Category: Literatura

  • Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Os poet­as Lau Siqueira, Vás­sia Sil­veira e Marília Kub­o­ta encon­traram-se no últi­mo dia 24 de out­ubro em Curiti­ba e repetem a dose no próx­i­mo dia 05 de dezem­bro em Flo­ri­anópo­lis e no dia 06 em Joinville, para realizar o lança­men­to de seus livros de poe­sia “Livro Arbítrio” (Casa Verde, 2015), “microp­o­lis” (Lumme Edi­tor, 2014) e “Febre-Terçã” (Off Flip, 2013), os três pub­li­ca­dos por peque­nas edi­toras. Reuni­mos os autores nes­ta entre­vista para um pingue-pongue de ideias sobre poe­sia e a aven­tu­ra das edições inde­pen­dentes e uma reflexão sobre a função social da poesia:

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    Vás­sia Sil­veira, Lau Siqueira e Marília Kubota

    Por que mes­mo não sendo autor ini­ciante, você edi­tou seu livro por uma peque­na editora?

    Vás­sia Sil­veira: Porque não me atrai essa lóg­i­ca do mer­ca­do das grandes edi­toras. Não ten­ho inter­esse em aper­tar, de for­ma automáti­ca, como crit­i­ca­va Chap­lin em “Tem­pos Mod­er­nos”, os para­fu­sos des­ta máquina. E muito menos ser um deles. O prob­le­ma é que essa lóg­i­ca é tão per­ver­sa que mes­mo algu­mas edi­toras peque­nas acabam sucumbindo a estraté­gias que mostram cer­to despre­zo, desre­speito pelo autor — quan­do, do pon­to de vista da peque­na edi­to­ra, ele não é um nome “vendáv­el”, não faz parte de pan­elas, não tem cacife para con­cor­rer a edi­tais do gov­er­no nem está incluí­do no mun­do das feiras literárias. O que me faz pen­sar que o cam­in­ho está no arte­sanal e na força da cole­tivi­dade, em ini­cia­ti­vas onde o autor é tam­bém um faze­dor de livros. Acho fan­tás­ti­co, por exem­p­lo, o movi­men­to car­tonero na Améri­ca Lati­na! Ele rompe com toda essa lóg­i­ca de mer­ca­do, é cul­tur­al, políti­co, social, filosó­fi­co, poéti­co e de resistência.

    Lau Siqueira: As peque­nas edi­toras são, atual­mente, o prin­ci­pal cam­po de batal­ha da lit­er­atu­ra con­tem­porânea. O mer­ca­do edi­to­r­i­al está por demais con­cen­tra­do e as grandes edi­toras estão transna­cional­izadas. Não se inter­es­sam por lit­er­atu­ra brasileira. Menos ain­da pela lit­er­atu­ra con­tem­porânea. Se limi­tam, no máx­i­mo, à repub­li­cação dos canôni­cos. O que se vê pre­dom­i­nar nas grandes livrarias é uma lit­er­atu­ra estrangeira de baixa qual­i­dade ou mes­mo livros de auto-aju­da. As peque­nas edi­toras vêm cumprindo um papel impor­tan­tís­si­mo na con­dução da lit­er­atu­ra e espe­cial­mente da poe­sia con­tem­porânea. Com rarís­si­mas exceções, a lit­er­atu­ra brasileira con­tem­porânea tem pas­sa­do “muito bem, obri­ga­do” por fora das grandes edi­toras e até mes­mo por fora do mer­ca­do for­mal do livro. Não acho isso ruim. Pois o mer­ca­do do livro é algo extrema­mente per­ver­so, mafioso. Nós não exis­ti­mos para eles e eles não exis­tem para nós. E a vida continua.

    Marília Kub­o­ta: “microp­o­lis” é meu ter­ceiro livro de poe­mas. Escre­vo des­de os 15 anos, mas demor­ei para pub­licar o primeiro de livro poe­mas, “Sel­va de sen­ti­dos”, pro­duzi­do pela artista Jus­sara Salazar, em selo de sua auto­ria, o Água-forte Edições, em 2008; o segun­do foi “Esperan­do as bár­baras”, pub­li­ca­do pela Blanche, de Curiti­ba, em 2012. A Lumme é con­heci­da pela pub­li­cação de boa poe­sia, brasileira e estrangeira. Optei por esta edi­to­ra por causa de seu catál­o­go e qual­i­dade no tra­bal­ho de edição de Fran­cis­co San­tos. Se pudesse, gostaria de ser pub­li­ca­da pela Cosac Naify ou Record, mas sei que atual­mente só pagan­do um agente literário ou fazen­do lob­by se con­segue entrar numa grande editora.

    Você acha que poe­sia não vende, como reza a lenda?

    Vás­sia Sil­veira: Acho que quem lê poe­sia, com­pra poe­sia. Ago­ra é claro, vive­mos em uma sociedade onde o con­sumo está cada vez mais vin­cu­la­do ao mar­ket­ing. E no caso do livro parece que as estraté­gias têm que par­tir tam­bém do autor: o cara (ou a cara) tem que ser bom (ou boa) em mar­ket­ing pes­soal. Isso pra mim é um prob­le­ma, sabe? Porque sou meio bicho do mato e não ten­ho dis­posição para cri­ar um per­son­agem fora da literatura.

    Lau Siqueira: Não vende? Como assim? Baude­laire con­tin­ua venden­do. Fer­nan­do Pes­soa con­tin­ua venden­do. Drum­mond con­tin­ua venden­do. Sem­anal­mente são lançadas dezenas de livros de poe­sia no país inteiro. Alguns com óti­mos índices de ven­da. A pesquisa Retratos da Leitu­ra no Brasil, nos mostra que em algu­mas regiões, como a região do Pajeú (PE), a poe­sia é mais pop­u­lar que livro reli­gioso. Essa história de “poe­sia não vende” é que é uma len­da. É cer­to que ninguém está enrique­cen­do com ven­da de livro, mas diz­er que poe­sia não vende é uma blas­fêmia. Vende sim! O que não há é um úni­co autor venden­do demais. Há um cer­to equi­líbrio. Ain­da não está sendo pos­sív­el excur­sion­ar pela Europa com nos­sos livros, mas já é pos­sív­el via­jar para Curiti­ba e Flo­ri­anópo­lis, por exemplo.

    Marília Kub­o­ta: Lemins­ki uma vez escreveu num ensaio que os poet­as devi­am reju­bi­lar-se porque poe­sia não vende. Não vende porque é um inuten­sílio, não serve a ninguém nem a nada, a não ser para dar praz­er a quem cria e a quem apre­cia. Tem o mes­mo val­or de um bei­jo, o ato sex­u­al, con­tem­plar saguis no Par­que Bar­reir­in­ha ou matar o tra­bal­ho para ir ao cin­e­ma. Hoje, quan­do tudo, até a nos­sa opinião e gos­tos se trans­for­maram em mer­cado­ria para as empre­sas pon­to­com, a poe­sia segue como peça de resistên­cia. O mer­can­til­is­mo ten­ta a todo cus­to com­prar o poeta, espe­cial­mente o ini­ciante, que se deslum­bra com prêmios, para­tex­tos literários e a mídia. Mas a poe­sia resiste, diverte-se à margem do sis­tema, encar­na­da em pal­haços como o per­former Hélio Leite, que poucos críti­cos doutores con­sid­er­ari­am poeta, mas até se tornou per­son­agem de Adélia Pra­do. Glau­co Mat­toso, Ricar­do Cha­cal, Alice Ruiz, Leila Mic­co­l­is, Nicholas Behr, Dou­glas Diegues, Jose Koz­er, Rey­nal­do Jimenez são a evo­cação da graça, seguin­do a máx­i­ma de Oswald de Andrade: a ale­gria é a pro­va dos 9. Se não existe diver­são não é poe­sia. Vender ou não vender não faz parte dos ócios do poeta.

    poeta Marília Kubota
    Marília Kub­o­ta

    Que estraté­gias os poet­as devem usar para dis­tribuir seu livro?

    Vás­sia Sil­veira: Olha, min­ha exper­iên­cia não aju­da a respon­der esta questão. A úni­ca coisa que enten­do de dis­tribuição é o que fiz com o “Febre Terçã”: saí dis­tribuin­do, lit­eral­mente, entre ami­gos e leitores de poesia.

    Lau Siqueira: Acho que a prin­ci­pal estraté­gia é a ven­da dire­ta. Faz­er tardes, noites,manhãs de autó­grafo. Olhar no olho do leitor. Usar as redes soci­ais para dis­tribuí-lo nacional e inter­na­cional­mente. Os esque­mas de dis­tribuição nas redes de livraria são char­mosos, mas extrema­mente des­fa­voráveis aos poet­as em todos os sen­ti­dos. Bus­car os lugares alter­na­tivos é a prin­ci­pal estraté­gia. Mon­teiro Loba­to já fazia isso nos anos 30. Escreveu uma car­ta para com­er­ciantes do país inteiro com a seguinte per­gun­ta: “você quer vender, tam­bém, uma coisa chama­da livro?” Com isso abriu mais de 2.000 pos­tos de ven­da para os seus livros, em armazéns, far­má­cias, esta­b­elec­i­men­tos diver­sos espal­ha­dos no Brasil. A cul­tura alter­na­ti­va, aliás, pos­sui um mer­ca­do bem gen­eroso e razoavel­mente democráti­co espal­ha­do pelo Brasil.

    Marília Kub­o­ta: O bacana da poe­sia é encon­trar out­ros poet­as. As estraté­gias vão acon­te­cen­do com os encon­tros. Dois poet­as jun­tos são pólos que atraem ener­gias pos­i­ti­vas e poten­cial­izam a cri­ação do com­bustív­el mais poderoso do plan­e­ta, a ale­gria. O encon­tro entre dois cri­adores gera feli­ci­dade; estraté­gias para dis­tribuir livros surgem das faís­cas de feli­ci­dade: os poet­as podem doar seus livros uns aos out­ros — como fazem com fre­quên­cia — ou con­tratar uma dis­tribuido­ra — o que é pouco prováv­el — ou par­tic­i­par de even­tos para vender seus par­cos exem­plares. O fato é que os livros de poe­sia são mila­grosa­mente dis­tribuí­dos. Uma pesquisa fei­ta na últi­ma FLIP rev­el­ou que os livros mais ven­di­dos foram de poe­sia. Mas a poe­sia sem­pre sobre­viveu fora dos megaeven­tos de mer­ca­do, porque em cada can­to do plan­e­ta há poet­as juve­nis, poet­as madames, poet­as empreende­dores, poet­as eru­di­tos, que se gal­va­nizam à voz dos men­estréis, ou seja, ain­da há neces­si­dade de cul­ti­var algo que não tem util­i­dade para o mercado.

    Qual a sua visão sobre a poe­sia contemporânea?

    Vás­sia Sil­veira: Ten­ho curiosi­dade e descon­fi­ança ao mes­mo tem­po. Curiosi­dade em desco­brir o que de bom está sendo pro­duzi­do e descon­fi­ança com o que o mer­ca­do (e as redes soci­ais) me diz que é bom. Movi­da por ess­es dois sen­ti­men­tos, acabo me refu­gian­do muitas vezes na poe­sia de autores que me acom­pan­ham des­de sem­pre, o que não deixa de ser uma grande ironia…

    Lau Siqueira: Está acon­te­cen­do, ape­sar de tudo. Há uma diver­si­dade imen­sa. Numa quan­ti­dade assus­ta­do­ra. Um bom garim­po nos per­mite encon­trar poet­as impor­tantes como Sér­gio de Cas­tro Pin­to, Antônio Brasileiro, Líria Por­to, Glau­co Mat­toso e muitos out­ros. Existe um panora­ma nacional se con­sol­i­dan­do cada vez mais, entre dilu­idores e sui­ci­das. As pes­soas estão, de for­ma muito saudáv­el, se afa­s­tan­do dos chama­dos “cabeças de rede”. Mas, acho que ain­da é cedo para um olhar mais definidor. Alguém já disse que o cenário atu­al se parece com um liq­uid­i­fi­cador lig­a­do. Ain­da não dá pra medir a qual­i­dade do suco.

    Marília Kub­o­ta: não é difer­ente a poe­sia con­tem­porânea da poe­sia do pas­sa­do. Alguém já disse que as redes soci­ais democ­ra­ti­zaram a imbe­ciliza­ção. Não sabíamos que havia tan­tos poet­as por aí, ago­ra esbar­ramos com eles em todos os lugares. Creio que na ver­dade há poucos poet­as, isto é, poucos de fato se dedicam à pesquisa de lin­guagem, a cri­ar algo novo. No Brasil, depois dos anos 90, temos Paulo Hen­riques Brit­to, Arman­do Fre­itas Fil­ho, a poe­sia demoli­do­ra de Sebastião Nunes, Lucila Nogueira, Deb­o­ra Bren­nand. Entre os mais novos, Car­l­i­to Azeve­do, Clau­dio Daniel, Miche­liny Verun­schk, Jus­sara Salazar e Rodri­go Gar­cia Lopes. Da safra da nova ger­ação (00), a sin­gu­lar­i­dade e insu­lar­i­dade de Nydia Bonet­ti, emb­o­ra ela ten­ha 50 anos. Uma novi­dade é a poe­sia étni­ca, isto é, poet­as negros com con­sciên­cia de sua iden­ti­dade étni­ca, como Edim­il­son de Almei­da Pereira e Nina Rizzi, trazen­do à baila não ape­nas a reivin­di­cação da negri­tude, mas vozes estra­nhas ao dis­cur­so canônico.

    poeta Vássia Silveira
    Vás­sia Silveira

    Como vê a ansiedade dos novos autores em relação a prêmios literários ou indi­cações, a neces­si­dade de ser legit­i­ma­do a qual­quer cus­to, seja nego­cian­do pre­fá­cios com críti­cos ou matérias em jornais?

    Vás­sia Sil­veira: Acho engraça­do e des­o­lador ao mes­mo tem­po. Engraça­do porque parece que isso real­mente tem fun­ciona­do (e daí a descon­fi­ança sobre a qual falei ante­ri­or­mente). E des­o­lador porque essa práti­ca mostra que a lit­er­atu­ra, em alguns casos, está deixan­do de ser um proces­so de reflexão e amadurec­i­men­to do autor com o tex­to. E veja, estou dizen­do isso e me colo­can­do, tam­bém, como uma auto­ra nova. Porque min­ha relação com o tex­to está sem­pre inacaba­da, é um per­cur­so que me sin­to obri­ga­da a faz­er. E que não depende da legit­i­mação do out­ro. Pra ser bem hon­es­ta, toda vez que leio ou ouço alguém se referir a mim como “poeta”, sin­to um calafrio na espin­ha. Porque ten­ho medo do peso e da respon­s­abil­i­dade des­ta palavra. Pre­firo pen­sar que estou no entre-lugar da poesia.

    Lau Siqueira: Per­da de tem­po. Esse tipo de coisa a psi­canálise resolve. Cada poeta é abso­lu­ta­mente respon­sáv­el pela sua poe­sia. A pre­ocu­pação cen­tral do poeta (novo ou vel­ho) deve ser com a met­alur­gia da palavra. Escr­ev­er um poe­ma é uma ativi­dade muito difí­cil. Dividir essa pre­ocu­pação com a neces­si­dade de alpin­is­mo é a negação da própria poe­sia. Os prêmios não rep­re­sen­tam nada. Abso­lu­ta­mente nada. Os pre­fá­cios robus­tos aju­dam na ter­apia, mas não resolvem a cura. Matéria em jor­nal não rep­re­sen­ta nada, porque os jor­nal­is­tas não leem nem o próprio jor­nal que edi­tam, imag­ine livros de poe­sia. A “fama postiça” resolve ape­nas a neces­si­dade de afir­mação social de cer­tos poet­as, jovens de qual­quer idade.

    Marília Kub­o­ta: Vejo com pre­ocu­pação a ansiedade do poeta jovem em ser con­sagra­do ime­di­ata­mente. “Poeta bom é poeta mor­to” é um adá­gio que con­sidero váli­do para man­ter a autocríti­ca em alta. Flo­ra Sussekind escreveu, no ano de 2005, o arti­go “Hagiografias”, em que anal­isa­va a poe­sia de três autores da Poe­sia Mar­gin­al: Caca­so, Ana Cristi­na César e Paulo Lemins­ki, mor­tos e em vias de serem can­on­iza­dos. Dois seri­am sui­ci­das, ape­nas Caca­so mor­re­ria por fatores nat­u­rais, mas emped­ernido críti­co da ditadu­ra mil­i­tar. O que impor­ta hoje para o poeta – ou escritor – é o recon­hec­i­men­to críti­co antes que o autor encon­tre a voz poéti­ca. Para isto, vale tudo, des­de ser empreende­dor mambe­m­be até baju­lar novos edi­tores, críti­cos e out­ros poet­as. Há novos autores que declar­am não ter capaci­dade para comen­tar o tra­bal­ho de seus pares e se colo­cam à frente de sites que emu­lam revis­tas literárias. Para ser poeta é pre­ciso ter lido muito, e de for­ma vari­a­da, ou seja, lou­ca­mente. A leitu­ra fornece o sen­so críti­co para sep­a­rar o joio do tri­go. Ao recon­hecer que não têm sen­so críti­co, tais autores fazem auto­pro­pa­gan­da neg­a­ti­va: não têm leitu­ra sufi­ciente para se auto-avaliar, como poderão ser avali­a­dos por out­ros leitores ? Numa dis­cussão sobre os aten­ta­dos em Paris, lem­brei o final de “A mon­tan­ha mág­i­ca”, de Thomas Mann: “Será que tam­bém da fes­ta uni­ver­sal da morte, da per­ni­ciosa febre que ao nos­so redor infla­ma o céu des­ta noite chu­vosa, sur­girá um dia de amor?” Um autor que escre­va um tex­to como este não pre­cisa ser dis­tin­gui­do com um prêmio. O prêmio é sua lin­guagem ter atingi­do o mais alto nív­el de com­preen­são e beleza sobre a com­plex­i­dade da natureza humana.

    Quais são seus livros de cabe­ceira ? Há um autor que pode ser con­sid­er­a­do uma influên­cia literária?

    Vás­sia Sil­veira: Con­tin­uo me encon­tran­do e me des­en­con­tran­do no “Grande Sertão: Veredas”, no “Livro do Desas­sossego” e em “Água Viva”. E fun­da­men­tal­mente em um livrin­ho pequeno que gan­hei aos 15 anos de meu pai e que inclu­sive dei de pre­sente tam­bém para min­ha fil­ha mais vel­ha: o “Car­tas a um jovem poeta”, do Rilke. Então acho que pos­so diz­er que estes são meus livros de cabe­ceira. Sobre a influên­cia literária, é com­pli­ca­do… Não sei se pos­so apon­tar o nome de um autor ou auto­ra somente. Porque tudo o que me afe­ta pas­sa, de algu­ma maneira, a faz­er parte de min­has angús­tias em relação à escri­ta. O que pos­so diz­er é que min­ha aven­tu­ra como leito­ra foi mar­ca­da a fer­ro e fogo, e ain­da na ado­lescên­cia, por Dos­toievs­ki e pela poe­sia de Manuel Ban­deira, Muri­lo Mendes, Drum­mond… Eu não acharia nada ruim se pudesse escr­ev­er como eles ou como a Clarice, a Ana Cristi­na César, a Hilst.

    Lau Siqueira: Não sei se ten­ho livros de cabe­ceira. Mas, autores de cabe­ceira. Sem­pre leio Antônio Cân­di­do, Ezra Pound, João Alexan­dre Bar­bosa, Joan Brossa, Maiakovs­ki, Fer­nan­do Pes­soa, João Cabral, Augus­to de Cam­pos, Drum­mond e alguns poucos autores. Mis­turo poet­as e teóri­cos, mas ando lendo poucos romances. No entan­to, sou aber­to às influên­cias não ape­nas de poet­as, mas de músi­cos como Jards Macalé, Ita­mar Assunção, Chico Cesar, Zeca Baleiro e out­ros tantos.

    Marília Kub­o­ta: Con­sidero Manuel Ban­deira e Jorge de Lima os poet­as maiores do Brasil. Ten­ho lido tam­bém e apre­ci­a­do a obra de Muri­lo Mendes. Mas Paulo Hen­riques Brit­to e Arman­do Fre­itas Fil­ho são hoje nos­sos poet­as maiores. Me admi­ra quan­tos leitores ain­da se deix­am cati­var por Emi­ly Dick­in­son, auto­ra que cultuei na juven­tude, e Clarice Lispec­tor. Por com­pro­mis­sos profis­sion­ais leio mui­ta lit­er­atu­ra japone­sa, entre estes Banana Yoshi­mo­to e o best sell­er Haru­ki Muraka­mi, mas sei que a lit­er­atu­ra deles é bobagem. Gos­to dos tankas de Takuboku Ishikawa e Akiko Yosano, além dos qua­tro grandes mestres haicais­tas, Bashô, Buson, Issa e Shi­ki e de haicais­tas do Brasil, Nen­puku Sato, Masu­da Goga e Teruko Oda. E adoro a poe­sia pop­u­lar brasileira, a MPB: ouço de Chico Buar­que a Edval­do San­tana, Estrela e Téo Ruiz e os incríveis PoETs, a ban­da dos poet­as Alexan­dre Brito, Ricar­do Sil­vestrim e Ronald Augusto.

