Category: Literatura Nacional

  • Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    poema-sujo-ferreira-gullar-livro-capaCatarse (do grego: kathar­sis) é o proces­so de depu­ração dos sen­ti­men­tos, purifi­cação ou pur­gação do espíri­to sen­sív­el. No teatro grego, o herói dramáti­co pre­cisa sofr­er para purificar o espíri­to. Em psi­canálise, é a lib­er­tação de um trau­ma. A gênese da mais famosa obra dos últi­mos 40 anos da poe­sia brasileira, o Poe­ma sujo, é catár­ti­ca, segun­do seu autor, Fer­reira Gullar.

    Gullar esta­va no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quan­do escreveu o poe­ma. Depois de pas­sar anos moran­do em diver­sas cidades do mun­do (Moscou, San­ti­a­go do Chile e Lima), viu ditaduras mil­itares se insta­larem nos país­es sul-amer­i­canos. Com o fra­cas­so da utopia comu­nista no Brasil, depois de um tem­po na Rús­sia, emi­grou para o Chile e assis­tiu à que­da de Allende. Mudou para a Argenti­na em 1974 e reviveu o pesade­lo de ver os ami­gos ao redor serem pre­sos ou fugir. Saben­do que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cer­co no país viz­in­ho, decid­iu escr­ev­er um poe­ma que fos­se um teste­munho final.

    O Poe­ma sujo, escrito em cin­co meses, em esta­do de transe ver­tig­i­noso, foi aca­len­ta­do por anos. Tem como fio con­du­tor a ideia de res­gatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maran­hão. As condições de penúria no exílio e a eminên­cia de calar-se para sem­pre o forçaram a ultra­pas­sar o tom memo­ri­alís­ti­co. O Poe­ma sujo dá voz ao deses­pero do poeta. Deses­pero que, para­doxal­mente, englo­ba grande esper­ança, por situ­ar-se na infân­cia, como demon­stra seu tre­cho mais con­heci­do, trans­for­ma­do na letra da canção O tren­z­in­ho caipi­ra, a toca­ta da Bachi­ana no. 2, de Vil­la-Lobos:

    Lá vai o trem com o menino
    Lá vai a vida a rodar
    Lá vai ciran­da e destino
    Cidade e noite a girar
    Lá vai o trem sem destino
    Pro dia novo encontrar
    Cor­ren­do vai pela terra
    Vai pela serra
    Vai pelo mar
    Can­tan­do pela ser­ra o luar
    Cor­ren­do entre as estre­las a voar
    No ar, no ar…

    A evo­cação da memória da infân­cia em rede­moin­ho é o pon­to de par­ti­da para com­por um poe­ma em vários tons, com momen­tos de inten­si­dade e de banal­i­dade, como cita o poeta, con­struí­dos por frag­men­tos de lem­branças “das pes­soas às coisas, das plan­tas aos bichos, tudo, água, lama, noite estre­la­da, fome, esper­ma, son­ho, humil­hações, tudo era gora matéria poéti­ca”. Antítese entre o claro do pre­sente e o tur­vo da infân­cia, mais que res­gate, é a recom­posição do pas­sa­do no presente.

    A memória da infân­cia é um reg­istro infiel, sujo, recom­pos­ta por destroços: tel­has encar­di­das, gar­fos e facas que se que­braram, e se perder­am nas fal­has do assoal­ho para con­viv­er com baratas e ratos no quin­tal esque­ci­dos entre os pés de erva cidreira. Des­or­dem que é ordem “per­feita­mente fora do rig­or cronológi­co”, do labir­in­to do tem­po inte­ri­or. A casa per­di­da no tem­po, com tal­heres enfer­ru­ja­dos, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gas­tas, armários obso­le­tos raste­jam “pelos túneis das noites clan­des­ti­nas” esperan­do “que o dia ven­ha”. A infân­cia é o úni­co refú­gio para quem perdeu tudo. O cor­po, a úni­ca casa, o úni­co ter­ritório, a pos­si­bil­i­dade de êxtase quan­do já não se per­tence a lugar nenhum.

    A iden­ti­dade são-luisense se con­cretiza no cor­po do poeta, o pas­sa­do se esmiúça, como cita Alcides Vil­laça: o “sujo do poe­ma ref­ere-se tan­to ao impuro quan­to pela com­posição das difer­enças, pelas águas revolvi­das, pelo esti­lo que vai da mão sol­ta no papel à cadên­cia rig­orosa de uma avali­ação […] Mas sujo tam­bém porque par­tic­i­pa de uma história não ofi­cial, sec­re­ta, que soma a con­sciên­cia abafa­da e o cor­po pri­sioneiro de von­tades cal­adas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apo­drece lentamente.

    A canção de exílio dos anos de chum­bo é Sabiá, de Chico Buar­que e Tom Jobim, com­pos­ta em 1968 para um fes­ti­val. A canção traz refer­ên­cias claras ao “dia que virá”, dia em que os exi­la­dos retornar­i­am à pátria. Gullar ante­ci­pa a pátria destruí­da, memória dev­as­ta­da e ilu­mi­na­da ape­nas pelo facho das lem­branças da cidade de infân­cia. Os obje­tos da casa pri­mor­dial gas­taram-se no tem­po e por isso sua lem­brança é de sujeira, ou algo que foi sujo.

    https://www.youtube.com/watch?v=lhsXWXzh4ow

    O teste­munho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacional­is­mo insu­fla­do por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tan­to mais comovente quan­to bus­ca negar qual­quer resquí­cio român­ti­co ou pan­fletário. Em nem um momen­to rev­ela tex­tual­mente a dor pela per­da dos ami­gos, o esface­la­men­to famil­iar e a melan­co­l­ia da desterritorialização.

    Depois de con­cluir o poe­ma, Gullar o leu a Viní­cius de Morais, que lev­ou uma gravação da leitu­ra para o Brasil. Gru­pos se for­mavam para ouvir a voz do poeta exi­la­do. O edi­tor Ênio Sil­veira pediu cópia para pub­licá-lo. Com a pub­li­cação, ami­gos, jor­nal­is­tas e escritores cla­ma­ram ao gov­er­no mil­i­tar o fim do exílio de Gullar. O gov­er­no não aten­deu. O poeta, porém cansa­do, resolveu voltar por con­ta própria. Quan­do chegou, foi lev­a­do ao DOI-Codi e inter­ro­ga­do, acarea­do e ameaça­do. Mas graças ao poe­ma, pôde ficar no Brasil.

    A catarse do ago­ra con­tra o futuro marginal

    A repub­li­cação do Poe­ma sujo, em 2013, pela José Olym­pio, o cel­e­bra como mar­co na luta con­tra a repressão mil­i­tar. Mas antes de se tor­na per­sona non gra­ta no país, Gullar já guer­rea­va, e muito, mas por razões estéti­cas, con­tra out­ros adver­sários. Con­trapôs-se ao movi­men­to de van­guar­da da poe­sia conc­re­ta, com­pos­ta pelos irmãos Augus­to e Harol­do de Cam­pos e Décio Pig­natari, defend­en­do o nacional­is­mo da arte brasileira e crian­do a poe­sia neo­conc­re­ta. A prin­ci­pal críti­ca de Gullar aos con­cre­tos era de que com­par­a­vam a poe­sia à matemáti­ca e pre­tendi­am atu­ar em todos os cam­pos, jor­nais, pub­li­ci­dade, da músi­ca (canção pop­u­lar), tevê, rádio, cinema.

    Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.
    Augus­to de Cam­pos, Décio Pig­natari e Harol­do de Cam­pos, a Tríade Concretista.

    Provo­cador, polêmi­co, jamais pací­fi­co, o poeta Paulo Lemins­ki é herdeiro de uma tradição poéti­ca de van­guar­da (ou tradição de rup­tura, como quer Octávio Paz) que no Brasil ren­deu movi­men­tos como o Mod­ernismo, a Poe­sia Conc­re­ta e o Trop­i­cal­is­mo. Por causa do tem­po históri­co de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erronea­mente situ­a­do den­tro da Poe­sia Mar­gin­al, movi­men­to ao qual nun­ca se fil­iou (não gos­to da poe­sia de Caca­so, um dos líderes da poe­sia mar­gin­al car­i­o­ca dos 70/80, afir­mou, em entre­vista ao jor­nal­ista Aramis Mil­larch, em 1986) e con­tra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Críp­ti­cos” (1986).

    Lemins­ki her­dou a briga com os neo­con­cre­tos. Ape­sar de propa­gar a teo­ria da arte como  inuten­sílio, nun­ca fez ape­nas arte pela arte. É o que se com­pro­va na canção Ver­du­ra, veta­da pela cen­sura em 1978.

    De repente
    me lem­bro do verde
    da cor verde
    a mais verde que existe
    a cor mais alegre
    a cor mais triste
    o verde que vestes
    o verde que vestiste
    o dia em que te vi
    o dia em que me viste
    De repente
    ven­di meus filhos
    a uma família americana
    eles têm carro
    eles têm grana
    eles têm casa
    a gra­ma é bacana
    só assim eles podem voltar
    e pegar um sol em Copacabana

    O poeta Fab­rí­cio Mar­ques asso­cia o ver­so de repente me lem­bro do verde ao Trop­i­cal­is­mo, conectan­do o verde cita­do com uma das cores-sím­bo­lo do Brasil:

    todas as suas nuances e con­tradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poe­ma atinge um tom quase lisér­gi­co, no qual ressaltam ecos do trop­i­cal­is­mo: super­ba­cana, de Cae­tano Veloso, e ai de ti, Copaca­bana, de Torqua­to. Ocorre então uma inver­são paródi­ca do nacional­is­mo, prin­ci­pal­mente na segun­da estrofe, que fun­ciona como uma espé­cie de críti­ca políti­ca avant la let­tre à emi­gração de brasileiros em bus­ca de mel­hores condições de vida, numa pro­gressão desen­f­rea­da, prin­ci­pal­mente para os Esta­dos Unidos, nos anos que se seguiram à primeira pub­li­cação do tex­to em livro (1981).

    A asso­ci­ação com o verde trop­i­cal­ista não é a úni­ca pos­sív­el. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o fil­ho para os amer­i­canos. O verde triste trans­for­ma tudo em mer­cado­ria, até as relações afe­ti­vas. Triste ain­da o verde do uni­forme dos mil­itares, cujos cen­sores enten­der­am a iro­nia. A canção só pas­sou pelo cri­vo em 1981, quan­do foi grava­da por Cae­tano Veloso. Mas a refer­ên­cia aos poe­mas trop­i­cal­is­tas é inex­a­ta. Em vez de Super­ba­cana e Ai de mim, Copaca­bana, a asso­ci­ação mais ine­bri­ante pode­ria ser Quan­do o san­to guer­reiro entre­ga as pon­tas, de Torqua­to Neto:

    nada de mais:
    o muro pin­ta­do de verde
    e ninguém que pre­cise dizer-me
    que esse verde que não quero verde
    lírico
    mais planos e mais planos
    se desfaz:
    nada demais
    aqui de den­tro eu pego e furo a fogo
    e luz
    (é movimento)
    vos­so sis­tema pro­te­tor de incêndios
    e pin­to a tela o muro diferente
    porque uso como quero min­ha lentes
    e fil­mo o verde,
    que eu não temo o verde,
    de out­ra cor:
    diari­a­mente encaro bem de perto
    e escar­ro sobre o muro:
    nada demais

    Lemins­ki deg­lute antropofagi­ca­mente o Bis­po Sardinha, como que­ria Oswald, can­tan­do, com dó de peito o momen­to históri­co do iní­cio da diás­po­ra glob­al. O sen­ti­men­to de dor (por ver seu igual par­tir e se par­tir) não fratu­ra o poeta, que final­iza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copaca­bana, com a con­sciên­cia de que a Ale­gria é a Pro­va dos Nove, como can­ta­va Oswald, ou seja, a úni­ca for­ma de resistên­cia a um regime desigual que estim­ula­va o despa­tri­a­men­to só pode­ria ser a iro­nia, trazen­do a capa de um fal­so con­formis­mo. Desse modo, mes­mo nun­ca ten­do se desli­ga­do de sua ter­ra natal, Lemisn­ki par­tic­i­pa dass ago­nias da vida nacional em seu insilio1.

    O críti­co Sil­viano San­ti­a­go esclarece que o bor­dão antropofági­co vin­cu­la-se com a catarse do ago­ra: “o ressurg­i­men­to de um cor­po que não estaria mais com­pro­meti­do com a éti­ca protes­tante do tra­bal­ho, um cor­po que recusa, inclu­sive, […] a col­o­niza­ção do futuro. Esse cor­po, então, estaria fin­can­do mais e mais o pé no ago­ra: nesse sen­ti­do, um cor­po que é fruição.” Esta ideia estaria lig­a­da à emergên­cia das mino­rias sex­u­ais nos anos 70: “De cer­ta for­ma, na nos­sa sociedade oci­den­tal, em par­tic­u­lar, o praz­er esteve muito vin­cu­la­do a uma cer­ta nor­mal­iza­ção de con­du­ta sex­u­al, e quan­do essa con­du­ta não era nor­mal­iza­da as pes­soas se sen­ti­am enorme­mente infelizes.”

    Paulo Leminski
    Paulo Lemins­ki

    O críti­co fala de um cor­po não reprim­i­do, de pura ale­gria, em con­trapon­to com a tradição críti­ca que colo­ca o pre­sente como esta­do de martírio. O sofri­men­to cul­tua­do pelos gru­pos políti­cos de esquer­da no Brasil tin­ha como pro­je­to de redenção a pos­si­bil­i­dade de uma utopia social. San­ti­a­go se posi­ciona con­tra este esta­do de pobreza: “Inver­tendo os ter­mos, dizen­do que o pre­sente pode ser vivi­do, pode ser vivi­do ale­gre­mente, sem as amar­ras da repressão, estaríamos descondi­cio­nan­do a pos­si­bil­i­dade de um pen­sa­men­to dito utópi­co.” Nos ver­sos de Leminski:

    praz­er
    da pura percepção
    os sentidos
    sejam a crítica
    da razão
    (Dis­traí­dos Vencer­e­mos, 1987)

    Esta ide­olo­gia está em coal­izão com a microp­olíti­ca do dese­jo de Felix Guat­tari e o com­por­ta­men­to aqui-ago­ra do movi­men­to hip­pie dos anos 70, que vul­gar­iza con­ceitos de filosofias ori­en­tais, como o hin­duís­mo e o zen-bud­is­mo. Os hip­pies trazem a ideia do praz­er na real­i­dade do pre­sente, em que a utopia não se adia, em que o esta­do par­adis­ía­co é vivi­do todos os dias. A poe­sia de Lemins­ki con­strói a catarse do ago­ra con­tra a repressão do pre­sente – no con­tex­to históri­co, a saí­da da ditadu­ra mil­i­tar para a ditadu­ra da econo­mia glob­al. Con­tra um sis­tema no qual a poe­sia é ape­nas o dese­jo, os artefatos de Lemins­ki tor­nam-se instru­men­to críti­co que cor­roem con­ceitos e faz­eres mumi­fi­ca­dos, como na genial inver­são dis­traí­dos vencer­e­mos do títu­lo de livro pub­li­ca­do em 1987, que car­naval­iza o bor­dão Unidos, vencer­e­mos.

