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  • Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Foto: Damião A. Francisco
    Foto: Damião A. Francisco

    Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

    Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

    Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

    2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

    A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

    Foto: Grupo Estadão
    Foto: Grupo Estadão

    No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

    Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Pâni­co Band — Podcast

    Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

    É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

    Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

    Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

    A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

    Foto: Daniel Deak
    Foto: Daniel Deak

    No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

    Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

    Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.

  • Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Capa Filhos do Fim do Mundo - Fabio M BarretoQuan­tos livros que você leu eram ambi­en­ta­dos em um mun­do fan­tás­ti­co, com fadas, elfos, trolls e até mes­mo dragões? Se você acha esse tipo de livro uma lit­er­atu­ra menor, vale lem­brar o suces­so das obras de Tolkien, George Mar­tin e até de autores brasileiros como Eduar­do Spohr. É difí­cil predi­z­er que ele­men­to lev­ou tais autores ao suces­so, mas com certeza a con­strução de uma história envol­vente e bem ambi­en­ta­da, um uni­ver­so crív­el e imer­si­vo são aspec­tos que garan­tem a audiên­cia literária que tais obras obtiveram.

    A obra do jor­nal­ista, escritor e cineas­ta Fábio M. Bar­reto, Fil­hos do Fim do Mun­do (Casa da Palavra, 2013), é ambi­en­ta­da não pro­pri­a­mente em um uni­ver­so fan­tás­ti­co ou mun­do para­le­lo. É um mun­do pós-apoc­alíp­ti­co, ain­da que muito próx­i­mo da sociedade em que vive­mos hoje. Subita­mente, em um dia especí­fi­co, quan­do o reló­gio indi­ca meia-noite, as cri­anças recém-nasci­das começaram a mor­rer. Percebe-se que cri­anças com menos de um ano de idade, plan­tas e ani­mais tam­bém pere­ce­r­am. No mun­do todo.

    O que acon­te­ceu? Qual é a cura para isso? Como evi­tar novas mortes e, mais impor­tante, como levar a raça humana adi­ante a par­tir de uma per­spec­ti­va como essa? Tais per­gun­tas inva­dem a obra e, prin­ci­pal­mente, o pro­tag­o­nista, o Repórter, cuja mul­her está grávi­da, pronta para parir a qual­quer momen­to. O que já vale diz­er que, se você gos­ta de histórias apoc­alíp­ti­cas, de mis­tério, e quer se aven­tu­rar na nova seara de autores brasileiros, esta obra de Bar­reto cer­ta­mente é pra você.

    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras
    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras

    O livro lem­bra muito out­ras obras, como o filme “Fil­hos da Esper­ança”, e o livro de Sara­m­a­go, “Ensaio sobre a Cegueira”. Este últi­mo é o que mais se aprox­i­ma da obra de Bar­reto, pela sua pre­mis­sa tam­bém inex­plicáv­el: as pes­soas começam a ficar cegas. O mun­do, de uma hora para out­ra, tor­na-se um ble­caute, um grande breu para a maio­r­ia das pes­soas, que lutam deses­per­adas pela sua sobrevivência.

    Mas há uma difer­ença grande na obra de Sara­m­a­go e nas out­ras citadas no iní­cio do tex­to em relação ao livro de Bar­reto: nes­tas primeiras, ain­da que as tra­mas apre­sen­tem ele­men­tos fan­tás­ti­cos, não são o prin­ci­pal chama­riz dos livros. Na obra de Sara­m­a­go, por exem­p­lo, são os con­fli­tos humanos, a imer­são e a iden­ti­fi­cação que tais histórias pro­por­cionam que nos lev­am a devo­rar suas pági­nas com avidez e ansiedade. O fan­tás­ti­co é o pano de fun­do para uma humanidade frágil e em evidência.

    No caso de Bar­reto, ain­da que o livro ten­ha vários pon­tos altos e um pro­tag­o­nista muito cati­vante, o livro não deixa de lado as questões fan­tás­ti­cas por tem­po sufi­ciente para você mer­gul­har de vez na história e no dra­ma do jor­nal­ista. E pior: as per­gun­tas que são lev­an­tadas durante toda a obra, ao final do livro, não são respondidas.

    Ou seja, o tem­po todo os per­son­agens do livro procu­ram a cura para o prob­le­ma que aflige a humanidade e ten­tam enten­der porque essa tragé­dia acon­tece – é isso, e a ten­ta­ti­va de sal­var o futuro fil­ho, que moti­vam o per­son­agem prin­ci­pal – para no fim isso não ter importân­cia. Há um desen­volvi­men­to muito boni­to e tocante do Repórter e de suas desilusões sobre a humanidade, que acred­i­to serem as mel­hores partes do livro – mas isso não foi o sufi­ciente para eu não me per­gun­tar a todo momen­to sobre respostas.

    O autor Fábio M. Barreto
    O autor Fábio M. Barreto

    É pos­sív­el diz­er que a intenção orig­i­nal do autor é mostrar que esse pano de fun­do cri­a­do por ele não pas­sa dis­so – é a base para um dra­ma maior, a saber, o cresci­men­to e o amadurec­i­men­to do Repórter em sua jor­na­da para sal­var a família (e a for­ma como a sociedade se dete­ri­o­ra diante do caos). Mas a maneira como a história foi desen­volvi­da não me per­mi­tiu esque­cer a razão de tudo aqui­lo e mer­gul­har de vez na tra­jetória do per­son­agem. Eu bus­ca­va algu­mas respostas – que, diante do dra­ma de alguns per­son­agens podem ser vis­tas como questões menores — mas ain­da sim a fal­ta delas pare­ceu levar a história para um rumo difer­ente sim­ples­mente para “sur­preen­der” o leitor, e não para fechar a obra de maneira coerente.

    Ilustração feita por Felipe Watanabe!
    Ilus­tração fei­ta por Felipe Watanabe

    Out­ro pon­to neg­a­ti­vo é que alguns tre­chos do livro são um tan­to con­fu­sos, prin­ci­pal­mente nas pas­sagens de ação (como no momen­to em que é descri­ta a chega­da do Repórter e de uma equipe mil­i­tar a um dos bunkers exis­tentes na história). É pre­ciso lê-las duas ou três vezes para dis­cernir com certeza o que se desen­ro­la, quem está fazen­do o quê e o que está acon­te­cen­do na sequên­cia. É pre­ciso atenção do leitor para não se perder nos eventos.

    Assim, Fil­hos do Fim do Mun­do é uma obra que pode levar o leitor a ter uma exper­iên­cia um pouco trun­ca­da com a história, uma vez que não per­mite o embar­que com­ple­to na exper­iên­cia desse mun­do cri­a­do por Barreto.

    Já seus destaques são prin­ci­pal­mente atre­la­dos à jor­na­da do Repórter e seu ques­tion­a­men­to sobre a profis­são, sobre sua família, sua vida e sobre si mes­mo. A respeito destes pon­tos, Fábio Bar­reto merece todos os crédi­tos. É curioso e tocante acom­pan­har­mos a tra­jetória deste “herói”, que se despe de todos os seus pré-con­ceitos, certezas e pré-jul­ga­men­tos diante da nova real­i­dade que se desvela diante de si, sim­ples­mente para faz­er o que for mel­hor para sua família. Há pas­sagens em que é muito fácil se iden­ti­ficar com ele e com suas decisões, aprox­i­man­do o leitor da história e per­mitin­do o envolvi­men­to que vez ou out­ra escapa durante a leitura.