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    Lau Siqueira

    O que faz­er com o cânone literário ? O cânone é uma refer­ên­cia para a obra de vocês ou estão na tur­ma do deixa isto pra lá?

    Vás­sia Sil­veira: A ideia de cânone me inco­mo­da quan­do pen­so que há, por trás dela, uma relação históri­ca de poder que pas­sa não só pela acad­e­mia e por aqui­lo que ela legit­i­ma como “alta lit­er­atu­ra”, mas tam­bém pelo olhar do oci­dente em relação ao ori­ente; ou da Europa em relação à África, Ásia e Améri­ca Lati­na. Por isso pre­firo pen­sar no que não faz­er com o cânone: ter uma pos­tu­ra ingênua frente a ele. Isso não sig­nifi­ca, de for­ma algu­ma, ignorá-lo (ou ignorá-los, já que o cânone é diver­so e mutáv­el). Porque seria mui­ta estu­pid­ez min­ha “deixar para lá” autores como Dos­toievs­ki, Tol­stói, Shake­speare, Goethe, Kaf­ka, Virgí­nia Woolf, Home­ro, Cer­vantes, Borges, Pound e Mal­lar­mé para falar de alguns estrangeiros que li e sin­to a neces­si­dade de rel­er; ou de Macha­do de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispec­tor, Gra­cil­iano Ramos, Oswald de Andrade, Harol­do de Cam­pos, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Muri­lo Mendes, Manuel Ban­deira. Enfim… Acho que é impor­tante lê-los com fome sufi­ciente para saber que há out­ras leituras inqui­etantes e não can­on­izadas. É pre­ciso desco­bri-las também.

    Lau Siqueira: Geral­mente isso tem mais a ver com políti­ca literária que com poe­sia. Eu vejo isso de for­ma muito lib­ertária. Não é assun­to que deva pre­ocu­par um poeta. Que os gen­erais da cena que deci­dam quem deve viv­er ou mor­rer. Não me inter­es­sa. Não per­co meu tem­po escol­hen­do fita métri­ca para saber quem é maior ou menor. Quan­do gos­to de um autor, não inter­es­sas se é con­sid­er­a­do canôni­co ou não.

    Marília Kub­o­ta: Ulti­ma­mente leio poucos autores canôni­cos. Gostaria de ler mais Shake­speare e lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa e france­sa. Mas ten­ho descober­to os autores de lín­gua por­tugue­sa, de Por­tu­gal e ex-colô­nias: Sara­m­a­go, Gonça­lo Tavares, Sophia de Mel­lo Breyn­er Andresen, Hel­ber­to Helder, Adília Lopes. Por isto me vêm a ideia de ler mais Camões, ape­sar de que quase todo bom autor em lín­gua por­tugue­sa difi­cil­mente deixará de sofr­er a influên­cia do autor de Os Lusíadas. Emb­o­ra não seja con­sid­er­a­do no cânone oci­den­tal, um pro­je­to meu é ler o Heike mono­gatari, clás­si­co que mar­ca a ascen­são do shogu­na­to no Japão.

    Como fica a questão da solidão cria­ti­va hoje, quan­do vive­mos numa sociedade hiperconectada?

    Vás­sia Sil­veira: A min­ha vai muito bem, obri­ga­da. Primeiro porque gos­to e pre­ciso da solidão. E segun­do porque sou lou­ca o bas­tante para me man­ter conec­ta­da com a min­ha própria vida, o que já rende matéria sufi­ciente para me tirar o sono, a fome e muitas vezes o riso. E quan­do falo da min­ha própria vida não estou me referindo às mis­érias cotid­i­anas da Vás­sia enquan­to mãe, mul­her, fil­ha. Mas das angús­tias da Vás­sia enquan­to ser, estar e ver o mun­do. Isso sig­nifi­ca, por exem­p­lo, que você não vai me encon­trar, na rua ou no ônibus, com os olhos pre­ga­dos a uma tela, porque ten­ho o pés­si­mo hábito de obser­var as pais­agens, as pes­soas, aque­la “vida besta” que fala­va Drum­mond. Então, para mim, a hiper­conec­tivi­dade é uma grande farsa, uma distração.

    Lau Siqueira: A solidão, hoje, é cole­ti­va. Exerci­ta­mos nos­sa solidão nas redes soci­ais sem nen­hum pudor. Meu últi­mo livro, o Livro arbítrio, foi inte­gral­mente escrito no Face­book. É fru­to de uma solidão com­par­til­ha­da, cur­ti­da e comen­ta­da. Esta­mos viven­do no sécu­lo XXI e não no sécu­lo XIX. Na solidão do sécu­lo XIX não tin­ha Wi-fi.

    Marília Kub­o­ta: Ten­ho neces­si­dade de solidão para cri­ar. Quan­do estou em casa, em Curiti­ba, pas­so quase a maior parte do tem­po a sós, lendo ou escreven­do. Através da inter­net con­si­go con­ver­sar com par­ceiros para pro­duzir pro­je­tos ou even­tos literários. Por força de com­pro­mis­sos profis­sion­ais e famil­iares, ten­ho menos momen­tos de solidão do que gostaria. Muitos falam que o autor deve se iso­lar para escr­ev­er – ir para a pra­ia, fora de tem­po­ra­da, ou a algum lugar dis­tante. Gostaria de poder faz­er isto, mas é quase impos­sív­el. Se eu fos­se para um paraí­so ecológi­co ou uma aldeia, duvi­do que ficas­se desconectada.

    Vocês moram em cidades peque­nas. Acham que não é necessário morar no eixo Rio-São Paulo para pro­je­tar suas obras?

    Vás­sia Sil­veira: Bem, acho que temos exem­p­los recentes provan­do que não…

    Lau Siqueira: No eixo-Rio/Sam­pa pre­dom­i­nam as per­ife­rias, onde a sobre­vivên­cia se assemel­ha às peque­nas cidades onde moramos. O país foi con­stru­in­do novas refer­ên­cias, sem que se faça necessário bus­car um “cen­tro de pro­jeção”. No mais, pra que pro­jeção? Vamos viven­do o que nos cabe.

    Marília Kub­o­ta: Com a sociedade con­ste­la­da cri­a­da pela conexão por satélite, não parece mais necessário morar em metrópoles, como Rio e São Paulo. Mas o eixo cul­tur­al con­tin­ua sendo as duas cidades, no Brasil. Se você é artista, não pode deixar de mostrar seu tra­bal­ho no Rio e em São Paulo para se pro­je­tar nacional­mente. Mas não é pre­ciso mais morar e tra­bal­har nes­tas cidades.

    A questão social em poe­sia é ultra­pas­sa­da ? Poe­sia enga­ja­da é sem­pre pan­fletária? Como vê a apoli­ti­za­ção de parte dos poet­as con­tem­porâ­neos, que optam por um ativis­mo sele­ti­vo — em relação a questões étni­cas ou de gênero, ou à ecolo­gia, por exem­p­lo, deixan­do de se posi­cionar sobre grandes questões da humanidade, como as guer­ras e a políti­ca nacional e internacional?

    Vás­sia Sil­veira: Não acho que seja ultra­pas­sa­da e tam­bém não gos­to de rotu­lar como “pan­fletária” a poe­sia enga­ja­da. Sin­to inve­ja dos autores que con­seguiram ou con­seguem levar para a poe­sia, e de for­ma clara, as grandes questões de seu tem­po. Ten­ho con­sciên­cia de que não con­si­go faz­er isso, pelo menos não ain­da. Sou lenta, demoro a proces­sar aqui­lo que me impacta, o que faz com que eu facil­mente seja encaix­a­da nesse per­fil que você traçou e criti­cou na últi­ma per­gun­ta. Acho mais fácil, por exem­p­lo, me posi­cionar de for­ma inci­si­va em relação a questões étni­cas e/ou de gênero porque tive mais tem­po para digerir a vio­lên­cia embu­ti­da nelas. E não por ser apolíti­ca, muito menos por não me inter­es­sarem as guer­ras civis, o dra­ma dos refu­gia­dos, o fun­da­men­tal­is­mo, o ódio ao PT, as manobras da políti­ca inter­na­cional e seus des­do­bra­men­tos na Améri­ca Lati­na, na África ou na Ásia. Essas são questões que me afligem e sobre as quais procuro refle­tir e me posi­cionar em out­ras instân­cias. Ago­ra veja, estou falan­do de min­ha exper­iên­cia. Não pos­so respon­der pelo silên­cio dos outros.

    Lau Siqueira: A poe­sia tran­si­ta livre­mente pelo tem­po. Em qual­quer tem­po. As temáti­cas escol­hi­das não alter­am o pro­du­to final do poe­ma. Nen­hu­ma questão social ou políti­ca é ultra­pas­sa­da. Na ver­dade são questões desafi­ado­ras para a usi­na cria­ti­va de cada um. Cada qual sabe por onde cam­in­ha, mas existe até mes­mo um cer­to pre­con­ceito quan­to às escol­has temáti­cas desse tipo, o que eu acho uma bobagem. A matéria da poe­sia é a palavra. O resto é cenário.

    Marília Kub­o­ta: A sociedade con­ste­la­da facil­i­tou a seg­men­tação e for­t­ale­ceu a iden­ti­dade cole­ti­va. Stu­art Hall fala sobre as iden­ti­dades móveis, em que o indi­ví­duo aban­dona a iden­ti­dade com a nação e o ter­ritório, bus­can­do out­ro tipo de sub­je­tivi­dade, nômade. Durante muito tem­po me iden­ti­fiquei como nipo-brasileira até perce­ber que a hif­eniza­ção não faz sen­ti­do: sou brasileira. Mas a aceitação de um biótipo difer­ente do europeu ain­da está em proces­so na sociedade brasileira. A luta das mino­rias soci­ais, dos imi­grantes, das fem­i­nistas, dos negros, dos homos­sex­u­ais, emb­o­ra pareça assim­i­la­da, ain­da está em processo.

    Acho impor­tante dis­cu­tir estas questões, porque em tem­pos de recrude­sci­men­to políti­co, tais mino­rias são as primeiras a serem social­mente rechaçadas. Creio que o poeta jamais abstém-se de ter uma posição políti­ca. Eu me recu­sei a faz­er parte de duas antolo­gias patroci­nadas pelo gov­er­no do Esta­do do Paraná. Uma de con­tos, orga­ni­za­da pelo escritor Luiz Ruf­fat­to, e out­ra de poe­sia, orga­ni­za­da por Ademir Demarchi. Foi numa época em que o gov­er­no fechou vários espaços cul­tur­ais em Curiti­ba, can­celou ver­bas para pro­je­tos cul­tur­ais no esta­do e apro­pri­ou-se dos dire­itos autorais dos colab­o­radores do JORNAL NICOLAU, para faz­er uma edição fac-sim­i­lar, que até hoje está à ven­da. O NICOLAU, cri­a­do por uma equipe coman­da­da pelo artista grá­fi­co Luis Antônio Guin­s­ki e pelo poeta Wil­son Bueno fez história na cul­tura do Paraná e do Brasil. A recusa foi um protesto con­tra os des­man­dos deste gov­er­no, que cul­mi­nou no episó­dio de 29 de abril, o Mas­sacre do Cen­tro Cívi­co. Na época em que come­cei a denun­ciar os abu­sos do gov­er­no do Paraná nas redes soci­ais, muitos me adver­ti­ram para ficar cal­a­da. Nun­ca con­segui ficar cal­a­da, por isto jamais rece­bi indi­cações para par­tic­i­par de even­tos literários, mas os cole­gas mais dóceis rece­ber­am. Declinei de par­tic­i­par da antolo­gia “O ver­so da vio­lên­cia”, pub­li­ca­do pela Edi­to­ra Patuá. Emb­o­ra tra­ga reg­istros impor­tantes, feitos pelos fotó­grafos Lina Faria e Bruno Cov­el­lo, me pare­ceu que a pub­li­cação da antolo­gia não faria difer­ença na oposição a este gov­er­no arbi­trário, no qual muitos se aproveitam para pro­mover inter­ess­es pes­soais através da máquina pública.

  • Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    cada-homem-e-uma-raca-mia-couto-livroCon­heci a lit­er­atu­ra de Mia Couto durante o perío­do em que fiz Doutora­do em Recife. Jun­tei-me a um grupo de estu­dos denom­i­na­do Lit­er­atu­ra Africana: nar­ra­ti­vas da des­col­o­niza­ção, sob a coor­de­nação de Sil­via Cortez Sil­va, min­ha pro­fes­so­ra e ori­en­ta­do­ra. Entre cafez­in­hos, bolos, livros e boa con­ver­sa, Mia Couto foi sendo assim­i­la­do por mim, ou mel­hor, ele foi comi­do, cheira­do, absorvi­do pela min­ha fome de lit­er­atu­ra e poesia.

    Mia Couto nasceu em Beira, Moçam­bique, no ano de 1955. Faz parte de uma ger­ação de escritores africanos de lín­gua por­tugue­sa. Her­dou da cul­tura oral africana a habil­i­dade de ouvir e con­tar nar­ra­ti­vas. Na min­ha edição do livro “Cada homem é uma raça: con­tos” (edi­to­ra Cia das Letras, 2013), inspi­rador dessa resen­ha afe­ti­va e reflex­i­va, ten­ho reg­istra­do na con­tra­ca­pa um breve autó­grafo do autor: “À Ana Cristi­na. Bei­jo. Mia Couto. 2013.” Guar­do com muito car­in­ho esse “quase” encon­tro, já que a obra foi um pre­sente de min­ha ex-ori­en­tan­da do cur­so de História, que ter­mi­nou por se encan­tar com a obra do autor após a leitu­ra de um arti­go meu sobre out­ro de seus livros: “O Out­ro pé da sereia”. Mia Couto é um dess­es autores que encan­ta pela per­for­mance estilista, pela notáv­el capaci­dade que tem de mover para sua escri­ta a sen­si­bil­i­dade e a del­i­cadeza de quem apren­deu que a mel­hor batal­ha não é trava­da nos cam­pos de guer­ra, mas nos domínios da escrita.

    O livro “Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de onze con­tos escritos em uma lin­guagem colo­quial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sen­ti­dos fáceis. Assim como a rep­re­sen­tação do numer­al onze, na numerolo­gia, diz respeito ao desafio e batal­ha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intri­g­ante por sen­ti­dos, já que os con­tos se ref­er­em a uma prob­lemáti­ca bas­tante opor­tu­na para nos­sa con­tem­po­ranei­dade: se cada pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual, qual é a intenção em se lev­an­tar ban­deiras e pre­con­ceitos con­tra o Out­ro? Se cada indi­ví­duo é uma fron­teira, quem me garante que não esta­mos todos em trân­si­to, em amar­go e sin­istro esta­do de embriaguez?

    Os onze con­tos se dis­tribuem pelo espaço do livro, mas ape­nas para que não o per­camos de vista. Eles infini­tam as fron­teiras do leitor e da leitu­ra, os levan­do para out­ros cenários atem­po­rais com per­son­agens que mais pare­cem humanos (talvez sejam). Ain­da no começo da obra, em for­ma­to de frag­men­to, Mia Couto nos faz pensar:

    Min­ha raça sou eu mes­mo. A pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual. Cada homem é uma raça, sen­hor Polícia.

    Toda essa advertên­cia para que o leitor se pre­pare para uma desci­da aos sub­ter­râ­neos do son­ho, da lou­cu­ra, da amar­gu­ra, do ciúme, da ausên­cia e da solidão. O que faze­mos quan­do nos­sa humanidade vaga em oscilantes dese­qui­líbrios de desumanidade? O que somos quan­do nos res­ta ape­nas o pesade­lo e a desilusão?

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de dese­qui­líbrios nar­ra­tivos equi­li­bra­dos pela suavi­dade e per­spicá­cia do autor, que enche de sen­ti­men­tos e ressen­ti­men­tos os sujeitos que tran­si­tam sob o espaço da obra. No con­to A Rosa Caramela, a per­son­agem é cor­cun­da e magra e tem uma des­ori­en­tação bas­tante ina­bit­u­al: vivia apaixon­a­da por está­tuas. Son­dam alguns que o moti­vo ten­ha sido o son­ho frustra­do de ser noi­va. Ela inven­tara-se noi­va no desas­sossego dos seus son­hos em ter uma fes­ta de casa­men­to com bril­hos e corte­jos. Enam­orou-se de está­tuas com a lev­eza de quem se apaixona pela frieza do amor não cor­re­spon­di­do. Era sua lou­cu­ra que a fazia perder o juí­zo? Ou teria sido a fal­ta de afe­tivi­dade com aque­la que era sem beleza para se aco­modar na (ir)realidade de um casamento?

    A lou­cu­ra de Rosa Caramela cruza-se na nar­ra­ti­va com a do Tio Geguê e do seu sobrin­ho, que pas­sam a nar­ra­ti­va viven­do em um uni­ver­so de insanidade e alu­ci­nação. Os dois per­son­agens vivem cada um a seu modo a desilusão da guer­ra e da orfan­dade. O Tio Geguê havia se tor­na­do par­tic­i­pante de um grupo de vig­ilân­cia e saben­do somente mar­char foi para guer­ra. O sobrin­ho, que vivia tem­pos de alu­ci­nação, acha­va ter fal­a­do com a mãe que nun­ca con­hecera. Ele imag­i­na­va que seu pais não quis­er­am “ver tran­si­tan­do de bicho para meni­no, ran­han­do bar­bas, magro até na tosse.” Ambos cam­in­ham pela nar­ra­ti­va ébrios de nascença e de ausên­cia e descon­fi­avam que “a morte se tor­na­va tão fre­quente que só a vida fazia espan­to”.

    Mas não é somente lou­cu­ra e alu­ci­nação que indi­vid­u­al­iza, human­iza e frag­iliza os per­son­agens da obra de Mia Couto. O moí­do cotid­i­ano do sofri­men­to cas­ti­ga e chega a cri­ar uma ilusão de per­tenci­men­to. Ros­alin­da é gor­da, cheia de saudades do sofri­men­to que havia vivi­do com seu fina­do mari­do Jac­in­to. No cemitério, por vin­gança, tro­ca as inscrições dos túmu­los viz­in­hos para que suas anti­gas namoradas não lhe aco­mo­dem saudades e choros. Espan­ca­da e traí­da, via no gesto sua últi­ma for­ma de vencer os ter­ríveis anos que havia pas­sa­do em sua com­pan­hia. Somente na morte seu sofri­men­to fin­d­a­va; somente na morte e na tro­ca do aqui jaz pode­ria ser final­mente esposa.

    A temáti­ca sobre machis­mo é recor­rente na obra de Mia Couto que inven­ta out­ro per­son­agem quase míti­co, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não acei­ta que sua mul­her fos­se pescar e desse ordem no bar­co. No intu­ito de desmo­bi­lizar a mul­her de suas intenções, ele leva o bar­co — jun­ta­mente com os fil­hos — para o alto das dunas. Fiz­era daque­la embar­cação primeiro sua mora­dia e depois o incen­deia a golpes de insanidade na frente dos fil­hos e da mul­her. Vivia a procu­rar seus olhos no mar e sem quer­er enx­er­gar que a mul­her pre­cisou ir tra­bal­har para traz­er man­ti­men­tos para casa. Des­de o princí­pio da nar­ra­ti­va, o leitor é adver­tido: “vive­mos longe de nós, em dis­tante fin­g­i­men­to. Desa­pare­ce­mo-nos. Porque nos prefe­r­i­mos nes­sa escuridão inte­ri­or?”.

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é uma lit­er­atu­ra de denún­cia sobre as difer­entes maneiras que ergue­mos muros e fin­camos ban­deiras.  A aparên­cia como req­ui­si­to de sofri­men­to é um bom gan­cho de pen­sa­men­to para refle­tir­mos a par­tir de qual momen­to nos­sa aparên­cia físi­ca pas­sa a ser deter­mi­nante para defin­i­mos quem somos. Os estrangeiros que per­am­bu­lam pelos con­tos de Mia Couto são víti­mas do olhar sem­pre indifer­ente do Out­ro. São persegui­dos e vivem sob olhar aten­to da descon­fi­ança e do medo. A len­da de amor entre um forasteiro e sua ama­da, que vivia em uma aldeia, é sig­ni­fica­ti­vo para perce­ber­mos como somos rápi­dos em faz­er jul­ga­men­tos e lentos em apri­morar nos­sa humanidade.

    O con­to O embodeiro que son­ha­va pás­saro nar­ra a história de um vende­dor de pás­saros que pas­sa a ser o prin­ci­pal sus­peito em uma colô­nia de estrangeiros, que viam com descon­fi­ança aque­la difí­cil con­vivên­cia com um homem pobre e pre­to, que vivia a andar pelo lugar venden­do pás­saros e a roubar das cri­anças des­cuida­dos inter­ess­es. Aque­les que não gostavam daque­la inad­e­qua­da junção sen­ti­am ciúmes do pas­sa­do, da feliz arru­mação das criat­uras pela aparên­cia. Em um des­fe­cho fenom­e­nal, o autor nos leva a pen­sar sob quais gaio­las vive­mos pre­sos? Somos pás­saros que son­hamos com voo, mas ape­nas raste­jamos pelo chão?

