Conheci a literatura de Mia Couto durante o período em que fiz Doutorado em Recife. Juntei-me a um grupo de estudos denominado Literatura Africana: narrativas da descolonização, sob a coordenação de Silvia Cortez Silva, minha professora e orientadora. Entre cafezinhos, bolos, livros e boa conversa, Mia Couto foi sendo assimilado por mim, ou melhor, ele foi comido, cheirado, absorvido pela minha fome de literatura e poesia.
Mia Couto nasceu em Beira, Moçambique, no ano de 1955. Faz parte de uma geração de escritores africanos de língua portuguesa. Herdou da cultura oral africana a habilidade de ouvir e contar narrativas. Na minha edição do livro “Cada homem é uma raça: contos” (editora Cia das Letras, 2013), inspirador dessa resenha afetiva e reflexiva, tenho registrado na contracapa um breve autógrafo do autor: “À Ana Cristina. Beijo. Mia Couto. 2013.” Guardo com muito carinho esse “quase” encontro, já que a obra foi um presente de minha ex-orientanda do curso de História, que terminou por se encantar com a obra do autor após a leitura de um artigo meu sobre outro de seus livros: “O Outro pé da sereia”. Mia Couto é um desses autores que encanta pela performance estilista, pela notável capacidade que tem de mover para sua escrita a sensibilidade e a delicadeza de quem aprendeu que a melhor batalha não é travada nos campos de guerra, mas nos domínios da escrita.
O livro “Cada Homem é uma Raça” é um conjunto de onze contos escritos em uma linguagem coloquial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sentidos fáceis. Assim como a representação do numeral onze, na numerologia, diz respeito ao desafio e batalha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intrigante por sentidos, já que os contos se referem a uma problemática bastante oportuna para nossa contemporaneidade: se cada pessoa é uma humanidade individual, qual é a intenção em se levantar bandeiras e preconceitos contra o Outro? Se cada indivíduo é uma fronteira, quem me garante que não estamos todos em trânsito, em amargo e sinistro estado de embriaguez?
Os onze contos se distribuem pelo espaço do livro, mas apenas para que não o percamos de vista. Eles infinitam as fronteiras do leitor e da leitura, os levando para outros cenários atemporais com personagens que mais parecem humanos (talvez sejam). Ainda no começo da obra, em formato de fragmento, Mia Couto nos faz pensar:
Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor Polícia.
Toda essa advertência para que o leitor se prepare para uma descida aos subterrâneos do sonho, da loucura, da amargura, do ciúme, da ausência e da solidão. O que fazemos quando nossa humanidade vaga em oscilantes desequilíbrios de desumanidade? O que somos quando nos resta apenas o pesadelo e a desilusão?
“Cada Homem é uma Raça” é um conjunto de desequilíbrios narrativos equilibrados pela suavidade e perspicácia do autor, que enche de sentimentos e ressentimentos os sujeitos que transitam sob o espaço da obra. No conto A Rosa Caramela, a personagem é corcunda e magra e tem uma desorientação bastante inabitual: vivia apaixonada por estátuas. Sondam alguns que o motivo tenha sido o sonho frustrado de ser noiva. Ela inventara-se noiva no desassossego dos seus sonhos em ter uma festa de casamento com brilhos e cortejos. Enamorou-se de estátuas com a leveza de quem se apaixona pela frieza do amor não correspondido. Era sua loucura que a fazia perder o juízo? Ou teria sido a falta de afetividade com aquela que era sem beleza para se acomodar na (ir)realidade de um casamento?
A loucura de Rosa Caramela cruza-se na narrativa com a do Tio Geguê e do seu sobrinho, que passam a narrativa vivendo em um universo de insanidade e alucinação. Os dois personagens vivem cada um a seu modo a desilusão da guerra e da orfandade. O Tio Geguê havia se tornado participante de um grupo de vigilância e sabendo somente marchar foi para guerra. O sobrinho, que vivia tempos de alucinação, achava ter falado com a mãe que nunca conhecera. Ele imaginava que seu pais não quiseram “ver transitando de bicho para menino, ranhando barbas, magro até na tosse.” Ambos caminham pela narrativa ébrios de nascença e de ausência e desconfiavam que “a morte se tornava tão frequente que só a vida fazia espanto”.