    - Já vimos isso acon­te­cer, em escala menor, claro. Con­fli­tos trib­ais têm muito dis­so. E vemos ess­es efeitos em nos­sos treina­men­tos de sobre­vivên­cia. Até cer­to nív­el de estresse, os sol­da­dos se unem; dali para a frente, o instin­to fala mais alto e qual­quer razão para ter algu­ma van­tagem táti­ca ou fisi­ológ­i­ca será usa­da para o bene­fí­cio daque­le indi­ví­duo – con­tin­u­a­va o argu­men­to. A lóg­i­ca pare­cia impecáv­el e o dis­cur­so era sin­cero, chegan­do a ser influ­en­ci­a­do por momen­to de pen­sar pro­fun­do, pre­sentes, mes­mo que de for­ma con­ti­da. Assim como o Repórter, o Major preferiria descon­sid­er­ar tudo aqui­lo, entre­tan­to a ver­dade não podia ser omi­ti­da. E ambos sabi­am. (p. 193)

    O fim da obra, ain­da que não seja o que leitor pos­sa esper­ar, sur­preende e emo­ciona. Com alguns tre­chos revisa­dos (prin­ci­pal­mente na descrição das cenas de ação) o livro fluiria mel­hor, mas não há dúvi­das de que a obra de Bar­reto (que ain­da par­tic­i­pa do pod­cast Rapadu­ra­cast), ain­da que não seja o grande livro nacional do gênero em 2013, é um bom livro – o que não deixa de ter seu mérito.

    Veja abaixo um cur­ta-metragem inspi­ra­do no pról­o­go de Fil­hos do Fim do Mun­do, cri­a­do pela SOS Hol­ly­wood Films:

  • Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Daniel Galera em seu quar­to romance, Bar­ba Ensopa­da de Sangue (Com­pan­hia das Letras, 2012), é pro­tag­on­i­za­do por um “homem forte e silen­cioso” como diria Tony Sopra­no. Assim como em Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, temos uma nar­ra­ti­va onde a vio­lên­cia surge no cotid­i­ano con­fortáv­el da classe média. 

    Após o suicí­dio do pai, o pro­tag­o­nista decide viv­er um ano em Garopa­ba para se dedicar como instru­tor em uma acad­e­mia da região e se iso­lar de sua cidade natal, Por­to Ale­gre. Ao seu lado, temos a cachor­ra Beta, que per­ten­cia ao seu pai e que ele se recu­sou a sacrificar. 

    Diag­nos­ti­ca­do com uma doença neu­rológ­i­ca rara que o impos­si­bili­ta de guardar na memória o próprio ros­to e o das pes­soas com quem vem a se rela­cionar, o pro­tag­o­nista leva con­si­go um álbum de retratos para lem­brar-se do ros­to dos ami­gos, da família e inclu­sive da sua própria face. 

    Eis um dos mis­térios do romance: Na con­ver­sa que teve com seu pai quan­do esse o infor­ma que ira tirar a própria vida, fica saben­do que seu avô, Gaudério, acabou se isolan­do na cidade de Garopa­ba nos anos 1960 e dev­i­do ao seu com­por­ta­men­to vio­len­to foi assas­si­na­do a facadas por vários nativos e seu cor­po nun­ca foi encon­tra­do. Desco­brir o que real­mente acon­te­ceu com ele é uma de suas metas, mes­mo que isso pos­sa colo­car sua vida em risco. 

    Daniel Galera
    Daniel Galera atingiu um nív­el téc­ni­co muito alto nesse romance real­ista e ambi­cioso, com per­son­agens fortes e caris­máti­cos (vide Bonobo, o bud­ista nada orto­doxo), descrições ric­as em detal­h­es, e parece jus­ti­ficar a razão do seu nome estar em voga ape­nas com a qual­i­dade da sua nar­ra­ti­va. O livro tem muitas semel­hanças entre os romances Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, mas em nen­hum momen­to o autor está se autoplagiando. 

    Ninguém escol­he nada e mes­mo assim a respon­s­abil­i­dade é nos­sa” diz o per­son­agem prin­ci­pal em uma dis­cussão com a ex-namora­da. O cen­tro do romance tra­ta a questão de livre-arbítrio e deter­min­is­mo, tópi­co estu­da­do por David Fos­ter Wal­lace, uma grande influên­cia do escritor brasileiro e do qual traduz­iu recen­te­mente a coletânea Fican­do Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.

    Des­de o princí­pio do tra­bal­ho, eu que­ria que o romance explo­rasse de maneira implíci­ta a questão filosó­fi­ca da respon­s­abil­i­dade humana em uma visão de mun­do deter­min­ista, segun­do a qual tudo que acon­tece é ape­nas resul­ta­do inevitáv­el do que acon­te­ceu logo antes. É um assun­to que me inter­es­sa.” Diz o autor em uma entre­vista para o site do Jor­nal do Comércio

    O úni­co pon­to neg­a­ti­vo está no tra­bal­ho grá­fi­co do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a tra­ma de mais de 400 pági­nas não é em nen­hum momen­to cansati­va e uma das críti­cas feitas ao livro, da qual ele pode­ria ser menor e menos ver­bor­rági­co, é infundado.

    Bar­ba Ensopa­da de Sangue é um óti­mo romance, mas ain­da é cedo para diz­er qual é sua importân­cia para a lit­er­atu­ra brasileira. Ao mes­mo tem­po vemos uma pro­dução literária nacional dar pas­sos cada vez maiores (antolo­gias, feiras literárias, críti­cos aten­to ao que acon­tece no cenário nacional, etc.), ain­da não sabe­mos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.

  • A riqueza do mundo, de Lya Luft

    A riqueza do mundo, de Lya Luft

    Uma voz impo­nente parece segu­rar com as duas mãos a figu­ra de traços ger­mâni­cos e tom brasileiro, de olhar firme e colar de con­tas grossas no pescoço. Era a primeira vez que eu par­a­va para vê-la, ali, do out­ro lado da tela do com­puta­dor, falan­do sobre os livros recém-pub­li­ca­dos, sobre os que já pas­saram e sobre a vida que dá ares de quem está ape­nas começan­do. Esse foi o con­ta­to ini­cial que tive com a escrito­ra e tradu­to­ra Lya Luft. Aos 74 anos, a san­tacruzense descen­dente de alemães arreba­ta dezenas com a ven­da de livros, nas sessões de autó­grafos e palestras em que é conferencista.

    Con­heci o tra­bal­ho de Lya em 2004 e, ao con­trário do que se pode pen­sar, não foi por meio do seu suces­so edi­to­r­i­al Per­das & Gan­hos (2003), lançan­do no ano ante­ri­or. À época, por questões de tra­bal­ho, eu acom­pan­ha­va o con­teú­do da revista Veja e, vez ou out­ra, sem­pre batia os olhos na col­u­na Pon­to de vista, assi­na­da por Lya. Coin­cidên­cia ou não, os tex­tos que li na col­u­na abor­davam temas cotid­i­anos e sem­pre fazi­am refer­ên­cia aos rela­ciona­men­tos famil­iares, às difi­cul­dades e desafios, aos sabores e ale­grias. Opiniões que soavam como fortes con­sel­hos, na verdade.

    Então, oito anos depois dos primeiros con­tatos, rece­bi A riqueza do mun­do (edi­to­ra Record, 2011, pág. 272), uma coletânea de ensaios sobre a existên­cia humana com tudo o que ela tem de mel­hor e pior: amor, tris­teza, revol­ta, indig­nação, esper­ança, con­tes­tação e per­cepção. Aci­ma de tudo, a obra for­ma um con­jun­to de reflexões da auto­ra sobre os mais vari­a­dos temas, com aque­le aro­ma de “eu escre­vo por um mun­do mel­hor”. Não duvi­do, cer­ta­mente. Os ensaios de Lya são deci­di­dos, ela não tem medo de se posi­cionar, de apon­tar, de emi­tir juí­zos de val­or. Em uma sociedade em que a mais recente ban­deira é faz­er apolo­gia ao “ficar em cima do muro”, Lya Luft assume e assi­na suas ideias, mes­mo que isso tra­ga à tona opiniões que fler­tam com um con­ser­vadoris­mo embrul­ha­do em papel celofane. 