    Os con­tos em trân­si­to deix­am os leitores ton­tos. Somos lev­a­dos a refle­tir que ape­nas quan­do repen­samos nos­sas ati­tudes nos abri­mos para rever­mos nos­sas certezas.  Duarte Fortin, coxo e encar­rega­do ger­al dos cri­a­dos em uma min­er­ado­ra, em con­fis­são ao padre admite: — “Se Deus for negro, sen­hor padre, estou frito: nun­ca mais vou ter perdão”. Se exis­tem certezas elas nos man­tém cegos pela vida. Deve­mos procu­rar nos­sos olhos não no mar, mas na fun­dura de nos­so Ser. É a par­tir de um movi­men­to de reflexão e de respon­s­abil­i­dade éti­ca com o Out­ro que poder­e­mos abrir nos­sos escuros para mel­hor enx­er­gar­mos nos­sas tes­si­turas. Vag­amos pela leitu­ra de Mia Couto procu­ran­do com­preen­der e jun­tar os sen­ti­dos que habitam nos seus con­tos, mas ape­nas somos lev­a­dos a uma viagem inte­ri­or, em bus­ca de nos­so próprio proces­so de (des)humanização.

  • Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    poema-sujo-ferreira-gullar-livro-capaCatarse (do grego: kathar­sis) é o proces­so de depu­ração dos sen­ti­men­tos, purifi­cação ou pur­gação do espíri­to sen­sív­el. No teatro grego, o herói dramáti­co pre­cisa sofr­er para purificar o espíri­to. Em psi­canálise, é a lib­er­tação de um trau­ma. A gênese da mais famosa obra dos últi­mos 40 anos da poe­sia brasileira, o Poe­ma sujo, é catár­ti­ca, segun­do seu autor, Fer­reira Gullar.

    Gullar esta­va no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quan­do escreveu o poe­ma. Depois de pas­sar anos moran­do em diver­sas cidades do mun­do (Moscou, San­ti­a­go do Chile e Lima), viu ditaduras mil­itares se insta­larem nos país­es sul-amer­i­canos. Com o fra­cas­so da utopia comu­nista no Brasil, depois de um tem­po na Rús­sia, emi­grou para o Chile e assis­tiu à que­da de Allende. Mudou para a Argenti­na em 1974 e reviveu o pesade­lo de ver os ami­gos ao redor serem pre­sos ou fugir. Saben­do que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cer­co no país viz­in­ho, decid­iu escr­ev­er um poe­ma que fos­se um teste­munho final.

    O Poe­ma sujo, escrito em cin­co meses, em esta­do de transe ver­tig­i­noso, foi aca­len­ta­do por anos. Tem como fio con­du­tor a ideia de res­gatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maran­hão. As condições de penúria no exílio e a eminên­cia de calar-se para sem­pre o forçaram a ultra­pas­sar o tom memo­ri­alís­ti­co. O Poe­ma sujo dá voz ao deses­pero do poeta. Deses­pero que, para­doxal­mente, englo­ba grande esper­ança, por situ­ar-se na infân­cia, como demon­stra seu tre­cho mais con­heci­do, trans­for­ma­do na letra da canção O tren­z­in­ho caipi­ra, a toca­ta da Bachi­ana no. 2, de Vil­la-Lobos:

    Lá vai o trem com o menino
    Lá vai a vida a rodar
    Lá vai ciran­da e destino
    Cidade e noite a girar
    Lá vai o trem sem destino
    Pro dia novo encontrar
    Cor­ren­do vai pela terra
    Vai pela serra
    Vai pelo mar
    Can­tan­do pela ser­ra o luar
    Cor­ren­do entre as estre­las a voar
    No ar, no ar…

    A evo­cação da memória da infân­cia em rede­moin­ho é o pon­to de par­ti­da para com­por um poe­ma em vários tons, com momen­tos de inten­si­dade e de banal­i­dade, como cita o poeta, con­struí­dos por frag­men­tos de lem­branças “das pes­soas às coisas, das plan­tas aos bichos, tudo, água, lama, noite estre­la­da, fome, esper­ma, son­ho, humil­hações, tudo era gora matéria poéti­ca”. Antítese entre o claro do pre­sente e o tur­vo da infân­cia, mais que res­gate, é a recom­posição do pas­sa­do no presente.

    A memória da infân­cia é um reg­istro infiel, sujo, recom­pos­ta por destroços: tel­has encar­di­das, gar­fos e facas que se que­braram, e se perder­am nas fal­has do assoal­ho para con­viv­er com baratas e ratos no quin­tal esque­ci­dos entre os pés de erva cidreira. Des­or­dem que é ordem “per­feita­mente fora do rig­or cronológi­co”, do labir­in­to do tem­po inte­ri­or. A casa per­di­da no tem­po, com tal­heres enfer­ru­ja­dos, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gas­tas, armários obso­le­tos raste­jam “pelos túneis das noites clan­des­ti­nas” esperan­do “que o dia ven­ha”. A infân­cia é o úni­co refú­gio para quem perdeu tudo. O cor­po, a úni­ca casa, o úni­co ter­ritório, a pos­si­bil­i­dade de êxtase quan­do já não se per­tence a lugar nenhum.

    A iden­ti­dade são-luisense se con­cretiza no cor­po do poeta, o pas­sa­do se esmiúça, como cita Alcides Vil­laça: o “sujo do poe­ma ref­ere-se tan­to ao impuro quan­to pela com­posição das difer­enças, pelas águas revolvi­das, pelo esti­lo que vai da mão sol­ta no papel à cadên­cia rig­orosa de uma avali­ação […] Mas sujo tam­bém porque par­tic­i­pa de uma história não ofi­cial, sec­re­ta, que soma a con­sciên­cia abafa­da e o cor­po pri­sioneiro de von­tades cal­adas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apo­drece lentamente.

    A canção de exílio dos anos de chum­bo é Sabiá, de Chico Buar­que e Tom Jobim, com­pos­ta em 1968 para um fes­ti­val. A canção traz refer­ên­cias claras ao “dia que virá”, dia em que os exi­la­dos retornar­i­am à pátria. Gullar ante­ci­pa a pátria destruí­da, memória dev­as­ta­da e ilu­mi­na­da ape­nas pelo facho das lem­branças da cidade de infân­cia. Os obje­tos da casa pri­mor­dial gas­taram-se no tem­po e por isso sua lem­brança é de sujeira, ou algo que foi sujo.

    O teste­munho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacional­is­mo insu­fla­do por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tan­to mais comovente quan­to bus­ca negar qual­quer resquí­cio român­ti­co ou pan­fletário. Em nem um momen­to rev­ela tex­tual­mente a dor pela per­da dos ami­gos, o esface­la­men­to famil­iar e a melan­co­l­ia da desterritorialização.

    Depois de con­cluir o poe­ma, Gullar o leu a Viní­cius de Morais, que lev­ou uma gravação da leitu­ra para o Brasil. Gru­pos se for­mavam para ouvir a voz do poeta exi­la­do. O edi­tor Ênio Sil­veira pediu cópia para pub­licá-lo. Com a pub­li­cação, ami­gos, jor­nal­is­tas e escritores cla­ma­ram ao gov­er­no mil­i­tar o fim do exílio de Gullar. O gov­er­no não aten­deu. O poeta, porém cansa­do, resolveu voltar por con­ta própria. Quan­do chegou, foi lev­a­do ao DOI-Codi e inter­ro­ga­do, acarea­do e ameaça­do. Mas graças ao poe­ma, pôde ficar no Brasil.

    A catarse do ago­ra con­tra o futuro marginal

    A repub­li­cação do Poe­ma sujo, em 2013, pela José Olym­pio, o cel­e­bra como mar­co na luta con­tra a repressão mil­i­tar. Mas antes de se tor­na per­sona non gra­ta no país, Gullar já guer­rea­va, e muito, mas por razões estéti­cas, con­tra out­ros adver­sários. Con­trapôs-se ao movi­men­to de van­guar­da da poe­sia conc­re­ta, com­pos­ta pelos irmãos Augus­to e Harol­do de Cam­pos e Décio Pig­natari, defend­en­do o nacional­is­mo da arte brasileira e crian­do a poe­sia neo­conc­re­ta. A prin­ci­pal críti­ca de Gullar aos con­cre­tos era de que com­par­a­vam a poe­sia à matemáti­ca e pre­tendi­am atu­ar em todos os cam­pos, jor­nais, pub­li­ci­dade, da músi­ca (canção pop­u­lar), tevê, rádio, cinema.

    Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.
    Augus­to de Cam­pos, Décio Pig­natari e Harol­do de Cam­pos, a Tríade Concretista.

    Provo­cador, polêmi­co, jamais pací­fi­co, o poeta Paulo Lemins­ki é herdeiro de uma tradição poéti­ca de van­guar­da (ou tradição de rup­tura, como quer Octávio Paz) que no Brasil ren­deu movi­men­tos como o Mod­ernismo, a Poe­sia Conc­re­ta e o Trop­i­cal­is­mo. Por causa do tem­po históri­co de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erronea­mente situ­a­do den­tro da Poe­sia Mar­gin­al, movi­men­to ao qual nun­ca se fil­iou (não gos­to da poe­sia de Caca­so, um dos líderes da poe­sia mar­gin­al car­i­o­ca dos 70/80, afir­mou, em entre­vista ao jor­nal­ista Aramis Mil­larch, em 1986) e con­tra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Críp­ti­cos” (1986).

    Lemins­ki her­dou a briga com os neo­con­cre­tos. Ape­sar de propa­gar a teo­ria da arte como  inuten­sílio, nun­ca fez ape­nas arte pela arte. É o que se com­pro­va na canção Ver­du­ra, veta­da pela cen­sura em 1978.

    De repente
    me lem­bro do verde
    da cor verde
    a mais verde que existe
    a cor mais alegre
    a cor mais triste
    o verde que vestes
    o verde que vestiste
    o dia em que te vi
    o dia em que me viste
    De repente
    ven­di meus filhos
    a uma família americana
    eles têm carro
    eles têm grana
    eles têm casa
    a gra­ma é bacana
    só assim eles podem voltar
    e pegar um sol em Copacabana

    O poeta Fab­rí­cio Mar­ques asso­cia o ver­so de repente me lem­bro do verde ao Trop­i­cal­is­mo, conectan­do o verde cita­do com uma das cores-sím­bo­lo do Brasil:

    todas as suas nuances e con­tradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poe­ma atinge um tom quase lisér­gi­co, no qual ressaltam ecos do trop­i­cal­is­mo: super­ba­cana, de Cae­tano Veloso, e ai de ti, Copaca­bana, de Torqua­to. Ocorre então uma inver­são paródi­ca do nacional­is­mo, prin­ci­pal­mente na segun­da estrofe, que fun­ciona como uma espé­cie de críti­ca políti­ca avant la let­tre à emi­gração de brasileiros em bus­ca de mel­hores condições de vida, numa pro­gressão desen­f­rea­da, prin­ci­pal­mente para os Esta­dos Unidos, nos anos que se seguiram à primeira pub­li­cação do tex­to em livro (1981).

    A asso­ci­ação com o verde trop­i­cal­ista não é a úni­ca pos­sív­el. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o fil­ho para os amer­i­canos. O verde triste trans­for­ma tudo em mer­cado­ria, até as relações afe­ti­vas. Triste ain­da o verde do uni­forme dos mil­itares, cujos cen­sores enten­der­am a iro­nia. A canção só pas­sou pelo cri­vo em 1981, quan­do foi grava­da por Cae­tano Veloso. Mas a refer­ên­cia aos poe­mas trop­i­cal­is­tas é inex­a­ta. Em vez de Super­ba­cana e Ai de mim, Copaca­bana, a asso­ci­ação mais ine­bri­ante pode­ria ser Quan­do o san­to guer­reiro entre­ga as pon­tas, de Torqua­to Neto:

    nada de mais:
    o muro pin­ta­do de verde
    e ninguém que pre­cise dizer-me
    que esse verde que não quero verde
    lírico
    mais planos e mais planos
    se desfaz:
    nada demais
    aqui de den­tro eu pego e furo a fogo
    e luz
    (é movimento)
    vos­so sis­tema pro­te­tor de incêndios
    e pin­to a tela o muro diferente
    porque uso como quero min­ha lentes
    e fil­mo o verde,
    que eu não temo o verde,
    de out­ra cor:
    diari­a­mente encaro bem de perto
    e escar­ro sobre o muro:
    nada demais

    Lemins­ki deg­lute antropofagi­ca­mente o Bis­po Sardinha, como que­ria Oswald, can­tan­do, com dó de peito o momen­to históri­co do iní­cio da diás­po­ra glob­al. O sen­ti­men­to de dor (por ver seu igual par­tir e se par­tir) não fratu­ra o poeta, que final­iza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copaca­bana, com a con­sciên­cia de que a Ale­gria é a Pro­va dos Nove, como can­ta­va Oswald, ou seja, a úni­ca for­ma de resistên­cia a um regime desigual que estim­ula­va o despa­tri­a­men­to só pode­ria ser a iro­nia, trazen­do a capa de um fal­so con­formis­mo. Desse modo, mes­mo nun­ca ten­do se desli­ga­do de sua ter­ra natal, Lemisn­ki par­tic­i­pa dass ago­nias da vida nacional em seu insilio1.

    O críti­co Sil­viano San­ti­a­go esclarece que o bor­dão antropofági­co vin­cu­la-se com a catarse do ago­ra: “o ressurg­i­men­to de um cor­po que não estaria mais com­pro­meti­do com a éti­ca protes­tante do tra­bal­ho, um cor­po que recusa, inclu­sive, […] a col­o­niza­ção do futuro. Esse cor­po, então, estaria fin­can­do mais e mais o pé no ago­ra: nesse sen­ti­do, um cor­po que é fruição.” Esta ideia estaria lig­a­da à emergên­cia das mino­rias sex­u­ais nos anos 70: “De cer­ta for­ma, na nos­sa sociedade oci­den­tal, em par­tic­u­lar, o praz­er esteve muito vin­cu­la­do a uma cer­ta nor­mal­iza­ção de con­du­ta sex­u­al, e quan­do essa con­du­ta não era nor­mal­iza­da as pes­soas se sen­ti­am enorme­mente infelizes.”

    Paulo Leminski
    Paulo Lemins­ki

    O críti­co fala de um cor­po não reprim­i­do, de pura ale­gria, em con­trapon­to com a tradição críti­ca que colo­ca o pre­sente como esta­do de martírio. O sofri­men­to cul­tua­do pelos gru­pos políti­cos de esquer­da no Brasil tin­ha como pro­je­to de redenção a pos­si­bil­i­dade de uma utopia social. San­ti­a­go se posi­ciona con­tra este esta­do de pobreza: “Inver­tendo os ter­mos, dizen­do que o pre­sente pode ser vivi­do, pode ser vivi­do ale­gre­mente, sem as amar­ras da repressão, estaríamos descondi­cio­nan­do a pos­si­bil­i­dade de um pen­sa­men­to dito utópi­co.” Nos ver­sos de Leminski:

    praz­er
    da pura percepção
    os sentidos
    sejam a crítica
    da razão
    (Dis­traí­dos Vencer­e­mos, 1987)

    Esta ide­olo­gia está em coal­izão com a microp­olíti­ca do dese­jo de Felix Guat­tari e o com­por­ta­men­to aqui-ago­ra do movi­men­to hip­pie dos anos 70, que vul­gar­iza con­ceitos de filosofias ori­en­tais, como o hin­duís­mo e o zen-bud­is­mo. Os hip­pies trazem a ideia do praz­er na real­i­dade do pre­sente, em que a utopia não se adia, em que o esta­do par­adis­ía­co é vivi­do todos os dias. A poe­sia de Lemins­ki con­strói a catarse do ago­ra con­tra a repressão do pre­sente – no con­tex­to históri­co, a saí­da da ditadu­ra mil­i­tar para a ditadu­ra da econo­mia glob­al. Con­tra um sis­tema no qual a poe­sia é ape­nas o dese­jo, os artefatos de Lemins­ki tor­nam-se instru­men­to críti­co que cor­roem con­ceitos e faz­eres mumi­fi­ca­dos, como na genial inver­são dis­traí­dos vencer­e­mos do títu­lo de livro pub­li­ca­do em 1987, que car­naval­iza o bor­dão Unidos, vencer­e­mos.

    Um dos recur­sos usa­dos pelos poet­as para com­bat­er o regime repres­sor foi o humor. San­ti­a­go difer­en­cia dois proces­sos usa­dos nos movi­men­tos de poe­sia de protesto. O primeiro, a paró­dia, é um recur­so val­oriza­do como instru­men­to poten­cial de irrisão con­tra o poder insti­tuí­do, uma rup­tura. O segun­do, o pas­tiche, é uma der­risão que enfraque­ce o poder da críti­ca: A paró­dia sig­nifi­ca uma rup­tura, um escárnio com relação àquela estéti­ca que é dada como neg­a­ti­va. O pas­tiche não rechaça o pas­sa­do, num gesto de escárnio, de despre­zo, de iro­nia, escreve Santiago.

    A paró­dia tem o mes­mo grau de irrisão do insti­tuí­do pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Man­i­festo Antropofági­co de Oswald, em 1922. A lição mod­ernista foi incor­po­ra­da por Lemins­ki, que des­de sua aparição públi­ca nos jor­nais em Curiti­ba, achin­cal­ha o cul­to ao con­to e a figu­ra mon­u­men­tal­iza­da de Dal­ton Tre­visan, nos anos 70 e 80. Neste momen­to, seu embate não é con­tra as ino­vações de Dal­ton (a lin­guagem sin­téti­ca, a opção pela “cor local”, ado­tadas por Lemins­ki) e sim con­tra a insti­tu­cional­iza­ção de Dalton.

    Ferreira Gullar.
    Fer­reira Gullar

    A dor tão ele­va­da que é capaz de faz­er rir, evo­ca­da por Alice Ruiz no pre­fá­cio do livro La Vie en Close foi a táti­ca de uma guer­ril­ha que tem no riso, no chiste, no witz, na descon­strução de clichês e no aproveita­men­to de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guer­ril­ha cul­tur­al seria her­ança do Trop­i­cal­is­mo. Para Ana Cristi­na César, a Trop­icália é a expressão de uma crise, uma opção estéti­ca que inclui um pro­je­to de vida, em que o com­por­ta­men­to pas­sa a ser ele­men­to críti­co, sub­ver­tendo a ordem mes­ma do cotid­i­ano. A ideia de enfrentar o sufo­co políti­co com as armas do cotid­i­ano foi legit­i­ma­da em Leminski.

    Dois adver­sários no cam­po da estéti­ca da poe­sia lutam con­tra um inimi­go comum. E fil­iam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paró­dia da Canção do Exílio, descon­stru­in­do o nacional­is­mo orig­i­nal. Enquan­to a nação desa­parece, a infân­cia tor­na-se ter­ritório míti­co e o cor­po, o úni­co sacra­men­to, para Gullar. Já Lemins­ki percebe que até a infân­cia será ven­di­da, restando, para a poe­sia, sua úni­ca arma de luta: o praz­er de provo­car sentidos.

    Insílio: De acor­do com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O con­ceito nasce basea­do em sociedades autoritárias. Os insi­la­dos ficam pre­sos no país sofren­do os des­man­dos do regime. Ilie dis­cute o inner exilie da sociedade espan­ho­la sob o regime fran­quista, não exi­ladas de acor­do com o mod­e­lo clás­si­co, mas tiver­am a liber­dade restri­ta, sofren­do com a negação, dom­i­nação, anu­lação, intolerância.

    BIBLIOGRAFIA

    Livros

    • GULLAR, Fer­reira
      • Inda­gações de hoje. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 1989.
      • Poe­ma sujo. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 2013.
    • LEMINSKI, Paulo
      •  Capri­chos e Relax­os. São Paulo: Brasiliense, 1983.
      • Dis­traí­dos Vencer­e­mos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
      • Anseios Críp­ti­cos, Curiti­ba: Cri­ar Edições, 1985.
      • Um Escritor na Bib­liote­ca, Curiti­ba: Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná, 1985.
      • La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.
      • Poe­sia, paixão da lin­guagem. In: Novaes, Adau­to (Org.) Os sen­ti­dos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
      • Uma car­ta uma brasa através – car­tas a Régis Bon­vi­ci­no. 1976–1981 São Paulo: Ilu­min­uras, 1992.
    • SANTIAGO, Sil­viano
      • Nas Mal­has da Letra. São Paulo: Com­pan­hia das Letras, 1989.

    Doc­u­men­tos eletrônicos

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.

  • Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Have you run your fin­gers down the wall and have you felt your neck skin crawl when you’re search­ing for the light? Some­times when you’re scared to take a look at the cor­ner of the room, you’ve sensed that some­thing’s watch­ing you.”