Mas não é somente loucura e alucinação que individualiza, humaniza e fragiliza os personagens da obra de Mia Couto. O moído cotidiano do sofrimento castiga e chega a criar uma ilusão de pertencimento. Rosalinda é gorda, cheia de saudades do sofrimento que havia vivido com seu finado marido Jacinto. No cemitério, por vingança, troca as inscrições dos túmulos vizinhos para que suas antigas namoradas não lhe acomodem saudades e choros. Espancada e traída, via no gesto sua última forma de vencer os terríveis anos que havia passado em sua companhia. Somente na morte seu sofrimento findava; somente na morte e na troca do aqui jaz poderia ser finalmente esposa.
A temática sobre machismo é recorrente na obra de Mia Couto que inventa outro personagem quase mítico, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não aceita que sua mulher fosse pescar e desse ordem no barco. No intuito de desmobilizar a mulher de suas intenções, ele leva o barco — juntamente com os filhos — para o alto das dunas. Fizera daquela embarcação primeiro sua moradia e depois o incendeia a golpes de insanidade na frente dos filhos e da mulher. Vivia a procurar seus olhos no mar e sem querer enxergar que a mulher precisou ir trabalhar para trazer mantimentos para casa. Desde o princípio da narrativa, o leitor é advertido: “vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo-nos. Porque nos preferimos nessa escuridão interior?”.
“Cada Homem é uma Raça” é uma literatura de denúncia sobre as diferentes maneiras que erguemos muros e fincamos bandeiras. A aparência como requisito de sofrimento é um bom gancho de pensamento para refletirmos a partir de qual momento nossa aparência física passa a ser determinante para definimos quem somos. Os estrangeiros que perambulam pelos contos de Mia Couto são vítimas do olhar sempre indiferente do Outro. São perseguidos e vivem sob olhar atento da desconfiança e do medo. A lenda de amor entre um forasteiro e sua amada, que vivia em uma aldeia, é significativo para percebermos como somos rápidos em fazer julgamentos e lentos em aprimorar nossa humanidade.
O conto O embodeiro que sonhava pássaro narra a história de um vendedor de pássaros que passa a ser o principal suspeito em uma colônia de estrangeiros, que viam com desconfiança aquela difícil convivência com um homem pobre e preto, que vivia a andar pelo lugar vendendo pássaros e a roubar das crianças descuidados interesses. Aqueles que não gostavam daquela inadequada junção sentiam ciúmes do passado, da feliz arrumação das criaturas pela aparência. Em um desfecho fenomenal, o autor nos leva a pensar sob quais gaiolas vivemos presos? Somos pássaros que sonhamos com voo, mas apenas rastejamos pelo chão?
Os contos em trânsito deixam os leitores tontos. Somos levados a refletir que apenas quando repensamos nossas atitudes nos abrimos para revermos nossas certezas. Duarte Fortin, coxo e encarregado geral dos criados em uma mineradora, em confissão ao padre admite: — “Se Deus for negro, senhor padre, estou frito: nunca mais vou ter perdão”. Se existem certezas elas nos mantém cegos pela vida. Devemos procurar nossos olhos não no mar, mas na fundura de nosso Ser. É a partir de um movimento de reflexão e de responsabilidade ética com o Outro que poderemos abrir nossos escuros para melhor enxergarmos nossas tessituras. Vagamos pela leitura de Mia Couto procurando compreender e juntar os sentidos que habitam nos seus contos, mas apenas somos levados a uma viagem interior, em busca de nosso próprio processo de (des)humanização.