    Lya Luft
    Divi­di­do em três partes (Da Sociedade, Dos Afe­tos e Das Coisas Várias), o livro de Lya vai mape­an­do pon­tos que se mis­tu­ram, abor­dan­do des­de o sen­ti­men­to de insat­is­fação com o sis­tema vigente no mun­do, rodea­do de cor­rupções, bar­bárie, vio­lên­cia e morte, até situ­ações e vivên­cias que cir­cun­dam as relações famil­iares, chegan­do à gan­gor­ra do encan­to ver­sus des­en­can­to com as infini­tas pos­si­bil­i­dades tec­nológ­i­cas e soci­ais con­tem­porâneas. Na maio­r­ia das vezes, fica evi­dente que estou escu­tan­do alguém com sabedo­ria sufi­ciente para falar sobre um mun­do per­di­do, onde poucos se encon­tram. Em toda a obra, sen­ti um mis­to de desabafos e ser­mões – por mais que, no próprio tex­to, a auto­ra negue o ter­mo ‘con­sel­hos’, atribuí­do por quem assim o iden­ti­fi­ca na sua obra.

    Ape­sar de temas inter­es­santes, me sen­ti pouco à von­tade com a quan­ti­dade de exem­p­los para uma mes­ma ideia, agru­pan­do uma lista exten­sa de ele­men­tos sep­a­ra­dos por vír­gu­las em uma úni­ca frase. Essa táti­ca se repete em todos os três capí­tu­los, retoman­do tam­bém, de for­ma cansati­va, pen­sa­men­tos que já foram ditos. Esse tipo de opção lança uma ânco­ra às palavras, deixan­do o tex­to exaustivo. 

    Vale men­cionar os três poe­mas que abrem cada capí­tu­lo, com destaque para o boni­to “Deuses e Home­ns”, com belas ima­gens for­madas por palavras e a con­junção da mitolo­gia que nos acom­pan­ha des­de a nos­sa ances­tral­i­dade, fazen­do jus à nar­ra­ti­va de origem, pro­pos­ta por mitól­o­gos como Mircea Eli­ade e Joseph Camp­bell.

    Lya Luft tem muito a diz­er. Ela não está por aí como mera auto­ra de best sell­er ou mais um tra­bal­ho para o seg­men­to da autoa­ju­da. Não, não é isso. Nesse primeiro con­ta­to, notei uma auto­ra com pen­sa­men­tos, com luz própria, com opiniões — mes­mo que algu­mas delas não façam parte do meu rol de ideias, como a predileção por Mon­teiro Loba­to. Mais um detal­he que faz parte das min­has obser­vações é o ato de escr­ev­er sobre as mudanças do mun­do de den­tro do gabi­nete. Mas não a con­de­no. Boa parte dos int­elec­tu­ais brasileiros, quiçá do mun­do, está sen­ta­da con­for­t­avel­mente em suas escrivan­in­has de mog­no, refletindo sobre as injustiças e soltan­do os pen­sa­men­tos no ar para que, talvez, out­ros os exe­cutem. Pode ser que esse não seja o caso, não sei. Mas vale à pena rev­er o con­ceito de que ape­nas com ideias se move o mundo. 

  • Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes na lit­er­atu­ra fei­ta pelo escritor gaú­cho Antônio Xerx­e­nesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus arti­gos e tex­tos pela web — é o uso das suas refer­ên­cias, sejam elas literárias, acadêmi­cas ou inclu­sive de games. Li Areia nos Dentes (Roc­co, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de con­tos A Pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas (Roc­co, 2011), o que me aju­dou a obser­var mais de per­to as tendên­cias metafic­cionais e de met­al­it­er­atu­ra na obra de Xerx­e­nesky.

    O enre­do primário de Areia nos Dentes é o mais improváv­el para um man­u­al de boas maneiras de lit­er­atu­ra brasileira: uma dis­pu­ta de famílias ambi­en­ta­da num vel­ho oeste envol­ven­do zumbis e ques­tion­a­men­tos exis­ten­ci­ais. Mas pode ir esque­cen­do que o livro pos­sa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os lon­gas reflex­ivos de Ser­gio Leone que é inclu­sive o primeiro nome que aparece na lista de agradecime­tos finais.

    ¨Car­l­i­tos, qual é o mel­hor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
    ¨O que isso tem a ver?¨
    ¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme pre­firo. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, com­preende? Porque vou pas­sar isso para o meu rela­to. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e ago­ra cito o mestre ital­iano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
    (p.34)

    Os Mar­lowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspi­ta Mavrak — a palavra Mav­er­ick em um tab­uleiro empoeira­do. O lugar não tem uma local­iza­ção cer­ta mas se entende que está num deser­to mas­sacrante e arenoso onde a rival­i­dade entre famílias, e o calor ator­doante, são os maiores incô­mo­d­os na vida dos habi­tantes. Mas quem nos colo­ca nesse cenário não é um sim­ples nar­rador oni­sciente e sim o próprio homem que está escreven­do a história dos seus antepassados.

    O fato do nar­rador ser o próprio escritor — cau­san­do uma sen­sação de reação em cadeia de autores/narradores — per­mite que o tex­to ten­ha suas próprias mar­cas estilís­ti­cas como letras que travam no com­puta­dor, ono­matopéias que surgem na cabeça do escritor e a liber­dade que ele tem de nar­rar a história em vários for­matos. Há o uso de vários recur­sos des­de um capí­tu­lo em for­ma­to de roteiro, uma perseguição nar­ra­da em duas col­u­nas e car­tas de con­fis­são de personagens.

    Ago­ra ten­ho tan­tas out­ras dúvi­das. E se eu estiv­er repro­duzin­do min­ha relação com min­ha ex-mul­her nes­sa lin­has? E se não for só pre­cisão históri­ca o que eu bus­co ao car­ac­teri­zar as mul­heres dessa for­ma? Se for cul­pa da min­ha men­tal­i­dade, quase tão arcaica quan­to a daque­les pis­toleiros? Ninguém dev­e­ria escr­ev­er nada nun­ca, não há glam­our ou praz­er, só tor­men­to. (p.66)

    Ao pas­so que Areia nos Dentes tra­ta de um homem que ten­ta cri­ar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de cer­ta for­ma, per­pet­u­ar os momen­tos numa for­ma de preencher as lacu­nas, ain­da con­segue se rela­cionar com per­son­agens de out­ras ficções, dan­do voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Mar­lowe e Ramirez fazem refer­ên­cias níti­das ao próprio Xerx­e­nesky que nun­ca fez questão de escon­der seu apreço pelo escritor Thomas Pyn­chon, por exemplo.

    A aprox­i­mação com o escritor real se define mais ain­da quan­do o leitor, con­sciente de alguns gos­tos e escol­has do próprio Anto­nio Xerx­e­nesky, aca­ba por recon­hecê-lo nas con­struções do enre­do. E jus­ta­mente nesse aspec­to surge uma sen­sação de incô­mo­do, jus­ta­mente por ter emen­da­do a leitu­ra com A pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas, fican­do a sen­sação que o autor é dom­i­na­do pelo seu mun­do de leituras e cotid­i­ano, se obri­g­an­do a usá-los em sua ficção. Mas esse incô­mo­do, se pen­sa­do sob o enre­do de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaça­do por suas refer­ên­cias, cotid­i­ano e exper­iên­cias — quase uma ideia Ben­jamini­ana de nar­ra­ti­va — a pon­to de colocá-las no papel, assim como acon­tece com o per­son­agem principal.

    Areia nos Dentes é a pri­ori um romance con­tem­porâ­neo prin­ci­pal­mente pelo envolvi­men­to mas­si­vo com refer­ên­cias, mas tam­bém, pelo trata­men­to metafic­cional dos per­son­agens. E sem anális­es mais pro­fun­das, o romance de estreia de Antônio Xerx­e­nesky é um pas­tiche, mas aci­ma de tudo, uma peque­na amostra da eufo­ria e inter­esse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, alta­mente recomen­da­do para fãs de todos os ele­men­tos citados.

    *Recomen­do bas­tante os tex­tos de Antônio Xerx­e­nesky no blog do Insti­tu­to Mor­eira Salles.