    Um dos recur­sos usa­dos pelos poet­as para com­bat­er o regime repres­sor foi o humor. San­ti­a­go difer­en­cia dois proces­sos usa­dos nos movi­men­tos de poe­sia de protesto. O primeiro, a paró­dia, é um recur­so val­oriza­do como instru­men­to poten­cial de irrisão con­tra o poder insti­tuí­do, uma rup­tura. O segun­do, o pas­tiche, é uma der­risão que enfraque­ce o poder da críti­ca: A paró­dia sig­nifi­ca uma rup­tura, um escárnio com relação àquela estéti­ca que é dada como neg­a­ti­va. O pas­tiche não rechaça o pas­sa­do, num gesto de escárnio, de despre­zo, de iro­nia, escreve Santiago.

    A paró­dia tem o mes­mo grau de irrisão do insti­tuí­do pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Man­i­festo Antropofági­co de Oswald, em 1922. A lição mod­ernista foi incor­po­ra­da por Lemins­ki, que des­de sua aparição públi­ca nos jor­nais em Curiti­ba, achin­cal­ha o cul­to ao con­to e a figu­ra mon­u­men­tal­iza­da de Dal­ton Tre­visan, nos anos 70 e 80. Neste momen­to, seu embate não é con­tra as ino­vações de Dal­ton (a lin­guagem sin­téti­ca, a opção pela “cor local”, ado­tadas por Lemins­ki) e sim con­tra a insti­tu­cional­iza­ção de Dalton.

    Ferreira Gullar.
    Fer­reira Gullar

    A dor tão ele­va­da que é capaz de faz­er rir, evo­ca­da por Alice Ruiz no pre­fá­cio do livro La Vie en Close foi a táti­ca de uma guer­ril­ha que tem no riso, no chiste, no witz, na descon­strução de clichês e no aproveita­men­to de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guer­ril­ha cul­tur­al seria her­ança do Trop­i­cal­is­mo. Para Ana Cristi­na César, a Trop­icália é a expressão de uma crise, uma opção estéti­ca que inclui um pro­je­to de vida, em que o com­por­ta­men­to pas­sa a ser ele­men­to críti­co, sub­ver­tendo a ordem mes­ma do cotid­i­ano. A ideia de enfrentar o sufo­co políti­co com as armas do cotid­i­ano foi legit­i­ma­da em Leminski.

    Dois adver­sários no cam­po da estéti­ca da poe­sia lutam con­tra um inimi­go comum. E fil­iam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paró­dia da Canção do Exílio, descon­stru­in­do o nacional­is­mo orig­i­nal. Enquan­to a nação desa­parece, a infân­cia tor­na-se ter­ritório míti­co e o cor­po, o úni­co sacra­men­to, para Gullar. Já Lemins­ki percebe que até a infân­cia será ven­di­da, restando, para a poe­sia, sua úni­ca arma de luta: o praz­er de provo­car sentidos.

    Insílio: De acor­do com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O con­ceito nasce basea­do em sociedades autoritárias. Os insi­la­dos ficam pre­sos no país sofren­do os des­man­dos do regime. Ilie dis­cute o inner exilie da sociedade espan­ho­la sob o regime fran­quista, não exi­ladas de acor­do com o mod­e­lo clás­si­co, mas tiver­am a liber­dade restri­ta, sofren­do com a negação, dom­i­nação, anu­lação, intolerância.

    BIBLIOGRAFIA

    Livros

    • GULLAR, Fer­reira
      • Inda­gações de hoje. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 1989.
      • Poe­ma sujo. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 2013.
    • LEMINSKI, Paulo
      •  Capri­chos e Relax­os. São Paulo: Brasiliense, 1983.
      • Dis­traí­dos Vencer­e­mos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
      • Anseios Críp­ti­cos, Curiti­ba: Cri­ar Edições, 1985.
      • Um Escritor na Bib­liote­ca, Curiti­ba: Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná, 1985.
      • La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.
      • Poe­sia, paixão da lin­guagem. In: Novaes, Adau­to (Org.) Os sen­ti­dos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
      • Uma car­ta uma brasa através – car­tas a Régis Bon­vi­ci­no. 1976–1981 São Paulo: Ilu­min­uras, 1992.
    • SANTIAGO, Sil­viano
      • Nas Mal­has da Letra. São Paulo: Com­pan­hia das Letras, 1989.

    Doc­u­men­tos eletrônicos

  • Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Have you run your fin­gers down the wall and have you felt your neck skin crawl when you’re search­ing for the light? Some­times when you’re scared to take a look at the cor­ner of the room, you’ve sensed that some­thing’s watch­ing you.”

    (Você já cor­reu seus dedos pela parede e sen­tiu a pele da sua nuca arrepi­ar quan­do está procu­ran­do pela luz? Algu­mas vezes, quan­do você está com medo de olhar no can­to da sala, você sente que algu­ma coisa está lhe obser­van­do. – tradução livre).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livroNa músi­ca “Fear of the Dark”, com­pos­ta pela idol­a­tra­da ban­da Iron Maid­en, o medo do escuro con­some, gera angús­tia e provo­ca o ator­men­ta­do pro­tag­o­nista, que pas­sa a apre­sen­tar uma fobia incon­troláv­el. Para ele, a ausên­cia de luz rev­ela o pavor impalpáv­el e arrepi­ante da “certeza de que há alguém lá”, escon­di­do nas som­bras. Essa mes­ma ideia está pre­sente no livro “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” (edi­to­ra Bagaço, 2007, 127 pági­nas), coletânea de relatos, con­tos e cau­sos sele­ciona­dos por Rober­to Bel­trão. Os acon­tec­i­men­tos fazem refer­ên­cia à cidade de Recife, cap­i­tal de Per­nam­bu­co, con­heci­da no país como pal­co de fenô­menos sobre­nat­u­rais e ativi­dades fantasmagóricas.

    A ideia da coletânea nasceu da paixão de três jovens ami­gos pelo assun­to, impul­sion­a­dos pela leitu­ra do livro “Assom­brações do Recife Vel­ho”, de Gilber­to Freyre. Na época, os rapazes estavam plane­jan­do pub­licar um jor­nal ou escr­ev­er um livro sobre o tema, mas o assun­to foi abafa­do com o pas­sar do tem­po. No entan­to, no iní­cio de 2000, a temáti­ca voltou à tona com força total na vida do trio, resul­tan­do na cri­ação do site O Recife Assom­bra­do, espaço onde os inter­nau­tas podem colab­o­rar com depoi­men­tos, con­tos e nar­ra­ti­vas de ficção sobre exper­iên­cias inexplicáveis.

    Em 2002, o site foi indi­ca­do pelo insti­tu­to iBEST como um dos dez mel­hores sites pro­duzi­dos em Per­nam­bu­co. No espaço, os con­tos ficam lado a lado com quadrin­hos, relatos, nar­ra­ti­vas em áudio e links de vídeos. Todo esse mate­r­i­al foi sele­ciona­do pelo jor­nal­ista Rober­to Bel­trão, um dos rapazes do trio, e pub­li­ca­do como coletânea.

    The Haunted House (Daniele Montella)
    The Haunt­ed House (Daniele Montella)

    Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” mis­tu­ra a ficção do uni­ver­so literário (con­tos) com relatos de teste­munhas, iden­ti­fi­cadas ou não. Entre lendas urbanas, estórias e ficções, o leitor entra em con­ta­to com o uni­ver­so intangív­el da vida após a morte, tema que con­tin­ua impres­sio­n­an­do e per­tur­ban­do o homem.

    Ghosts (Joe-Roberts)
    Ghosts (Joe-Roberts)

    Muito antes do pre­domínio do cin­e­ma, tele­visão, rádio e inter­net, as nar­ra­ti­vas orais eram respon­sáveis pela con­strução do con­hec­i­men­to e das exper­iên­cias, repas­sadas de ger­ação em ger­ação. Na roda de con­ver­sas, criat­uras medonhas exer­ci­am papel essen­cial na hora de “edu­car” cri­anças, repri­m­in­do-as. Cau­sos como “o vel­ho do saco” (sujeito que rap­ta e come cri­anças), “a loira do ban­heiro” (aparição que escol­he ban­heiros esco­lares para se mate­ri­alizar) e a “per­na cabe­lu­da” (per­na licantropa que agride transe­untes em ple­na madru­ga­da) eram repas­sa­dos de boca em boca, deixan­do os pequenos, assim como os mar­man­jos, ater­ror­iza­dos. Ativi­dades mediúni­cas, como a con­heci­da “brin­cadeira do copo” (uma supos­ta invo­cação de espíri­tos) são trans­mi­ti­das até hoje entre gru­pos, cau­san­do grande fris­son. Fan­tas­mas, chama­dos muitas vezes de ‘almas penadas’, ain­da são os campeões de audiên­cia no que se ref­ere a relatos fantásticos.

    Residên­cias mal assom­bradas, sons de gri­tos, choros, ranger de dentes, vul­tos brux­u­leantes e mor­tais apa­vo­ra­dos com a pos­si­bil­i­dade de con­ta­to com o além estão entre as nar­ra­ti­vas espal­hadas pelo livro de Bel­trão. Há sem­pre um espíri­to incon­for­ma­do para faz­er com­pan­hia a moradores apa­vo­ra­dos. Den­tre os relatos e con­tos, destaque para Casarão de Setúbal, O baú, O pré­dio do Espin­heiro, A casa, O caseiro e Madru­ga­da no quar­tel, por retratarem histórias de man­i­fes­tações para­nor­mais fazen­do asso­ci­ação a obje­tos e lugares. A série Haunt­ed Col­lec­tor, veic­u­la­da pelo canal de TV por assi­natu­ra Syfy, abor­da exata­mente essa conexão entre matéria (físi­co, cor­po) e ener­gia (espíri­to, metafísica).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livro-3Na parte aber­ta­mente fic­cional, não pude deixar de notar a semel­hança entre o con­to “O demônio e a rosa”, escrito por Lil­iane Batista de Moura, com a ficção de Robert Louis Steven­son (1850–1894) em “Janet do pescoço tor­ci­do” (Thrawn Janet). Steven­son ficou con­heci­do mundial­mente pela nov­ela “O médi­co e o mon­stro” (The strange case of Doc­tor Jekyll and Mis­ter Hyde), pub­li­ca­da em 1886.

    Janet do pescoço tor­ci­do” e “O demônio e a rosa” falam sobre mul­heres amaldiçoadas por faz­erem pacto com o demônio, cuja aparên­cia e com­por­ta­men­to reme­tem a um esta­do “mor­to-vivo”, que enche de hor­ror todos os que se aprox­i­mam. A semel­hança entre Rosa e Janet é grande, des­de o aci­dente que sofrem até a aparên­cia físi­ca que adquirem.

    Em “Vírginia”, o con­to chama a atenção pelo caráter ultra­r­român­ti­co, onde é pos­sív­el localizar car­ac­terís­ti­cas como fuga da real­i­dade para o mun­do da fan­ta­sia, ide­al­iza­ção da mul­her ama­da, escapis­mo e con­sciên­cia da solidão. O nar­rador nun­ca chegou a con­hecer Virgí­nia, mul­her por quem se apaixo­nou, já que a moça mor­reu muitos anos antes. Ao olhar seu retra­to em uma lápi­de no cemitério, o pro­tag­o­nista começa a imag­i­nar a mor­ta e dese­já-la. A con­se­quên­cia desse amor tran­scende expli­cações razoáveis e cul­mi­na em ativi­dades paranormais.

    "Saturno devorando seu filho'' (Francisco Goya)
    “Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho” (Fran­cis­co Goya)

    Histórias Medonhas” é inter­es­sante, diver­tido e, antes de provo­car ter­ror ou espan­to, inci­ta a imag­i­nação do leitor. São histórias de criat­uras bizarras e almas penadas que começam a causar pal­pi­tações na infân­cia, seguin­do para out­ras fas­es da vida com maior ou menor inten­si­dade. O mis­tério da morte ain­da obce­ca o homem, desafian­do sua pre­ten­são de explicar, à luz da ciên­cia, todos os fenô­menos que o cercam.

    Para quem é fasci­na­do pelas histórias de Edgar Allan Poe, Robert Louis Steven­son, Charles Dick­ens, Álvares de Azeve­do, Guy de Mau­pas­sant e Hen­ry James, as pági­nas de “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” vão con­seguir atrair, diver­tir ou, quem sabe, assombrar.

  • O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    Se a dor da invis­i­bil­i­dade está por trás de uma doença social, parte da cura está em tornar-se visível.

    o-misterio-das-bolas-de-gude-de-gilberto-dimenstein-livro-capaO tre­cho aci­ma dá a tôni­ca do livro “O mis­tério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis” (edi­to­ra Papirus, 2006, págs. 192), escrito pelo jor­nal­ista Gilber­to Dimen­stein, con­heci­do por atu­ar em impor­tantes veícu­los de comu­ni­cação brasileiros e ide­alizar pro­je­tos soci­ais e cul­tur­ais, den­tre eles o Cidade Esco­la Apren­diz e o site cul­tur­al Catra­ca Livre. Fin­ca­da em inves­ti­gações jor­nalís­ti­cas e reg­istros de via­gens, orde­na­dos como um diário pes­soal, a obra per­corre o uni­ver­so de seres humanos mar­gin­al­iza­dos, rejeita­dos e excluí­dos da teia social. O jor­nal­ista faz emer­gir a dolorosa sobre­vivên­cia de home­ns, mul­heres e cri­anças que, igno­ra­dos e evi­ta­dos por uma sociedade cega e can­cerí­ge­na, não se sen­tem parte do mun­do, mem­bros efe­tivos de um lugar.

    Entre os excluí­dos estão pros­ti­tu­tas, vici­a­dos, traf­i­cantes, mães ado­les­centes, meni­nos de rua, cri­anças explo­radas e escrav­izadas sex­ual­mente, por­ta­dores do vírus HIV e chefes de facções crim­i­nosas. Por meio da nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, inter­cal­a­da pelas vozes das per­son­agens de cada história verídi­ca, acom­pan­hamos relatos que chocam, depoi­men­tos que machu­cam e dados estatís­ti­cos espan­tosa­mente reais.

    Gilber­to Dimen­stein fala sobre os para­dox­os encon­tra­dos nas mais difer­entes regiões brasileiras, onde bol­sões de mis­éria con­trastam com man­sões sun­tu­osas. Se de um lado, meni­nas são obri­gadas a leiloar sua vir­gin­dade para con­tin­uarem vivas, no out­ro extremo há fil­hos de lat­i­fundiários dis­pos­tos a pagar peso de ouro para “desvir­ginar” cri­anças de doze anos. Enquan­to pes­soas vivem em meio a restos de comi­da, excre­men­tos e dro­gas, com­ple­ta­mente entor­peci­das pelo uso do nar­cóti­co, a força poli­cial espan­ca, hos­tiliza e mata.

    Gilberto Dimenstein
    Gilber­to Dimenstein

    Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade são muitos: cri­anças escrav­izadas para o mer­ca­do do sexo, ado­les­centes jura­dos de morte por chefes do trá­fi­co, bebês espan­ca­dos até a morte por pais dese­qui­li­bra­dos, inter­nos tor­tu­ra­dos den­tro de insti­tu­ições repres­so­ras, por­ta­dores da AIDS trata­dos com pre­con­ceito e aver­são. Essas são algu­mas das real­i­dades descorti­nadas pelo jor­nal­ista, mostran­do que por trás das fachadas mega­lo­manía­cas da famosa Aveni­da Paulista, local­iza­da na maior metró­pole brasileira, escon­dem-se histórias de indi­ví­du­os que há muito tem­po esque­ce­r­am-se de sua condição de pes­soa humana, ten­do o dire­ito à cidada­nia cotid­i­ana­mente usurpado.