    (Você já cor­reu seus dedos pela parede e sen­tiu a pele da sua nuca arrepi­ar quan­do está procu­ran­do pela luz? Algu­mas vezes, quan­do você está com medo de olhar no can­to da sala, você sente que algu­ma coisa está lhe obser­van­do. – tradução livre).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livroNa músi­ca “Fear of the Dark”, com­pos­ta pela idol­a­tra­da ban­da Iron Maid­en, o medo do escuro con­some, gera angús­tia e provo­ca o ator­men­ta­do pro­tag­o­nista, que pas­sa a apre­sen­tar uma fobia incon­troláv­el. Para ele, a ausên­cia de luz rev­ela o pavor impalpáv­el e arrepi­ante da “certeza de que há alguém lá”, escon­di­do nas som­bras. Essa mes­ma ideia está pre­sente no livro “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” (edi­to­ra Bagaço, 2007, 127 pági­nas), coletânea de relatos, con­tos e cau­sos sele­ciona­dos por Rober­to Bel­trão. Os acon­tec­i­men­tos fazem refer­ên­cia à cidade de Recife, cap­i­tal de Per­nam­bu­co, con­heci­da no país como pal­co de fenô­menos sobre­nat­u­rais e ativi­dades fantasmagóricas.

    A ideia da coletânea nasceu da paixão de três jovens ami­gos pelo assun­to, impul­sion­a­dos pela leitu­ra do livro “Assom­brações do Recife Vel­ho”, de Gilber­to Freyre. Na época, os rapazes estavam plane­jan­do pub­licar um jor­nal ou escr­ev­er um livro sobre o tema, mas o assun­to foi abafa­do com o pas­sar do tem­po. No entan­to, no iní­cio de 2000, a temáti­ca voltou à tona com força total na vida do trio, resul­tan­do na cri­ação do site O Recife Assom­bra­do, espaço onde os inter­nau­tas podem colab­o­rar com depoi­men­tos, con­tos e nar­ra­ti­vas de ficção sobre exper­iên­cias inexplicáveis.

    Em 2002, o site foi indi­ca­do pelo insti­tu­to iBEST como um dos dez mel­hores sites pro­duzi­dos em Per­nam­bu­co. No espaço, os con­tos ficam lado a lado com quadrin­hos, relatos, nar­ra­ti­vas em áudio e links de vídeos. Todo esse mate­r­i­al foi sele­ciona­do pelo jor­nal­ista Rober­to Bel­trão, um dos rapazes do trio, e pub­li­ca­do como coletânea.

    The Haunted House (Daniele Montella)
    The Haunt­ed House (Daniele Montella)

    Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” mis­tu­ra a ficção do uni­ver­so literário (con­tos) com relatos de teste­munhas, iden­ti­fi­cadas ou não. Entre lendas urbanas, estórias e ficções, o leitor entra em con­ta­to com o uni­ver­so intangív­el da vida após a morte, tema que con­tin­ua impres­sio­n­an­do e per­tur­ban­do o homem.

    Ghosts (Joe-Roberts)
    Ghosts (Joe-Roberts)

    Muito antes do pre­domínio do cin­e­ma, tele­visão, rádio e inter­net, as nar­ra­ti­vas orais eram respon­sáveis pela con­strução do con­hec­i­men­to e das exper­iên­cias, repas­sadas de ger­ação em ger­ação. Na roda de con­ver­sas, criat­uras medonhas exer­ci­am papel essen­cial na hora de “edu­car” cri­anças, repri­m­in­do-as. Cau­sos como “o vel­ho do saco” (sujeito que rap­ta e come cri­anças), “a loira do ban­heiro” (aparição que escol­he ban­heiros esco­lares para se mate­ri­alizar) e a “per­na cabe­lu­da” (per­na licantropa que agride transe­untes em ple­na madru­ga­da) eram repas­sa­dos de boca em boca, deixan­do os pequenos, assim como os mar­man­jos, ater­ror­iza­dos. Ativi­dades mediúni­cas, como a con­heci­da “brin­cadeira do copo” (uma supos­ta invo­cação de espíri­tos) são trans­mi­ti­das até hoje entre gru­pos, cau­san­do grande fris­son. Fan­tas­mas, chama­dos muitas vezes de ‘almas penadas’, ain­da são os campeões de audiên­cia no que se ref­ere a relatos fantásticos.

    Residên­cias mal assom­bradas, sons de gri­tos, choros, ranger de dentes, vul­tos brux­u­leantes e mor­tais apa­vo­ra­dos com a pos­si­bil­i­dade de con­ta­to com o além estão entre as nar­ra­ti­vas espal­hadas pelo livro de Bel­trão. Há sem­pre um espíri­to incon­for­ma­do para faz­er com­pan­hia a moradores apa­vo­ra­dos. Den­tre os relatos e con­tos, destaque para Casarão de Setúbal, O baú, O pré­dio do Espin­heiro, A casa, O caseiro e Madru­ga­da no quar­tel, por retratarem histórias de man­i­fes­tações para­nor­mais fazen­do asso­ci­ação a obje­tos e lugares. A série Haunt­ed Col­lec­tor, veic­u­la­da pelo canal de TV por assi­natu­ra Syfy, abor­da exata­mente essa conexão entre matéria (físi­co, cor­po) e ener­gia (espíri­to, metafísica).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livro-3Na parte aber­ta­mente fic­cional, não pude deixar de notar a semel­hança entre o con­to “O demônio e a rosa”, escrito por Lil­iane Batista de Moura, com a ficção de Robert Louis Steven­son (1850–1894) em “Janet do pescoço tor­ci­do” (Thrawn Janet). Steven­son ficou con­heci­do mundial­mente pela nov­ela “O médi­co e o mon­stro” (The strange case of Doc­tor Jekyll and Mis­ter Hyde), pub­li­ca­da em 1886.

    Janet do pescoço tor­ci­do” e “O demônio e a rosa” falam sobre mul­heres amaldiçoadas por faz­erem pacto com o demônio, cuja aparên­cia e com­por­ta­men­to reme­tem a um esta­do “mor­to-vivo”, que enche de hor­ror todos os que se aprox­i­mam. A semel­hança entre Rosa e Janet é grande, des­de o aci­dente que sofrem até a aparên­cia físi­ca que adquirem.

    Em “Vírginia”, o con­to chama a atenção pelo caráter ultra­r­român­ti­co, onde é pos­sív­el localizar car­ac­terís­ti­cas como fuga da real­i­dade para o mun­do da fan­ta­sia, ide­al­iza­ção da mul­her ama­da, escapis­mo e con­sciên­cia da solidão. O nar­rador nun­ca chegou a con­hecer Virgí­nia, mul­her por quem se apaixo­nou, já que a moça mor­reu muitos anos antes. Ao olhar seu retra­to em uma lápi­de no cemitério, o pro­tag­o­nista começa a imag­i­nar a mor­ta e dese­já-la. A con­se­quên­cia desse amor tran­scende expli­cações razoáveis e cul­mi­na em ativi­dades paranormais.

    "Saturno devorando seu filho'' (Francisco Goya)
    “Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho” (Fran­cis­co Goya)

    Histórias Medonhas” é inter­es­sante, diver­tido e, antes de provo­car ter­ror ou espan­to, inci­ta a imag­i­nação do leitor. São histórias de criat­uras bizarras e almas penadas que começam a causar pal­pi­tações na infân­cia, seguin­do para out­ras fas­es da vida com maior ou menor inten­si­dade. O mis­tério da morte ain­da obce­ca o homem, desafian­do sua pre­ten­são de explicar, à luz da ciên­cia, todos os fenô­menos que o cercam.

    Para quem é fasci­na­do pelas histórias de Edgar Allan Poe, Robert Louis Steven­son, Charles Dick­ens, Álvares de Azeve­do, Guy de Mau­pas­sant e Hen­ry James, as pági­nas de “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” vão con­seguir atrair, diver­tir ou, quem sabe, assombrar.

  • Quem quer criar desordem?

    Quem quer criar desordem?

    Leonilson (por Leonilson)
    (Desen­ho por Leonilson)

    Uma vez uma ami­ga veio em casa e comen­tou: “As pes­soas dizem: não ligue para a bagunça. Mas todo mun­do tem a casa bagunça­da.” Era uma obser­vação sobre a des­or­dem per­ma­nente de min­ha casa. Livros por todos os lados, blo­cos de ano­tação, cader­nos, cópias de xerox, uma casa em que o papel pre­dom­i­na e causa des­or­dem. Gostei do comen­tário da ami­ga. Depois dis­so, pas­sei a não me impor­tar que as vis­i­tas vis­sem a casa em caos.

    Fico com medo de entrar em casas limpas e orga­ni­zadas demais. Medo de pis­ar no chão limpo e bril­hante. Medo de sen­tar no sofá limpo e bril­hante. Uma ami­ga tem uma casa tão limpa e orga­ni­za­da que ten­ho medo de sen­tar no sofá e mor­rer. Lem­bro o sofá de Julio Cortázar, com uma estre­lin­ha pon­ti­agu­da, no qual as cri­anças con­vi­davam as vel­hin­has chatas a sentarem para morrer.

    Na casa da min­ha avó havia uma geladeira que só fecha­va com bar­bante. Ela aproveita­va o jor­nal que meus tios liam para for­rar o chão onde caía gor­du­ra do fogão. Quan­do cri­ança, eu não acha­va sua casa uma bagunça. Não sabia que orga­ni­zar o espaço é fun­da­men­tal para a vida ter um pru­mo, como ensi­nam os admin­istradores de tem­po. Na casa da avó tín­hamos liber­dade máx­i­ma para não nos pre­ocu­par­mos em não sujar e não bagunçar nada. Era o lugar em que bom­bons e piz­zas sur­giam de for­ma mágica.

    Na casa de Hélio Leites há obje­tos inúteis por todos os lados. Latas de sardinha, botas, sap­atos, livros, pedaços de papel, embal­a­gens de leite. Tudo que ele usa em suas cola­gens. Entre várias asso­ci­ações estapafúr­dias que criou, Hélio fez parte do clube de Arte Postal, e “guar­da” os cartões entre para­fu­sos, por­cas, potes de iogurte, chaves. Desco­bri, entre seus papéis, o bole­tim Hitlelíri­co, com paró­dias inspi­radas no Grande Dita­dor. E tam­bém arti­gos, goza­ções homéri­c­as, pub­li­ca­dos no jor­nal “O Esta­do do Paraná”.

    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)
    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)

    Na chá­cara de Hil­da Hilst, em Camp­inas, os cachor­ros dormi­am em cima de sua cama. O jardim era seco e ela bebia nos fins de tarde. Tive emoções difusas nos dois dias em que estive lá. Ouvi histórias sobre abor­tos, a mágoa por ter sido “esque­ci­da” pelos críti­cos, menos Léo Gilson Ribeiro. A visi­ta se deu antes que Fer­nan­da Mon­tene­gro ence­nasse “A obsce­na sen­hor D.” e Hil­da tivesse a sua obra repub­li­ca­da pela Edi­to­ra Globo. Ela fica­va na sala, beben­do com os ami­gos. Mas quan­do estive em sua casa, ficou impres­sion­a­da com o meu silên­cio e veio descas­car batatas comi­go, na coz­in­ha. E con­fi­den­ciou: “ten­ho pena dos poet­as, são tão sozinhos.”

    Hilda Hilst
    Hil­da Hilst

    Na sala de min­ha ter­apeu­ta há livros espal­ha­dos numa mesa que ela nun­ca arru­ma. Muitas vezes pen­sei porque uma pes­soa respon­sáv­el por aju­dar a orga­ni­zar o caos inte­ri­or de out­ros man­tém uma mesa de tra­bal­ho em des­or­dem. Na últi­ma vez em que estive com ela, desco­bri. É pre­ciso aceitar a des­or­dem inte­ri­or. Não sabe­mos de tudo, não vemos tudo. O que está em aparente des­or­dem, pode estar afi­na­do na ordem de um sis­tema — famil­iar, comu­nitário, social, galáctico.

    Durante anos me pre­ocu­pei por não ser orga­ni­za­da, nem pro­du­ti­va, efi­ciente e útil. Ler, escr­ev­er, con­ver­sar, dis­cu­tir são uma enorme per­da de tem­po. Hoje sei que isso é ape­nas um pon­to de vista. É pre­ciso perder tem­po, deixar-se des­or­ga­ni­zar-se. Quan­do se entende o que é ter equi­líbrio, a orga­ni­za­ção vai acon­te­cen­do sem perceber.

  • O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    Se a dor da invis­i­bil­i­dade está por trás de uma doença social, parte da cura está em tornar-se visível.

    o-misterio-das-bolas-de-gude-de-gilberto-dimenstein-livro-capaO tre­cho aci­ma dá a tôni­ca do livro “O mis­tério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis” (edi­to­ra Papirus, 2006, págs. 192), escrito pelo jor­nal­ista Gilber­to Dimen­stein, con­heci­do por atu­ar em impor­tantes veícu­los de comu­ni­cação brasileiros e ide­alizar pro­je­tos soci­ais e cul­tur­ais, den­tre eles o Cidade Esco­la Apren­diz e o site cul­tur­al Catra­ca Livre. Fin­ca­da em inves­ti­gações jor­nalís­ti­cas e reg­istros de via­gens, orde­na­dos como um diário pes­soal, a obra per­corre o uni­ver­so de seres humanos mar­gin­al­iza­dos, rejeita­dos e excluí­dos da teia social. O jor­nal­ista faz emer­gir a dolorosa sobre­vivên­cia de home­ns, mul­heres e cri­anças que, igno­ra­dos e evi­ta­dos por uma sociedade cega e can­cerí­ge­na, não se sen­tem parte do mun­do, mem­bros efe­tivos de um lugar.

    Entre os excluí­dos estão pros­ti­tu­tas, vici­a­dos, traf­i­cantes, mães ado­les­centes, meni­nos de rua, cri­anças explo­radas e escrav­izadas sex­ual­mente, por­ta­dores do vírus HIV e chefes de facções crim­i­nosas. Por meio da nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, inter­cal­a­da pelas vozes das per­son­agens de cada história verídi­ca, acom­pan­hamos relatos que chocam, depoi­men­tos que machu­cam e dados estatís­ti­cos espan­tosa­mente reais.

    Gilber­to Dimen­stein fala sobre os para­dox­os encon­tra­dos nas mais difer­entes regiões brasileiras, onde bol­sões de mis­éria con­trastam com man­sões sun­tu­osas. Se de um lado, meni­nas são obri­gadas a leiloar sua vir­gin­dade para con­tin­uarem vivas, no out­ro extremo há fil­hos de lat­i­fundiários dis­pos­tos a pagar peso de ouro para “desvir­ginar” cri­anças de doze anos. Enquan­to pes­soas vivem em meio a restos de comi­da, excre­men­tos e dro­gas, com­ple­ta­mente entor­peci­das pelo uso do nar­cóti­co, a força poli­cial espan­ca, hos­tiliza e mata.

    Gilberto Dimenstein
    Gilber­to Dimenstein

    Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade são muitos: cri­anças escrav­izadas para o mer­ca­do do sexo, ado­les­centes jura­dos de morte por chefes do trá­fi­co, bebês espan­ca­dos até a morte por pais dese­qui­li­bra­dos, inter­nos tor­tu­ra­dos den­tro de insti­tu­ições repres­so­ras, por­ta­dores da AIDS trata­dos com pre­con­ceito e aver­são. Essas são algu­mas das real­i­dades descorti­nadas pelo jor­nal­ista, mostran­do que por trás das fachadas mega­lo­manía­cas da famosa Aveni­da Paulista, local­iza­da na maior metró­pole brasileira, escon­dem-se histórias de indi­ví­du­os que há muito tem­po esque­ce­r­am-se de sua condição de pes­soa humana, ten­do o dire­ito à cidada­nia cotid­i­ana­mente usurpado.

    No entan­to, ao lado da tragé­dia, Dimen­stein tam­bém abor­da as “pontes de resistên­cia” cri­adas por pes­soas cujo obje­ti­vo é trans­for­mar a injus­ta e depri­mente real­i­dade em algo mel­hor. Ten­do como armas a per­sistên­cia, teimosia e amor ao próx­i­mo, vol­un­tários se reúnem doan­do tem­po e recur­sos para mudar a vida de out­ras pes­soas. O livro elen­ca exem­p­los de pro­je­tos que nasce­r­am den­tro de fave­las, orga­ni­za­ções não gov­er­na­men­tais de apoio as mais vari­adas causas, cidadãos anôn­i­mos que não esper­aram finan­cia­men­to gov­er­na­men­tal para inve­stir em jovens e ado­les­centes em situ­ações de risco social, entre muitos outros.

    Gilberto Dimenstein
    O autor

    A arte, a músi­ca, a poe­sia, a edu­cação e o tra­bal­ho se trans­for­mam em refú­gio, pro­por­cio­nan­do reflexão e mudança. Se, como propõe a obra de Gilber­to Dimen­stein, a vio­lên­cia está dire­ta­mente lig­a­da à sen­sação de mar­gin­al­i­dade e invis­i­bil­i­dade, esse é o pon­to de par­ti­da para a mudança que faz nascer o sen­ti­men­to de pertença e recon­hec­i­men­to do out­ro como ser humano, que par­til­ha dos mes­mos dire­itos e deveres. A coop­er­ação faz parte do desen­volvi­men­to humano e social, equi­li­bran­do e pro­por­cio­nan­do condições justas.

    O mis­tério das bolas de gude” esboça novas rotas e pro­postas para a recon­quista da cidada­nia, bem tão caro para pes­soas em situ­ação de risco, além de traz­er à tona temas del­i­ca­dos e necessários. O livro peca pelo deslum­bra­men­to inocente que Gilber­to Dimen­stein apre­sen­ta ao escr­ev­er sobre os exem­p­los de suces­so norte-amer­i­canos – obser­va­dos no perío­do em que o jor­nal­ista foi cor­re­spon­dente do jor­nal Fol­ha de São Paulo em Nova York –, bem como a ausên­cia de críti­cas às práti­cas nada igual­itárias de insti­tu­ições e gru­pos brasileiros que detém o poder e manip­u­lam o apar­el­ho estatal; organ­is­mos estes que finan­ciam o trá­fi­co, explo­ram a mão de obra tra­bal­hado­ra e fecham os olhos para todos aque­les que não fazem parte da engrenagem impos­ta, trans­for­man­do o que está fora do jogo em meras peças invisíveis.

  • Olhar por trás de estantes

    Olhar por trás de estantes

    Biblioteca de Leminski, fotografada sem produção prévia. Foto : Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira).
    Bib­liote­ca de Lemins­ki, fotografa­da sem pro­dução prévia.
    Foto : Car­los Rober­to Zanel­lo de Aguiar (Macax­eira).

    Des­de ado­les­cente fre­quen­to bib­liote­cas públi­cas. Quan­do cri­ança, não. Nas esco­las em que estudei, em Paranaguá, não havia bib­liote­cas. Uma vez, uma pro­fes­so­ra inven­tou uma bib­liote­ca ambu­lante. Cada aluno dev­e­ria levar um livro. Não fun­cio­nou. Ninguém lev­ou livros. Quan­do mudei para Curiti­ba, pas­sa­va um tem­pão passe­an­do pelos corre­dores da Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Min­has estantes preferi­das eram as de lit­er­atu­ra brasileira e poe­sia. Tam­bém pas­sei quase cem anos de solidão e areia diante da lit­er­atu­ra em lín­gua espan­ho­la, quan­do desco­bri Gabriel Gar­cia Márquez e Jorge Luis Borges.

    Uma bib­liote­ca que sem­pre me fas­ci­nou foi a da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, quan­do ain­da não era alu­na. A diver­si­dade de títu­los, e em lín­guas difer­entes impres­sion­a­va. Lem­bro do encan­to por um livro de Luís da Câmara Cas­cu­do sobre lendas brasileiras. Quan­do me tornei alu­na, pude emprestar um livro de poe­mas de Manuel Ban­deira traduzi­dos para o francês. Mais tarde, na pós-grad­u­ação, li livros sobre lit­er­atu­ra japonesa.

    Out­ra bib­liote­ca que gostei de con­hecer foi a do Insti­tu­to Goethe. Fre­quentei pouco, mas quan­do a con­heci, era uma novi­dade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, vis­itei bib­liote­cas que tam­bém tin­ham seções mul­ti­mí­dia. E nas quais pas­sa­va horas lendo revis­tas sobre todo o tipo de assunto.

    Nesse ano con­heci a bib­liote­ca do Insti­tu­to de Estad­ual de Edu­cação Eras­mo Pilot­to, esco­la na qual Hele­na Kolody foi pro­fes­so­ra. Uma ami­ga, a poeta Jane Sprenger Bod­nar, tra­bal­ha lá. O acer­vo, emb­o­ra seja uma bib­liote­ca esco­lar, é diver­si­fi­ca­do. Além de lit­er­atu­ra e edu­cação, há livros sobre cul­tura pop­u­lar. Pena que pre­cise de refor­mas e não rece­ba atenção do gov­er­no do estado.

    Biblioteca Pública do Paraná (Foto: Yasmin Taketani)
    Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná (Foto: Yas­min Taketani)

    Ape­sar de ter sido reestru­tu­ra­da, espe­cial­mente na área de comu­ni­cação visu­al, hoje ten­ho medo de voltar à Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Lit­er­atu­ra que me inter­es­savam. Há poucos títu­los novos. Con­fes­so que ler os autores da lit­er­atu­ra con­tem­porânea, cel­e­bra­dos em even­tos pro­movi­dos pela própria BPP me atemoriza.

