente para os Esta­dos Unidos, nos anos que se seguiram à primeira pub­li­cação do tex­to em livro (1981).

    A asso­ci­ação com o verde trop­i­cal­ista não é a úni­ca pos­sív­el. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o fil­ho para os amer­i­canos. O verde triste trans­for­ma tudo em mer­cado­ria, até as relações afe­ti­vas. Triste ain­da o verde do uni­forme dos mil­itares, cujos cen­sores enten­der­am a iro­nia. A canção só pas­sou pelo cri­vo em 1981, quan­do foi grava­da por Cae­tano Veloso. Mas a refer­ên­cia aos poe­mas trop­i­cal­is­tas é inex­a­ta. Em vez de Super­ba­cana e Ai de mim, Copaca­bana, a asso­ci­ação mais ine­bri­ante pode­ria ser Quan­do o san­to guer­reiro entre­ga as pon­tas, de Torqua­to Neto:

    nada de mais:
    o muro pin­ta­do de verde
    e ninguém que pre­cise dizer-me
    que esse verde que não quero verde
    lírico
    mais planos e mais planos
    se desfaz:
    nada demais
    aqui de den­tro eu pego e furo a fogo
    e luz
    (é movimento)
    vos­so sis­tema pro­te­tor de incêndios
    e pin­to a tela o muro diferente
    porque uso como quero min­ha lentes
    e fil­mo o verde,
    que eu não temo o verde,
    de out­ra cor:
    diari­a­mente encaro bem de perto
    e escar­ro sobre o muro:
    nada demais

    Lemins­ki deg­lute antropofagi­ca­mente o Bis­po Sardinha, como que­ria Oswald, can­tan­do, com dó de peito o momen­to históri­co do iní­cio da diás­po­ra glob­al. O sen­ti­men­to de dor (por ver seu igual par­tir e se par­tir) não fratu­ra o poeta, que final­iza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copaca­bana, com a con­sciên­cia de que a Ale­gria é a Pro­va dos Nove, como can­ta­va Oswald, ou seja, a úni­ca for­ma de resistên­cia a um regime desigual que estim­ula­va o despa­tri­a­men­to só pode­ria ser a iro­nia, trazen­do a capa de um fal­so con­formis­mo. Desse modo, mes­mo nun­ca ten­do se desli­ga­do de sua ter­ra natal, Lemisn­ki par­tic­i­pa dass ago­nias da vida nacional em seu insilio1.

    O críti­co Sil­viano San­ti­a­go esclarece que o bor­dão antropofági­co vin­cu­la-se com a catarse do ago­ra: “o ressurg­i­men­to de um cor­po que não estaria mais com­pro­meti­do com a éti­ca protes­tante do tra­bal­ho, um cor­po que recusa, inclu­sive, […] a col­o­niza­ção do futuro. Esse cor­po, então, estaria fin­can­do mais e mais o pé no ago­ra: nesse sen­ti­do, um cor­po que é fruição.” Esta ideia estaria lig­a­da à emergên­cia das mino­rias sex­u­ais nos anos 70: “De cer­ta for­ma, na nos­sa sociedade oci­den­tal, em par­tic­u­lar, o praz­er esteve muito vin­cu­la­do a uma cer­ta nor­mal­iza­ção de con­du­ta sex­u­al, e quan­do essa con­du­ta não era nor­mal­iza­da as pes­soas se sen­ti­am enorme­mente infelizes.”

    Paulo Leminski
    Paulo Lemins­ki

    O críti­co fala de um cor­po não reprim­i­do, de pura ale­gria, em con­trapon­to com a tradição críti­ca que colo­ca o pre­sente como esta­do de martírio. O sofri­men­to cul­tua­do pelos gru­pos políti­cos de esquer­da no Brasil tin­ha como pro­je­to de redenção a pos­si­bil­i­dade de uma utopia social. San­ti­a­go se posi­ciona con­tra este esta­do de pobreza: “Inver­tendo os ter­mos, dizen­do que o pre­sente pode ser vivi­do, pode ser vivi­do ale­gre­mente, sem as amar­ras da repressão, estaríamos descondi­cio­nan­do a pos­si­bil­i­dade de um pen­sa­men­to dito utópi­co.” Nos ver­sos de Leminski:

    praz­er
    da pura percepção
    os sentidos
    sejam a crítica
    da razão
    (Dis­traí­dos Vencer­e­mos, 1987)

    Esta ide­olo­gia está em coal­izão com a microp­olíti­ca do dese­jo de Felix Guat­tari e o com­por­ta­men­to aqui-ago­ra do movi­men­to hip­pie dos anos 70, que vul­gar­iza con­ceitos de filosofias ori­en­tais, como o hin­duís­mo e o zen-bud­is­mo. Os hip­pies trazem a ideia do praz­er na real­i­dade do pre­sente, em que a utopia não se adia, em que o esta­do par­adis­ía­co é vivi­do todos os dias. A poe­sia de Lemins­ki con­strói a catarse do ago­ra con­tra a repressão do pre­sente – no con­tex­to históri­co, a saí­da da ditadu­ra mil­i­tar para a ditadu­ra da econo­mia glob­al. Con­tra um sis­tema no qual a poe­sia é ape­nas o dese­jo, os artefatos de Lemins­ki tor­nam-se instru­men­to críti­co que cor­roem con­ceitos e faz­eres mumi­fi­ca­dos, como na genial inver­são dis­traí­dos vencer­e­mos do títu­lo de livro pub­li­ca­do em 1987, que car­naval­iza o bor­dão Unidos, vencer­e­mos.