    No entan­to, ao lado da tragé­dia, Dimen­stein tam­bém abor­da as “pontes de resistên­cia” cri­adas por pes­soas cujo obje­ti­vo é trans­for­mar a injus­ta e depri­mente real­i­dade em algo mel­hor. Ten­do como armas a per­sistên­cia, teimosia e amor ao próx­i­mo, vol­un­tários se reúnem doan­do tem­po e recur­sos para mudar a vida de out­ras pes­soas. O livro elen­ca exem­p­los de pro­je­tos que nasce­r­am den­tro de fave­las, orga­ni­za­ções não gov­er­na­men­tais de apoio as mais vari­adas causas, cidadãos anôn­i­mos que não esper­aram finan­cia­men­to gov­er­na­men­tal para inve­stir em jovens e ado­les­centes em situ­ações de risco social, entre muitos outros.

    Gilberto Dimenstein
    O autor

    A arte, a músi­ca, a poe­sia, a edu­cação e o tra­bal­ho se trans­for­mam em refú­gio, pro­por­cio­nan­do reflexão e mudança. Se, como propõe a obra de Gilber­to Dimen­stein, a vio­lên­cia está dire­ta­mente lig­a­da à sen­sação de mar­gin­al­i­dade e invis­i­bil­i­dade, esse é o pon­to de par­ti­da para a mudança que faz nascer o sen­ti­men­to de pertença e recon­hec­i­men­to do out­ro como ser humano, que par­til­ha dos mes­mos dire­itos e deveres. A coop­er­ação faz parte do desen­volvi­men­to humano e social, equi­li­bran­do e pro­por­cio­nan­do condições justas.

    O mis­tério das bolas de gude” esboça novas rotas e pro­postas para a recon­quista da cidada­nia, bem tão caro para pes­soas em situ­ação de risco, além de traz­er à tona temas del­i­ca­dos e necessários. O livro peca pelo deslum­bra­men­to inocente que Gilber­to Dimen­stein apre­sen­ta ao escr­ev­er sobre os exem­p­los de suces­so norte-amer­i­canos – obser­va­dos no perío­do em que o jor­nal­ista foi cor­re­spon­dente do jor­nal Fol­ha de São Paulo em Nova York –, bem como a ausên­cia de críti­cas às práti­cas nada igual­itárias de insti­tu­ições e gru­pos brasileiros que detém o poder e manip­u­lam o apar­el­ho estatal; organ­is­mos estes que finan­ciam o trá­fi­co, explo­ram a mão de obra tra­bal­hado­ra e fecham os olhos para todos aque­les que não fazem parte da engrenagem impos­ta, trans­for­man­do o que está fora do jogo em meras peças invisíveis.

  • Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Foto: Damião A. Francisco
    Foto: Damião A. Francisco

    Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

    Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

    Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

    2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

    A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

    Foto: Grupo Estadão
    Foto: Grupo Estadão

    No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

    Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Pâni­co Band — Podcast

    Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

    É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

    Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

    Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

    A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

    Foto: Daniel Deak
    Foto: Daniel Deak

    No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

    Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

    Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.

  • Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Capa Filhos do Fim do Mundo - Fabio M BarretoQuan­tos livros que você leu eram ambi­en­ta­dos em um mun­do fan­tás­ti­co, com fadas, elfos, trolls e até mes­mo dragões? Se você acha esse tipo de livro uma lit­er­atu­ra menor, vale lem­brar o suces­so das obras de Tolkien, George Mar­tin e até de autores brasileiros como Eduar­do Spohr. É difí­cil predi­z­er que ele­men­to lev­ou tais autores ao suces­so, mas com certeza a con­strução de uma história envol­vente e bem ambi­en­ta­da, um uni­ver­so crív­el e imer­si­vo são aspec­tos que garan­tem a audiên­cia literária que tais obras obtiveram.

    A obra do jor­nal­ista, escritor e cineas­ta Fábio M. Bar­reto, Fil­hos do Fim do Mun­do (Casa da Palavra, 2013), é ambi­en­ta­da não pro­pri­a­mente em um uni­ver­so fan­tás­ti­co ou mun­do para­le­lo. É um mun­do pós-apoc­alíp­ti­co, ain­da que muito próx­i­mo da sociedade em que vive­mos hoje. Subita­mente, em um dia especí­fi­co, quan­do o reló­gio indi­ca meia-noite, as cri­anças recém-nasci­das começaram a mor­rer. Percebe-se que cri­anças com menos de um ano de idade, plan­tas e ani­mais tam­bém pere­ce­r­am. No mun­do todo.

    O que acon­te­ceu? Qual é a cura para isso? Como evi­tar novas mortes e, mais impor­tante, como levar a raça humana adi­ante a par­tir de uma per­spec­ti­va como essa? Tais per­gun­tas inva­dem a obra e, prin­ci­pal­mente, o pro­tag­o­nista, o Repórter, cuja mul­her está grávi­da, pronta para parir a qual­quer momen­to. O que já vale diz­er que, se você gos­ta de histórias apoc­alíp­ti­cas, de mis­tério, e quer se aven­tu­rar na nova seara de autores brasileiros, esta obra de Bar­reto cer­ta­mente é pra você.

    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras
    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras

    O livro lem­bra muito out­ras obras, como o filme “Fil­hos da Esper­ança”, e o livro de Sara­m­a­go, “Ensaio sobre a Cegueira”. Este últi­mo é o que mais se aprox­i­ma da obra de Bar­reto, pela sua pre­mis­sa tam­bém inex­plicáv­el: as pes­soas começam a ficar cegas. O mun­do, de uma hora para out­ra, tor­na-se um ble­caute, um grande breu para a maio­r­ia das pes­soas, que lutam deses­per­adas pela sua sobrevivência.

    Mas há uma difer­ença grande na obra de Sara­m­a­go e nas out­ras citadas no iní­cio do tex­to em relação ao livro de Bar­reto: nes­tas primeiras, ain­da que as tra­mas apre­sen­tem ele­men­tos fan­tás­ti­cos, não são o prin­ci­pal chama­riz dos livros. Na obra de Sara­m­a­go, por exem­p­lo, são os con­fli­tos humanos, a imer­são e a iden­ti­fi­cação que tais histórias pro­por­cionam que nos lev­am a devo­rar suas pági­nas com avidez e ansiedade. O fan­tás­ti­co é o pano de fun­do para uma humanidade frágil e em evidência.

    No caso de Bar­reto, ain­da que o livro ten­ha vários pon­tos altos e um pro­tag­o­nista muito cati­vante, o livro não deixa de lado as questões fan­tás­ti­cas por tem­po sufi­ciente para você mer­gul­har de vez na história e no dra­ma do jor­nal­ista. E pior: as per­gun­tas que são lev­an­tadas durante toda a obra, ao final do livro, não são respondidas.

    Ou seja, o tem­po todo os per­son­agens do livro procu­ram a cura para o prob­le­ma que aflige a humanidade e ten­tam enten­der porque essa tragé­dia acon­tece – é isso, e a ten­ta­ti­va de sal­var o futuro fil­ho, que moti­vam o per­son­agem prin­ci­pal – para no fim isso não ter importân­cia. Há um desen­volvi­men­to muito boni­to e tocante do Repórter e de suas desilusões sobre a humanidade, que acred­i­to serem as mel­hores partes do livro – mas isso não foi o sufi­ciente para eu não me per­gun­tar a todo momen­to sobre respostas.

    O autor Fábio M. Barreto
    O autor Fábio M. Barreto

    É pos­sív­el diz­er que a intenção orig­i­nal do autor é mostrar que esse pano de fun­do cri­a­do por ele não pas­sa dis­so – é a base para um dra­ma maior, a saber, o cresci­men­to e o amadurec­i­men­to do Repórter em sua jor­na­da para sal­var a família (e a for­ma como a sociedade se dete­ri­o­ra diante do caos). Mas a maneira como a história foi desen­volvi­da não me per­mi­tiu esque­cer a razão de tudo aqui­lo e mer­gul­har de vez na tra­jetória do per­son­agem. Eu bus­ca­va algu­mas respostas – que, diante do dra­ma de alguns per­son­agens podem ser vis­tas como questões menores — mas ain­da sim a fal­ta delas pare­ceu levar a história para um rumo difer­ente sim­ples­mente para “sur­preen­der” o leitor, e não para fechar a obra de maneira coerente.

    Ilustração feita por Felipe Watanabe!
    Ilus­tração fei­ta por Felipe Watanabe

    Out­ro pon­to neg­a­ti­vo é que alguns tre­chos do livro são um tan­to con­fu­sos, prin­ci­pal­mente nas pas­sagens de ação (como no momen­to em que é descri­ta a chega­da do Repórter e de uma equipe mil­i­tar a um dos bunkers exis­tentes na história). É pre­ciso lê-las duas ou três vezes para dis­cernir com certeza o que se desen­ro­la, quem está fazen­do o quê e o que está acon­te­cen­do na sequên­cia. É pre­ciso atenção do leitor para não se perder nos eventos.

    Assim, Fil­hos do Fim do Mun­do é uma obra que pode levar o leitor a ter uma exper­iên­cia um pouco trun­ca­da com a história, uma vez que não per­mite o embar­que com­ple­to na exper­iên­cia desse mun­do cri­a­do por Barreto.

    Já seus destaques são prin­ci­pal­mente atre­la­dos à jor­na­da do Repórter e seu ques­tion­a­men­to sobre a profis­são, sobre sua família, sua vida e sobre si mes­mo. A respeito destes pon­tos, Fábio Bar­reto merece todos os crédi­tos. É curioso e tocante acom­pan­har­mos a tra­jetória deste “herói”, que se despe de todos os seus pré-con­ceitos, certezas e pré-jul­ga­men­tos diante da nova real­i­dade que se desvela diante de si, sim­ples­mente para faz­er o que for mel­hor para sua família. Há pas­sagens em que é muito fácil se iden­ti­ficar com ele e com suas decisões, aprox­i­man­do o leitor da história e per­mitin­do o envolvi­men­to que vez ou out­ra escapa durante a leitura.

    - Já vimos isso acon­te­cer, em escala menor, claro. Con­fli­tos trib­ais têm muito dis­so. E vemos ess­es efeitos em nos­sos treina­men­tos de sobre­vivên­cia. Até cer­to nív­el de estresse, os sol­da­dos se unem; dali para a frente, o instin­to fala mais alto e qual­quer razão para ter algu­ma van­tagem táti­ca ou fisi­ológ­i­ca será usa­da para o bene­fí­cio daque­le indi­ví­duo – con­tin­u­a­va o argu­men­to. A lóg­i­ca pare­cia impecáv­el e o dis­cur­so era sin­cero, chegan­do a ser influ­en­ci­a­do por momen­to de pen­sar pro­fun­do, pre­sentes, mes­mo que de for­ma con­ti­da. Assim como o Repórter, o Major preferiria descon­sid­er­ar tudo aqui­lo, entre­tan­to a ver­dade não podia ser omi­ti­da. E ambos sabi­am. (p. 193)

    O fim da obra, ain­da que não seja o que leitor pos­sa esper­ar, sur­preende e emo­ciona. Com alguns tre­chos revisa­dos (prin­ci­pal­mente na descrição das cenas de ação) o livro fluiria mel­hor, mas não há dúvi­das de que a obra de Bar­reto (que ain­da par­tic­i­pa do pod­cast Rapadu­ra­cast), ain­da que não seja o grande livro nacional do gênero em 2013, é um bom livro – o que não deixa de ter seu mérito.

    Veja abaixo um cur­ta-metragem inspi­ra­do no pról­o­go de Fil­hos do Fim do Mun­do, cri­a­do pela SOS Hol­ly­wood Films:

  • Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    contos-plausiveis-capaSe o assun­to é poe­sia brasileira, o primeiro nome que nos sacode a mente e pula dire­to para a lín­gua, sem pes­tane­jar, é o de Car­los Drum­mond de Andrade. Poeta mineiro nasci­do em 1902, Drum­mond virou sinôn­i­mo indis­cutív­el de arte poéti­ca, traduzi­do em diver­sos país­es e rev­er­en­ci­a­do como um dos maiores gênios que o Brasil teve o praz­er de ger­ar. Feito de memórias, iro­nias e del­i­cadezas, o tra­bal­ho do poeta tam­bém envere­dou pela prosa de ficção, mes­mo que em menor número. O livro Con­tos Plausíveis, lança­do pela edi­to­ra Com­pan­hia das Letras em 2012, traz uma amostra da capaci­dade de Drum­mond em cri­ar fábu­las do cotid­i­ano, cir­cu­lan­do pelas ruas da cidade e estrad­in­has do inte­ri­or, entre o ontem, o hoje e o depois.

    Rápi­dos, certeiros e peque­nas chaves de bol­so, ess­es “con­tos plausíveis” foram escritos para o lendário Jor­nal do Brasil, a par­tir do final dos anos 60, e pub­li­ca­dos em uma peque­na tiragem em 1981, fora de com­er­cial­iza­ção. O caráter de ane­do­ta e fina iro­nia fazem dos con­tos uma diver­são à parte, como se o “poeta maior” (títu­lo que Drum­mond, em toda a sua humil­dade e timidez, não recon­heceu), estivesse ali, silen­cioso e ubíquo, pron­to para con­tar o que viu e ouviu, fazen­do jus à tradição oral.

    Drummond ao lado da mulher e filha
    Drum­mond ao lado da mul­her e filha

    São mais de cem con­tos onde o leitor pode se recon­hecer até mes­mo na lin­guagem do absur­do. A maio­r­ia deles trazem situ­ações fan­tás­ti­cas, provo­can­do cer­to sus­to em um primeiro momen­to. Afi­nal de con­tas, uma mul­her que tro­ca de cabeça todo dia? Ani­mais com com­por­ta­men­to demasi­ada­mente humano? Um homem otimista que escapa de uma enx­ur­ra­da e é “deposi­ta­do na crista de um pico mais alto que o da Nebli­na”? Isso para não falar de par­tidos basea­d­os em cores, home­ns sem cabeça que delib­er­am sem delib­er­ar e o cômi­co no trági­co, em situ­ações para lá de sur­reais, onde o plausív­el reside na von­tade do autor em con­ce­bê-lo assim.

    A poéti­ca se mis­tu­ra ao real­is­mo, fazen­do ess­es “con­tos de bol­so”, como dizia o próprio autor, serem mais do que nar­ra­ti­vas sin­téti­cas; eles são, na ver­dade, mate­r­i­al de con­sul­ta em um mun­do em que as certezas já vivem no lim­ite do absur­do. Como nos lem­bra Noe­mi Jaffe no pos­fá­cio que assi­na na recente edição, “o que soa como irre­al não pode­ria ser mais plausív­el diante do absur­do que teste­munhamos todos os dias”. Ideia que foi se imis­cuin­do na obra de Car­los Drum­mond de Andrade e no seu “des­en­can­to com o esta­b­ele­ci­do”, preferindo par­tir em bus­ca da liber­dade e da ação, mas sem faz­er alardes.

