A riqueza do mundo, de Lya Luft

Uma voz impo­nente parece segu­rar com as duas mãos a figu­ra de traços ger­mâni­cos e tom brasileiro, de olhar firme e colar de con­tas grossas no pescoço. Era a primeira vez que eu par­a­va para vê-la, ali, do out­ro lado da tela do com­puta­dor, falan­do sobre os livros recém-pub­li­ca­dos, sobre os que já pas­saram e sobre a vida que dá ares de quem está ape­nas começan­do. Esse foi o con­ta­to ini­cial que tive com a escrito­ra e tradu­to­ra Lya Luft. Aos 74 anos, a san­tacruzense descen­dente de alemães arreba­ta dezenas com a ven­da de livros, nas sessões de autó­grafos e palestras em que é conferencista.

Con­heci o tra­bal­ho de Lya em 2004 e, ao con­trário do que se pode pen­sar, não foi por meio do seu suces­so edi­to­r­i­al Per­das & Gan­hos (2003), lançan­do no ano ante­ri­or. À época, por questões de tra­bal­ho, eu acom­pan­ha­va o con­teú­do da revista Veja e, vez ou out­ra, sem­pre batia os olhos na col­u­na Pon­to de vista, assi­na­da por Lya. Coin­cidên­cia ou não, os tex­tos que li na col­u­na abor­davam temas cotid­i­anos e sem­pre fazi­am refer­ên­cia aos rela­ciona­men­tos famil­iares, às difi­cul­dades e desafios, aos sabores e ale­grias. Opiniões que soavam como fortes con­sel­hos, na verdade.

Então, oito anos depois dos primeiros con­tatos, rece­bi A riqueza do mun­do (edi­to­ra Record, 2011, pág. 272), uma coletânea de ensaios sobre a existên­cia humana com tudo o que ela tem de mel­hor e pior: amor, tris­teza, revol­ta, indig­nação, esper­ança, con­tes­tação e per­cepção. Aci­ma de tudo, a obra for­ma um con­jun­to de reflexões da auto­ra sobre os mais vari­a­dos temas, com aque­le aro­ma de “eu escre­vo por um mun­do mel­hor”. Não duvi­do, cer­ta­mente. Os ensaios de Lya são deci­di­dos, ela não tem medo de se posi­cionar, de apon­tar, de emi­tir juí­zos de val­or. Em uma sociedade em que a mais recente ban­deira é faz­er apolo­gia ao “ficar em cima do muro”, Lya Luft assume e assi­na suas ideias, mes­mo que isso tra­ga à tona opiniões que fler­tam com um con­ser­vadoris­mo embrul­ha­do em papel celofane. 

Lya Luft

Divi­di­do em três partes (Da Sociedade, Dos Afe­tos e Das Coisas Várias), o livro de Lya vai mape­an­do pon­tos que se mis­tu­ram, abor­dan­do des­de o sen­ti­men­to de insat­is­fação com o sis­tema vigente no mun­do, rodea­do de cor­rupções, bar­bárie, vio­lên­cia e morte, até situ­ações e vivên­cias que cir­cun­dam as relações famil­iares, chegan­do à gan­gor­ra do encan­to ver­sus des­en­can­to com as infini­tas pos­si­bil­i­dades tec­nológ­i­cas e soci­ais con­tem­porâneas. Na maio­r­ia das vezes, fica evi­dente que estou escu­tan­do alguém com sabedo­ria sufi­ciente para falar sobre um mun­do per­di­do, onde poucos se encon­tram. Em toda a obra, sen­ti um mis­to de desabafos e ser­mões – por mais que, no próprio tex­to, a auto­ra negue o ter­mo ‘con­sel­hos’, atribuí­do por quem assim o iden­ti­fi­ca na sua obra.

Ape­sar de temas inter­es­santes, me sen­ti pouco à von­tade com a quan­ti­dade de exem­p­los para uma mes­ma ideia, agru­pan­do uma lista exten­sa de ele­men­tos sep­a­ra­dos por vír­gu­las em uma úni­ca frase. Essa táti­ca se repete em todos os três capí­tu­los, retoman­do tam­bém, de for­ma cansati­va, pen­sa­men­tos que já foram ditos. Esse tipo de opção lança uma ânco­ra às palavras, deixan­do o tex­to exaustivo. 

Vale men­cionar os três poe­mas que abrem cada capí­tu­lo, com destaque para o boni­to “Deuses e Home­ns”, com belas ima­gens for­madas por palavras e a con­junção da mitolo­gia que nos acom­pan­ha des­de a nos­sa ances­tral­i­dade, fazen­do jus à nar­ra­ti­va de origem, pro­pos­ta por mitól­o­gos como Mircea Eli­ade e Joseph Camp­bell.

Lya Luft tem muito a diz­er. Ela não está por aí como mera auto­ra de best sell­er ou mais um tra­bal­ho para o seg­men­to da autoa­ju­da. Não, não é isso. Nesse primeiro con­ta­to, notei uma auto­ra com pen­sa­men­tos, com luz própria, com opiniões — mes­mo que algu­mas delas não façam parte do meu rol de ideias, como a predileção por Mon­teiro Loba­to. Mais um detal­he que faz parte das min­has obser­vações é o ato de escr­ev­er sobre as mudanças do mun­do de den­tro do gabi­nete. Mas não a con­de­no. Boa parte dos int­elec­tu­ais brasileiros, quiçá do mun­do, está sen­ta­da con­for­t­avel­mente em suas escrivan­in­has de mog­no, refletindo sobre as injustiças e soltan­do os pen­sa­men­tos no ar para que, talvez, out­ros os exe­cutem. Pode ser que esse não seja o caso, não sei. Mas vale à pena rev­er o con­ceito de que ape­nas com ideias se move o mundo. 


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