    Não con­si­go mais exercer o rit­u­al juve­nil, de aven­tu­rar entre as estantes para desco­brir um livro estran­ho. Falan­do em estran­heza, tem­pos atrás havia leitores bizarros entre os fre­quen­ta­dores da BPP. Escritores, artis­tas, design­ers, jor­nal­is­tas? Não: sem-teto ou desem­pre­ga­dos, enfur­na­dos nas salas de leitu­ra. A neolib­er­al­iza­ção do lugar expul­sou os bizarros, que devem ter volta­do para o seu lugar: as ruas.

    Cer­ta vez, num pro­gra­ma de tevê, vi a bib­liote­ca da pro­fes­so­ra de lit­er­atu­ra Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em des­or­dem e as estantes roí­das por cupins. Des­or­dem igual às das bib­liote­cas do poeta Paulo Lemins­ki e do ilustrador Clau­dio Seto. Nem tudo está con­forme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que impor­ta é ali­men­tar os ratos de bib­liote­ca. Em tem­po de bien­ais e grandes even­tos de lit­er­atu­ra, bib­liote­cas cheias de poeira são um refú­gio con­tra os que cobrem a história com verniz.

  • Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    boneco-de-neve-de-jo-nesbo-livro-capaUm trau­ma emo­cional é o tipo de veneno com grande con­cen­tração de sub­stân­cias mortíferas. Agin­do inter­na­mente e induzin­do a um grande sofri­men­to, o trau­ma quase sem­pre vem acom­pan­hado de esta­dos físi­cos ou psíquicos lesion­a­dos pelo tem­po e pelas vivên­cias neg­a­ti­vas acu­mu­ladas. Sor­rateira­mente, ele vai crescen­do em dimen­sões e poder destru­ti­vo, e tal qual uma epi­demia, é difí­cil extirpá-lo.

    Retal­hos de difer­entes trau­mas com­põem a obra “Boneco de Neve” (orig­i­nal Snø­man­nen, tradução de Grete Ske­vik, edi­to­ra Record, 2013, págs. 420), séti­mo livro da série “inspetor Har­ry Hole”, tra­bal­ho do escritor, músi­co e econ­o­mista norueguês Jo Nes­bø. Acla­ma­do na Europa e em fran­ca ascen­são pelo mun­do, Nes­bø já vendeu mais de 20 mil­hões de livros, con­qui­s­tan­do o Prêmio Glass Key como mel­hor romance nórdi­co de 1998.

    Na obra “Boneco de Neve”, o ter­ror psi­cológi­co dos thrillers poli­ci­ais lança­dos pelo autor norueguês retor­na com força total, per­son­ifi­ca­do ago­ra pela pre­sença do assas­si­no em série que, antes de sumir com as víti­mas, deixa um “sim­páti­co” bonequin­ho feito de gelo em frente ao local em que comete os seque­stros. O lunáti­co cos­tu­ma atacar sem­pre quan­do cai a primeira neve do ano, agin­do den­tro de um padrão. Desco­brir que tipo de lin­ha de ação e quais são os mod­e­los (e seg­re­dos) que ori­en­tam o ser­i­al killer é tare­fa do prob­lemáti­co inspetor Har­ry Hole.

    Mar­ca­do pelas trág­i­cas lem­branças de um pas­sa­do tumul­tua­do, Hole amar­ga o rompi­men­to de um rela­ciona­men­to, a morte de ami­gos em mis­são, o defin­hamen­to da mãe em um leito de hos­pi­tal, além de situ­ações famil­iares com­pli­cadas e a dependên­cia do álcool. Quan­do donas de casa começam a desa­pare­cer mis­te­riosa­mente, com a pos­te­ri­or des­o­va de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o trauma­ti­za­do inspetor começa a medir pis­tas, con­tan­do com a aju­da da poli­cial Katrine Bratt, recém-integra­da à cor­po­ração em que Har­ry é lotado.

    Jo Nesbø por Cato Lein
    Jo Nes­bø por Cato Lein

    A tra­ma é estru­tu­ra­da com idas e vin­das na ordem cronológ­i­ca, além de digressões dos per­son­agens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A nar­ra­ti­va é inten­sa, reple­ta de picos de ten­são, mis­tu­ran­do ele­men­tos macabros e per­tur­badores, mas sem apelar para a escat­olo­gia vis­cer­al de livros como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, de Bret Eas­t­on Ellis. O grande trun­fo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enig­ma ao desafi­ar a per­cepção do leitor; a todo o momen­to, o sen­so de obser­vação é colo­ca­do à pro­va, pois cada detal­he rev­ela mais – ou menos – do que aparenta.

    Con­fes­so que antes de começar a leitu­ra, subes­timei o emble­ma do boneco de neve como assi­natu­ra de um assas­si­no per­ver­so. Lig­a­da à figu­ra do ‘homem de gelo’ como metá­fo­ra natali­na próx­i­ma do uni­ver­so infan­til, não con­segui perce­ber de ime­di­a­to que nes­sa escol­ha tam­bém reside uma pista impor­tante. De obje­to lúdi­co à mar­ca de crime, a imagem do boneco atrav­es­sa cic­los difer­entes, que aju­dam a com­preen­der um pouco do uni­ver­so que o autor apresentou.

    O autor por Niklas R. Lello
    O autor por Niklas R. Lello

    Seguin­do o rit­mo frenéti­co da obra, deslum­brei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e con­tin­u­assem em mar­cha, afi­nal, são 420 pági­nas vorazes. Inter­es­sante notar que a descrição físi­ca do poli­cial Har­ry Hole me fez supor que a per­son­agem pode se tratar de um alter ego de Jo Nes­bø, pois as asso­ci­ações são ime­di­atas. Fora isso, Nes­bø criou uma espé­cie de “cer­tidão pes­soal e profis­sion­al” para o pro­tag­o­nista de suas séries, com dire­ito a descrições de per­son­al­i­dade, cur­ricu­lum vitae, inter­ess­es, ambições e planos futur­os. Gostei de desco­brir que estou lig­a­da ao dete­tive ator­men­ta­do pelo gos­to musi­cal (Sex Pis­tols e Neil Young) e pela ambição pes­soal, que con­siste em enten­der o que é a mal­dade e o amor.

    Com­para­do pelo jor­nal britâni­co The Sun­day Times ao influ­ente “O silên­cio dos inocentes”, do escritor Thomas Har­ris, a carnific­i­na silen­ciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a pen­e­trar em uma ver­são mod­er­na do mitológi­co labir­in­to de Déda­lo, onde uma besta movi­da por emoções humanas seques­tra e aniquila suas víti­mas, deixan­do um ras­tro silen­cioso de ter­ror. Jo Nes­bø cati­va o leitor ao traz­er o dia­bóli­co e a redenção lado a lado, em capí­tu­los que pul­sam, dilatam e escon­dem. Uma dica pre­ciosa: este­ja aten­to aos mín­i­mos detal­h­es e sím­bo­los espal­ha­dos em toda a nar­ra­ti­va. Como escreveu o dra­matur­go William Shake­speare na peça “Mac­beth”: “Pelo comichar do meu pole­gar, sei que deste lado vem vin­do um malvado”.

    Assista o book trail­er sen­sa­cional do livro (ver­são do Reino Unido):

  • Um homem que escreve jamais está só

    Um homem que escreve jamais está só

    Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e Jamil Snege
    Valên­cio Xavier, Manoel Car­los Karam e Jamil Snege

    Quem escreve con­to ou poe­sia pre­de­ter­mi­na que não terá públi­co em mas­sa. Con­to e poe­sia são gêneros des­ti­na­dos a um públi­co fora do alvo do mer­ca­do edi­to­r­i­al. Uma ex-jor­nal­ista que tra­bal­ha no mer­ca­do adverte: se quis­er entrar, o can­dida­to a escritor tem que escr­ev­er romance. Autores pub­li­ca­dos por grandes edi­toras são romancis­tas. Exceção, os con­sagra­dos ao lon­go do tem­po. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.

    Valên­cio Xavier, Jamil Snege, Manoel Car­los Karam, Wil­son Bueno talvez sejam daque­le tipo de autores que jamais atin­jam o grande públi­co. O “grande públi­co”, essa enti­dade fan­tás­ti­ca que lê “50 tons de cin­za”, “O diário de um mago”, “Har­ry Pot­ter” e é visa­do pelo mer­ca­do, nem sem­pre se inter­es­sa por boa lit­er­atu­ra. Assim, se pri­va de ler, além dos já cita­dos, Nel­son de Oliveira, Luiz Ruffa­to, Ricar­do Lísias e J.M. Coet­zee. E, claro, nem quer saber de poe­sia. A não ser que o poeta se torne um fenô­meno com­er­cial, como Paulo Lemins­ki. O grande públi­co seguirá igno­ran­do as obras de Alice Ruiz, Paulo Hen­riques Brit­to, Adília Lopes, Miche­liny Verun­schk. Lerá, quan­do muito, Manoel de Bar­ros.

    Wilson Bueno, Nelson de Oliveira e Luiz Ruffato
    Wil­son Bueno, Nel­son de Oliveira e Luiz Ruffato

    Recon­heci­do pela críti­ca, Valên­cio mor­reu “esque­ci­do” . Tão esque­ci­do que nem sabia mais diz­er seu nome. Em vida, Valên­cio era esque­ci­do. Pela man­hã tele­fon­a­va aos ami­gos para con­tar casos que repe­tiria à noite, quan­do os encon­trasse. Era o iní­cio do “Alemão”. A doença não cor­tou a verve cria­ti­va e per­maneceu lúci­do. A frase der­radeira do últi­mo livro, “Rre­men­branças da meni­na de rua mor­ta nua e out­ros livros”, pub­li­ca­do em 2006 é: “Estou mor­to.” Valên­cio, ele mes­mo, era seu per­son­agem. Seguiu estri­ta­mente o con­sel­ho de Roland Barthes que dizia: “tra­bal­he enquan­to hou­ver sol.” A luz da razão per­maneceu até o lim­ite da lucidez.

    Há alguns anos, Daniel Fil­ho lançou uma biografia inti­t­u­la­da “Antes que me esqueçam”. Atores globais e out­ras cele­bri­dades lançam biografias e livros para não serem esque­ci­dos. O livro, obje­to mis­te­rioso numa cul­tura midiáti­ca audio­vi­su­al, é um amule­to que asse­gu­rará a imor­tal­i­dade dos tementes do Juí­zo da Eternidade. É fácil pre­v­er que, à parte sua neces­si­dade de ser irra­di­a­da pelo públi­co, em pouco tem­po essas cele­bri­dades serão esquecidas.

    Ricardo Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee
    Ricar­do Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee

    Na Antigu­idade, os reis não podi­am ser vis­tos pelo povo, nas tri­bos prim­i­ti­vas. Como eram con­sid­er­a­dos deuses, não podi­am tocar o solo impuro, toca­do por todos. Eram lhes atribuí­dos poderes de con­tro­lar as forças da natureza e pro­por­cionar boas col­heitas na agri­cul­tura. Mas seus poderes só se man­tinham intac­tos longe do povo. Assim, criou-se o vín­cu­lo entre objetos/entidades sagra­dos e sua ocul­tação ou vela­men­to públi­co. Aparente­mente, a era da repro­dução instan­tânea inver­teu o par­a­dig­ma. Ago­ra, o que deve ser cul­tua­do têm que ser superexposto.

    Michelliny Verunschk, Paulo Henriques Brito e Adília Lopes
    Michelliny Verun­schk, Paulo Hen­riques Brito e Adília Lopes

    Um pas­so para além da neces­si­dade de pub­li­ci­dade, o val­or do obje­to artís­ti­co per­manece igual ao de ger­ações pas­sadas. A memória humana não é preser­va­da nos obje­tos que seduzem instan­ta­nea­mente. Mas naque­les em que se percebe o val­or do tra­bal­ho e da luta pela preser­vação da humanidade. No caso da lit­er­atu­ra, o tra­bal­ho com a lin­guagem e a lín­gua: novas per­cepções, conexões, saltos cria­tivos. Por isso, escritores como Valên­cio Xavier não são esque­ci­dos. O sol bril­hou em seu sig­no astral, até sua luz sumir no hor­i­zonte. Esse tími­do raio de sol será vis­to por anos.

  • Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Foto: Damião A. Francisco
    Foto: Damião A. Francisco

    Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

    Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

    Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

    2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

    A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

    Foto: Grupo Estadão
    Foto: Grupo Estadão

    No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

    Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Pâni­co Band — Podcast

    Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

    É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

    Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

    Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

    A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

    Foto: Daniel Deak
    Foto: Daniel Deak

    No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

    Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

    Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.

  • Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    You and I are under­dosed and we’re ready to fall. Raised to be stu­pid, taught to be noth­ing at all. I don’t like the drugs but the drugs like me. (…) There’s a hole in our soul that we fill with dope. And we’re feel­ing fine”.

    (Você e eu esta­mos dopa­dos, e nós esta­mos pron­tos para cair. Cri­a­dos para ser­mos estúpi­dos, ensi­na­dos a não ser nada. Eu não gos­to das dro­gas, mas elas gostam de mim. (…) Há um bura­co em nos­sas almas que preenchemos com dro­gas, e nós esta­mos nos sentin­do bem – tradução livre).

    O tre­cho aci­ma per­tence à músi­ca “I don’t like the drugs (But the drugs like me)”, lança­da pela ban­da Mar­i­lyn Man­son no álbum “Mechan­i­cal Ani­mals” (1998). O vocal­ista e per­former norte-amer­i­cano Bri­an Warn­er, con­heci­do mundial­mente pelo pseudôn­i­mo que deu nome à ban­da, car­rega nas costas inúmeras polêmi­cas e escân­da­los, dos quais se desta­cam o uso abu­si­vo de dro­gas, per­for­mances de pal­co con­sid­er­adas insól­i­tas, além de ter tido seu nome asso­ci­a­do ao Mas­sacre de Columbine, uma das mais ter­ríveis tragé­dias envol­ven­do ado­les­centes e assas­si­na­to nos Esta­dos Unidos.

    Marilyn Manson (Brian Warner)
    Mar­i­lyn Man­son (Bri­an Warner)

    No álbum “Mechan­i­cal Ani­mals”, Mar­i­lyn Man­son fala aber­ta­mente sobre a degradação de uma sociedade vazia, nar­co­ti­za­da e mecan­iza­da, onde só há lugar para “sis­temas ner­vosos desati­va­dos” (Dis­as­so­cia­tive) e “pílu­las para entor­pecer, embur­recer e trans­for­mar você em out­ra pes­soa” (Coma White). Em 1985, treze anos antes do polêmi­co e pre­mi­a­do álbum de Man­son dividir opiniões, o escritor Bret Eas­t­on Ellis pub­li­ca­va Abaixo de Zero (orig­i­nal Less than Zero), seu livro de estreia. Assim como “Mechan­i­cal Ani­mals”, a obra de Eas­t­on Ellis foi igual­mente cer­ca­da por con­tro­vér­sias ao traz­er de for­ma crua e dire­ta o retra­to dete­ri­o­ra­do da ger­ação dos anos 80, afun­da­da em um mun­do onde fama, pornografia, dro­gas e crimes refletem a iden­ti­dade (ou a fal­ta dela) de jovens e adolescentes.

    Capa do livro pela editora L&PM
    Capa do livro pela edi­to­ra L&PM

    A nar­ra­ti­va começa com o retorno de Clay, pro­tag­o­nista da tra­ma, à casa dos pais em Los Ange­les para pas­sar o perío­do de férias da fac­ul­dade. Na vol­ta ao lar, Clay reen­con­tra os vel­hos ami­gos do colé­gio, assim como sua ex-namora­da, Blair. Todos eles têm em comum vidas super­fi­ci­ais, con­tro­ladas pela fal­sa ilusão de poder e, espe­cial­mente, pelo uso abu­si­vo de nar­cóti­cos. Clay vive em uma casa sem afe­to, sem saber dire­ito difer­en­ciar as irmãs pelo nome (ado­les­centes que con­somem cocaí­na sem o menor con­strang­i­men­to), cujos pais não pos­suem nen­hum sen­so de respon­s­abil­i­dade e com­pro­mis­so. Julian, um dos ami­gos mais próx­i­mos de Clay, entra no uni­ver­so da pros­ti­tu­ição mas­culi­na para man­ter o vício das dro­gas; Blair bus­ca refú­gio na bebi­da, e as demais com­pan­hias de Clay são com­postas por garo­tas bulími­cas, rapazes que banal­izam o ato sex­u­al, transformando‑o em um mero “por que não?”, além de vici­a­dos e traficantes.

    Inseri­das nesse meio, estão famílias despedaças, pais e mães atuan­do dire­ta­mente no show busi­ness hol­ly­wood­i­ano, mas sem saber como lidar com os próprios fil­hos – e sem o menor inter­esse em apren­der. Enquan­to isso, a dro­ga, o sexo e o din­heiro fácil roubam a tutela e dire­cionam a vida dess­es “fil­hos do vazio”, sem per­spec­ti­vas ou son­hos. Se a juven­tude é acla­ma­da como a fase das con­quis­tas e a luta por uma existên­cia com propósi­to, a ger­ação de Bret Eas­t­on Ellis gri­tou para ser sauda­da pela incon­se­quên­cia, alien­ação, pas­sivi­dade, pelo “desa­pareça aqui”. O enre­do de Abaixo de Zero (tradução de Rick Good­win, edi­to­ra L&PM em parce­ria com a edi­to­ra Roc­co, 2011, pág. 176) rev­ela mentes arru­inadas e cam­in­hos per­di­dos em uma nar­ra­ti­va inter­romp­i­da por flux­os de con­sciên­cia, memórias e lap­sos. O leitor exper­i­men­ta a pos­si­bil­i­dade de entrar na cabeça de Clay, sentin­do, obser­van­do e viven­do como se estivesse exata­mente na pele do pro­tag­o­nista. Essa téc­ni­ca pode ser encon­tra­da em out­ras obras de Eas­t­on Ellis, como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, que tam­bém abor­da, de for­ma incom­par­a­vel­mente vis­cer­al, o fun­do do poço da ger­ação per­di­da. As cica­trizes da época juve­nil con­ce­dem ao tra­bal­ho do escritor norte-amer­i­cano um tom quase biográ­fi­co, con­fes­sa­do por ele em entre­vista ao site Sab­o­tage Times, em que afir­ma ter sido Patrick Bate­man, pro­tag­o­nista do livro “O Psi­co­pa­ta Americano”.

    Christian Bale em "Psicopata Americano", dirigido por Mary Harron
    Chris­t­ian Bale em “Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, dirigi­do por Mary Harron

    Lev­a­do para as telonas, Abaixo de Zero foi estre­la­do por Andrew McCarthy, Robert Downey Jr. e James Spad­er, inter­pre­tan­do respec­ti­va­mente Clay, Julian e Rip. Ape­sar das polêmi­cas ini­ci­adas logo no primeiro romance, Bret Eas­t­on Ellis estende a temáti­ca e aler­ta para o prob­le­ma cen­tral do con­sumo desen­f­rea­do de dro­gas, soma­do à decadên­cia e o vazio exis­ten­cial do ser humano.

    Poster do filme dirigido por Marek Kanievska
    Poster do filme dirigi­do por Marek Kanievska

    A real­i­dade descri­ta nas obras de Bret Ellis em mea­d­os dos anos 80 não está tão dis­tante do cenário brasileiro encon­tra­do, por exem­p­lo, nas fes­tas regadas à bebidas, sexo bara­to e dro­gas, cap­i­taneadas por jovens da classe média alta em ambi­entes par­adis­ía­cos. Enquan­to o dese­jo de cur­tir a vida alcança o sta­tus de “feli­ci­dade supre­ma”, lema espal­ha­do por cam­pan­has pub­lic­itárias, pro­gra­mas e nov­e­las, o Brasil con­tabi­liza o infe­liz número de 370 mil usuários reg­u­lares de crack nas cap­i­tais de seus estados.

    Para quem ain­da ousa diz­er que “real­i­dade e ficção não se mis­tu­ram”, sugiro lig­ar a tele­visão em qual­quer canal, aces­sar a inter­net ou sin­tonizar a emis­so­ra de rádio. Dis­farçadas e ráp­i­das, elas estarão lá, em diver­sas cores, for­matos e taman­hos. Inúmeras promes­sas de ele­vação e pop­u­lar­iza­ção. O ciclo do vazio con­tin­ua e, como enlouquece Mar­i­lyn Man­son na músi­ca “The Dope Show”: “Eles te amam quan­do você está em todas as capas. Quan­do você não está, eles amam outro”.

  • Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

    Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

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    Capa do livro pela Com­pan­hia das Letras

    Nos últi­mos meses, o mun­do tem con­heci­do o poder da mobi­liza­ção pop­u­lar na Turquia, onde protestos reuni­ram quase 2,5 mil­hões de pes­soas. As cidades de Istam­bul e Ancara, esta últi­ma a cap­i­tal do país, con­cen­tram o maior número de atos de protesto con­tra o gov­er­no vigente. No Brasil, a situ­ação não tem sido difer­ente e, à semel­hança do que vêm acon­te­cen­do na Turquia, os movi­men­tos pop­u­lares estão sendo dura­mente reprim­i­dos por gov­er­nos autoritários e coercitivos.