    Drummond em sua casa por ocasião da homenagem aos seus 80 anos
    Drum­mond em sua casa por ocasião da hom­e­nagem aos seus 80 anos

    Nos con­tos “A vol­ta das cabeças” e “Incên­dio”, a lem­brança de Macha­do de Assis nos assalta instan­ta­nea­mente, reme­tendo ao antológi­co “Teo­ria do Medal­hão” e pela hom­e­nagem sin­gela fei­ta por meio da tran­scrição do iní­cio do con­to “Mis­sa do Galo”, respec­ti­va­mente. A fina essên­cia da iro­nia, car­ac­terís­ti­ca da obra macha­di­ana, tam­bém encon­tra espaço na prosa-fic­cional-poéti­ca de Drum­mond. Não há como deixar de rir – e pen­sar – com per­son­agens de com­por­ta­men­tos ou aparên­cias tão atípi­cos, mas que camu­flam o que real­mente querem rev­e­lar, como o diver­tidís­si­mo “Casa­men­to por Cin­co Anos”, “A Vol­ta do Guer­reiro” “Aque­le Casal” e o atu­al “A Ter­ra do Índio”. São mais de cem con­tos que trazem nos próprios títu­los o ele­men­to sur­pre­sa, onde o irre­al­izáv­el encon­tra mais ressonân­cia neste mun­do do que real­mente supo­mos. A obra drum­mon­di­ana nos per­mite fechar os olhos e dormir, mes­mo que os “ombros con­tin­uem supor­tan­do o mundo”.

  • Copyfight, organizado por Adriano Belisário e Bruno Tarin | Livro

    Copyfight, organizado por Adriano Belisário e Bruno Tarin | Livro

    Copyfight-capaO suí­cidio do hack­er­a­tivista Aaron Swartz, em janeiro de 2013, e o lança­men­to do doc­u­men­tário TPB AFK, sobre o Pirate Bay esse mês em Berlim, rea­cen­deu — ou seria mel­hor diz­er que jog­a­ram mais com­bustív­el no fogo? — a polêmi­ca sobre a abrangên­cia do copy­right e as leis gerais de pro­priedade int­elec­tu­al. O livro Copy­fight: Pirataria & Cul­tura Livre (Azougue Edi­to­r­i­al, 2012), orga­ni­za­do por Adri­ano Belisário e Bruno Tarin, é mais um ele­men­to essen­cial, no âmbito nacional, de reunir arti­gos, tex­tos, poe­sia e arte em uma úni­ca obra que abrange esse assun­to tão anti­go em um momen­to tão opor­tuno de discussão.

    Para quem não con­hece a história de Aaron, ele respon­dia por um proces­so de vio­lação de dire­itos autorais por ter com­par­til­ha­do como domínio públi­co, arti­gos que eram dis­tríbui­dos sob cobrança, da revista cien­tí­fi­ca JSTOR, do MIT. Ele foi pre­so em 2011, acu­sa­do de crime de invasão de com­puta­dores poden­do pegar até 35 anos de cadeia e mul­ta de até 35 mil­hões de dólares. Aaron tin­ha um históri­co, des­de sua ado­lescên­cia, no envolvi­men­to com cul­tura livre, sendo co-cri­ador da especi­fi­cação RSS, um dos fun­dadores do Red­dit e ain­da colaborou ati­va­mente com Lawrence Less­ing da Cre­ative Com­mons.

    A morte do jovem criou uma comoção e uma neces­si­dade urgente em se colo­car em dis­cussão as leis de pro­priedade int­elec­tu­al. Para isso o primeiro pas­so é a con­sci­en­ti­za­ção do que são essas leis, o que as regem, o que pen­sam e fazem os ativis­tas da cul­tura livre e se a pirataria merece a cono­tação neg­a­ti­va que a cir­cun­da. Não há como falar e rea­gir sobre algo que não se con­hece e Copy­fight vem para lançar uma per­spec­ti­va críti­ca para tratar de assun­tos como as for­mas que o poder usa para detur­par os reais sen­ti­dos das práti­cas con­heci­das como pirataria, o hack­er­a­tivis­mo e inclu­sive, o tra­bal­ho dos camelôs.

    Os tex­tos do Copy­fight vem de todos os lados da sociedade brasileira. Não há dis­tinção entre estu­dos acadêmi­cos e man­i­festos, a liber­dade dada aos autores só com­pro­va como o assun­to pode, além de ser trata­do pelos mais diver­sos ângu­los, mostrar a abrangên­cia no cotid­i­ano de todas as camadas soci­ais. O livro é resul­ta­do de encon­tros entre os anos de 2010 e 2011 no Rio de Janeiro, reunin­do des­de funkeiros e camelôs até nomes como Richard Stall­mann, con­sid­er­a­do o pai do soft­ware livre.

    Há quem acred­ite na ilusão que a pirataria e as dis­cusões no entorno dos dire­itos autorais, patentes e afins cir­culem somente nos meios artís­ti­cos e que se restrin­jam ao ambi­ente online. Copy­fight aju­da a explicar que a econo­mia mundi­al está lig­a­da ness­es assun­tos, sem­pre obscure­ci­dos nas mãos de poucos, além de mostrar como o Hack­er­a­tivis­mo trouxe muitas infor­mações ocul­tas á tona, como acon­te­ceu com Julian Assange e seu pro­je­to Wikileaks.

    O livro, já no ini­cio, propõe três cam­in­hos para a leitu­ra do mes­mo. Com um esti­lo que faria o escritor Julio Cortázar mudar sua ousa­dia no livro O Jogo de Amare­lin­ha, Copy­fight dá os seg­men­tos Lin­ear, Temáti­co e Não-Lin­ear para você optar de que for­ma irá imer­gir nos tex­tos. Con­ta ain­da com dois tipos de sumários, sendo que um é temáti­co, caso você este­ja procu­ran­do por assun­tos especí­fi­cos, e out­ro não-lin­ear, para você sim­ples­mente ir exper­i­men­tan­do as várias faces da cul­tura livre.

    Um óti­mo pon­to de par­ti­da é o tex­to Sobre Guer­ril­has e Cópias, do orga­ni­zador Adri­ano Belisário. Ele traça um panora­ma sobre a crise da pro­priedade int­elec­tu­al no pre­sente e de como a ideia do copy­fight iria sub­vert­er os vel­hos monópo­lios sobre a cul­tura e o con­hec­i­men­to téc­ni­co. Quan­do fala de téc­ni­co, o autor se ref­ere a vas­ta gama que envolve des­de do cam­po cien­tí­fi­co e patentes de genes, até o cam­po artís­ti­co. O autor rela­ta vários momen­tos da História — vin­do des­de os gre­gos — que demon­stram a farsa cri­a­da sobre a pro­priedade intelectual.

    Para a con­sagração desse mito da orig­i­nal­i­dade pura, a noção de plá­gio foi mar­gin­al­iza­da na cul­tura oci­den­tal mod­er­na. Porém, a cópia e não citação das fontes já foram práti­cas comuns na pro­dução literária. ‘Um poeta inglês podia se apro­pri­ar de um sone­to de Petrar­ca, traduzi-lo e diz­er que era seu. De acor­do com a estéti­ca clás­si­ca da arte enquan­to imi­tação, esta era uma práti­ca per­feita­mente aceitáv­el. O ver­dadeiro val­or dessa ativi­dade esta­va mais na dis­sem­i­nação da obra para regiões onde out­ra for­ma ela provavel­mente não teria apare­ci­do, do que no for­t­alec­i­men­to da estéti­ca clás­si­ca. (p.85)

    Para quem pref­ere um pos­sív­el para­doxo que o assun­to pos­sa pro­por, deve ler O comum das Lutas — entre camelôs e Hack­ers, de Bruno Tarin e Pedro Mendes, que traça um para­le­lo entre a luta ide­ológ­i­ca e a profis­são de camelôs e hack­ers, divi­di­dos ape­nas pelos seus instru­men­tos de tra­bal­ho. Ambas as ativi­dades são tra­bal­hadas em gru­pos e têm a pro­pos­ta de traz­er aces­si­bil­i­dade e cir­cu­lação de bens a um públi­co maior.

    Ou seja, ser ou não ser camelô ou hack­er não está atre­la­do a iden­ti­dades e sim ao fato de se pro­duzir camelô e se pro­duzir hack­er, ser camelô ou hack­er nesse sen­ti­do não é uma condição per­ma­nente, mas uma pro­dução de sub­je­tivi­dade atre­ladas a uma série de práti­cas. Em comum, ambos tra­bal­ham para trans­for­mar diu­tur­na­mente a alta e os imped­i­men­tos em abundân­cia e liber­dade. (p.99)

    Há ain­da tex­tos mais analíti­cos e com um tra­bal­ho bas­tante sério de pesquisa, como Tra­bal­ho sem obra, obra sem autor: a con­sti­tu­ição do comum do reno­ma­do cien­tista políti­co Giuseppe Coc­co, que faz uma análise detal­ha­da dos mod­e­los de tra­bal­ho cap­i­tal­is­tas, dos mod­e­los colab­o­ra­tivos e como ficam os mod­e­los econômi­cos no meio dis­so. O leitor tam­bém pode com­preen­der mel­hor o que seri­am os chama­dos com­mons, o que é uma licença de arte livre e os man­i­festos à favor do com­par­til­hamen­to. Há ain­da algu­mas entre­vis­tas com defen­sores vee­mentes do copy­left e remix, como o polêmi­co Richard Stall­mann, fun­dador do free soft­ware e do pro­je­to GNU.

    Se você ler Copy­fight de pon­ta a pon­ta, vai ser toman­do por um grande número de ques­tion­a­men­tos, obser­vações e, prin­ci­pal­mente, excla­mações. São 29 tex­tos, poe­sias e artes de pes­soas enga­jadas no movi­men­to da cul­tura livre do mun­do inteiro. Indo muito além de ape­nas apre­sen­tar con­ceitos e man­i­festos, o livro mar­ca a local­iza­ção da nos­sa atu­al cul­tura e rev­ela um históri­co mar­ca­do por revi­ra­voltas, deci­di­das ape­nas por uma mino­ria deten­to­ra dos dire­itos de cria­tivi­dade de uma humanidade inteira.

    Toda essa dis­cussão não se resume ape­nas na dual­i­dade Copy­right ver­sus Copy­left, nas ten­ta­ti­vas da Cre­ative Com­mons em facil­i­tar o entendi­men­to das licenças autorais ou no ativis­mo puro. Depende prin­ci­pal­mente do leitor estar con­sciente de que maneiras ele vai expandir isso ao seu redor. Então, você está prepara­do para compartilhar?

    O livro está disponív­el para down­load ou você pode ler ele online aqui.

    No site do Copy­fight você encon­tra tam­bém uma série de infor­mações sobre o livro, além de out­ros arti­gos rela­ciona­dos ao assunto.

  • Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Daniel Galera em seu quar­to romance, Bar­ba Ensopa­da de Sangue (Com­pan­hia das Letras, 2012), é pro­tag­on­i­za­do por um “homem forte e silen­cioso” como diria Tony Sopra­no. Assim como em Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, temos uma nar­ra­ti­va onde a vio­lên­cia surge no cotid­i­ano con­fortáv­el da classe média. 

    Após o suicí­dio do pai, o pro­tag­o­nista decide viv­er um ano em Garopa­ba para se dedicar como instru­tor em uma acad­e­mia da região e se iso­lar de sua cidade natal, Por­to Ale­gre. Ao seu lado, temos a cachor­ra Beta, que per­ten­cia ao seu pai e que ele se recu­sou a sacrificar. 

    Diag­nos­ti­ca­do com uma doença neu­rológ­i­ca rara que o impos­si­bili­ta de guardar na memória o próprio ros­to e o das pes­soas com quem vem a se rela­cionar, o pro­tag­o­nista leva con­si­go um álbum de retratos para lem­brar-se do ros­to dos ami­gos, da família e inclu­sive da sua própria face. 

    Eis um dos mis­térios do romance: Na con­ver­sa que teve com seu pai quan­do esse o infor­ma que ira tirar a própria vida, fica saben­do que seu avô, Gaudério, acabou se isolan­do na cidade de Garopa­ba nos anos 1960 e dev­i­do ao seu com­por­ta­men­to vio­len­to foi assas­si­na­do a facadas por vários nativos e seu cor­po nun­ca foi encon­tra­do. Desco­brir o que real­mente acon­te­ceu com ele é uma de suas metas, mes­mo que isso pos­sa colo­car sua vida em risco. 

    Daniel Galera
    Daniel Galera atingiu um nív­el téc­ni­co muito alto nesse romance real­ista e ambi­cioso, com per­son­agens fortes e caris­máti­cos (vide Bonobo, o bud­ista nada orto­doxo), descrições ric­as em detal­h­es, e parece jus­ti­ficar a razão do seu nome estar em voga ape­nas com a qual­i­dade da sua nar­ra­ti­va. O livro tem muitas semel­hanças entre os romances Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, mas em nen­hum momen­to o autor está se autoplagiando. 

    Ninguém escol­he nada e mes­mo assim a respon­s­abil­i­dade é nos­sa” diz o per­son­agem prin­ci­pal em uma dis­cussão com a ex-namora­da. O cen­tro do romance tra­ta a questão de livre-arbítrio e deter­min­is­mo, tópi­co estu­da­do por David Fos­ter Wal­lace, uma grande influên­cia do escritor brasileiro e do qual traduz­iu recen­te­mente a coletânea Fican­do Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.

    Des­de o princí­pio do tra­bal­ho, eu que­ria que o romance explo­rasse de maneira implíci­ta a questão filosó­fi­ca da respon­s­abil­i­dade humana em uma visão de mun­do deter­min­ista, segun­do a qual tudo que acon­tece é ape­nas resul­ta­do inevitáv­el do que acon­te­ceu logo antes. É um assun­to que me inter­es­sa.” Diz o autor em uma entre­vista para o site do Jor­nal do Comércio

    O úni­co pon­to neg­a­ti­vo está no tra­bal­ho grá­fi­co do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a tra­ma de mais de 400 pági­nas não é em nen­hum momen­to cansati­va e uma das críti­cas feitas ao livro, da qual ele pode­ria ser menor e menos ver­bor­rági­co, é infundado.

    Bar­ba Ensopa­da de Sangue é um óti­mo romance, mas ain­da é cedo para diz­er qual é sua importân­cia para a lit­er­atu­ra brasileira. Ao mes­mo tem­po vemos uma pro­dução literária nacional dar pas­sos cada vez maiores (antolo­gias, feiras literárias, críti­cos aten­to ao que acon­tece no cenário nacional, etc.), ain­da não sabe­mos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.

  • A riqueza do mundo, de Lya Luft

    A riqueza do mundo, de Lya Luft

    Uma voz impo­nente parece segu­rar com as duas mãos a figu­ra de traços ger­mâni­cos e tom brasileiro, de olhar firme e colar de con­tas grossas no pescoço. Era a primeira vez que eu par­a­va para vê-la, ali, do out­ro lado da tela do com­puta­dor, falan­do sobre os livros recém-pub­li­ca­dos, sobre os que já pas­saram e sobre a vida que dá ares de quem está ape­nas começan­do. Esse foi o con­ta­to ini­cial que tive com a escrito­ra e tradu­to­ra Lya Luft. Aos 74 anos, a san­tacruzense descen­dente de alemães arreba­ta dezenas com a ven­da de livros, nas sessões de autó­grafos e palestras em que é conferencista.