    ** Você pode adquirir esse livro por um preço bem bacana na Livraria de Babel.

  • O Corvo, de Valêncio Xavier

    O Corvo, de Valêncio Xavier

    Valên­cio Xavier, pelo quadrin­ista Joe Bennet

    Quan­do se fala de Valên­cio Xavier é impos­sív­el não asso­ciar a figu­ra de exper­i­men­tal­is­mo em cin­e­ma e lit­er­atu­ra. O escritor/diretor/roteirista, e tan­tas out­ras denom­i­nações, mar­cou a cena con­tem­porânea brasileira se tor­nan­do um van­guardista no assun­to de tratar o cin­e­ma de for­ma mais literária e de traz­er a força da imagem para den­tro do tex­to. Pro­va dis­so é o clás­si­co livro Mez da Grippe, de 1981, em que para tratar da gripe espan­ho­la que assolou Curiti­ba, em 1918, o escritor cria sua ficção usan­do reporta­gens e fotos da época.

    No cin­e­ma, Valên­cio Xavier não fez difer­ente, suas pro­duções oscil­am entre o exper­i­men­tal­is­mo e o uso de ima­gens doc­u­men­tadas, ori­un­das de algu­ma situ­ação cotid­i­ana. Em O Cor­vo, Valên­cio vai além de uma livre adap­tação do clás­si­co poe­ma de Edgar Allan Poe, fazen­do refer­ên­cias total­mente desconec­tadas do tom som­brio e ater­ror­izante do clás­si­co. Nesse cur­ta de ape­nas 12 min­u­tos, ele trans­porta o liris­mo pelas ruas de uma Curiti­ba pre­ta e bran­ca onde o nev­er­more sai da boca de transe­untes que sim­bolizam o cor­vo mensageiro.

    Quem nar­ra O Cor­vo é a bela voz do ator Paulo Autran que con­figu­ra um tom por vezes irôni­co à tradução de Rey­nal­do Jardim. As ilus­trações que apare­cem no cur­ta são do Francês Gus­ta­vo Doré que se mis­tu­ram às fil­ma­gens de Valên­cio Xavier. Com certeza uma das ver­sões — ou seria mel­hor, inter­pre­tação? — mais inter­es­santes do poe­ma. Vale ressaltar que o cur­ta ficou por décadas em VHS até que o dono de um sebo curitibano con­seguiu, com a autor­iza­ção da família Xavier, colocá-lo online. Uma preciosidade.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=VkGsBbvgofQ

  • Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Ler poe­sia é como ler prosa? Ler poe­sia como se lê prosa é desler? Para ler poe­sia ler e rel­er ao relen­to, desli­gan­do o relé do pen­sa­men­to. Desli­gar a face, reli­gar o ver­so. No epi­cen­tro da poe­sia a palavra, a músi­ca, a imagem movem ter­re­mo­tos de imag­i­nação. Para uma sociedade cen­tra­da na fun­cional­i­dade da palavra, que não admite ambigu­idade sub­je­ti­va, ou a comu­ni­cação por exces­so, poe­sia é um desvio que excede a palavra em rit­mo e imagem.

    Fiquei pen­san­do isto quan­do li o Poe­sia é Não (Ilu­min­uras, 2011), de Estrela Lemins­ki. Primeiro li os poe­mas. Depois, a auto­bi­ografia da poeta, nas orel­has do livro. E fol­he­an­do, vi aqui e ali pági­nas com­postas em nuances de cores e tipos difer­entes. Depois li a resen­ha de Mar­cos Pasche no Jor­nal Ras­cun­ho. “Fal­tou Poe­sia”, avi­sou o críti­co, logo no títu­lo. E escreveu um arti­go ante­ci­pan­do sua defe­sa por não criticar a poe­sia e sim a per­son­al­i­dade de Estrela, fil­ha de um casal de poet­as céle­bres. O modo que o críti­co escol­heu é um modo de desler poe­sia, con­cen­tran­do-se na per­son­al­i­dade do poeta e não em sua poe­sia, nem sem­pre con­ti­da ape­nas nos versos.

    Estrela joga com o títu­lo Poe­sia é Não, indi­can­do o que a poe­sia não é. Catarse, obje­to útil, notí­cia, mer­cado­ria, ras­cun­ho de gave­ta, protesto, influên­cia. A neg­a­tivi­dade se lê nos escritos, nas pági­nas grá­fi­cas. Ao deixar de lado o que está escrito e pas­sar a ler o códi­go visu­al, a leitu­ra é outra.Papel de embrul­ho, doc­u­men­to ofi­cial, jor­nal, livro, operária, con­ta e pagado­ra de con­ta, gave­ta, pan­fle­to, ver­bete de dicionário, lit­er­atu­ra, sig­no, as pági­nas grá­fi­cas apon­tam para o que a poe­sia não é. O que ela é , então ?

    Poe­sia é ver o ver­so, o aves­so do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue ado­les­cente”, pode ser que a poe­sia diga, como Estrela, a ale­gria pelo Não, ale­gria de quem cresce e con­hece os praz­eres de viv­er, praz­er da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de ado­lescer, é amadure­cer ado­lescen­do, envel­he­cer ado­lescen­do, mor­rer ado­lescen­do. Ser poeta é não desi­s­tir da infân­cia para se pre­ocu­par em como escr­ev­er, escr­ev­er bem, escr­ev­er para um públi­co, escr­ev­er sagran­do o já sagra­do. Escr­ev­er poe­sia é desescr­ev­er, é não saber, não acer­tar o rit­mo, ler livros de poe­sia e esque­cer, saber lín­guas e con­fun­di-las com a lín­gua da boca. Sem esquec­i­men­to, ignorân­cia, erro, a poe­sia é pobre, por que uma vida per­fei­ta é pobre, ou impos­sív­el. Quer­er que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mun­do deve nascer velho.

    Juven­tude nem sem­pre é vital­i­dade. Vel­hice não é sinôn­i­mo de decrepi­tude. O domínio sobre a lin­guagem, que os críti­cos esper­am dos bons (?) escritores não é sinal de maturi­dade. É sinal de quem tem medo de cri­ar, de quem se pro­tege por trás da ter­mi­nolo­gia letra­da. O jargão int­elec­tu­al não inter­es­sa para a maio­r­ia dos mor­tais. A maio­r­ia silen­ciosa, ao con­trário do que pen­sam os críti­cos, ama a poe­sia — ama ouvir canções pop­u­lares, por exem­p­lo. A maio­r­ia silen­ciosa ama escr­ev­er ver­sos, na ado­lescên­cia cronológ­i­ca ou tar­dia. E a maio­r­ia silen­ciosa se enver­gonha de amar a poe­sia, quan­do o críti­co se lev­an­ta em nome do cânone literário e pre­ga que é pre­ciso ter ver­gonha por amar poe­sia e escr­ev­er bobagens que qual­quer um escreve quan­do o coração dispara.

    Atirem o poeta ao mar”, diz um dos ver­sos de Estrela, evo­can­do o pai, que escreveu um livro juve­nil (Guer­ra den­tro da gente, Sci­p­i­one) no qual um poeta, con­sid­er­a­do o pal­haço da trip­u­lação de uma embar­cação é ati­ra­do ao mar. A úni­ca solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qual­quer sociedade. Que faz­er com os que amam seus encan­ta­men­tos? Não se pode ati­rar os amadores de poe­sia ao mar, não sobraria mar para todos. Prefer­ív­el diz­er ao críti­co não leia seus poe­mas e con­dene a per­son­al­i­dade do poeta. Assim ape­nas um será afo­ga­do por suas más palavras.

    Mas o poeta é trezen­tos ou trezen­tos mil, e seus ver­sos se des­do­bram entre as palavras de ordem. Ape­sar das advertên­cias do críti­co, os leitores atrav­es­sam o tex­to e seus pre­tex­tos e saem atrás de mira­gens. Para os que amam se diver­tir, a poe­sia de Estrela é, sim. 