    Antes dess­es impor­tantes acon­tec­i­men­tos soci­ais e políti­cos, a grande maio­r­ia dos brasileiros teve o primeiro con­ta­to com a cul­tura tur­ca através da afe­ta­da nov­ela glob­al Salve Jorge, com suas dançari­nas de olhos mar­ca­dos, cenários hiper­boli­ca­mente exóti­cos e uma pop­u­lação “arabesca”, bem ao gos­to dos fetich­es oci­den­tais. Diminuir a importân­cia de uma cul­tura transformando‑a em pro­du­to das indús­trias cul­tur­ais tem sido uma práti­ca incan­sáv­el de veícu­los de entreten­i­men­to e comu­ni­cação, bem como de insti­tu­ições sacra­men­tadas, que usam tudo o que podem para angari­ar lucros e difundir ideologias.

    Feliz­mente, não foi dessa vez que eu despen­quei no abis­mo desse esque­ma, pois meu inter­esse pela cul­tura tur­ca remete aos meus treze anos de idade, quan­do escutei pela primeira vez a músi­ca “Şımarık”, do can­tor e per­former Tarkan. De lá para cá, ten­ho sido guia­da por uma espé­cie de “mão invisív­el do des­ti­no” para tudo o que faz refer­ên­cia à Turquia: fiz grandes ami­gos em Istam­bul, Ancara, İzmir e Amas­ra, come­cei a apren­der a lín­gua do país e procu­rar por escritores, poet­as e músi­cos tur­cos. Foi assim que me deparei com Istam­bul – Memória e Cidade (orig­i­nal İst­anb­ul: Hatıralar ve Şehir), exten­so romance memo­ri­al­ista de Orhan Pamuk, primeiro escritor tur­co a rece­ber o Prêmio Nobel de Lit­er­atu­ra (ano de 2006). A edi­to­ra Com­pan­hia das Letras lançou a pub­li­cação brasileira em 2007, com tradução de Ser­gio Flaks­man e basea­da na tradução ingle­sa da obra, assi­na­da por Mau­reen Freely.

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    Orhan Pamuk

    As memórias auto­bi­ográ­fi­cas de Orhan Pamuk se mis­tu­ram a relatos de via­jantes oci­den­tais famosos, escritores tur­cos imer­sos em ruí­nas e tris­tezas e acon­tec­i­men­tos que mar­caram para sem­pre o coração da cidade mais famosa da Turquia. O livro é um apan­hado detal­ha­do da vida em Istam­bul com todas as suas belezas e decadên­cias, onde as ruas estão cer­cadas pelas man­sões dos anti­gos paxás, com­ple­ta­mente destruí­das pelo fogo e pelo tem­po; famílias ric­as dese­jam a qual­quer cus­to osten­tar uma imagem oci­den­tal­iza­da, desprezan­do tudo o que faz refer­ên­cia ao império otomano ou às tradições ori­en­tais. Entre citações de escritores tur­cos como Yahya Kemal, Reşat Ekrem Koçu, Ahmet Ham­di Tan­pı­nar e Ahmet Rasim, famosos por descreverem detal­h­es que até mes­mo uma boa parte dos “Istan­bul­lus” descon­hece, o pre­mi­a­do memo­ri­al­ista dá ao leitor um panora­ma ger­al da cidade que o viu nascer e crescer, capaz tam­bém de des­per­tar sen­ti­men­tos contraditórios.

    Orhan Pamuk nasceu em 1952, den­tro de uma família bur­gue­sa que entra­va grada­ti­va­mente em ruí­na finan­ceira. Jun­to com seu irmão mais vel­ho, Orhan cresceu rodea­do por par­entes e pela pre­sença autoritária da avó pater­na. Ape­sar das inten­sas dis­putas inter­nas pela posse de pro­priedades e bens, tios, tias, mães, pais, irmãos, sobrin­hos e avó se reu­ni­am na mesa de jan­tar e sus­ten­tavam as aparên­cias. Segun­do descrição con­ti­da no livro, esse tipo de com­por­ta­men­to inco­mo­da­va o escritor des­de pequeno, mas só ao pon­to de não inter­ferir em seu próprio mun­do. As brigas ger­adas no seio do Edifí­cio Pamuk trazi­am à tona a real­i­dade de uma sociedade des­gas­ta­da, arru­ina­da pelas mudanças que se oper­avam na ten­ta­ti­va de apa­gar o pas­sa­do, impon­do uma vida oci­den­tal­iza­da para esque­cer as ori­gens. A família Pamuk não era reli­giosa e não fix­a­va seus princí­pios em segui­men­tos tradi­cionais de obe­diên­cia cega, o que deixou espaço para um desen­volvi­men­to int­elec­tu­al e pes­soal maior. Orhan e seu irmão vivi­am no con­for­to de car­ros impor­ta­dos, esco­las caras e pas­seios famil­iares ao Bós­foro, desta­ca­do pelo autor como parte cen­tral da vida de qual­quer habi­tante de Istambul.

    Pintura de Melling, do livro "Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore"
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    O livro vem reple­to de fotografias em pre­to e bran­co – exata­mente como o autor con­cebe a cidade -, além de traz­er um min­u­cioso tra­bal­ho de pesquisa. Para falar a ver­dade, Orhan Pamuk colo­ca para fora toda a obsessão de memo­ri­al­ista que o persegue, com 408 pági­nas de uma trav­es­sia lenta, melancóli­ca e silen­ciosa, escri­ta em tons de cin­za. Para o “olhar oci­den­tal”, é inter­es­sante con­hecer as impressões que o fab­u­loso pin­tor Antoine Ignace Melling teve de Istam­bul, através das ima­gens de suas obras repro­duzi­das no livro. Destaque tam­bém para comen­tários de Pamuk aos difer­entes relatos dos france­ses Gerárd de Ner­val, Theóphile Gau­ti­er e Gus­tave Flaubert sobre Istam­bul, influ­en­cian­do dire­ta­mente autores turcos.

    Orhan Pamuk
    Orhan Pamuk

    É inegáv­el a destreza e segu­rança com que Pamuk expõe as nuances que car­ac­ter­i­zam a sua cidade, procu­ran­do faz­er para­le­los com sua vida pes­soal. No decor­rer das pági­nas, o leitor tam­bém se depara com fotos do arqui­vo famil­iar, mostran­do Orhan e seu irmão pequenos, assim como os par­entes em ger­al. Par­tic­u­lar­mente, tive a sen­sação de que as palavras do autor trazem uma car­ga de melan­co­l­ia, con­fir­ma­da ain­da mais pelas fotografias das ruas cinzen­tas, degradadas e pouco ilu­mi­nadas de Istam­bul, assim como pelo triste olhar da mãe de Orhan, mul­her lindís­si­ma e de embaraço melancóli­co, eterniza­do pela imo­bil­i­dade fotográfica.

    Assim como o Brasil tem a palavra “Saudade” como um vocábu­lo úni­co, os “Istan­bul­lus” têm o ter­mo “Hüzün” para definir a inten­sa melan­co­l­ia que sen­tem. A importân­cia dessa palavra é tão grande para enten­der os sig­nifi­ca­dos da cidade que Pamuk dedi­cou um capí­tu­lo inteiro para esmi­uçar as mais difer­entes acepções para o ter­mo. Essa ‘tris­teza’ reflete uma rup­tura, um far­do cul­tur­al enorme, uma exper­iên­cia espir­i­tu­al que ultra­pas­sa o entendi­men­to e se trans­for­ma em poe­sia diária de quem res­pi­ra o ar do Bós­foro e cam­in­ha pelas ruas de casas de madeira queimadas, anti­gas mora­dias de paxás e por vielas que divi­dem lugar com ciprestes e cemitérios.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Istam­bul – Memória e Cidade parece ser uma ten­ta­ti­va de retorno e redenção de Orhan Pamuk, já que o próprio autor viveu momen­tos de con­fli­to e negação com relação à cidade. Seja em meio aos momen­tos da infân­cia, brigas de família, iní­cio da vida esco­lar e, anos mais tarde, entra­da desan­i­ma­da na fac­ul­dade de Arquite­tu­ra, Pamuk mostra o lado que per­tence aos ver­dadeiros nativos da cidade em pre­to e bran­co. No meio de tan­tas lem­branças, há tam­bém os estu­dos que o autor real­i­zou para escr­ev­er o livro, o qual­i­fi­ca­do con­hec­i­men­to históri­co que ele apre­sen­ta, a sua desen­f­rea­da bus­ca por arquiv­os públi­cos e tam­bém a par­til­ha de sen­ti­men­tos que mar­caram a sua vida, como a dolorosa sep­a­ração do ambi­ente famil­iar, quan­do começou a fre­quen­tar o colé­gio; sua neces­si­dade de expressão por meio de desen­hos e pin­turas e o inesquecív­el caso de amor que ele teve com uma garo­ta a quem dele­gou um pseudôn­i­mo curioso (Rosa Negra). Lamen­tavel­mente para o autor – e isso fica bem claro no decor­rer desse capí­tu­lo -, o romance não dá cer­to e a cul­pa recai em cima da opção de Pamuk pela arte.

    Barış Akarsu
    Barış Akar­su

    Min­ha exper­iên­cia com a leitu­ra desse livro foi bas­tante pos­i­ti­va, mas pre­ciso men­cionar a vagarosi­dade na sequên­cia de alguns capí­tu­los, que exigem grande esforço de con­cen­tração por parte do leitor, e tam­bém a lacu­na que sen­ti por não perce­ber nen­hum capí­tu­lo ou comen­tário mais detal­ha­do sobre a pro­dução musi­cal de Istam­bul, tão rica e diver­si­fi­ca­da. A Turquia tem pro­duzi­do os mais vari­a­dos tipos de músi­ca, e eu não pode­ria deixar de enfa­ti­zar o instru­men­tista Hüs­nü Şen­lendiri­ci que, a propósi­to, tem uma com­posição belís­si­ma chama­da  İst­anb­ul İst­anb­ul Olalı, e o fab­u­loso can­tor e per­former Barış Akar­su, vence­dor da série tele­vi­si­va Akade­mi Türkiye (Acad­e­mia Tur­ca), em 2004, com a inter­pre­tação prodi­giosa da músi­ca Islak Islak. Barış tam­bém atu­ou na série Yalancı Yarim (algo como “meu amante men­tiroso” ou ain­da “metade men­tiroso”), atingin­do um suces­so estron­doso até sua morte, aos 28 anos, viti­ma­do por um aci­dente de carro.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Como entu­si­as­ta da pro­dução cul­tur­al da Turquia, e sem esque­cer da importân­cia de Pamuk para a lit­er­atu­ra tur­ca como o autor mais ven­di­do do país, com obras traduzi­das para mais de sessen­ta lín­guas, recomen­do a leitu­ra de Istam­bul – Memória e Cidade porque, muito mais do que uma viagem ao pas­sa­do, essa obra con­strói pontes que, ao invés de dis­tan­cia­rem, aproximam.

  • A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A_morte_de_Ivan_Ilitch-capaPre­sença fan­tas­magóri­ca, som­bria, temi­da. Uma car­i­catu­ra de dentes amare­los e ros­to esquáli­do, que vaga pelas noites de tem­pes­tade. Vul­to den­tro de um quar­to escuro, com forte aro­ma de velas mis­tu­ra­do com cipreste e crisân­te­mo, avoluman­do lágri­mas ind­is­farçáveis. Não impor­ta a imagem ou descrição atribuí­da, a morte é uma das obsessões do homem tan­to quan­to a von­tade de saber sobre o iní­cio da existên­cia e seu elo perdido.

    No entan­to, falar sobre o assun­to ain­da con­sti­tui tabu para diver­sas sociedades, rep­re­sen­tan­do con­teú­do a ser evi­ta­do para que a ale­gria de viv­er não se dis­sol­va em ques­tion­a­men­tos sem retorno. Porém, cam­in­han­do do lado opos­to dessa ideia dom­i­nante, o escritor rus­so Liev Niko­laievitch Tol­stói não tin­ha o menor receio em tratar sobre temas que envolvessem a câmara mor­tuária e o pon­to final da exper­iên­cia humana. Nasci­do na sun­tu­osa residên­cia de Yas­naya-Polyana em 1828, o conde Liev Tol­stói teve pen­sa­men­tos con­trários aos dos mem­bros de sua posição social, ques­tio­nan­do-se durante toda a vida sobre a ide­olo­gia que man­tém a estrat­i­fi­cação pre­sente entre ricos e pobres, trans­for­man­do a orga­ni­za­ção da sociedade em um ver­dadeiro abis­mo. As ideias do escritor tam­bém con­trastavam com o pen­sa­men­to reli­gioso, políti­co, artís­ti­co e social da época, reg­istro evi­dente em quase toda a sua obra. Da sua exten­sa ativi­dade int­elec­tu­al, tornaram-se sinôn­i­mos de clás­si­co os romances Guer­ra e Paz e Ana Karên­i­na, e a nov­ela A morte de Ivan Ilitch, con­sid­er­a­da por muitos críti­cos como a pri­ma-dona do gênero na lit­er­atu­ra mundi­al. A edição lança­da pela L&PM Pock­et em 1997, traduzi­da por Ver­am Karam, gan­hado­ra do prêmio Aço­ri­anos de Tradução, foi reim­pres­sa em 2010, pos­si­bil­i­tan­do que a con­sagra­da nov­ela de Tol­stói con­tin­u­asse chegan­do às mãos de novos leitores.

    Pub­li­ca­da em 1886, A morte de Ivan Ilitch é fru­to dos últi­mos anos de vida de Tol­stói, que mor­reu aos 82 anos de idade na estação fer­roviária de Astapo­vo. Naque­la ocasião, o romancista tin­ha fugi­do de casa para iso­lar-se em um mosteiro, pois esta­va imer­so em uma fase de reclusão volta­da para a natureza e con­tem­plação reli­giosa, ati­tude que seguia à rev­elia de famil­iares e ami­gos. Em 1883, o escritor Ivan Tur­guêniev, ami­go ínti­mo de Liev Tol­stói, chegou a lhe escr­ev­er uma der­radeira car­ta dire­ta­mente do seu leito de morte, pedin­do que o ami­go voltasse para a lit­er­atu­ra. Moti­va­do por esse pedi­do ou não, Tol­stói retornou com a história do buro­cra­ta Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viv­er e nem mor­rer, mas ten­tou encon­trar respostas para a morte durante o lon­go proces­so de ago­nia que enfrentou.

    Foto do autor Leo Tolstoy
    Foto do autor Leo Tolstoy

    A nar­ra­ti­va começa pelo final, no pré­dio do Tri­bunal de Justiça em que Ivan Ilitch tra­bal­ha­va e onde sua morte foi comen­ta­da pelos seus cole­gas de tra­bal­ho e cartea­do. Ao invés de con­dolên­cias sin­ceras, os com­pan­heiros dis­cu­ti­am trans­fer­ên­cias e pro­moções de car­gos, vis­to que uma das vagas esta­va em aber­to. Com essa sutileza, Tol­stói per­corre o mun­do mesquin­ho de home­ns e mul­heres sem iden­ti­dade ou con­sciên­cia, cuja per­son­al­i­dade varia de acor­do com inter­ess­es ou posições. Pes­soas para quem a morte é pre­rrog­a­ti­va do viz­in­ho, con­sti­tuin­do-se em real­i­dade dis­tante de suas sossegadas existên­cias. Antes de ser viti­ma­do pela tene­brosa mor­tal­ha, Ivan Ilitch viveu como todos os seus con­frades: fil­ho de ofi­cial lota­do em car­gos e depar­ta­men­tos por puro aper­to de mãos, Ivan cresceu saben­do que seu des­ti­no seria seguir car­reira em órgão públi­co, pulan­do de setor em setor mes­mo que não tivesse a menor aptidão para isso. O que real­mente impor­ta­va eram as lig­ações políti­cas e soci­ais que con­seguiria travar ao lon­go da vida, lega­do que seu pai tra­tou de iniciar.

    Depois de se for­mar em Dire­ito, Ivan Ilitch par­tiu para uma das provín­cias rus­sas para assumir o pos­to de secretário par­tic­u­lar e emis­sário do gov­er­nador, pre­sente dado pelo pai. Essas “entradas pela janela”, práti­ca igual­mente comum na história brasileira, eram o úni­co mun­do que o jovem buro­cra­ta con­hecia. Homem de ambições baseadas no lucro e na imi­tação da elite, Ivan seguia à risca o pro­to­co­lo lança­do por seus supe­ri­ores e pela alta-sociedade, fre­quen­tan­do ambi­entes pom­posos, humil­han­do sub­al­ter­nos, sus­ten­tan­do a máx­i­ma de que “ordens são ordens” e, prin­ci­pal­mente, aper­feiçoan­do-se na arte da bajulação.

    Retrato de Tolstói por Ilya Efimovich Repin (1844-1930).
    Retra­to de Tol­stói por Ilya Efi­movich Repin.

    Esse esti­lo de vida basea­do em más­caras per­sis­tiu até mes­mo no casa­men­to, moti­va­do por beleza e con­veniên­cia, rene­gan­do o amor ao últi­mo plano. Ape­sar das histórias român­ti­cas que ali­men­ta­ram os sécu­los pas­sa­dos, a ideia do amor esta­va longe da alco­va de muitos casais, pois ain­da no sécu­lo XIX pre­domi­na­va o casa­men­to jus­ti­fi­ca­do por acor­dos e tro­ca de van­ta­gens entre as famílias. O buro­cra­ta Ivan Ilitch não fugiu à regra e mer­gul­hou de cabeça em um rela­ciona­men­to que só trouxe amar­guras, recla­mações e cobranças. Casa­do com Praskovya Fiodor­ov­na, mul­her dita de boa família, mas super­fi­cial e rabu­gen­ta, Ivan detes­ta­va o matrimônio e o con­ce­bia como um abis­mo sem fim, razão pela qual vivia enfur­na­do no tra­bal­ho. Nesse ele­men­to, percebe-se a críti­ca de Tol­stói con­tra a hipocrisia dos casa­men­tos sem amor, dese­jo ou respeito, práti­ca comum à época.

    Anos des­gas­tantes se pas­saram e em uma de suas mudanças de car­go e casa, Ivan Ilitch sofreu um aci­dente caseiro, baten­do a região dos rins. No começo, a dor local­iza­da e o gos­to amar­go na boca não impres­sion­aram o buro­cra­ta. Somente depois, com a inten­si­fi­cação da sen­sação penosa, Ivan notou que algo anda­va muito mal. Procu­ran­do diver­sos médi­cos e espe­cial­is­tas, que nada diziam de útil ou váli­do, Ivan teve que encar­ar seu pesade­lo real: a aprox­i­mação da morte. O caráter do rus­so, ante­ri­or­mente mas­cara­do pelas obri­gações soci­ais, perde a camu­flagem e começa a sofr­er alter­ações. A super­fi­cial­i­dade dá lugar a uma dis­tân­cia fria, vio­len­ta, reple­ta de angús­tias e sen­ti­men­tos que tran­scen­dem o próprio Ivan Ilitch. O medo da morte ator­men­ta o con­fi­ante buro­cra­ta, que só encon­tra con­for­to na pre­sença de Geras­sim, empre­ga­do de mod­os serenos e com­por­ta­men­to honesto.

    Durante a ago­nia de Ilitch, Tol­stói faz com que o leitor se aprox­ime do sofri­men­to, do sen­ti­men­to desagradáv­el – e evi­ta­do a todo cus­to – de recon­hecer sua fini­tude, de que um dia irá deixar de exi­s­tir como matéria, aniqui­lan­do tudo o que con­hece. Escri­ta de for­ma sim­ples, sem rodeios, A morte de Ivan Ilitch pos­si­bili­ta o ques­tion­a­men­to de decisões e for­mas com as quais a vida é con­duzi­da. Adi­anta ir emb­o­ra sem levar nada ver­dadeira­mente nos­so? A posição social e a com­ple­ta indifer­ença em relação ao mun­do valem mais a pena do que o amor aos nos­sos pares, a par­til­ha, a igual­dade e out­ros sen­ti­men­tos que deix­am mar­cas? Essas são ape­nas duas das inúmeras reflexões que a obra suscita.

    Quadro “The Garden of Death”, do artista nórdico Hugo Simberg
    Quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Simberg

    Ivan Ilitch, um homem medíocre que acred­i­ta­va viv­er uma vida digna porque repro­duzia leis e aten­dia aos padrões da elite, um indi­ví­duo sem pen­sa­men­tos próprios, for­ma­do pelas ideias dos out­ros, teve como auge da vida o perío­do em que ficou doente ter­mi­nal e “tin­ha de viv­er à beira do pre­cipí­cio, soz­in­ho, sem uma alma que o enten­desse e dele tivesse com­paixão”. Ivan, dono de uma existên­cia sem raízes, encon­trou na mor­tal­i­dade o medo que elu­ci­da, o pâni­co que força a que­da do véu da ignorân­cia. Se a morte age silen­ciosa­mente e traz no ros­to o hor­ror sem gri­tos do quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Sim­berg, Tol­stói deu ao mun­do, na for­ma da história comum de um fun­cionário públi­co insignif­i­cante, a biografia de uma humanidade doente, metódi­ca e con­ge­la­da; a história de ani­mais mecâni­cos que só acor­dam com o sus­sur­ro que os leva embora.