    Con­heci o tra­bal­ho de Lya em 2004 e, ao con­trário do que se pode pen­sar, não foi por meio do seu suces­so edi­to­r­i­al Per­das & Gan­hos (2003), lançan­do no ano ante­ri­or. À época, por questões de tra­bal­ho, eu acom­pan­ha­va o con­teú­do da revista Veja e, vez ou out­ra, sem­pre batia os olhos na col­u­na Pon­to de vista, assi­na­da por Lya. Coin­cidên­cia ou não, os tex­tos que li na col­u­na abor­davam temas cotid­i­anos e sem­pre fazi­am refer­ên­cia aos rela­ciona­men­tos famil­iares, às difi­cul­dades e desafios, aos sabores e ale­grias. Opiniões que soavam como fortes con­sel­hos, na verdade.

    Então, oito anos depois dos primeiros con­tatos, rece­bi A riqueza do mun­do (edi­to­ra Record, 2011, pág. 272), uma coletânea de ensaios sobre a existên­cia humana com tudo o que ela tem de mel­hor e pior: amor, tris­teza, revol­ta, indig­nação, esper­ança, con­tes­tação e per­cepção. Aci­ma de tudo, a obra for­ma um con­jun­to de reflexões da auto­ra sobre os mais vari­a­dos temas, com aque­le aro­ma de “eu escre­vo por um mun­do mel­hor”. Não duvi­do, cer­ta­mente. Os ensaios de Lya são deci­di­dos, ela não tem medo de se posi­cionar, de apon­tar, de emi­tir juí­zos de val­or. Em uma sociedade em que a mais recente ban­deira é faz­er apolo­gia ao “ficar em cima do muro”, Lya Luft assume e assi­na suas ideias, mes­mo que isso tra­ga à tona opiniões que fler­tam com um con­ser­vadoris­mo embrul­ha­do em papel celofane. 

    Lya Luft
    Divi­di­do em três partes (Da Sociedade, Dos Afe­tos e Das Coisas Várias), o livro de Lya vai mape­an­do pon­tos que se mis­tu­ram, abor­dan­do des­de o sen­ti­men­to de insat­is­fação com o sis­tema vigente no mun­do, rodea­do de cor­rupções, bar­bárie, vio­lên­cia e morte, até situ­ações e vivên­cias que cir­cun­dam as relações famil­iares, chegan­do à gan­gor­ra do encan­to ver­sus des­en­can­to com as infini­tas pos­si­bil­i­dades tec­nológ­i­cas e soci­ais con­tem­porâneas. Na maio­r­ia das vezes, fica evi­dente que estou escu­tan­do alguém com sabedo­ria sufi­ciente para falar sobre um mun­do per­di­do, onde poucos se encon­tram. Em toda a obra, sen­ti um mis­to de desabafos e ser­mões – por mais que, no próprio tex­to, a auto­ra negue o ter­mo ‘con­sel­hos’, atribuí­do por quem assim o iden­ti­fi­ca na sua obra.

    Ape­sar de temas inter­es­santes, me sen­ti pouco à von­tade com a quan­ti­dade de exem­p­los para uma mes­ma ideia, agru­pan­do uma lista exten­sa de ele­men­tos sep­a­ra­dos por vír­gu­las em uma úni­ca frase. Essa táti­ca se repete em todos os três capí­tu­los, retoman­do tam­bém, de for­ma cansati­va, pen­sa­men­tos que já foram ditos. Esse tipo de opção lança uma ânco­ra às palavras, deixan­do o tex­to exaustivo. 

    Vale men­cionar os três poe­mas que abrem cada capí­tu­lo, com destaque para o boni­to “Deuses e Home­ns”, com belas ima­gens for­madas por palavras e a con­junção da mitolo­gia que nos acom­pan­ha des­de a nos­sa ances­tral­i­dade, fazen­do jus à nar­ra­ti­va de origem, pro­pos­ta por mitól­o­gos como Mircea Eli­ade e Joseph Camp­bell.

    Lya Luft tem muito a diz­er. Ela não está por aí como mera auto­ra de best sell­er ou mais um tra­bal­ho para o seg­men­to da autoa­ju­da. Não, não é isso. Nesse primeiro con­ta­to, notei uma auto­ra com pen­sa­men­tos, com luz própria, com opiniões — mes­mo que algu­mas delas não façam parte do meu rol de ideias, como a predileção por Mon­teiro Loba­to. Mais um detal­he que faz parte das min­has obser­vações é o ato de escr­ev­er sobre as mudanças do mun­do de den­tro do gabi­nete. Mas não a con­de­no. Boa parte dos int­elec­tu­ais brasileiros, quiçá do mun­do, está sen­ta­da con­for­t­avel­mente em suas escrivan­in­has de mog­no, refletindo sobre as injustiças e soltan­do os pen­sa­men­tos no ar para que, talvez, out­ros os exe­cutem. Pode ser que esse não seja o caso, não sei. Mas vale à pena rev­er o con­ceito de que ape­nas com ideias se move o mundo. 

  • Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Alguém pode­ria escr­ev­er um man­u­al sobre como se deve rea­gir a esse tipo de notí­cia, se as cir­cun­stân­cias não forem favoráveis ao casal. Eu rece­be­ria as piores notí­cias dos seus lin­dos lábios. Seria bas­tante útil para home­ns como eu. (p.183)

    Des­de as primeiras estórias de amor que se tem noti­cia o infortúnio de amantes é sem­pre um mote inter­es­sante para escritores. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios (Com­pan­hia das Letras, 2005), de Marçal Aquino já nasce com um amor desafor­tu­na­do, cheio de paixão e tragé­dia con­ta­da pela voz de Cau­by, quase que um Romeu nas mãos de Aquino.

    Cau­by é fotó­grafo, rodou o mun­do e sem­pre se sen­tiu incom­ple­to quan­to à vida. Num impul­so de fotogra­far lugares inóspi­tos e fugir da frenéti­ca São Paulo, vai para o inte­ri­or do Pará. Numa região onde as leis são feitas à base do silên­cio dom­i­nador dos grandes e os sujeitos à estes — pes­soas que vis­lum­bram o encon­tro de ouro nos garim­pos — é o pano de fun­do da história do fotó­grafo com a mis­te­riosa e sen­su­al Lavinia. No calor do norte do Brasil, lugar descrito por Cau­by como quente e um tan­to mor­to é propí­cio que tudo se mis­ture, a lei, a religião e o amor, tudo, sem o mín­i­mo de delicadeza.

    Nun­ca prom­e­te­mos nada um ao out­ro, e eu sabia que podia acabar de repente. Poe­ma que ces­sa antes de virar a pági­na. Um Haikai. Na práti­ca, con­tu­do, não me con­for­ma­va com a ideia. Eu que­ria mais. (p.67)

    Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é nar­ra­do em tom de alu­ci­nação e insistên­cia de um homem apaixon­a­do. Cau­by oscila entre o pre­sente, um momen­to cur­to de uma noite, onde um out­ro homem nar­ra as suas decepcões amorosas, e o pas­sa­do, não muito longe, inten­so e cheio de revi­ra­voltas. Tudo sem maiores sinal­iza­ções além da lóg­i­ca que a própria leitu­ra dá. Um pon­to-chave e bacana do livro é o fluxo de con­sciên­cia de Cau­by, reple­to de sen­ti­men­tos e orga­ni­za­do con­forme os fatos que vão surgin­do e reme­tendo à out­ras situ­ações. O nar­rador con­segue cri­ar uma própria orga­ni­za­ção no seu rela­to sem deixar de ser infor­mal e con­t­a­m­i­na­do pelo que sente, usan­do a não-lin­eari­dade total­mente a seu favor.

    Lem­brei dos dias que pas­sei sem ela. Dias em que encon­trar, por aca­so, um fio de seu cabe­lo pre­so na fron­ha do trav­es­seiro bas­ta­va para me encher de angús­tia e dor. Estive a pon­to de raste­jar. Atire a primeira pedra aque­le que não estreme­ceu ao recu­per­ar, nos lençóis encar­di­dos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mul­her ausente. (p.74)

    Marçal Aquino
    O livro é divi­di­do em três partes com títu­los bas­tante per­ti­nentes e trag­icômi­cos quan­do se tra­ta de Marçal Aquino. Em Amor é Sex­ual­mente Trans­mís­siv­el tra­ta da efer­vescên­cia do amor de Cau­by e Lavinia como um encan­ta­men­to que é basi­ca­mente sex­u­al. Seus cor­pos con­ver­sam, tro­cam e fun­cionam mel­hor na cama. O diál­o­go entre os dois quase só é pos­sív­el quan­do con­seguem curar o seu caos no sexo. Quan­do não o fazem é tudo muito estran­ho e depen­dente, nem eles sabem ao cer­to porque estão ali. Para enten­der um pouco da desen­f­rea­da Lavinia, em Carne-Viva é apre­sen­ta­da, numa nar­ra­ti­va bem con­ven­cional, o históri­co dessa mul­her que dá sequên­cia no rela­to de Cau­by em Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo, onde somos lev­a­dos, já sem fôlego, ao des­fe­cho da relação tem­pes­tu­osa do casal.

    De acor­do com o pro­fes­sor Schi­an­berg (op. cit), não é pos­sív­el deter­mi­nar o momen­to exa­to em que uma pes­soa se apaixona. Se fos­se, ele afir­ma, bas­taria um ter­mômetro para com­pro­var sua teo­ria de que, neste instante, a tem­per­atu­ra cor­po­ral se ele­va vários graus. Uma febre, nos­sa úni­ca sequela div­ina. Schi­amberg diz mais: ao se apaixonar, um ¨homem de sangue quente¨ exper­i­men­ta o desam­paro de sen­tir-se vul­neráv­el. Ele não caçou; foi caça­do. (p.15)

    Um dos pon­tos mais inter­es­santes é como Cau­by e o per­son­agem Vik­tor são lev­a­dos a agir con­forme leituras feitas. O fotó­grafo é fiel seguidor do fic­tí­cio filó­so­fo do amor, Ben­jamin Schi­an­berg, o mes­mo que veio a se tornar o ide­al­izador imag­inário do exper­i­men­to de Beto Brant em O amor segun­do B. Schi­an­berg . Os tre­chos de livros do filó­so­fo são inseri­dos de for­ma bas­tante inteligente em Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios com Cau­by trazen­do a tona pági­nas e citações inteiras asso­ci­adas à sua relação com Lavínia. 

    Mas Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios não é somente um livro sobre amantes mal suce­di­dos. Em vários momen­tos o casal se tor­na ape­nas duas peças para tratar de uma ter­ra sem lei, com explo­ração ambi­en­tal e humana onde quase tudo é deci­di­do por instin­to. Essa filosofia do matar ou mor­rer é que tor­na os per­son­agens um monte de anti-heróis fada­dos a um des­ti­no deter­mi­na­do caso não andem con­forme o pro­gra­ma­do. Todos são reple­tos de con­tro­vér­sias, donos de val­ores que acred­i­tam ter, como se estivessem nesse lugar aparente­mente tão longe para expur­gar sua vida.

    Fada­dos ou não à tragé­dia, Cau­by e Lavinia, assim como boa parte dos per­son­agens são toma­dos pelo sen­ti­men­to de insistên­cia, seja de val­ores, sen­ti­men­tos e o que for. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é um romance para se ler com o fôlego daque­les que gostam de arriscar con­tra o tédio da vida.

    *Eu Rece­be­ria as Piores Notí­cias dos seus lin­do Lábios foi adap­ta­do — com títu­lo homôn­i­mo — para o cin­e­ma pelo dire­tor Beto Brant e entrou em car­taz em abril de 2012.

  • Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes na lit­er­atu­ra fei­ta pelo escritor gaú­cho Antônio Xerx­e­nesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus arti­gos e tex­tos pela web — é o uso das suas refer­ên­cias, sejam elas literárias, acadêmi­cas ou inclu­sive de games. Li Areia nos Dentes (Roc­co, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de con­tos A Pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas (Roc­co, 2011), o que me aju­dou a obser­var mais de per­to as tendên­cias metafic­cionais e de met­al­it­er­atu­ra na obra de Xerx­e­nesky.

    O enre­do primário de Areia nos Dentes é o mais improváv­el para um man­u­al de boas maneiras de lit­er­atu­ra brasileira: uma dis­pu­ta de famílias ambi­en­ta­da num vel­ho oeste envol­ven­do zumbis e ques­tion­a­men­tos exis­ten­ci­ais. Mas pode ir esque­cen­do que o livro pos­sa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os lon­gas reflex­ivos de Ser­gio Leone que é inclu­sive o primeiro nome que aparece na lista de agradecime­tos finais.

    ¨Car­l­i­tos, qual é o mel­hor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
    ¨O que isso tem a ver?¨
    ¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme pre­firo. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, com­preende? Porque vou pas­sar isso para o meu rela­to. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e ago­ra cito o mestre ital­iano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
    (p.34)

    Os Mar­lowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspi­ta Mavrak — a palavra Mav­er­ick em um tab­uleiro empoeira­do. O lugar não tem uma local­iza­ção cer­ta mas se entende que está num deser­to mas­sacrante e arenoso onde a rival­i­dade entre famílias, e o calor ator­doante, são os maiores incô­mo­d­os na vida dos habi­tantes. Mas quem nos colo­ca nesse cenário não é um sim­ples nar­rador oni­sciente e sim o próprio homem que está escreven­do a história dos seus antepassados.

    O fato do nar­rador ser o próprio escritor — cau­san­do uma sen­sação de reação em cadeia de autores/narradores — per­mite que o tex­to ten­ha suas próprias mar­cas estilís­ti­cas como letras que travam no com­puta­dor, ono­matopéias que surgem na cabeça do escritor e a liber­dade que ele tem de nar­rar a história em vários for­matos. Há o uso de vários recur­sos des­de um capí­tu­lo em for­ma­to de roteiro, uma perseguição nar­ra­da em duas col­u­nas e car­tas de con­fis­são de personagens.

    Ago­ra ten­ho tan­tas out­ras dúvi­das. E se eu estiv­er repro­duzin­do min­ha relação com min­ha ex-mul­her nes­sa lin­has? E se não for só pre­cisão históri­ca o que eu bus­co ao car­ac­teri­zar as mul­heres dessa for­ma? Se for cul­pa da min­ha men­tal­i­dade, quase tão arcaica quan­to a daque­les pis­toleiros? Ninguém dev­e­ria escr­ev­er nada nun­ca, não há glam­our ou praz­er, só tor­men­to. (p.66)

    Ao pas­so que Areia nos Dentes tra­ta de um homem que ten­ta cri­ar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de cer­ta for­ma, per­pet­u­ar os momen­tos numa for­ma de preencher as lacu­nas, ain­da con­segue se rela­cionar com per­son­agens de out­ras ficções, dan­do voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Mar­lowe e Ramirez fazem refer­ên­cias níti­das ao próprio Xerx­e­nesky que nun­ca fez questão de escon­der seu apreço pelo escritor Thomas Pyn­chon, por exemplo.

    A aprox­i­mação com o escritor real se define mais ain­da quan­do o leitor, con­sciente de alguns gos­tos e escol­has do próprio Anto­nio Xerx­e­nesky, aca­ba por recon­hecê-lo nas con­struções do enre­do. E jus­ta­mente nesse aspec­to surge uma sen­sação de incô­mo­do, jus­ta­mente por ter emen­da­do a leitu­ra com A pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas, fican­do a sen­sação que o autor é dom­i­na­do pelo seu mun­do de leituras e cotid­i­ano, se obri­g­an­do a usá-los em sua ficção. Mas esse incô­mo­do, se pen­sa­do sob o enre­do de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaça­do por suas refer­ên­cias, cotid­i­ano e exper­iên­cias — quase uma ideia Ben­jamini­ana de nar­ra­ti­va — a pon­to de colocá-las no papel, assim como acon­tece com o per­son­agem principal.