    *Marília Kub­o­ta, além de colab­o­rado­ra do inter­ro­gAção, escreve no seu blog Micrópo­lis.

  • Café Literário: As múltiplas faces da narrativa

    Café Literário: As múltiplas faces da narrativa

    Deixe-me ver quais de mim vou usar hoje… (Elvi­ra Vigna)

    A nar­ra­ti­va é sim­ples­mente um dos meios de um escritor colo­car no papel todo o vas­to mun­do em que os seus eus vivem. E segun­do eles próprios, o ato de escr­ev­er é lidar com obsessões, deslo­ca­men­to e a neces­si­dade extrema de expressão. Essas afir­mações, feitas pelos escritores Elvi­ra Vigna, Max Mall­man e Menal­ton Braff, na mesa As múlti­plas faces da nar­ra­ti­va, na Bien­al do Livro Rio 2011, per­me­ar­am as opiniões de três fic­cionistas bem difer­entes entre si.

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes é que com a respos­ta de cada escritor, alguns assun­tos se desen­volver­am com várias fac­etas. Para, o tam­bém roteirista, Max Mall­mann, escr­ev­er é deslo­car-se para muitos lugares e se colo­car naque­las situ­ações. Já Menal­ton encara a escri­ta como uma expressão con­tínua do que sente e vê, sua própria ver­bor­ra­gia. E Elvi­ra Vigna luta com suas obsessões quan­do escreve, inclu­sive, aque­las não tão pos­síveis no real como a neces­si­dade de sem­pre matar alguém em suas ficções.

    Obser­van­do as três respostas dadas, se percebe que lidar com os per­son­agens diari­a­mente é quase uma pre­mis­sa para um escritor. Mes­mo que na hora da escri­ta todos eles mudem de nome e posição, per­manecem refletindo um lugar do real, talvez um dos pon­tos que per­mitem a cri­ação de laços entre leitor e a palavra den­tro da ficção. Elvi­ra Vigna admite que não inven­ta abso­lu­ta­mente nada nos seus livros pois não tem imag­i­nação para cri­ar, afir­man­do que todas aque­las pes­soas e vivên­cias estão aqui fora. Afi­nal, nada mais fic­cional que a vida real.

    A per­gun­ta, até aparente­mente clichê, de onde ficam os lim­ites entre escritor e ficção é respon­di­da de ime­di­a­to: O autor é aque­le que escol­he qual ou quais dele próprio irão parar em deter­mi­na­da obra, como se fos­sem peças de ves­tuário para cada situ­ação. Cabe ao escritor a liber­dade de cri­ar, recri­ar, imag­i­nar e enfim, enx­er­gar a vas­ta real­i­dade fornece­do­ra de ficção.

    Elvi­ra Vigna diz que há muito glam­our em torno da roti­na do escritor. Deixa claro que odeia roti­na e por isso mes­mo não escreve todos os dias, mes­mo que con­vi­va diari­a­mente com os per­son­agens das suas ficções. Já Max, que é roteirista de tele­visão, e Menal­ton dizem que sen­tem a neces­si­dade de escr­ev­er todos os dias, mas tam­bém acred­i­tam que cada escritor tem seu próprio tem­po. Alguns escritores garan­tem que pos­suem sua própria roti­na como o amer­i­cano Philip Roth e Luiz Ruffa­to, que já declar­ou isso em entre­vista para o inter­ro­gAção.

    Mes­mo que as roti­nas sejam dis­tin­tas, em um pon­to os três escritores con­cor­dam: escr­ev­er é trans­gredir. E para se ir além não há muitas regras, inclu­sive, Elvi­ra faz menção a um tex­to do escritor norte-amer­i­cano Kurt Von­negut que ele fala sobre a importân­cia de se escr­ev­er e de como ofic­i­nas de pro­dução literária não são milagrosas.

    Há um cer­to glam­our míti­co em saber as for­mas que um autor dá vida aos seus livros e per­son­agens, mas o mais bacana mes­mo é saber que cada um tem os seus méto­dos tão par­tic­u­lares entre si. A nar­ra­ti­va é uma for­ma tão par­tic­u­lar que sem dúvi­da nen­hu­ma tem várias faces, e claro, refleti­das, de uma for­ma ou out­ra, pela face de seus autores.

    Ouça a palestra com­ple­ta: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o down­load)

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  • Crítica: Natimorto

    Crítica: Natimorto

    Lourenço Mutarel­li é um dos escritores mais inter­es­santes e híbri­dos da lit­er­atu­ra atu­al e Nati­mor­to (Brasil, 2011), dirigi­do por Paulo Mach­line, é a adap­tação do segun­do livro deste escritor con­heci­do pela den­si­dade e iro­nia de suas obras.

    Um homem e uma mul­her numa pro­pos­ta de tentarem viv­er suas vidas, lit­eral­mente, num quar­to de hotel. Os per­son­agens se resumem no homem (Lourenço Mutarel­li), uma espé­cie de pro­du­tor musi­cal e a mul­her (Simone Spo­ladore), uma can­to­ra de ópera. Enquan­to o cotid­i­ano da relação vai se con­stru­in­do, eles pas­sam a dis­cu­tir, entre cig­a­r­ros e cafés, seus futur­os através da asso­ci­ação de embal­a­gens de cig­a­r­ro e car­tas do Tarô.

    O enre­do de Nati­mor­to se foca neste con­vívio claus­trofóbi­co, exem­pli­f­i­can­do de for­ma muito inter­es­sante o sufo­ca­men­to das relações. Os dois per­son­agens podem sair o momen­to que quis­erem da situ­ação pro­pos­ta, mas não há a ini­cia­ti­va. Ele por não acred­i­tar na vida fora do quar­to e sen­tir que sua vida se resume em lamen­to, café e cig­a­r­ros e ela por ter a neces­si­dade de alguém que ali­mente a sua per­spec­ti­va de existên­cia, ou seja, uma relação extrema­mente simbiótica.

    Antes de ser con­heci­do pela sur­preen­dente obra e bem suce­di­da adap­tação de O cheiro do Ralo, Lourenço Mutarel­li era famoso pelos seus quadrin­hos obscuros e reple­tos de um humor negro incon­fundív­el. Além dis­so, o paulista tam­bém é con­heci­do na lit­er­atu­ra con­tem­porânea pelas idioss­in­cra­cias e por con­stru­ir diál­o­gos inteligentes pau­ta­dos por movi­men­tos de câmeras-nar­ra­ti­vas que vem e vão durante as cenas literárias.

    O fato de Mutarel­li usar recur­sos de roteiro para escr­ev­er seus romances não sig­nifi­ca que as adap­tações de seus tra­bal­hos, para o cin­e­ma, devam sem­pre ser trans­postas de for­ma lit­er­al. Há detal­h­es na nar­ra­ti­va literária que surtem efeito aos olhos do leitor mas, quan­do pas­sadas para uma nar­ra­ti­va de imagem, elas aparentam serem mais lon­gas ou fazem pouco sen­ti­do num deter­mi­na­do plano. Na adap­tação de Nati­mor­to, ocor­reu isso algu­mas vezes, como, por exem­p­lo, nos lon­gos diál­o­gos reple­tos de reflexões, numa espé­cie de bate e vol­ta con­si­go mes­mo, do per­son­agem sociofóbi­co inter­pre­ta­do pelo próprio Mutarel­li. Os lon­gos diál­o­gos no lon­ga se tor­nam, em algum momen­tos, um pouco cansativos por ocu­parem difer­entes tem­pos do que ocorre na nar­ra­ti­va literária. No livro, os dis­cur­sos se desen­volvem em muitas pági­nas, enquan­to no filme eles são suprim­i­dos a uma cena do roteiro.

    Por out­ro lado, out­ras situ­ações se encaixaram per­feita­mente, como em muitos momen­tos onde os planos seguem à risca as descrições do livro em que o nar­rador apon­ta a câmera para a boca de deter­mi­na­do per­son­agem, como se o leitor — ago­ra espec­ta­dor — final­mente pudesse enten­der deter­mi­na­da situ­ação descri­ta no livro.