  • O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    Capa da versão lançada pela editora DarkSide
    Capa do e‑book lança­do pela edi­to­ra DarkSide

    Drácu­la, per­son­agem da lit­er­atu­ra de hor­ror cri­a­do pelo irlandês Bram Stok­er, tem o poder de dom­i­nar ger­ações inteiras. A estória do sug­ador de sangue demonía­co e sedu­tor, que se ali­men­ta da vida – e con­se­quente­mente da alma – de suas víti­mas, surgiu por meio dos pesade­los de Bram Stok­er, gan­han­do cor­po em 1897. A inspi­ração do romancista tam­bém veio das pesquisas que real­iza­va sobre a vida do príncipe Vlad III da Valáquia, região da Romê­nia. Con­heci­do como “O Empal­ador”, Vlad III era extrema­mente temi­do pelo sadis­mo e carnific­i­na com o qual trata­va inimi­gos e pri­sioneiros, impon­do punições cruéis. Segun­do a len­da, o príncipe romeno se deli­ci­a­va ao ver os cor­pos dos inimi­gos empal­a­dos em esta­cas ver­tendo sangue.

     

    Retrato de Vlad III, datado por volta de 1560
    Retra­to de Vlad III, data­do por vol­ta de 1560

    Mas nem só de biografias e mitos vivia o cri­ador de Drácu­la. As nar­ra­ti­vas que envolvem vam­piros remon­tam à tradição oral de povos da antigu­idade, mas só gan­haram espaço na lit­er­atu­ra em mea­d­os do sécu­lo XIX. Antes de Bram Stok­er, os escritores Sheri­dan Le Fanu (1814 – 1873) e John Poli­dori (1795 – 1821) já havi­am abor­da­do a temáti­ca do vam­piro em suas obras, mas a con­sagração só viria com Drácu­la. Ape­sar do suces­so do livro, Bram Stok­er con­tin­u­ou viven­do sem muitos alardes até sua morte, em 1912, aos 65 anos. Dois anos depois, Flo­rence Stok­er, esposa do escritor, pub­li­ca uma coletânea de con­tos do mari­do, cujo títu­lo é “O Hós­pede de Drácu­la e out­ras histórias estra­nhas” (orig­i­nal ‘Dracula’s Guest And Oth­er Weird Sto­ries’), lança­do pela edi­to­ra George Rout­ledge & Sons, Ltd. of Lon­don. O con­to de aber­tu­ra é o homôn­i­mo O Hós­pede de Drácu­la, e segun­do o pre­fá­cio escrito por Flo­rence Bram Stok­er, a história é parte inte­grante do livro de suces­so do mari­do, mas que não foi inseri­da à época por questões de espaço, con­sideran­do à exten­são do romance.

    Imagem do filme Drácula, dirigido por Tod Browning em 1931, com Béla Lugosi e Helen Chandler
    Imagem do filme “Drácu­la” (1931), dirigi­do por Tod Brown­ing, com Béla Lugosi e Helen Chandler

    A nar­ra­ti­va começa com a visi­ta de um inglês à Munique, cidade alemã, e sua von­tade de dar um pas­seio pelos arredores da região. Na saí­da do hotel, o cocheiro encar­rega­do de faz­er a con­dução do vis­i­tante é aler­ta­do pelo maître a retornar antes do cair da noite. O inglês chegara bem em cima da “Walpur­gis­nacht”, con­heci­da como a “Noite de San­ta Val­bur­ga”, tradi­cional fes­ta cristão com ori­gens pagãs, cel­e­bra­da na noite do dia 30 de abril. Durante as cel­e­brações, são feitas grandes fogueiras com o intu­ito de expul­sar demônios e espíri­tos sem rumo que vagam pela dimen­são dos vivos.

    O autor Bram Stoker (Foto Hulton Archive/Getty Images)
    O autor Bram Stok­er (Foto: Hul­ton Archive/Getty Images)

    Empol­ga­do pela pais­agem vibrante, o tur­ista não dá ouvi­dos aos ape­los do cocheiro quan­do este sug­ere que voltem, pois estavam se aprox­i­man­do de um vilare­jo aban­don­a­do e con­sid­er­a­do por toda gente local como amaldiçoa­do. Osten­tan­do a racional­i­dade e sober­ba ingle­sas, o homem decide que vai seguir em frente sem o con­du­tor da car­ru­agem, e a par­tir desse momen­to começam a sur­gir diver­sos per­rengues que nem mes­mo a ina­baláv­el razão ingle­sa é capaz de dis­sim­u­lar. Alter­ações climáti­cas explo­si­vas, seguidas de uma atmos­fera lúgubre, desabam sobre o destemi­do inglês e o leitor começa a sen­tir os efeitos da nar­ra­ti­va bem con­struí­da de Bram Stok­er, que uti­liza muito bem a mis­tu­ra de super­stição com ter­ror psi­cológi­co. Par­tic­u­lar­mente, uma das situ­ações mais inter­es­santes do con­to foi acom­pan­har o bom sen­so tipi­ca­mente inglês ser dis­solvi­do nas molécu­las do medo e mist­i­cis­mo, já que o vis­i­tante começa a pal­pi­tar mais forte e dese­jar até ter aten­di­do aos ape­los do afli­to cocheiro, de quem des­den­hou e duvidou.

    Imagem do filme "Drácula de Bram Stoker" (1992), dirigido por Francis Ford Coppola, com Gary Oldman e Keanu Reeves
    Imagem do filme “Drácu­la de Bram Stok­er” (1992), dirigi­do por Fran­cis Ford Cop­po­la, com Gary Old­man e Keanu Reeves

    Essa fal­ta de “imu­nidade” ao sobre­nat­ur­al faz com­pan­hia ao leitor durante toda a nar­ra­ti­va, trans­for­man­do o cenário de raios enfure­ci­dos, lobos san­guinários, esta­cas e mor­tos que lev­an­tam em res­pi­ração ofe­gante, quase fan­tas­magóri­ca. Quem leu “Drácu­la” vai estar famil­iar­iza­do com o ter­reno e pode até imag­i­nar o des­fe­cho final da história, que tam­bém assom­brou o próprio pro­tag­o­nista. Um dos destaques da tra­ma é a capaci­dade de Bram Stok­er em envolver e pro­je­tar cenários imag­inários na mente do leitor, cati­van­do pelo medo. Drácu­la é, antes de tudo, o fascínio por um mun­do sem amar­ras, noturno, irre­al e sem a ânco­ra da racional­i­dade. Um estereótipo de poder onde tudo é per­mi­ti­do e onde a magia esbar­ra na eternidade, afi­nal de con­tas, “os mor­tos via­jam depressa”.

    O Hós­pede de Drácu­la é um con­to rápi­do, com 36 pági­nas, que se divide entre a história, pre­fá­cio e curiosi­dades, e pode ser lido entre vinte e trin­ta min­u­tos. Li a história na ver­são e‑book pub­li­ca­da pela edi­to­ra Dark­Side em 2012 e traduzi­da por Maria Clara Carneiro e Bruno Dori­gat­ti. O site Dark­side­books ofer­ece o con­to em for­ma­to e‑book gra­tuita­mente para down­load.

  • Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Filhos do Fim do Mundo, de Fábio M. Barreto | Livro

    Capa Filhos do Fim do Mundo - Fabio M BarretoQuan­tos livros que você leu eram ambi­en­ta­dos em um mun­do fan­tás­ti­co, com fadas, elfos, trolls e até mes­mo dragões? Se você acha esse tipo de livro uma lit­er­atu­ra menor, vale lem­brar o suces­so das obras de Tolkien, George Mar­tin e até de autores brasileiros como Eduar­do Spohr. É difí­cil predi­z­er que ele­men­to lev­ou tais autores ao suces­so, mas com certeza a con­strução de uma história envol­vente e bem ambi­en­ta­da, um uni­ver­so crív­el e imer­si­vo são aspec­tos que garan­tem a audiên­cia literária que tais obras obtiveram.

    A obra do jor­nal­ista, escritor e cineas­ta Fábio M. Bar­reto, Fil­hos do Fim do Mun­do (Casa da Palavra, 2013), é ambi­en­ta­da não pro­pri­a­mente em um uni­ver­so fan­tás­ti­co ou mun­do para­le­lo. É um mun­do pós-apoc­alíp­ti­co, ain­da que muito próx­i­mo da sociedade em que vive­mos hoje. Subita­mente, em um dia especí­fi­co, quan­do o reló­gio indi­ca meia-noite, as cri­anças recém-nasci­das começaram a mor­rer. Percebe-se que cri­anças com menos de um ano de idade, plan­tas e ani­mais tam­bém pere­ce­r­am. No mun­do todo.

    O que acon­te­ceu? Qual é a cura para isso? Como evi­tar novas mortes e, mais impor­tante, como levar a raça humana adi­ante a par­tir de uma per­spec­ti­va como essa? Tais per­gun­tas inva­dem a obra e, prin­ci­pal­mente, o pro­tag­o­nista, o Repórter, cuja mul­her está grávi­da, pronta para parir a qual­quer momen­to. O que já vale diz­er que, se você gos­ta de histórias apoc­alíp­ti­cas, de mis­tério, e quer se aven­tu­rar na nova seara de autores brasileiros, esta obra de Bar­reto cer­ta­mente é pra você.

    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras
    Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras

    O livro lem­bra muito out­ras obras, como o filme “Fil­hos da Esper­ança”, e o livro de Sara­m­a­go, “Ensaio sobre a Cegueira”. Este últi­mo é o que mais se aprox­i­ma da obra de Bar­reto, pela sua pre­mis­sa tam­bém inex­plicáv­el: as pes­soas começam a ficar cegas. O mun­do, de uma hora para out­ra, tor­na-se um ble­caute, um grande breu para a maio­r­ia das pes­soas, que lutam deses­per­adas pela sua sobrevivência.

    Mas há uma difer­ença grande na obra de Sara­m­a­go e nas out­ras citadas no iní­cio do tex­to em relação ao livro de Bar­reto: nes­tas primeiras, ain­da que as tra­mas apre­sen­tem ele­men­tos fan­tás­ti­cos, não são o prin­ci­pal chama­riz dos livros. Na obra de Sara­m­a­go, por exem­p­lo, são os con­fli­tos humanos, a imer­são e a iden­ti­fi­cação que tais histórias pro­por­cionam que nos lev­am a devo­rar suas pági­nas com avidez e ansiedade. O fan­tás­ti­co é o pano de fun­do para uma humanidade frágil e em evidência.

    No caso de Bar­reto, ain­da que o livro ten­ha vários pon­tos altos e um pro­tag­o­nista muito cati­vante, o livro não deixa de lado as questões fan­tás­ti­cas por tem­po sufi­ciente para você mer­gul­har de vez na história e no dra­ma do jor­nal­ista. E pior: as per­gun­tas que são lev­an­tadas durante toda a obra, ao final do livro, não são respondidas.

    Ou seja, o tem­po todo os per­son­agens do livro procu­ram a cura para o prob­le­ma que aflige a humanidade e ten­tam enten­der porque essa tragé­dia acon­tece – é isso, e a ten­ta­ti­va de sal­var o futuro fil­ho, que moti­vam o per­son­agem prin­ci­pal – para no fim isso não ter importân­cia. Há um desen­volvi­men­to muito boni­to e tocante do Repórter e de suas desilusões sobre a humanidade, que acred­i­to serem as mel­hores partes do livro – mas isso não foi o sufi­ciente para eu não me per­gun­tar a todo momen­to sobre respostas.

    O autor Fábio M. Barreto
    O autor Fábio M. Barreto

    É pos­sív­el diz­er que a intenção orig­i­nal do autor é mostrar que esse pano de fun­do cri­a­do por ele não pas­sa dis­so – é a base para um dra­ma maior, a saber, o cresci­men­to e o amadurec­i­men­to do Repórter em sua jor­na­da para sal­var a família (e a for­ma como a sociedade se dete­ri­o­ra diante do caos). Mas a maneira como a história foi desen­volvi­da não me per­mi­tiu esque­cer a razão de tudo aqui­lo e mer­gul­har de vez na tra­jetória do per­son­agem. Eu bus­ca­va algu­mas respostas – que, diante do dra­ma de alguns per­son­agens podem ser vis­tas como questões menores — mas ain­da sim a fal­ta delas pare­ceu levar a história para um rumo difer­ente sim­ples­mente para “sur­preen­der” o leitor, e não para fechar a obra de maneira coerente.

    Ilustração feita por Felipe Watanabe!
    Ilus­tração fei­ta por Felipe Watanabe

    Out­ro pon­to neg­a­ti­vo é que alguns tre­chos do livro são um tan­to con­fu­sos, prin­ci­pal­mente nas pas­sagens de ação (como no momen­to em que é descri­ta a chega­da do Repórter e de uma equipe mil­i­tar a um dos bunkers exis­tentes na história). É pre­ciso lê-las duas ou três vezes para dis­cernir com certeza o que se desen­ro­la, quem está fazen­do o quê e o que está acon­te­cen­do na sequên­cia. É pre­ciso atenção do leitor para não se perder nos eventos.

    Assim, Fil­hos do Fim do Mun­do é uma obra que pode levar o leitor a ter uma exper­iên­cia um pouco trun­ca­da com a história, uma vez que não per­mite o embar­que com­ple­to na exper­iên­cia desse mun­do cri­a­do por Barreto.

    Já seus destaques são prin­ci­pal­mente atre­la­dos à jor­na­da do Repórter e seu ques­tion­a­men­to sobre a profis­são, sobre sua família, sua vida e sobre si mes­mo. A respeito destes pon­tos, Fábio Bar­reto merece todos os crédi­tos. É curioso e tocante acom­pan­har­mos a tra­jetória deste “herói”, que se despe de todos os seus pré-con­ceitos, certezas e pré-jul­ga­men­tos diante da nova real­i­dade que se desvela diante de si, sim­ples­mente para faz­er o que for mel­hor para sua família. Há pas­sagens em que é muito fácil se iden­ti­ficar com ele e com suas decisões, aprox­i­man­do o leitor da história e per­mitin­do o envolvi­men­to que vez ou out­ra escapa durante a leitura.

    - Já vimos isso acon­te­cer, em escala menor, claro. Con­fli­tos trib­ais têm muito dis­so. E vemos ess­es efeitos em nos­sos treina­men­tos de sobre­vivên­cia. Até cer­to nív­el de estresse, os sol­da­dos se unem; dali para a frente, o instin­to fala mais alto e qual­quer razão para ter algu­ma van­tagem táti­ca ou fisi­ológ­i­ca será usa­da para o bene­fí­cio daque­le indi­ví­duo – con­tin­u­a­va o argu­men­to. A lóg­i­ca pare­cia impecáv­el e o dis­cur­so era sin­cero, chegan­do a ser influ­en­ci­a­do por momen­to de pen­sar pro­fun­do, pre­sentes, mes­mo que de for­ma con­ti­da. Assim como o Repórter, o Major preferiria descon­sid­er­ar tudo aqui­lo, entre­tan­to a ver­dade não podia ser omi­ti­da. E ambos sabi­am. (p. 193)

    O fim da obra, ain­da que não seja o que leitor pos­sa esper­ar, sur­preende e emo­ciona. Com alguns tre­chos revisa­dos (prin­ci­pal­mente na descrição das cenas de ação) o livro fluiria mel­hor, mas não há dúvi­das de que a obra de Bar­reto (que ain­da par­tic­i­pa do pod­cast Rapadu­ra­cast), ain­da que não seja o grande livro nacional do gênero em 2013, é um bom livro – o que não deixa de ter seu mérito.

    Veja abaixo um cur­ta-metragem inspi­ra­do no pról­o­go de Fil­hos do Fim do Mun­do, cri­a­do pela SOS Hol­ly­wood Films:

  • Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    contos-plausiveis-capaSe o assun­to é poe­sia brasileira, o primeiro nome que nos sacode a mente e pula dire­to para a lín­gua, sem pes­tane­jar, é o de Car­los Drum­mond de Andrade. Poeta mineiro nasci­do em 1902, Drum­mond virou sinôn­i­mo indis­cutív­el de arte poéti­ca, traduzi­do em diver­sos país­es e rev­er­en­ci­a­do como um dos maiores gênios que o Brasil teve o praz­er de ger­ar. Feito de memórias, iro­nias e del­i­cadezas, o tra­bal­ho do poeta tam­bém envere­dou pela prosa de ficção, mes­mo que em menor número. O livro Con­tos Plausíveis, lança­do pela edi­to­ra Com­pan­hia das Letras em 2012, traz uma amostra da capaci­dade de Drum­mond em cri­ar fábu­las do cotid­i­ano, cir­cu­lan­do pelas ruas da cidade e estrad­in­has do inte­ri­or, entre o ontem, o hoje e o depois.

    Rápi­dos, certeiros e peque­nas chaves de bol­so, ess­es “con­tos plausíveis” foram escritos para o lendário Jor­nal do Brasil, a par­tir do final dos anos 60, e pub­li­ca­dos em uma peque­na tiragem em 1981, fora de com­er­cial­iza­ção. O caráter de ane­do­ta e fina iro­nia fazem dos con­tos uma diver­são à parte, como se o “poeta maior” (títu­lo que Drum­mond, em toda a sua humil­dade e timidez, não recon­heceu), estivesse ali, silen­cioso e ubíquo, pron­to para con­tar o que viu e ouviu, fazen­do jus à tradição oral.

    Drummond ao lado da mulher e filha
    Drum­mond ao lado da mul­her e filha

    São mais de cem con­tos onde o leitor pode se recon­hecer até mes­mo na lin­guagem do absur­do. A maio­r­ia deles trazem situ­ações fan­tás­ti­cas, provo­can­do cer­to sus­to em um primeiro momen­to. Afi­nal de con­tas, uma mul­her que tro­ca de cabeça todo dia? Ani­mais com com­por­ta­men­to demasi­ada­mente humano? Um homem otimista que escapa de uma enx­ur­ra­da e é “deposi­ta­do na crista de um pico mais alto que o da Nebli­na”? Isso para não falar de par­tidos basea­d­os em cores, home­ns sem cabeça que delib­er­am sem delib­er­ar e o cômi­co no trági­co, em situ­ações para lá de sur­reais, onde o plausív­el reside na von­tade do autor em con­ce­bê-lo assim.

    A poéti­ca se mis­tu­ra ao real­is­mo, fazen­do ess­es “con­tos de bol­so”, como dizia o próprio autor, serem mais do que nar­ra­ti­vas sin­téti­cas; eles são, na ver­dade, mate­r­i­al de con­sul­ta em um mun­do em que as certezas já vivem no lim­ite do absur­do. Como nos lem­bra Noe­mi Jaffe no pos­fá­cio que assi­na na recente edição, “o que soa como irre­al não pode­ria ser mais plausív­el diante do absur­do que teste­munhamos todos os dias”. Ideia que foi se imis­cuin­do na obra de Car­los Drum­mond de Andrade e no seu “des­en­can­to com o esta­b­ele­ci­do”, preferindo par­tir em bus­ca da liber­dade e da ação, mas sem faz­er alardes.

    Drummond em sua casa por ocasião da homenagem aos seus 80 anos
    Drum­mond em sua casa por ocasião da hom­e­nagem aos seus 80 anos

    Nos con­tos “A vol­ta das cabeças” e “Incên­dio”, a lem­brança de Macha­do de Assis nos assalta instan­ta­nea­mente, reme­tendo ao antológi­co “Teo­ria do Medal­hão” e pela hom­e­nagem sin­gela fei­ta por meio da tran­scrição do iní­cio do con­to “Mis­sa do Galo”, respec­ti­va­mente. A fina essên­cia da iro­nia, car­ac­terís­ti­ca da obra macha­di­ana, tam­bém encon­tra espaço na prosa-fic­cional-poéti­ca de Drum­mond. Não há como deixar de rir – e pen­sar – com per­son­agens de com­por­ta­men­tos ou aparên­cias tão atípi­cos, mas que camu­flam o que real­mente querem rev­e­lar, como o diver­tidís­si­mo “Casa­men­to por Cin­co Anos”, “A Vol­ta do Guer­reiro” “Aque­le Casal” e o atu­al “A Ter­ra do Índio”. São mais de cem con­tos que trazem nos próprios títu­los o ele­men­to sur­pre­sa, onde o irre­al­izáv­el encon­tra mais ressonân­cia neste mun­do do que real­mente supo­mos. A obra drum­mon­di­ana nos per­mite fechar os olhos e dormir, mes­mo que os “ombros con­tin­uem supor­tan­do o mundo”.