    Areia nos Dentes é a pri­ori um romance con­tem­porâ­neo prin­ci­pal­mente pelo envolvi­men­to mas­si­vo com refer­ên­cias, mas tam­bém, pelo trata­men­to metafic­cional dos per­son­agens. E sem anális­es mais pro­fun­das, o romance de estreia de Antônio Xerx­e­nesky é um pas­tiche, mas aci­ma de tudo, uma peque­na amostra da eufo­ria e inter­esse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, alta­mente recomen­da­do para fãs de todos os ele­men­tos citados.

    *Recomen­do bas­tante os tex­tos de Antônio Xerx­e­nesky no blog do Insti­tu­to Mor­eira Salles.

    ** Você pode adquirir esse livro por um preço bem bacana na Livraria de Babel.

  • Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Ler poe­sia é como ler prosa? Ler poe­sia como se lê prosa é desler? Para ler poe­sia ler e rel­er ao relen­to, desli­gan­do o relé do pen­sa­men­to. Desli­gar a face, reli­gar o ver­so. No epi­cen­tro da poe­sia a palavra, a músi­ca, a imagem movem ter­re­mo­tos de imag­i­nação. Para uma sociedade cen­tra­da na fun­cional­i­dade da palavra, que não admite ambigu­idade sub­je­ti­va, ou a comu­ni­cação por exces­so, poe­sia é um desvio que excede a palavra em rit­mo e imagem.

    Fiquei pen­san­do isto quan­do li o Poe­sia é Não (Ilu­min­uras, 2011), de Estrela Lemins­ki. Primeiro li os poe­mas. Depois, a auto­bi­ografia da poeta, nas orel­has do livro. E fol­he­an­do, vi aqui e ali pági­nas com­postas em nuances de cores e tipos difer­entes. Depois li a resen­ha de Mar­cos Pasche no Jor­nal Ras­cun­ho. “Fal­tou Poe­sia”, avi­sou o críti­co, logo no títu­lo. E escreveu um arti­go ante­ci­pan­do sua defe­sa por não criticar a poe­sia e sim a per­son­al­i­dade de Estrela, fil­ha de um casal de poet­as céle­bres. O modo que o críti­co escol­heu é um modo de desler poe­sia, con­cen­tran­do-se na per­son­al­i­dade do poeta e não em sua poe­sia, nem sem­pre con­ti­da ape­nas nos versos.

    Estrela joga com o títu­lo Poe­sia é Não, indi­can­do o que a poe­sia não é. Catarse, obje­to útil, notí­cia, mer­cado­ria, ras­cun­ho de gave­ta, protesto, influên­cia. A neg­a­tivi­dade se lê nos escritos, nas pági­nas grá­fi­cas. Ao deixar de lado o que está escrito e pas­sar a ler o códi­go visu­al, a leitu­ra é outra.Papel de embrul­ho, doc­u­men­to ofi­cial, jor­nal, livro, operária, con­ta e pagado­ra de con­ta, gave­ta, pan­fle­to, ver­bete de dicionário, lit­er­atu­ra, sig­no, as pági­nas grá­fi­cas apon­tam para o que a poe­sia não é. O que ela é , então ?

    Poe­sia é ver o ver­so, o aves­so do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue ado­les­cente”, pode ser que a poe­sia diga, como Estrela, a ale­gria pelo Não, ale­gria de quem cresce e con­hece os praz­eres de viv­er, praz­er da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de ado­lescer, é amadure­cer ado­lescen­do, envel­he­cer ado­lescen­do, mor­rer ado­lescen­do. Ser poeta é não desi­s­tir da infân­cia para se pre­ocu­par em como escr­ev­er, escr­ev­er bem, escr­ev­er para um públi­co, escr­ev­er sagran­do o já sagra­do. Escr­ev­er poe­sia é desescr­ev­er, é não saber, não acer­tar o rit­mo, ler livros de poe­sia e esque­cer, saber lín­guas e con­fun­di-las com a lín­gua da boca. Sem esquec­i­men­to, ignorân­cia, erro, a poe­sia é pobre, por que uma vida per­fei­ta é pobre, ou impos­sív­el. Quer­er que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mun­do deve nascer velho.

    Juven­tude nem sem­pre é vital­i­dade. Vel­hice não é sinôn­i­mo de decrepi­tude. O domínio sobre a lin­guagem, que os críti­cos esper­am dos bons (?) escritores não é sinal de maturi­dade. É sinal de quem tem medo de cri­ar, de quem se pro­tege por trás da ter­mi­nolo­gia letra­da. O jargão int­elec­tu­al não inter­es­sa para a maio­r­ia dos mor­tais. A maio­r­ia silen­ciosa, ao con­trário do que pen­sam os críti­cos, ama a poe­sia — ama ouvir canções pop­u­lares, por exem­p­lo. A maio­r­ia silen­ciosa ama escr­ev­er ver­sos, na ado­lescên­cia cronológ­i­ca ou tar­dia. E a maio­r­ia silen­ciosa se enver­gonha de amar a poe­sia, quan­do o críti­co se lev­an­ta em nome do cânone literário e pre­ga que é pre­ciso ter ver­gonha por amar poe­sia e escr­ev­er bobagens que qual­quer um escreve quan­do o coração dispara.

    Atirem o poeta ao mar”, diz um dos ver­sos de Estrela, evo­can­do o pai, que escreveu um livro juve­nil (Guer­ra den­tro da gente, Sci­p­i­one) no qual um poeta, con­sid­er­a­do o pal­haço da trip­u­lação de uma embar­cação é ati­ra­do ao mar. A úni­ca solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qual­quer sociedade. Que faz­er com os que amam seus encan­ta­men­tos? Não se pode ati­rar os amadores de poe­sia ao mar, não sobraria mar para todos. Prefer­ív­el diz­er ao críti­co não leia seus poe­mas e con­dene a per­son­al­i­dade do poeta. Assim ape­nas um será afo­ga­do por suas más palavras.

    Mas o poeta é trezen­tos ou trezen­tos mil, e seus ver­sos se des­do­bram entre as palavras de ordem. Ape­sar das advertên­cias do críti­co, os leitores atrav­es­sam o tex­to e seus pre­tex­tos e saem atrás de mira­gens. Para os que amam se diver­tir, a poe­sia de Estrela é, sim. 

    *Marília Kub­o­ta, além de colab­o­rado­ra do inter­ro­gAção, escreve no seu blog Micrópo­lis.

  • Livro: Pequena Biografia de Desejos — Cezar Tridapalli

    Livro: Pequena Biografia de Desejos — Cezar Tridapalli

    Uma das car­ac­terís­ti­cas mais mar­cantes da Lit­er­atu­ra pro­duzi­da hoje é jus­ta­mente o bom uso do real­is­mo do dia a dia — con­sid­er­a­do out­ro­ra um obje­to sem âni­mo e inter­esse — como um con­tex­to rico. O curitibano Cezar Tri­da­pal­li, em Peque­na Biografia de Dese­jos (Edi­to­ra 7Letras, 2011), traz a vida comum e seus per­son­agens como forças motrizes para den­tro do romance, dan­do mais sinais de como a lit­er­atu­ra do pre­sente vem ren­den­do fru­tos extrema­mente inter­es­santes, ali­men­ta­dos pelo anon­i­ma­to do cotidiano.

    Desidério é um porteiro que leva uma roti­na insignif­i­cante para a maio­r­ia das pes­soas, o homem pega o mes­mo ônibus todo dia — para quem mora em Curiti­ba, o famoso Ligeirão-Boqueirão — e pas­sa inúmeras horas acor­da­do, lendo e escreven­do. O per­son­agem prin­ci­pal de Peque­na Biografia de Dese­jos é uma espé­cie de anti-herói, só que sem nen­hum tipo de glam­our que ess­es per­son­agens cos­tu­mam ter, con­stru­i­do sob o per­fil de homem comum vis­to pelos olhos do fantástico.

    O pro­tag­o­nista se apre­sen­ta através das nar­ra­ti­vas de suas próprias maze­las cos­tu­radas com a história de out­ros per­son­agens que aju­dam a dar for­ma na sua vida-ficção. A mãe que foge de casa, um pai que só existe fisi­ca­mente, um casa­men­to sem o mín­i­mo de amor e os son­hos de escr­ev­er livros tão geni­ais quan­to os que pas­sa as madru­gadas lendo, são peque­nas peças que for­mam detal­hada­mente o enre­do da vida do personagem.

    Desidério pode­ria ser um homem comum se os livros não o tirassem do maras­mo do cotid­i­ano. Son­hador, sua real­i­dade — des­de sem­pre urbana e crua pela óti­ca do real­is­mo banal — sem­pre foi molda­da con­forme o liris­mo dos livros. É o homem comum, sem osten­tações, mas reple­to de mecan­is­mos que o tiram do con­formis­mo e o colo­cam den­tro de um real­is­mo fan­tás­ti­co, um dos aspec­tos que intro­duz Peque­na Biografia de Dese­jos como uma obra que se ali­men­ta do con­tem­porâ­neo sem pre­cis­ar, em momen­to algum, ser con­fes­sion­al. Pelo con­trário, Desidério não quer con­fes­sar nada, nem sabe usar as palavras fal­adas, ele suprime seus sen­ti­men­tos e acred­i­ta que a sua real redenção sejam as palavras escritas e num livro só seu.

    É prin­ci­pal­mente a paixão e o dese­jo que movi­men­tam a vida de Desidério. Além de ter um fascínio desme­di­do por livros — o homem chega a escr­ev­er tre­chos de livros na mesa da guari­ta — ele encon­tra Adele, uma pro­fes­so­ra de ital­iano, que ali­men­tan­do um amor platôni­co invol­un­tário, ain­da o enco­ra­ja a escr­ev­er sobre todos os sen­ti­men­tos que ele acred­i­ta­va não possuir.

    A nar­ra­ti­va de Peque­na Biografia de Dese­jos é movi­da jus­ta­mente por essa paixão e dese­jo literário que o pro­tag­o­nista desen­volve ao lon­go das suas leituras. O nar­rador faz uso de uma voz ínti­ma que fun­ciona como um off cin­e­matográ­fi­co, apre­sen­tan­do a vida dos per­son­agens com dire­ito a flash­backs. A cada capí­tu­lo, novas histórias vão sendo apre­sen­tadas e cos­tu­radas ao mosaico que for­ma a grande biografia de Desidério. Sem as per­son­agens — e suas insignificân­cias detal­his­tas asso­ci­adas a um e out­ro enre­do literário — o pro­tag­o­nista jamais exi­s­tiria e encar­aria com taman­ho dese­jo a sua própria ficção.

    O espaço onde cir­cu­la o per­son­agem é Curiti­ba, um pon­to inter­es­sante se pen­sa­do sob a situ­ação que boa parte dos romances con­tem­porâ­neos se orga­nizem em out­ras metrópoles do país. A Curiti­ba de Desidério é descri­ta pelo pon­to de vista de um eter­no transe­unte que con­hece bem ape­nas o bair­ro em que viveu, o tra­je­to que faz há tan­to tem­po de casa para o tra­bal­ho, e vice-ver­sa, e claro, a Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná.

    A voz que Tri­da­pal­li faz uso é sufo­cado­ra, dire­ta e reple­ta de refer­ên­cias, o que pode não agradar leitores receosos com o romance con­tem­porâ­neo. Peque­na Biografia de Dese­jos lem­bra obras ao esti­lo de Enrique Vila-Matas, Sara­m­a­go e o fan­tás­ti­co — mais mod­er­a­do — das real­i­dades lati­nas de Gabriel Gar­cia Màrquez e mes­mo assim, man­ten­do sua própria con­strução. Há uma neces­si­dade de res­pi­ração depois de cada capí­tu­lo na saga de Desidério, o que fez min­ha leitu­ra ter con­ta­do com boas pausas entre um capí­tu­lo e out­ro, sendo que isso não é de for­ma algu­ma um prob­le­ma e sim um óti­mo proces­so de assim­i­lação. Além dis­so, é bas­tante líri­co e atu­al o dis­cur­so sem pausa e caóti­co da obra que, mes­mo usan­do muitos recur­sos de lin­guagem con­tem­porânea, man­tém o rit­mo romanesco clássico.

    Peque­na Biografia de Dese­jos nem de longe parece um romance de estreia. É uma ode — e isso é o que mais encan­ta — às paixões e dese­jos que os livros podem causar. É sobre­tu­do, um romance sobre livros para leitores apaixonados.

    Seguem alguns tre­chos do livro:

    ¨Qual a mar­ca que o porteiro de um edi­fi­cio deixaria no mun­do? Pen­sara no livro que havia começa­do e, com estran­ho aliv­io, enfim lhe subiu à face a esper­a­da sen­sação de tris­teza autên­ti­ca, doí­da. Qual a mar­ca que aque­le cara que escreveu O deser­to dos Tár­taros deixara no mun­do? Qual a mar­ca que os quarenta e dois autores lidos por Desidério até ali deixaram no mun­do, no seu mun­do? A respos­ta lhe pare­cia evi­dente, óbvia demais; no entan­to, sen­tia-se enver­gonhado e quase enfure­ci­do por não saber o que respon­der, pois, ain­da que dissesse que as obras dess­es autores fos­sem suas mar­cas, uma voz inter­na insis­tia em pro­por out­ra per­gun­ta: mas para que servem essas mar­cas? Ora, para nos lem­brar de que esta­mos vivos, de que o show tem que con­tin­uar, e que as ilusões devem con­tin­uar sendo ali­men­tadas, e que pre­cisamos con­tin­uar nos per­gun­tan­do para que serve tudo isso.¨ (pg. 90 e 91)

    ¨Assim se arras­tam os dese­jos humanos, às vezes céleres, sor­ri­dentes e fagueiros como cri­anças no cam­po ou pro­pa­gan­das de mar­ga­ri­na, às vezes entre­va­dos, cujos movi­men­tos úni­cos pare­cem ser fas­ci­c­u­lações invol­un­tárias. De uma for­ma ou de out­ra, com­preen­di­dos todos os matizes pos­síveis nesse entremeio, estão sem­pre mor­ren­do sem se terem satisfeitos.¨(pg.218)

  • Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Quan­do Álvaro Pacheco encomen­dou à Clarice Lispec­tor três histórias talvez nem imag­i­nasse o peri­go que cor­ria em faz­er um pedi­do desse a uma escrito­ra que sem­pre fora con­heci­da pelo seu impul­so — e pro­fun­di­dade — na nar­ra­ti­va. Mas por out­ro lado, o pedi­do de Pacheco deu origem à reunião de con­tos de A Via Cru­cis do Cor­po (Edi­to­ra Roc­co, 1998), um dos últi­mos tra­bal­hos da escrito­ra que fazia con­tos como se relatasse cenas de uma voyeur sagaz, que entende o ínti­mo da natureza humana.

    Clarice deixa claro já no pre­fá­cio de A Via Cru­cis do Cor­po que talvez todas aque­las histórias ela mes­ma ten­ha vivi­do ou que, ain­da, sejam meras semel­hanças com a real­i­dade. Assim era a lit­er­atu­ra caóti­ca de Lispec­tor, um oscilar de real e fan­ta­sioso, sem soar ina­cred­itáv­el. O cor­po é o grande per­son­agem do livro, há uma lin­ha tênue que liga uma a uma das nar­ra­ti­vas e o cor­po é vis­to de um pris­ma, além de regras e moral­is­mos. A cada nar­ra­ti­va o leitor é apre­sen­ta­do a uma noção de cor­po difer­ente, a descober­ta desse instru­men­to que car­reg­amos é vivi­da das mais difer­entes maneiras, des­de da descober­ta da mas­tur­bação por uma mul­her na ter­ceira idade até a lib­er­tação — na min­ha visão, poéti­ca — das amar­ras do moral­is­mo de uma mul­her religiosa.