    Em Nati­mor­to há pou­cas cenas exter­nas, o que aca­ba fazen­do a atenção se voltar para as inter­pre­tações, como a do próprio escritor que se mostra inse­guro no íni­cio do filme mas que, com o pas­sar do tem­po, se tor­na uma pre­mis­sa psi­cológ­i­ca do per­son­agem. A aparên­cia miú­da e ner­vosa de Mutarel­li con­funde, de for­ma muito inter­es­sante, o cri­ador e a criatu­ra. Já Spo­ladore faz um papel que acred­i­to com­bi­nar com ela, pos­suin­do uma voz forte e um olhar irôni­co cabív­el à personagem.

    Nati­mor­to é uma exper­iên­cia inter­es­sante para o cin­e­ma nacional que vem apo­s­tan­do em tra­bal­ho menos hiper­re­al­is­tas e con­fig­u­ran­do asso­ci­ações com a lit­er­atu­ra fei­ta no pre­sente. Mes­mo para os desacos­tu­ma­dos a um cin­e­ma com mais diál­o­gos e exper­i­men­tal, o filme vale o ingresso.

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=PfoHx-kHUhQ

  • Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Livro: A Via Crucis do Corpo — Clarice Lispector

    Quan­do Álvaro Pacheco encomen­dou à Clarice Lispec­tor três histórias talvez nem imag­i­nasse o peri­go que cor­ria em faz­er um pedi­do desse a uma escrito­ra que sem­pre fora con­heci­da pelo seu impul­so — e pro­fun­di­dade — na nar­ra­ti­va. Mas por out­ro lado, o pedi­do de Pacheco deu origem à reunião de con­tos de A Via Cru­cis do Cor­po (Edi­to­ra Roc­co, 1998), um dos últi­mos tra­bal­hos da escrito­ra que fazia con­tos como se relatasse cenas de uma voyeur sagaz, que entende o ínti­mo da natureza humana.

    Clarice deixa claro já no pre­fá­cio de A Via Cru­cis do Cor­po que talvez todas aque­las histórias ela mes­ma ten­ha vivi­do ou que, ain­da, sejam meras semel­hanças com a real­i­dade. Assim era a lit­er­atu­ra caóti­ca de Lispec­tor, um oscilar de real e fan­ta­sioso, sem soar ina­cred­itáv­el. O cor­po é o grande per­son­agem do livro, há uma lin­ha tênue que liga uma a uma das nar­ra­ti­vas e o cor­po é vis­to de um pris­ma, além de regras e moral­is­mos. A cada nar­ra­ti­va o leitor é apre­sen­ta­do a uma noção de cor­po difer­ente, a descober­ta desse instru­men­to que car­reg­amos é vivi­da das mais difer­entes maneiras, des­de da descober­ta da mas­tur­bação por uma mul­her na ter­ceira idade até a lib­er­tação — na min­ha visão, poéti­ca — das amar­ras do moral­is­mo de uma mul­her religiosa.

    A auto­ra não poupa per­sonas em A Via Cru­cis do Cor­po, expõe out­ros e inclu­sive a si mes­ma. Em alguns dos con­tos temos a impressão que é a própria auto­ra está falan­do, nos rev­e­lando alguns seg­re­dos seus. Acred­i­to isso ser um dos trun­fos mais grandiosos na escri­ta dela, essa per­cepção do ser, do com­preen­der e dialog­ar os devaneios humanos como se ela fos­se a maior con­hece­do­ra da causa. 

    Difer­ente do que fez, por exem­p­lo, em A Paixão segun­do G.H, em que nar­ra uma descober­ta em primeira pes­soa, cheia de nuances psi­cológi­cos, em A Via Cru­cis do Cor­po os per­son­agens são sem­pre con­tex­tu­al­iza­dos crian­do laços com o leitor. Todos con­hece­mos pes­soas que lem­brem algum per­son­agem de Clarice Lispec­tor, as vezes somos nós mes­mos recon­heci­dos no espel­ho que a escrito­ra con­seguia cri­ar com sua escrita.

    A Via Cru­cis do Cor­po é uma ousa­dia pen­den­do para o eróti­co sem ser explici­ta. Éroti­co pela pureza em que o cor­po é per­son­agem de cada breve história que resul­ta num praz­er próprio. O cor­po é o instru­men­to e os per­son­agens nomea­d­os são somente por­ta­dores dele, se dan­do con­ta de sua existên­cia essen­cial. Um livro para rel­er, se encon­trar, se enten­der. Clarice é sem­pre auto-conhecimento.

  • Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Fer­nan­do Bonas­si aparente­mente é mais con­heci­do por coau­to­ria em roteiros de filmes nacionais de suces­so e minis­séries de TV aber­ta. Mas é na lit­er­atu­ra que ele se apre­sen­ta uti­lizan­do um esti­lo críti­co, com dos­es dobradas de sar­cas­mo, a respeito da sociedade brasileira e suas excen­t­ri­ci­dades. Em O meni­no que se tran­cou na geladeira (Edi­to­ra Obje­ti­va, 2004), esse paulista traz um enre­do que de longe nos lem­bra muitos dos fatos ocor­ri­dos no país nos últi­mos 50 anos, mas de per­to, é muito mais min­i­mal­ista e acer­ta em cheio, com uma críti­ca fer­ren­ha aos fatos cor­riqueiros da nos­sa história políti­ca, refleti­da na sociedade.

    Primeira­mente deve-se enten­der que O meni­no que se tran­cou na geladeira é um romance-reportagem, o nar­rador deixa claro que cada lin­ha é fru­to de uma visão jor­nalís­ti­ca sobre um habi­tante sem iden­ti­dade de um país irrecon­hecív­el. O meni­no, inti­t­u­la­do assim porque sim­ples­mente não nos inter­es­sa a iden­ti­dade dele, nasceu numa sociedade já cor­romp­i­da e em uma família que pouco lig­a­va para a existên­cia dele. Tudo dera erra­do, sen­tia-se deslo­ca­do por não ser belo e a úni­ca meni­na que ele se apaixo­nou, o despreza. O que lhe res­ta, de fato, é faz­er parte desse todo, de uma sociedade onde a vio­lên­cia é uma saí­da e o esti­lo de vida é a apa­tia, afi­nal, havia algo mais a se faz­er? Para se for­t­ale­cer, após suces­si­vas ten­ta­ti­vas de viv­er do seu modo e com as decepções que as pes­soas o causam, ele decide viv­er den­tro do seu próprio mun­do, den­tro de uma geladeira. E é no inte­ri­or desse eletrodomés­ti­co, de sen­ti­do metafóri­co, que o meni­no vai apren­den­do a lidar com as pes­soas e o sis­tema cri­a­do por elas. Sair da geladeira é um peri­go e viv­er den­tro dela é se entor­pecer de mentiras.

    Uma das car­ac­terís­ti­cas mais inter­es­santes de O meni­no que se tran­cou na geladeira é uso das téc­ni­cas nar­ra­ti­vas. O tex­to é mar­ca­do pela apre­sen­tação de um mun­do pecu­liar cheio de dis­cur­sos entrecor­ta­dos e veloci­dade que em muitos momen­tos parece nos tirar o ar. Esse tem­po de nar­ra­ti­va cri­a­do por Bonas­si não soa como os lon­gos pará­grafos de Sara­m­a­go, ou ain­da, de Gar­cia Mar­quez, ele tem a função de cri­ar um sen­ti­do de caos ao leitor. São tan­tos sar­cas­mos, joga­dos em pou­cas palavras, que a exper­iên­cia de leitu­ra é mar­ca­da pelo ator­doa­men­to dos fatos. Sabe­mos muito bem pelo que o meni­no pas­sa, pois é uma hipér­bole dramáti­ca do nos­so cotidiano.