    Um dos recur­sos usa­dos pelos poet­as para com­bat­er o regime repres­sor foi o humor. San­ti­a­go difer­en­cia dois proces­sos usa­dos nos movi­men­tos de poe­sia de protesto. O primeiro, a paró­dia, é um recur­so val­oriza­do como instru­men­to poten­cial de irrisão con­tra o poder insti­tuí­do, uma rup­tura. O segun­do, o pas­tiche, é uma der­risão que enfraque­ce o poder da críti­ca: A paró­dia sig­nifi­ca uma rup­tura, um escárnio com relação àquela estéti­ca que é dada como neg­a­ti­va. O pas­tiche não rechaça o pas­sa­do, num gesto de escárnio, de despre­zo, de iro­nia, escreve Santiago.

    A paró­dia tem o mes­mo grau de irrisão do insti­tuí­do pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Man­i­festo Antropofági­co de Oswald, em 1922. A lição mod­ernista foi incor­po­ra­da por Lemins­ki, que des­de sua aparição públi­ca nos jor­nais em Curiti­ba, achin­cal­ha o cul­to ao con­to e a figu­ra mon­u­men­tal­iza­da de Dal­ton Tre­visan, nos anos 70 e 80. Neste momen­to, seu embate não é con­tra as ino­vações de Dal­ton (a lin­guagem sin­téti­ca, a opção pela “cor local”, ado­tadas por Lemins­ki) e sim con­tra a insti­tu­cional­iza­ção de Dalton.

    Ferreira Gullar.
    Fer­reira Gullar

    A dor tão ele­va­da que é capaz de faz­er rir, evo­ca­da por Alice Ruiz no pre­fá­cio do livro La Vie en Close foi a táti­ca de uma guer­ril­ha que tem no riso, no chiste, no witz, na descon­strução de clichês e no aproveita­men­to de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guer­ril­ha cul­tur­al seria her­ança do Trop­i­cal­is­mo. Para Ana Cristi­na César, a Trop­icália é a expressão de uma crise, uma opção estéti­ca que inclui um pro­je­to de vida, em que o com­por­ta­men­to pas­sa a ser ele­men­to críti­co, sub­ver­tendo a ordem mes­ma do cotid­i­ano. A ideia de enfrentar o sufo­co políti­co com as armas do cotid­i­ano foi legit­i­ma­da em Leminski.

    Dois adver­sários no cam­po da estéti­ca da poe­sia lutam con­tra um inimi­go comum. E fil­iam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paró­dia da Canção do Exílio, descon­stru­in­do o nacional­is­mo orig­i­nal. Enquan­to a nação desa­parece, a infân­cia tor­na-se ter­ritório míti­co e o cor­po, o úni­co sacra­men­to, para Gullar. Já Lemins­ki percebe que até a infân­cia será ven­di­da, restando, para a poe­sia, sua úni­ca arma de luta: o praz­er de provo­car sentidos.

    Insílio: De acor­do com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O con­ceito nasce basea­do em sociedades autoritárias. Os insi­la­dos ficam pre­sos no país sofren­do os des­man­dos do regime. Ilie dis­cute o inner exilie da sociedade espan­ho­la sob o regime fran­quista, não exi­ladas de acor­do com o mod­e­lo clás­si­co, mas tiver­am a liber­dade restri­ta, sofren­do com a negação, dom­i­nação, anu­lação, intolerância.

    BIBLIOGRAFIA

    Livros

    • GULLAR, Fer­reira
      • Inda­gações de hoje. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 1989.
      • Poe­ma sujo. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 2013.
    • LEMINSKI, Paulo
      •  Capri­chos e Relax­os. São Paulo: Brasiliense, 1983.
      • Dis­traí­dos Vencer­e­mos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
      • Anseios Críp­ti­cos, Curiti­ba: Cri­ar Edições, 1985.
      • Um Escritor na Bib­liote­ca, Curiti­ba: Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná, 1985.
      • La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.
      • Poe­sia, paixão da lin­guagem. In: Novaes, Adau­to (Org.) Os sen­ti­dos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
      • Uma car­ta uma brasa através – car­tas a Régis Bon­vi­ci­no. 1976–1981 São Paulo: Ilu­min­uras, 1992.
    • SANTIAGO, Sil­viano
      • Nas Mal­has da Letra. São Paulo: Com­pan­hia das Letras, 1989.

    Doc­u­men­tos eletrônicos

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.