    A auto­ra não poupa per­sonas em A Via Cru­cis do Cor­po, expõe out­ros e inclu­sive a si mes­ma. Em alguns dos con­tos temos a impressão que é a própria auto­ra está falan­do, nos rev­e­lando alguns seg­re­dos seus. Acred­i­to isso ser um dos trun­fos mais grandiosos na escri­ta dela, essa per­cepção do ser, do com­preen­der e dialog­ar os devaneios humanos como se ela fos­se a maior con­hece­do­ra da causa. 

    Difer­ente do que fez, por exem­p­lo, em A Paixão segun­do G.H, em que nar­ra uma descober­ta em primeira pes­soa, cheia de nuances psi­cológi­cos, em A Via Cru­cis do Cor­po os per­son­agens são sem­pre con­tex­tu­al­iza­dos crian­do laços com o leitor. Todos con­hece­mos pes­soas que lem­brem algum per­son­agem de Clarice Lispec­tor, as vezes somos nós mes­mos recon­heci­dos no espel­ho que a escrito­ra con­seguia cri­ar com sua escrita.

    A Via Cru­cis do Cor­po é uma ousa­dia pen­den­do para o eróti­co sem ser explici­ta. Éroti­co pela pureza em que o cor­po é per­son­agem de cada breve história que resul­ta num praz­er próprio. O cor­po é o instru­men­to e os per­son­agens nomea­d­os são somente por­ta­dores dele, se dan­do con­ta de sua existên­cia essen­cial. Um livro para rel­er, se encon­trar, se enten­der. Clarice é sem­pre auto-conhecimento.

  • Livro: 20 poemas para o seu Walkman

    Livro: 20 poemas para o seu Walkman

    20 poemas para seu walkman

    Você gos­ta de poe­sia? E de músi­ca? Já pen­sou em jun­tar os dois? Poe­mas para ouvir. Via­jar e poder levar poe­mas no seu iPod. Um poe­ma como tril­ha sono­ra de sua vida. Parece uma ideia um tan­to quan­to esquisi­ta. Não para Marília Gar­cia. Ela nasceu no Rio de Janeiro em 29 de novem­bro de 1979, é escrito­ra, tradu­to­ra e edi­to­ra brasileira. Já pub­li­cou os livros Encon­tro às cegas (Edi­to­ra Moby Dick, 2001) e 20 poe­mas para o seu walk­man (Cosac Naify & 7Letras, 2007).

    Em seu livro — 20 poe­mas para o seu walk­man- Marília Gar­cia apre­sen­ta uma poe­sia reple­ta de car­ac­terís­ti­cas mar­cantes, per­cep­tíveis através da leitu­ra dos poe­mas, sendo a prin­ci­pal o não uso das rimas, por se tratar de poe­sia do pre­sente. Essas car­ac­terís­ti­cas instigam a curiosi­dade no leitor e des­per­tam as mais vari­adas sen­sações e emoções, o que se tor­na pos­sív­el com a uti­liza­ção das fig­uras de lin­guagem, prin­ci­pal­mente a sinestesia. 

    Há tam­bém a forte pre­sença da relação entre tem­po e espaço; a pre­sença de per­son­agens, fic­tí­cios ou não; o pouco uso da pon­tu­ação, a pro­dução de ima­gens; uso de cores e tam­bém, o grande uso de estrangeiris­mos, pre­sentes na maio­r­ia dos poe­mas da escrito­ra. Então, surge a grande per­gun­ta: por que o títu­lo do livro é 20 poe­mas para o seu walk­man?

    O ter­mo Walk­man, do inglês, rep­re­sen­ta a ideia de “cam­in­har”. Seria essa a intenção dos cri­adores do apar­el­ho que foi uti­liza­do para se referir a apar­el­hos portáteis sim­i­lares de repro­dução de áudio. Com sua chega­da, cos­tu­ma-se diz­er que mudaram os hábitos musi­cais, uma vez que cada pes­soa podia car­regar e ouvir seus sons preferi­dos e, prin­ci­pal­mente, sem inco­modar out­ras pes­soas. O walk­man, evoluiu para mp3, mp4, iPod etc. 

    Mas por que um “walk­man”?

    Talvez, porque, como a própria auto­ra, Marília Gar­cia, afir­mou em entre­vista — em 2007 — que “a poe­sia escapa à músi­ca”, poden­do ser enten­di­da de várias formas:

    Ela (a poe­sia) pode ser enten­di­da de diver­sas for­mas, como um som para tocar em seu walk­man ou como uma cena cin­e­matográ­fi­ca nar­ra­da. Acho que o poe­ma é aqui­lo que escapa à lit­er­atu­ra, escapa à músi­ca, escapa ao cin­e­ma, escapa às coisas definíveis, mas que se rela­ciona o tem­po todo com elas, bus­can­do exper­i­men­tar e cri­ar novas formas.” 

    20 poe­mas para o seu walk­man divide-se em qua­tro partes: Per­gun­tas sobre a difer­ença entre, Le pays n’est pás La carte, Encon­tro às cegas (escala indus­tri­al) e Algo que se esqui­va. Curiosa­mente, o livro não apre­sen­ta 20 poe­mas e sim 45. 20 poe­mas para o seu walk­man é o títu­lo de um deles. 

    Poe­sia do Presente 

    Marília Gar­cia, jun­ta­mente com alguns out­ros escritores, como Angéli­ca Fre­itas e Ricar­do Dome­neck, é con­sid­er­a­da escrito­ra do pre­sente. Mas o que sig­nifi­ca isso? Escritores do presente?

    Segun­do a pro­fes­so­ra e pesquisado­ra Susana Scramim, os “escritores do pre­sente” não são nec­es­sari­a­mente con­tem­porâ­neos. Mas estes pos­suem um pen­sa­men­to comum acer­ca do literário. A auto­ra desta­ca que:

    A lit­er­atu­ra do pre­sente que envolve uma noção muito maior do que a noção de con­tem­porâ­neo é aque­la que assume o risco inclu­sive de deixar de ser lit­er­atu­ra, ou ain­da, de faz­er com que a lit­er­atu­ra se coloque num lugar de pas­sagem entre os dis­cur­sos, entre os lugares orig­inários da poe­sia, e que não devem ser con­fun­di­dos com o espaço, com a cir­cun­scrição de um ter­ritório para a lit­er­atu­ra. Escr­ev­er lit­er­atu­ra do pre­sente hoje tem função de faz­er coin­cidi­rem duas coisas que a mod­ernidade esgo­tou há muito: a pos­si­bil­i­dade do con­hec­i­men­to e da experiência. 

    A Poe­sia do Pre­sente, então, “brin­ca” com o leitor, pois o induz a pro­duzir ima­gens, decifrar códi­gos e bus­car respostas para seus ques­tion­a­men­tos. A par­tir da leitu­ra dos poe­mas de Marília Gar­cia ima­gens tam­bém são pro­duzi­das. Desta­ca-se os lugares, lín­guas e pessoas. 

    20 poe­mas para o seu walkman

    I.
    um dos primeiros dias
    do ano, francesc subia a notre – dame
    ‑de-lorette atrás de jacques roubaud
    e sen­ta­va no café gio­con­da de frente
    para uma saco­la com um
    gato dentro.
    um dos primeiros
    dias de outono,não pare­cia seguro
    ficar ali – como a beira do barco
    escor­re­ga­dia e do out­ro lado
    tudo era um quar­to com terraço
    as ruas crescen­do ao redor a estação
    de trem com mato cobrindo as
    lin­has e ás vezes um mergulho
    na água salgada:
    ficar boiando
    com um walk­man e depois olhar para
    os pés: — um pouco insu­lano isso de as
    lín­guas iso­ladas se misturarem
    pouco a pouco e dirigir
    na estra­da à noite. 

    II.
    depois descia as ruas
    e que­ria ficar no car­ro trancado
    segu­ran­do um livro.o penhasco
    apa­ga­va qual­quer definição
    de coisas, mas quando
    se virava
    ela já não estava
    tomara o bar­co para casa e dizia
    que talvez no verão seguinte mas
    só lig­a­va para con­tar do emprego
    de matemáti­ca – “quase um objeto
    poroso” – sair para um con­cer­to de rock
    e preparar vari­ações para uma
    veg­e­tar­i­ana amáv­el que pinta
    de bran­co o apartamento
    antes de ir.

    III.
    um dos primeiros dias
    e chega­va o cartão da
    catalun­ha, dizia que ficava
    mudo em seu metro e noventa
    esbar­ran­do nas pes­soas e olhava
    pra os pés: um tênis azul. se não tivesse
    tan­ta hier­ar­quia ou o que pensaria
    (estaria de verde? traria uma pilha
    de obje­tos nas mãos ? teria um
    fone de ouvi­do? e ain­da cantaria
    em voz alta) 

  • Livro: Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll | Livro

    Livro: Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll | Livro

    João Gilber­to Noll diz que a sua escri­ta é: ¨Como se real­mente a lin­guagem fos­se um exer­cí­cio dese­jante de ação. Ação não no sen­ti­do norte-amer­i­cano, evi­den­te­mente, de cin­emão, mas no sen­ti­do de que o per­son­agem começa de um jeito e vai ter­mi­nar de out­ro.¨ De fato, não há mel­hor definição para Hotel Atlân­ti­co (Edi­to­ra Roc­co, 1989), talvez a obra mais cel­e­bra­da do autor gaúcho.

    Ao se deparar com um cadáver sendo lev­a­do pelo IML nas escadarias de um hotel em Copaca­bana, um homem sem nome — que mais tarde se apre­sen­ta como um ator — resolve se auto-pro­por uma viagem pelo Brasil. Aparente­mente inde­ciso sobre a sua vida o homem vai até a rodoviária e com­pra a pas­sagem para o lugar mais longe naque­le momen­to. Aca­ba por embar­car para Flo­ri­anópo­lis, seguin­do para cidades do inte­ri­or do Rio Grande do Sul viven­cian­do uma ver­dadeira odis­séia rodea­do de per­son­agens esquisi­tos e em bus­ca de algo que nun­ca fica claro o que é.

    Hotel Atlân­ti­co cel­e­bra os novos rumos que a lit­er­atu­ra brasileira toma­va no fim dos anos 80. Nesse perío­do os novos escritores começavam a cri­ar esti­los mais próprios e João Gilber­to Noll já era con­heci­do por ser um autor que fugia de qual­quer regra e se fazia mági­co da lin­guagem. E é assim que o livro se apre­sen­ta, uma nar­ra­ti­va de ação mas pro­fun­da­mente cal­ca­da no ques­tion­a­men­to humano. Não há muitas certezas no enre­do e é jus­ta­mente nesse aspec­to que mora o fasci­nante desen­ro­lar da história do homem em fuga. Noll propõe a saga de um homem sem prece­dentes e con­strói a nar­ra­ti­va de for­ma que não nos inter­es­sa o pas­sa­do dele, ape­nas as decisões que ele vá tomar a cada situ­ação inusi­ta­da que lhe aparece.

    Em momen­to algum Hotel Atlân­ti­co se propõe em explicar o pas­sa­do, ou mes­mo, desven­dar o futuro do per­son­agem. O momen­to é val­oriza­do em cada lin­ha e pará­grafo, dan­do ao leitor poucos momen­tos para res­pi­rar ou ten­tar definir o que irá acon­te­cer ao homem na sequên­cia. O próprio títu­lo do livro é algo que vai se desen­vol­ven­do e crian­do sen­ti­do com o enre­do já quase definido. E esse é o esti­lo que Noll se ref­ere ao diz­er que gos­ta da ação que lem­bra a nar­ra­ti­va cin­e­matográ­fi­ca, afi­nal o livro é um belo roteiro, um road movie exis­ten­cial reple­to de pais­agens e pes­soas car­i­catas de cada lugar. Out­ro aspec­to inter­es­sante é a lev­eza eróti­ca que muitos momen­tos são descritos. Mes­mo sem poupar expressões sex­u­ais o autor cria momen­tos real­mente sór­di­dos, porém em tons banais, com as situ­ações vivi­das pelo homem sem nome e as mul­heres no caminho.

    Dan­do uma amostra do que viria nos anos 90 e pos­te­ri­or­mente na primeira déca­da dos anos 2000, Hotel Atlân­ti­co é uma obra ímpar da lit­er­atu­ra brasileira con­tem­porânea que serviu para tirar o foco da lit­er­atu­ra region­al­ista com lon­gas nar­ra­ti­vas, para uma lit­er­atu­ra mais impar­cial que pas­sa­va a beber de todas as artes, se tor­nan­do mais próx­i­ma do homem urbano. A nar­ra­ti­va sem tem­po fixo e com ações pon­tu­ais serviu de base para a adap­tação homôn­i­ma da dire­to­ra Suzana Ama­r­al, vale a pena conferir.

    Site do filme Hotel Atlântico

  • Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Fer­nan­do Bonas­si aparente­mente é mais con­heci­do por coau­to­ria em roteiros de filmes nacionais de suces­so e minis­séries de TV aber­ta. Mas é na lit­er­atu­ra que ele se apre­sen­ta uti­lizan­do um esti­lo críti­co, com dos­es dobradas de sar­cas­mo, a respeito da sociedade brasileira e suas excen­t­ri­ci­dades. Em O meni­no que se tran­cou na geladeira (Edi­to­ra Obje­ti­va, 2004), esse paulista traz um enre­do que de longe nos lem­bra muitos dos fatos ocor­ri­dos no país nos últi­mos 50 anos, mas de per­to, é muito mais min­i­mal­ista e acer­ta em cheio, com uma críti­ca fer­ren­ha aos fatos cor­riqueiros da nos­sa história políti­ca, refleti­da na sociedade.

    Primeira­mente deve-se enten­der que O meni­no que se tran­cou na geladeira é um romance-reportagem, o nar­rador deixa claro que cada lin­ha é fru­to de uma visão jor­nalís­ti­ca sobre um habi­tante sem iden­ti­dade de um país irrecon­hecív­el. O meni­no, inti­t­u­la­do assim porque sim­ples­mente não nos inter­es­sa a iden­ti­dade dele, nasceu numa sociedade já cor­romp­i­da e em uma família que pouco lig­a­va para a existên­cia dele. Tudo dera erra­do, sen­tia-se deslo­ca­do por não ser belo e a úni­ca meni­na que ele se apaixo­nou, o despreza. O que lhe res­ta, de fato, é faz­er parte desse todo, de uma sociedade onde a vio­lên­cia é uma saí­da e o esti­lo de vida é a apa­tia, afi­nal, havia algo mais a se faz­er? Para se for­t­ale­cer, após suces­si­vas ten­ta­ti­vas de viv­er do seu modo e com as decepções que as pes­soas o causam, ele decide viv­er den­tro do seu próprio mun­do, den­tro de uma geladeira. E é no inte­ri­or desse eletrodomés­ti­co, de sen­ti­do metafóri­co, que o meni­no vai apren­den­do a lidar com as pes­soas e o sis­tema cri­a­do por elas. Sair da geladeira é um peri­go e viv­er den­tro dela é se entor­pecer de mentiras.