    Out­ro pon­to alto do livro são as denom­i­nações que o nar­rador, proposi­tal­mente um jor­nal­ista que neces­si­ta de dados verossim­il­hantes, nos apre­sen­ta a sociedade desse país som­brio onde o vive o meni­no. Por exem­p­lo, a sociedade ali é divi­di­da em os ricos, os cidadãos da faixa média e os fer­ra­dos de vez, reforçan­do o uso da lin­guagem colo­quial como um dos pon­tos máx­i­mos de lig­ação com o leitor.

    Em O meni­no que se tran­cou na geladeira impera a inter­tex­tu­al­i­dade da lit­er­atu­ra atu­al, que opera numa hiper­a­tivi­dade entre todas as artes, partin­do inclu­sive do jor­nal­is­mo até o teatro. É uma ficção cal­ca­da no choque do real, pois mes­mo que a primeira sen­sação de leitu­ra seja de um absur­do sur­re­al­ista, há uma real­i­dade latente se man­i­fe­s­tando através dis­so e é jus­ta­mente esse fator que prende a leitu­ra nos tex­tos de Bonas­si: a real­i­dade nua e crua trata­da como fato cor­riqueiro e em tom de comé­dia. Rir da real­i­dade para deixá-la menos ten­sa e pesa­da, um esti­lo que o autor vem prat­i­can­do muito bem, inclu­sive em roteiros como o pre­mi­a­do Carandiru, ou ain­da, Os Mata­dores, de Beto Brant.

    Se você ficou inter­es­sa­do, uma parte do livro O meni­no que se tran­cou na geladeira está disponív­el para leitu­ra gra­tui­ta no Google Docs. Para ler, clique aqui.

  • Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Eulálio Mon­tene­gro D‘Assumpção (sem pro­nun­ciar o “p” mudo para não causar deboche) é o pro­tag­o­nista do romance de Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do, pub­li­ca­do pela Com­pan­hia das Letras em 2009. Este sen­hor com pouco mais de 100 anos, encon­tra-se em um leito de hos­pi­tal, de onde nar­ra suas memórias e pen­sa­men­tos, nem sem­pre cronológi­cos, seja porque sua memória já o con­funde ou por estar sob efeitos dos medica­men­tos, por isso muitas vezes em Leite Der­ra­ma­do aparece: “Não sei se já lhes con­tei algu­ma vez como con­heci Matilde na mis­sa do meu pai…”; as pes­soas para quem ele con­ta os fatos são as enfer­meiras, sua fil­ha ou ape­nas divagações.

    Den­tro desse emaran­hado de pen­sa­men­tos e lem­branças nos damos con­ta de aspec­tos da história do Brasil, dos acon­tec­i­men­tos na sociedade do Rio de Janeiro do sécu­lo pas­sa­do, falar em francês na pre­sença dos empre­ga­dos, por exem­p­lo, e até mes­mo feitos dos famil­iares desse ancião na Europa. A par­tir do “que­bra-cabeça históri­co” apre­sen­ta­do em Leite Der­ra­ma­do, podemos encon­trar refer­ên­cia à vin­da da família real por­tugue­sa, com a qual veio o seu trisavô, à belle épóque, à Segun­da Guer­ra Mundi­al, à que­bra da bol­sa de Nova Iorque e à ditadu­ra mil­i­tar. Todos ess­es fatos nos são nar­ra­dos para lem­brar da importân­cia do seu sobrenome per­ante a sociedade que aos poucos, com a vin­da dos netos, bis­ne­tos e tatarane­tos vai tor­nan­do-se cada vez menos impor­tante, pois antiga­mente era um sobrenome que lhes abri­am por­tas e ago­ra no pre­sente não influ­en­cia em mais nada.

    Chico Buar­que, através do apan­hado de infor­mações, faz uso muito refi­na­do da lin­guagem, usan­do flash-backs não-lin­ear­es, con­fundin­do o leitor e inserindo a temáti­ca do racis­mo com sutileza, como por exem­p­lo a Matilde que é descri­ta como “a mais escur­in­ha das irmãs” ou o seu dese­jo sobre o seu cole­ga fil­ho de escravo.

    Sob meu olhar de leito­ra, Leite Der­ra­ma­do está próx­i­mo ao Budapeste, com histórias e per­son­agens difer­entes, claro, mas com uma cer­ta aprox­i­mação na vida das per­son­agens, ambos estão “per­di­dos”, ou mel­hor, em algum tipo de decadên­cia, e próx­i­mo tam­bém ao Estor­vo, pela descrição das cenas no Rio de Janeiro. Quan­to à for­ma da lin­guagem, cer­ta­mente Chico Buar­que cresceu muito neste, Leite Der­ra­ma­do, pois ele con­segue pren­der o leitor durante toda a nar­ra­ti­va, talvez pela empa­tia que o vel­ho Eulálio nos causa ao con­tar sobre sua ama­da Matilde, mas prin­ci­pal­mente pelo pri­mor da escri­ta, na maio­r­ia das vezes pare­cen­do fluxo de con­sciên­cia, e aí está o pri­mor do romance, Chico Buar­que con­segue faz­er uso da lin­guagem como poucos, pren­den­do e con­fundin­do o leitor na nar­ra­ti­va, mas sem que ele ten­ha se per­di­do ao elab­o­rar a obra.

    Com as car­ac­terís­ti­cas apon­tadas sobre traços históri­cos, out­ro traço que podemos destacar é o traço psi­cológi­co do pro­tag­o­nista, a par­tir das descrições e lem­branças dele, é pos­sív­el anal­is­ar a fal­ta que fez uma estru­tu­ra famil­iar, o quan­to o deixou per­di­do as via­gens com o pai para a Europa e a aprox­i­mação das moças nas sofisti­cadas suítes dos hotéis, con­hecer a neve das mon­tan­has etc. Creio que tam­bém o que mar­ca psi­co­logi­ca­mente o pro­tag­o­nista de Leite Der­ra­ma­do é a presença/ausência de Matilde, pre­sente sem­pre em suas memórias, mas ausente a par­tir de alguns acon­tec­i­men­tos e é quan­do Eulálio relem­bra da ama­da que seus pen­sa­men­tos se con­fun­dem. Vale a pena dedicar alguns momen­tos para con­hecer mel­hor esse vel­ho saudo­sista e se perder entre as palavras der­ra­madas nesse romance do Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do.

    Assista o autor lendo tre­chos da obra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=_tkaXxXXKVI&feature=player_embedded

  • Entrevista: Luiz Ruffato

    Entrevista: Luiz Ruffato

    Luiz Rufatto - Adriana Vichi

    Foto por: Adri­ana Vichi

    ¨A lit­er­atu­ra brasileira está pas­san­do por um de seus mais ricos momen­tos¨ — Luiz Ruffato

    Luiz Ruffa­to é um dos nomes mais notórios na lit­er­atu­ra brasileira da últi­ma déca­da. O mineiro que hoje vive em São Paulo é for­ma­do em Jor­nal­is­mo e já tra­bal­hou até de pipo­queiro, como ele próprio rela­ta e há pelo menos oito anos se ded­i­ca a profis­são de escritor. Gan­hador de dois prêmios pela obra ¨Eles eram muito cav­a­l­os¨, a qual con­sidero um dos grandes tex­tos da lit­er­atu­ra atu­al, uma exper­iên­cia úni­ca de leitu­ra que sug­ere ao leitor a sen­sação de espec­ta­dor de doc­u­men­tário, a nar­ra­ti­va leva o leitor pela mão aos lugares con­heci­dos, e tam­bém descon­heci­dos, da grande e caóti­ca metró­pole de São Paulo, o leitor tor­na-se um sujeito coletivo.

    Seus livros tratam do urbano e dos per­son­agens que com­põem esse cenário e a geografia dos espaços se con­funde com as pes­soas, que em cer­tos momen­tos fun­cionam até como vul­tos de uma cidade. Os livros de Luiz Ruffa­to aprox­i­mam o leitor da sua real­i­dade, os guiam por muitos lugares, crian­do um cenário intimista.