    Uma das car­ac­terís­ti­cas mais inter­es­santes de O meni­no que se tran­cou na geladeira é uso das téc­ni­cas nar­ra­ti­vas. O tex­to é mar­ca­do pela apre­sen­tação de um mun­do pecu­liar cheio de dis­cur­sos entrecor­ta­dos e veloci­dade que em muitos momen­tos parece nos tirar o ar. Esse tem­po de nar­ra­ti­va cri­a­do por Bonas­si não soa como os lon­gos pará­grafos de Sara­m­a­go, ou ain­da, de Gar­cia Mar­quez, ele tem a função de cri­ar um sen­ti­do de caos ao leitor. São tan­tos sar­cas­mos, joga­dos em pou­cas palavras, que a exper­iên­cia de leitu­ra é mar­ca­da pelo ator­doa­men­to dos fatos. Sabe­mos muito bem pelo que o meni­no pas­sa, pois é uma hipér­bole dramáti­ca do nos­so cotidiano.

    Out­ro pon­to alto do livro são as denom­i­nações que o nar­rador, proposi­tal­mente um jor­nal­ista que neces­si­ta de dados verossim­il­hantes, nos apre­sen­ta a sociedade desse país som­brio onde o vive o meni­no. Por exem­p­lo, a sociedade ali é divi­di­da em os ricos, os cidadãos da faixa média e os fer­ra­dos de vez, reforçan­do o uso da lin­guagem colo­quial como um dos pon­tos máx­i­mos de lig­ação com o leitor.

    Em O meni­no que se tran­cou na geladeira impera a inter­tex­tu­al­i­dade da lit­er­atu­ra atu­al, que opera numa hiper­a­tivi­dade entre todas as artes, partin­do inclu­sive do jor­nal­is­mo até o teatro. É uma ficção cal­ca­da no choque do real, pois mes­mo que a primeira sen­sação de leitu­ra seja de um absur­do sur­re­al­ista, há uma real­i­dade latente se man­i­fe­s­tando através dis­so e é jus­ta­mente esse fator que prende a leitu­ra nos tex­tos de Bonas­si: a real­i­dade nua e crua trata­da como fato cor­riqueiro e em tom de comé­dia. Rir da real­i­dade para deixá-la menos ten­sa e pesa­da, um esti­lo que o autor vem prat­i­can­do muito bem, inclu­sive em roteiros como o pre­mi­a­do Carandiru, ou ain­da, Os Mata­dores, de Beto Brant.

    Se você ficou inter­es­sa­do, uma parte do livro O meni­no que se tran­cou na geladeira está disponív­el para leitu­ra gra­tui­ta no Google Docs. Para ler, clique aqui.

  • Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Eulálio Mon­tene­gro D‘Assumpção (sem pro­nun­ciar o “p” mudo para não causar deboche) é o pro­tag­o­nista do romance de Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do, pub­li­ca­do pela Com­pan­hia das Letras em 2009. Este sen­hor com pouco mais de 100 anos, encon­tra-se em um leito de hos­pi­tal, de onde nar­ra suas memórias e pen­sa­men­tos, nem sem­pre cronológi­cos, seja porque sua memória já o con­funde ou por estar sob efeitos dos medica­men­tos, por isso muitas vezes em Leite Der­ra­ma­do aparece: “Não sei se já lhes con­tei algu­ma vez como con­heci Matilde na mis­sa do meu pai…”; as pes­soas para quem ele con­ta os fatos são as enfer­meiras, sua fil­ha ou ape­nas divagações.

    Den­tro desse emaran­hado de pen­sa­men­tos e lem­branças nos damos con­ta de aspec­tos da história do Brasil, dos acon­tec­i­men­tos na sociedade do Rio de Janeiro do sécu­lo pas­sa­do, falar em francês na pre­sença dos empre­ga­dos, por exem­p­lo, e até mes­mo feitos dos famil­iares desse ancião na Europa. A par­tir do “que­bra-cabeça históri­co” apre­sen­ta­do em Leite Der­ra­ma­do, podemos encon­trar refer­ên­cia à vin­da da família real por­tugue­sa, com a qual veio o seu trisavô, à belle épóque, à Segun­da Guer­ra Mundi­al, à que­bra da bol­sa de Nova Iorque e à ditadu­ra mil­i­tar. Todos ess­es fatos nos são nar­ra­dos para lem­brar da importân­cia do seu sobrenome per­ante a sociedade que aos poucos, com a vin­da dos netos, bis­ne­tos e tatarane­tos vai tor­nan­do-se cada vez menos impor­tante, pois antiga­mente era um sobrenome que lhes abri­am por­tas e ago­ra no pre­sente não influ­en­cia em mais nada.

    Chico Buar­que, através do apan­hado de infor­mações, faz uso muito refi­na­do da lin­guagem, usan­do flash-backs não-lin­ear­es, con­fundin­do o leitor e inserindo a temáti­ca do racis­mo com sutileza, como por exem­p­lo a Matilde que é descri­ta como “a mais escur­in­ha das irmãs” ou o seu dese­jo sobre o seu cole­ga fil­ho de escravo.

    Sob meu olhar de leito­ra, Leite Der­ra­ma­do está próx­i­mo ao Budapeste, com histórias e per­son­agens difer­entes, claro, mas com uma cer­ta aprox­i­mação na vida das per­son­agens, ambos estão “per­di­dos”, ou mel­hor, em algum tipo de decadên­cia, e próx­i­mo tam­bém ao Estor­vo, pela descrição das cenas no Rio de Janeiro. Quan­to à for­ma da lin­guagem, cer­ta­mente Chico Buar­que cresceu muito neste, Leite Der­ra­ma­do, pois ele con­segue pren­der o leitor durante toda a nar­ra­ti­va, talvez pela empa­tia que o vel­ho Eulálio nos causa ao con­tar sobre sua ama­da Matilde, mas prin­ci­pal­mente pelo pri­mor da escri­ta, na maio­r­ia das vezes pare­cen­do fluxo de con­sciên­cia, e aí está o pri­mor do romance, Chico Buar­que con­segue faz­er uso da lin­guagem como poucos, pren­den­do e con­fundin­do o leitor na nar­ra­ti­va, mas sem que ele ten­ha se per­di­do ao elab­o­rar a obra.

    Com as car­ac­terís­ti­cas apon­tadas sobre traços históri­cos, out­ro traço que podemos destacar é o traço psi­cológi­co do pro­tag­o­nista, a par­tir das descrições e lem­branças dele, é pos­sív­el anal­is­ar a fal­ta que fez uma estru­tu­ra famil­iar, o quan­to o deixou per­di­do as via­gens com o pai para a Europa e a aprox­i­mação das moças nas sofisti­cadas suítes dos hotéis, con­hecer a neve das mon­tan­has etc. Creio que tam­bém o que mar­ca psi­co­logi­ca­mente o pro­tag­o­nista de Leite Der­ra­ma­do é a presença/ausência de Matilde, pre­sente sem­pre em suas memórias, mas ausente a par­tir de alguns acon­tec­i­men­tos e é quan­do Eulálio relem­bra da ama­da que seus pen­sa­men­tos se con­fun­dem. Vale a pena dedicar alguns momen­tos para con­hecer mel­hor esse vel­ho saudo­sista e se perder entre as palavras der­ra­madas nesse romance do Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do.

    Assista o autor lendo tre­chos da obra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=_tkaXxXXKVI&feature=player_embedded

  • Livro: Estive em Lisboa e Lembrei de Você — Luiz Ruffato

    Livro: Estive em Lisboa e Lembrei de Você — Luiz Ruffato

    Estive em Lisboa e Lembrei de Você

    Em mea­d­os de 2005 foi cri­a­do o pro­je­to Amores Expres­sos. Nele, dezes­seis escritores brasileiros via­jari­am para diver­sas cidades ao redor do mun­do e cada um iria escr­ev­er um romance basea­do em sua viagem. O pro­je­to cau­sou as mais diver­sas reações, pois se ques­tion­a­va de onde iria sair o din­heiro para custear as via­gens, e se era necessário que saíssem do país para bus­car inspi­ração. Entre ess­es escritores esta­va Luiz Ruffa­to, e o resul­ta­do da viagem dele foi o livro Estive em Lis­boa e Lem­brei de Você.

    Polêmi­cas à parte, Ruffa­to é bas­tante con­heci­do no meio literário con­tem­porâ­neo. Nasci­do em Minas Gerais, na cidade de Cataguas­es, já gan­hou diver­sos prêmios impor­tantes, como o da APCA (Asso­ci­ação Paulista de Críti­cos de Arte) e o Macha­do de Assis, da Fun­dação Bib­liote­ca Nacional. Algu­mas de suas obras mais impor­tantes são Eles eram muitos cav­a­l­os e a série Infer­no Pro­visório.

    Em Estive em Lis­boa e Lem­brei de Você, Ruffa­to foi a Lis­boa e nos trouxe a história de um rapaz chama­do Sergin­ho. Des­gos­toso com a vida que lev­a­va no Brasil, após prob­le­mas amorosos e finan­ceiros, ele con­ver­sa com seu Oliveira (por­tuguês res­i­dente de sua cidade) e resolve ir para Lis­boa “ten­tar a vida”. Após o choque ini­cial, Sergin­ho se adap­ta à vida por­tugue­sa e começa a tra­bal­har como garçom. Faz amizades, aprende um novo vocab­ulário e se aven­tu­ra pela cidade. Logo no iní­cio do livro encon­tramos uma nota do autor dizen­do que este foi basea­do numa entre­vista que ele fez com Sér­gio de Souza Sam­paio, o Serginho.

    Luiz Ruffa­to tem uma imen­sa facil­i­dade para retratar cidades. Em Eles eram muitos cav­a­l­os ele fala de São Paulo com taman­ha intim­i­dade que se pode imag­i­nar que ele seja paulis­tano. O mes­mo acon­tece com Estive em Lis­boa e Lem­brei de Você. O autor con­segue descr­ev­er as diver­sas par­tic­u­lar­i­dades da cidade, com um tom literário que poucos con­seguem cri­ar. Sua prosa é bas­tante fluí­da, com poucos pará­grafos e sua escri­ta con­tínua faz com que o leitor entre em con­ta­to dire­to com seus personagens.

    Ruffa­to não criou nen­hu­ma for­ma nova na Lit­er­atu­ra, mas trouxe uma sim­pli­ci­dade envol­vente que há muito não víamos na Lit­er­atu­ra. E inclu­sive, o autor esteve entre os final­is­tas do Prêmio São Paulo de Lit­er­atu­ra 2010, junta­mente com nomes da lit­er­atu­ra con­tem­porânea como Chico Buar­que e Bernar­do Car­val­ho.

    Infe­liz­mente, pou­ca atenção é dada à lit­er­atu­ra con­tem­porânea, prin­ci­pal­mente nas salas de aula. Muito tem acon­te­ci­do em nos­so meio literário, muitos escritores surgem com obras inter­es­santes e com pen­sa­men­tos que mere­cem ser con­heci­dos. Ruffa­to tem um papel impor­tante nesse meio, pois suas obras são um óti­mo exem­p­lo da lit­er­atu­ra con­tem­porânea brasileira, reflexo da soci­dade que vive­mos e dos cos­tumes dessa ger­ação. Ape­sar de ter óti­mos tra­bal­hos pub­li­ca­dos ele ain­da não é recon­heci­do pelo grande públi­co. Esper­amos que essa situ­ação mude muito em breve.

  • Livro: Eles Eram Muitos Cavalos — Luiz Ruffato

    Livro: Eles Eram Muitos Cavalos — Luiz Ruffato

    Em Eles Eram Muitos Cav­a­l­os, de Luiz Ruffa­to, São Paulo se apre­sen­ta nua e crua, porém inteira. Como se fos­se vista através vários olhares estrangeiros, por relatos das pes­soas que cir­cu­lam por ali todos os dias.

    É uma terça-feira do ano 2000 e ali estão todos os traços de um dia apoc­alip­ti­co de fim de sécu­lo. Em Eles Eram Muitos Cav­a­l­os a nar­ra­ti­va se dá como se estivésse­mos assistin­do a um doc­u­men­tário que nos desse aces­so a tudo o que está acon­te­cen­do em uma metró­pole em um úni­co dia: tem­per­atu­ra, descrições de per­son­agens, falas entrecor­tadas, monól­o­gos e etc. A pro­pos­ta é mon­tar uma colcha de retal­hos da for­mação urbana de São Paulo. Tudo está ali, des­de mod­e­los frustradas, pas­san­do por fol­has de clas­si­fi­ca­dos num metrô até o clás­si­co reti­rante vin­do em bus­ca de uma vida mel­hor. A pro­dução de ima­gens da real­i­dade é inten­sa e situa o leitor no tem­po e em veloci­dade própria que lem­bra muito uma pro­dução audiovisual.

    A lit­er­atu­ra há muito deixou de ser, se é que algum dia foi, uma arte iso­la­da, ou a úni­ca deten­to­ra da palavra. Hoje ela fun­ciona como reflexo do caos urbano, da ligeireza das vidas e da fini­tude do tem­po. A lit­er­atu­ra é, e neces­si­ta ser, tudo ao mes­mo tem­po e para isso as fron­teiras entre o real e o fic­cional começam a se tornar, a cada obra, menos espes­sas. Luiz Ruffa­to tra­ta dessa con­tem­po­ranei­dade de for­ma pri­morosa deixan­do que cada exper­iên­cia pos­sa ser tão pŕox­i­ma e intimista que você fica se per­gun­tan­do se aque­la situ­ação não é da sua viz­in­hança ou com algu­ma pes­soa próx­i­ma, pois sabe que já ouviu e viu aqui­lo antes.

    O autor usa recur­sos real­is­tas clás­si­cos, inclu­sive a iro­nia Macha­di­ana, e em muitos momen­tos o exagero de descrições e o pecu­liar das falas faz com que o leitor se obrigue a cri­ar laços da ficção com a real­i­dade, se con­fundin­do muitas vezes com estes vul­tos urbanos descritos. De fato, uma exper­iên­cia úni­ca em que Luiz Ruffa­to sabe adap­tar cada peque­na pro­pos­ta e mudar o cenário de for­ma que o leitor mal cria laços com a situ­ação e logo parte para a pŕox­i­ma, não deixan­do de cri­ar uma sequên­cia. A mul­ti­pli­ci­dade de vozes é o pon­to forte da nar­ra­ti­va, o leitor pas­sa a ser um sujeito cole­ti­vo, par­tic­i­pante de cada vida ou momen­to das 69 exper­iên­cias ali pro­postas. É uma grande câmera em que o leitor ape­nas acom­pan­ha os trav­el­ings da narrativa.

    E que a ver­dade seja dita, por mais que as pre­mis­sas sejam extrema­mente neg­a­ti­vas sobre qual­quer relação que o cin­e­ma pos­sa ter com a lit­er­atu­ra, hoje é muito difí­cil desvin­cu­lar as duas lin­gua­gens. Prin­ci­pal­mente na lit­er­atu­ra tida como con­tem­porânea, a lin­guagem mar­ca­da das pelícu­las se faz pre­sente no tex­to. No caso de Eles Eram Muitos Cav­a­l­os é a sen­sação doc­u­men­tal que pre­dom­i­na durante todo o dis­cur­so. Não existin­do um per­son­agem prin­ci­pal ou nar­rador, é o próprio leitor que cir­cu­la por todos os meios daque­le dia comum de São Paulo, mostran­do que a geografia dos espaços tam­bém é um belo cenário.