    As obras do escritor foram pub­li­cadas em diver­sos país­es tais como França, Itália, Argenti­na, Por­tu­gal e etc.. Ele diz que tem uma agente literária em Berlim que nego­cia seus dire­itos autorais mun­do afo­ra, o que hoje é muito impor­tante para os escritores pois facili­ta a divul­gação de seus tra­bal­hos fora do país e além de ampli­ar o mer­ca­do edi­to­r­i­al isto ele­va o sta­tus da rica lit­er­atu­ra brasileira contemporânea.

    O autor, em breve entre­vista, fala da aprox­i­mação da lit­er­atu­ra com as artes em ger­al, de como a metró­pole paulista pode ser muitas ao mes­mo tem­po e a respeito do óti­mo momen­to em que a lit­er­atu­ra brasileira pas­sa e , infe­liz­mente, o não acom­pan­hamen­to des­ta pela edu­cação no país.

    Você pode ler a col­u­na de Luiz Ruffa­to no jor­nal de lit­er­atu­ra Ras­cun­ho.

    inter­ro­gAção: Muito se fala que a lit­er­atu­ra, dita con­tem­porânea hoje, bebe de todas as artes: plás­ti­cas, cin­e­ma, músi­ca, fotografia e afins. Você se sente influ­en­ci­a­do por isso? De que for­ma você vê isso na sua literatura?
    LR: Acho que a lit­er­atu­ra sem­pre foi uma arte em diál­o­go com out­ras artes. Se aten­tar­mos, ver­e­mos que a lit­er­atu­ra se insere em todos os grandes movi­men­tos estéti­cos, par­tic­u­lar­mente com as artes plás­ti­cas. É nat­ur­al, por­tan­to, que hoje, quan­do se dis­cute o hib­ridis­mo de gêneros, a inter­re­lação, a inter­pen­e­tração, a lit­er­atu­ra seja parte fun­da­men­tal, não só influ­en­cian­do, mas tam­bém sendo influ­en­ci­a­da pelas out­ras artes e, como novi­dade, pelas out­ras tec­nolo­gias (como a inter­net, por exem­p­lo). Isso, no meu tra­bal­ho, é patente.

    inter­ro­gAção: Ter sido jor­nal­ista colaborou para o seu esti­lo próprio de narrativa?
    LR: Acred­i­to que ter sido jor­nal­ista me ensi­nou como não escr­ev­er ficção… Porque são cam­in­hos muito dis­tantes, às vezes até mes­mo con­trários… O jor­nal­is­mo bus­ca a medi­an­idade, a lit­er­atu­ra a com­plex­i­dade… A lit­er­atu­ra, no meu pon­to de vista, começa onde o jor­nal­is­mo ter­mi­na… O jor­nal­is­mo me deu duas con­tribuições impor­tantes: a dis­ci­plina e a certeza de que não existe inspi­ração, mas trabalho.

    inter­ro­gAção: A pro­dução de ima­gens no romance ¨Eles eram muito cav­a­l­os¨ é inten­sa, a sen­sação de estar sendo guia­do através da nar­ra­ti­va, em cada uma das 69 ¨histórias¨ é inevitáv­el. A vida urbana em SP inspira?
    LR: A vida em São Paulo na ver­dade assus­ta… Tan­to que, curiosa­mente, não são muitos os autores que têm a cidade como per­son­agem ou mes­mo como cenário. No entan­to, para mim, é um desafio saudáv­el ten­tar com­preen­der sua com­plex­i­dade e uma opor­tu­nidade rara para exerci­tar as mais diver­sas lin­gua­gens para dar con­ta de suas car­ac­terís­ti­cas… Porque na ver­dade não existe uma São Paulo, São Paulo são muitas, par­o­dian­do Guimarães Rosa…

    inter­ro­gAção: Como você vê a lit­er­atu­ra atu­al brasileira? O mer­ca­do edi­to­r­i­al é sufi­ciente, dá o suporte necessário?
    LR: A lit­er­atu­ra brasileira está pas­san­do por um de seus mais ricos momen­tos. Nun­ca se pro­duz­iu tan­to, nun­ca se edi­tou tan­to, nun­ca os leitores estiver­am tão aber­tos a con­sumir lit­er­atu­ra nacional. O mer­ca­do edi­to­r­i­al, que vem crescen­do ano a ano, com enorme poten­cial para crescer muito mais ain­da, tem dado opor­tu­nidade para o autor nacional e o gov­er­no vem fazen­do com­pras para as bib­liote­cas. Ago­ra, ain­da fal­ta muito para atin­gir­mos um panora­ma aceitáv­el. Fal­ta, antes de tudo, mel­ho­rar­mos o nív­el da edu­cação e fal­ta nos empen­har­mos para trans­for­mar as bib­liote­cas públi­cas em um organ­is­mo vivo e não os depósi­tos de livros que são hoje…

    inter­ro­gAção: Você está tra­bal­han­do em algum novo pro­je­to ou livro?
    LR: Sim, como escritor profis­sion­al, ten­ho que estar sem­pre tra­bal­han­do. Este ano, com­pus um livro de fras­es do Oswald de Andrade, que faz parte da edição das obras com­ple­tas que estão sendo lançadas pela Edi­to­ra Globo. E no momen­to orga­ni­zo um livro de poeta mineiro, mor­to pre­mat­u­ra­mente, José Hen­rique da Cruz. Além dis­so, estou ter­mi­nan­do o últi­mo vol­ume do pro­je­to Infer­no Pro­visório, que dev­erá se inti­t­u­lar Domin­gos sem Deus, a sair no primeiro semes­tre do ano que vem. De resto, acom­pan­ho a edição de livros meus no exte­ri­or: este ano, estão sendo lança­dos: O mun­do inimi­go (na França); Estive em Lis­boa e lem­brei de você (em Por­tu­gal e Itália), Eles eram muitos cav­a­l­os (Argenti­na) e uma antolo­gia de tex­tos e poe­mas do Fer­nan­do Pes­soa, pub­li­ca­da aqui pela Alfaguara (Quan­do fui Out­ro), que está sain­do em Portugal

    Livros pub­li­ca­dos:

    • Histórias de remor­sos e ran­cores – histórias (1998) ESGOTADO
    • (os sobre­viventes) – histórias (2000) ESGOTADO
      — Menção Espe­cial no Prêmio Casa de las Améri­c­as, de Cuba
    • Eles eram muitos cav­a­l­os – romance (2001; 6ª edição, Rio de Janeiro, Record 2008 — 7ª edição, em bol­so, Rio de Janeiro, Best­bol­so, 2010)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Romance de 2001
      — Prêmio Macha­do de Assis de Nar­ra­ti­va da Fun­dação Bib­liote­ca Nacional
    • As más­caras sin­gu­lares – poe­mas (São Paulo, Boitem­po, 2002)
    • Os ases de Cataguas­es (uma história dos primór­dios do Mod­ernismo) – ensaio (Cataguas­es, Insti­tu­to Fran­cis­ca de Souza Peixo­to, 2002 — 2ª edição, 2010)
    • Mam­ma, son tan­to felice – romance (Rio de Janeiro, Record, 2005)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Ficção de 2005
    • O mun­do inimi­go – romance (Rio de Janeiro, Record, 2005)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Ficção de 2005
      — Final­ista do Prêmio Por­tu­gal Telecom
    • Vista par­cial da noite – romance (Rio de Janeiro, Record, 2006)
      — Prêmio Jabu­ti de Romance
    • De mim já nem se lem­bra – romance (São Paulo, Mod­er­na, 2007)
    • O livro das impos­si­bil­i­dades – romance (Rio de Janeiro, Record, 2008)
      — Final­ista do Prêmio Zaffari-Bourbon
    • Tor­ci­da (Sup­port­ers) — con­tos (Rio de Janeiro, 7Letras/GloboSat, 2010) — edição bilíngue por­tuguês- inglês
    • Estive em Lis­boa e lem­brei de você – romance (São Paulo, Cia das Letras, 2010)