  • Copyfight, organizado por Adriano Belisário e Bruno Tarin | Livro

    Copyfight, organizado por Adriano Belisário e Bruno Tarin | Livro

    Copyfight-capaO suí­cidio do hack­er­a­tivista Aaron Swartz, em janeiro de 2013, e o lança­men­to do doc­u­men­tário TPB AFK, sobre o Pirate Bay esse mês em Berlim, rea­cen­deu — ou seria mel­hor diz­er que jog­a­ram mais com­bustív­el no fogo? — a polêmi­ca sobre a abrangên­cia do copy­right e as leis gerais de pro­priedade int­elec­tu­al. O livro Copy­fight: Pirataria & Cul­tura Livre (Azougue Edi­to­r­i­al, 2012), orga­ni­za­do por Adri­ano Belisário e Bruno Tarin, é mais um ele­men­to essen­cial, no âmbito nacional, de reunir arti­gos, tex­tos, poe­sia e arte em uma úni­ca obra que abrange esse assun­to tão anti­go em um momen­to tão opor­tuno de discussão.

    Para quem não con­hece a história de Aaron, ele respon­dia por um proces­so de vio­lação de dire­itos autorais por ter com­par­til­ha­do como domínio públi­co, arti­gos que eram dis­tríbui­dos sob cobrança, da revista cien­tí­fi­ca JSTOR, do MIT. Ele foi pre­so em 2011, acu­sa­do de crime de invasão de com­puta­dores poden­do pegar até 35 anos de cadeia e mul­ta de até 35 mil­hões de dólares. Aaron tin­ha um históri­co, des­de sua ado­lescên­cia, no envolvi­men­to com cul­tura livre, sendo co-cri­ador da especi­fi­cação RSS, um dos fun­dadores do Red­dit e ain­da colaborou ati­va­mente com Lawrence Less­ing da Cre­ative Com­mons.

    A morte do jovem criou uma comoção e uma neces­si­dade urgente em se colo­car em dis­cussão as leis de pro­priedade int­elec­tu­al. Para isso o primeiro pas­so é a con­sci­en­ti­za­ção do que são essas leis, o que as regem, o que pen­sam e fazem os ativis­tas da cul­tura livre e se a pirataria merece a cono­tação neg­a­ti­va que a cir­cun­da. Não há como falar e rea­gir sobre algo que não se con­hece e Copy­fight vem para lançar uma per­spec­ti­va críti­ca para tratar de assun­tos como as for­mas que o poder usa para detur­par os reais sen­ti­dos das práti­cas con­heci­das como pirataria, o hack­er­a­tivis­mo e inclu­sive, o tra­bal­ho dos camelôs.

    Os tex­tos do Copy­fight vem de todos os lados da sociedade brasileira. Não há dis­tinção entre estu­dos acadêmi­cos e man­i­festos, a liber­dade dada aos autores só com­pro­va como o assun­to pode, além de ser trata­do pelos mais diver­sos ângu­los, mostrar a abrangên­cia no cotid­i­ano de todas as camadas soci­ais. O livro é resul­ta­do de encon­tros entre os anos de 2010 e 2011 no Rio de Janeiro, reunin­do des­de funkeiros e camelôs até nomes como Richard Stall­mann, con­sid­er­a­do o pai do soft­ware livre.

    Há quem acred­ite na ilusão que a pirataria e as dis­cusões no entorno dos dire­itos autorais, patentes e afins cir­culem somente nos meios artís­ti­cos e que se restrin­jam ao ambi­ente online. Copy­fight aju­da a explicar que a econo­mia mundi­al está lig­a­da ness­es assun­tos, sem­pre obscure­ci­dos nas mãos de poucos, além de mostrar como o Hack­er­a­tivis­mo trouxe muitas infor­mações ocul­tas á tona, como acon­te­ceu com Julian Assange e seu pro­je­to Wikileaks.

    O livro, já no ini­cio, propõe três cam­in­hos para a leitu­ra do mes­mo. Com um esti­lo que faria o escritor Julio Cortázar mudar sua ousa­dia no livro O Jogo de Amare­lin­ha, Copy­fight dá os seg­men­tos Lin­ear, Temáti­co e Não-Lin­ear para você optar de que for­ma irá imer­gir nos tex­tos. Con­ta ain­da com dois tipos de sumários, sendo que um é temáti­co, caso você este­ja procu­ran­do por assun­tos especí­fi­cos, e out­ro não-lin­ear, para você sim­ples­mente ir exper­i­men­tan­do as várias faces da cul­tura livre.

    Um óti­mo pon­to de par­ti­da é o tex­to Sobre Guer­ril­has e Cópias, do orga­ni­zador Adri­ano Belisário. Ele traça um panora­ma sobre a crise da pro­priedade int­elec­tu­al no pre­sente e de como a ideia do copy­fight iria sub­vert­er os vel­hos monópo­lios sobre a cul­tura e o con­hec­i­men­to téc­ni­co. Quan­do fala de téc­ni­co, o autor se ref­ere a vas­ta gama que envolve des­de do cam­po cien­tí­fi­co e patentes de genes, até o cam­po artís­ti­co. O autor rela­ta vários momen­tos da História — vin­do des­de os gre­gos — que demon­stram a farsa cri­a­da sobre a pro­priedade intelectual.

    Para a con­sagração desse mito da orig­i­nal­i­dade pura, a noção de plá­gio foi mar­gin­al­iza­da na cul­tura oci­den­tal mod­er­na. Porém, a cópia e não citação das fontes já foram práti­cas comuns na pro­dução literária. ‘Um poeta inglês podia se apro­pri­ar de um sone­to de Petrar­ca, traduzi-lo e diz­er que era seu. De acor­do com a estéti­ca clás­si­ca da arte enquan­to imi­tação, esta era uma práti­ca per­feita­mente aceitáv­el. O ver­dadeiro val­or dessa ativi­dade esta­va mais na dis­sem­i­nação da obra para regiões onde out­ra for­ma ela provavel­mente não teria apare­ci­do, do que no for­t­alec­i­men­to da estéti­ca clás­si­ca. (p.85)

    Para quem pref­ere um pos­sív­el para­doxo que o assun­to pos­sa pro­por, deve ler O comum das Lutas — entre camelôs e Hack­ers, de Bruno Tarin e Pedro Mendes, que traça um para­le­lo entre a luta ide­ológ­i­ca e a profis­são de camelôs e hack­ers, divi­di­dos ape­nas pelos seus instru­men­tos de tra­bal­ho. Ambas as ativi­dades são tra­bal­hadas em gru­pos e têm a pro­pos­ta de traz­er aces­si­bil­i­dade e cir­cu­lação de bens a um públi­co maior.

    Ou seja, ser ou não ser camelô ou hack­er não está atre­la­do a iden­ti­dades e sim ao fato de se pro­duzir camelô e se pro­duzir hack­er, ser camelô ou hack­er nesse sen­ti­do não é uma condição per­ma­nente, mas uma pro­dução de sub­je­tivi­dade atre­ladas a uma série de práti­cas. Em comum, ambos tra­bal­ham para trans­for­mar diu­tur­na­mente a alta e os imped­i­men­tos em abundân­cia e liber­dade. (p.99)

    Há ain­da tex­tos mais analíti­cos e com um tra­bal­ho bas­tante sério de pesquisa, como Tra­bal­ho sem obra, obra sem autor: a con­sti­tu­ição do comum do reno­ma­do cien­tista políti­co Giuseppe Coc­co, que faz uma análise detal­ha­da dos mod­e­los de tra­bal­ho cap­i­tal­is­tas, dos mod­e­los colab­o­ra­tivos e como ficam os mod­e­los econômi­cos no meio dis­so. O leitor tam­bém pode com­preen­der mel­hor o que seri­am os chama­dos com­mons, o que é uma licença de arte livre e os man­i­festos à favor do com­par­til­hamen­to. Há ain­da algu­mas entre­vis­tas com defen­sores vee­mentes do copy­left e remix, como o polêmi­co Richard Stall­mann, fun­dador do free soft­ware e do pro­je­to GNU.

    Se você ler Copy­fight de pon­ta a pon­ta, vai ser toman­do por um grande número de ques­tion­a­men­tos, obser­vações e, prin­ci­pal­mente, excla­mações. São 29 tex­tos, poe­sias e artes de pes­soas enga­jadas no movi­men­to da cul­tura livre do mun­do inteiro. Indo muito além de ape­nas apre­sen­tar con­ceitos e man­i­festos, o livro mar­ca a local­iza­ção da nos­sa atu­al cul­tura e rev­ela um históri­co mar­ca­do por revi­ra­voltas, deci­di­das ape­nas por uma mino­ria deten­to­ra dos dire­itos de cria­tivi­dade de uma humanidade inteira.

    Toda essa dis­cussão não se resume ape­nas na dual­i­dade Copy­right ver­sus Copy­left, nas ten­ta­ti­vas da Cre­ative Com­mons em facil­i­tar o entendi­men­to das licenças autorais ou no ativis­mo puro. Depende prin­ci­pal­mente do leitor estar con­sciente de que maneiras ele vai expandir isso ao seu redor. Então, você está prepara­do para compartilhar?

    O livro está disponív­el para down­load ou você pode ler ele online aqui.

    No site do Copy­fight você encon­tra tam­bém uma série de infor­mações sobre o livro, além de out­ros arti­gos rela­ciona­dos ao assunto.

  • Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    contos-lugares-distantes-capaHá livros que te encan­tam do iní­cio ao fim, não só pela sua história mas tam­bém por con­ta das suas ilus­trações e seus vários pequenos detal­h­es, onde você se vê o pegan­do inúmeras vezes ape­nas para ten­tar desco­brir algo novo ou rel­er um tre­cho rapid­in­ho. Foi exata­mente esta exper­iên­cia que tive depois de ler Con­tos de Lugares Dis­tantes do escritor e quadrin­ista aus­traliano Shaun Tan, lança­do aqui no Brasil pela Cosac Naify e traduzi­do por Éri­co Assis.

    Ele é com­pos­to de quinze con­tos, que vari­am des­de alguns bem curt­in­hos (de uma ou duas pági­nas), até out­ros mais lon­gos. Ape­sar de todos terem no mín­i­mo um pé den­tro do mun­do fan­tás­ti­co, não são o tipo de histórias que você diria serem impos­síveis de acon­te­cer, pois são con­tadas como se fos­sem algo total­mente cor­riqueiro e tam­bém por usar ele­men­tos ou obje­tos pre­sentes no dia a dia da maio­r­ia das pessoas.

    é engraça­do que hoje em dia, em que toda casa tem seu mís­sil balís­ti­co inter­con­ti­nen­tal, você mal se lem­bre dele.

    Logo no primeiro tex­to já é pos­sív­el perce­ber que este não é exata­mente um livro para cri­anças, pois pos­sui um humor mais sofisti­ca­do e muitas vezes aca­ba sendo meio assus­ta­dor tam­bém. O autor con­tou em uma entre­vista que se inspirou no esti­lo da série Além da Imag­i­nação (The Twi­light Zone) que assis­tia quan­do cri­ança para escrevê-los, que aca­ba expli­can­do bem esse cli­ma meio fan­tás­ti­co e hor­rip­i­lante. Os adul­tos que acom­pan­haram a série e apre­ci­am belos desen­hos, com certeza vão se deleitar nes­ta obra.

    Ilustração do conto "Brinquedos Quebrados"
    Ilus­tração do con­to “Brin­que­dos Quebrados”

    O feri­ado sem nome acon­tece uma vez por ano, geral­mente por vol­ta do fim de agos­to, às vezes em out­ubro. É esper­a­do tan­to por cri­anças como por adul­tos com um mis­to de emoções: não é pro­pri­a­mente fes­ti­vo, mas ain­da assim é uma espé­cie de comem­o­ração, cuja origem há muito se esqueceu.

    Falan­do em desen­hos, a primeira coisa que mais chama atenção no livro são todas as ilus­trações mag­ní­fi­cas. Fol­he­an­do ele com mais cal­ma, é pos­sív­el tam­bém perce­ber que muitas das ima­gens não são sim­ples­mente para ilus­trar a nar­ra­ti­va, mas tam­bém fazem parte dela. Alguns con­tos são total­mente visuais, como no caso de “Chu­va ao Longe” ou “Faça Seu Próprio Ani­mal de Esti­mação”, que são feitos total­mente de recortes. Ao lê-los você vol­ta a ser cri­ança, com aque­les olhos admi­ra­dos ten­tan­do ver todos os detal­h­es e pos­síveis histórias escon­di­das por trás de cada desen­ho. Sem falar em todo o cuida­do na impressão do mes­mo, que aliás é um dos grandes méri­tos dos livros da edi­to­ra Cosac Naify.

    Sec­re­ta­mente, eu esta­va ansioso para rece­ber um vis­i­tante estrangeiro — tin­ha tan­tas coisas para mostrar a ele. Pelo menos uma vez eu pode­ria ser um expert da região, uma fonte de infor­mações e de comen­tários inter­es­santes. Por sorte, Eric era muito curioso e esta­va sem­pre cheio de per­gun­tas. Porém, não era o tipo de per­gun­ta que eu esta­va esperando.

    "O búfalo do rio" que sempre apontava na direção certa
    “O búfa­lo do rio” que sem­pre apon­ta­va na direção certa

    Um dos con­tos mais mar­cantes é “aler­tas mas sem alarme”, que é bem ao esti­lo de Crôni­cas Mar­cianas (Edi­to­ra Globo) do Ray Brad­bury, onde cidadãos comuns recebem um mís­sil balís­ti­co para colo­car em seus jardins, sentin­do assim par­tic­i­pantes da segu­rança nacional. Só que o tem­po foi se pas­san­do e aque­les obje­tos gigantes ape­nas ficavam para­dos em seus quin­tais e aos poucos as pes­soas foram desco­brindo maneiras bem cria­ti­vas da dar util­i­dade a eles.

    A história mais bizarra e hor­rip­i­lante é “Os grave­tos”, que con­ta a história de um lugar onde grave­tos andam pelas ruas e enquan­to as cri­anças mais novas ten­tam se diver­tir com eles vestin­do roupas vel­has como se fos­sem espan­talhos, os garo­tos mais vel­hos ado­ram sair baten­do e destru­in­do eles. Os adul­tos sem­pre os reprimem por mex­er com eles, mas nun­ca expli­cam o por quê. Tam­bém há a bem diver­ti­da “nos­sa expe­dição” onde dois garo­tos intri­ga­dos com o que pode­ria ter nos lugares onde o mapa ter­mi­na, vão em bus­ca para saber se real­mente não há nada além daque­le lim­ite do papel e acabam fazen­do uma descober­ta no mín­i­mo intrigante.

    Bem, a sua avó e eu nos casamos lá do out­ro lado dele, muito antes de vocês exi­s­tirem. Claro, os casa­men­tos eram bem mais com­pli­ca­dos naque­le tem­po, não eram essas coisas melosas de hoje em dia. Para começar, a noi­va e o noi­vo eram envi­a­dos para bem longe antes da cer­imô­nia, e só tin­ham per­mis­são para levar uma foto ao par­tir, nada além dis­so, até voltarem, o que podia demor­ar bas­tante tempo.

    Desenhos da contra-capa do livro
    Desen­hos da con­tra-capa do livro

    Ao falar de con­tos fan­tás­ti­cos talvez alguns lem­brem do Coisas Frágeis do Neil Gaiman, mas os dois pos­suem um esti­lo de nar­ra­ti­va total­mente difer­ente. Tan é mais min­i­mal­ista e rela­ciona as histórias mais ao cotid­i­ano, enquan­to Gaiman explo­ra um lado mais mís­ti­co e lendário.

    Shaun Tan
    Shaun Tan

    Shuan Tan é for­ma­do em artes plás­ti­cas e lit­er­atu­ra ingle­sa na Uni­ver­si­dade da Aus­trália Oci­den­tal. Ini­ciou sua car­reira como ilustrador em revis­tas de ficção cien­tí­fi­ca e lançou seu primeiro livro O Obser­vador (The View­er) em 1997. A ideia para Con­tos de Lugares Dis­tantes surgiu de alguns pequenos ras­cun­hos que man­tinha em um cader­no de desen­hos, que pode ser vis­to abaixo em um vídeo que mostra o estú­dio do autor. O site ofi­cial do autor tam­bém é muito legal, seguin­do bas­tante tam­bém o esti­lo de recortes e desen­hos, vale a pena dar uma visitada.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=c9NCUydoJFk

  • Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Eu gos­to de explo­rar essa imper­feição, porque é assim que as pes­soas são de ver­dade, boas e más, não ape­nas boas ou ape­nas más”, diz o escritor amer­i­cano Teju Cole (1975) em uma entre­vista durante a sua pas­sagem pela FLIP de 2012. Cole con­segue explo­rar a imper­feição humana de for­ma muito rica e analíti­ca em seu romance de estreia Cidade Aber­ta (Com­pan­hia das Letras, 2012, tradução de Rubens Figueire­do), vence­dor do Prêmio Pen/Hemingway 2012 e elo­gia­do pela críti­ca americana.

    Nova York é con­heci­da como uma das cap­i­tais mais cos­mopoli­tas do mun­do, assim como São Paulo, à primeira vista parece reinar a plu­ral­i­dade que con­strói o meio urbano. Mas muito tem se lido na lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa a voz dos estrangeiros — por exem­p­lo, Junot Diaz em “A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao” — que hoje fig­u­ram grande por­cent­agem da pop­u­lação, fazen­do uma grande difer­ença numa eleição e out­ras decisões políti­cas, por exem­p­lo. Mas ain­da demon­stram que a plu­ral­i­dade não é esse son­ho todo e que ain­da nes­sas grandes cidades se vive em guetos.

    O títu­lo do livro pode se rela­cionar ao ter­mo open city — cidade aber­ta traduzi­do ao pé da letra — que foi usa­do pela primeira vez em 1914 para des­ig­nar uma cidade que durante uma guer­ra está despro­te­gi­da mil­i­tar­mente e segun­do as leis inter­na­cionais não pode sofr­er ataques. Numa primeira análise, ten­do con­sciên­cia desse sig­nifi­ca­do, a primeira refer­ên­cia é o 11 de setem­bro amer­i­cano. Mas o ter­mo tam­bém pode ser pen­san­do com o seu sen­ti­do mais comum, uma cidade aber­ta que recebe diari­a­mente mil­hões pes­soas do mun­do inteiro que a constituem.

    Mas a atro­ci­dade não tem nada de novo, não para seres humanos, não para ani­mais. A difer­ença é que em nos­so tem­po ela é extra­or­di­nar­i­a­mente bem orga­ni­za­da, prat­i­ca­da com cur­rais, trens de car­ga, livros de con­tabil­i­dade, cer­cas de arame farpa­do, cam­pos de tra­bal­ho, gás. E esta últi­ma con­tribuição, a ausên­cia de cor­pos. (p.74)

    Teju Cole
    Cidade Aber­ta tra­ta da visão de um estrangeiro num fre­quente ciclo de descober­ta e adap­tação ao efêmero da cidade. São os olhos de Julius, um nar­rador-per­son­agem que flana pela cidade de Nova York mul­ti­fac­eta­da, que anda lado a lado com o leitor. Des­de as suas enormes lojas de depar­ta­men­tos, os pon­tos turís­ti­cos mar­ca­dos pela História, o metrô e seus per­son­agens até as tragé­dias maquiadas pelo rit­mo da cidade. Julius, esmi­uça cada vér­te­bra da metró­pole, nada escapa do seu olhar não só plás­ti­co, mas pro­fun­da­mente int­elec­tu­al. Vin­do da Nigéria aos 17 anos, o per­son­agem é um psiquia­tra recém-for­ma­do e bas­tante atare­fa­do, que faz do seu tem­po livre uma boa des­cul­pa para andar pela cidade con­heci­da pela sua var­iedade de faces.

    Assim como Baude­laire criou a ideia de flâneur — o homem mod­er­no que flana invisív­el pelo meio urbano pre­stando atenção às movi­men­tações, a efe­meri­dade do movi­men­to citadi­no — em Cidade Aber­ta o leitor é tam­bém um flâneur, jun­to do imi­grante que se con­strói con­forme se rela­ciona com esse meio, a ter­ra natal deix­a­da no pas­sa­do e o sen­ti­men­to de difer­ença. O leitor só é apre­sen­ta­do for­mal­mente a Julius, ao nome que o iden­ti­fi­ca, quan­do pas­sa a se apro­fun­dar nas suas memórias e sua vida na Nigéria deix­a­da para trás.

    O livro é divi­di­do em duas partes e ambas são recur­sos poéti­cos para a nar­ra­ti­va pes­soal do per­son­agem. A primeira inti­t­u­la­da de A morte é uma per­feição do olho e a segun­da Eu procu­ra­va a mim mes­mo demon­stram que mes­mo que Julius se dis­farce de ape­nas um pas­sante, um sim­ples obser­vador, enga­ja­do, inteligente, procu­ran­do localizar cada célu­la for­mado­ra da cidade de Nova Iorque, ele está pro­fun­da­mente lig­a­do na bus­ca de encon­trar a si mes­mo, bus­car suas próprias respostas e definir a sua identidade.

    Fran­cis O. Watts With Bird, de John Brew­ster Jr.
    Aliás, a iden­ti­dade é um pon­to inter­es­sante do livro, a história de Julius e Teju Cole são estre­ita­mente próx­i­mas, sal­vo alguns detal­h­es. Julius não é ape­nas um pas­sante que nar­ra a cidade em um uni­ver­so fic­cional. Ele é um grande con­hece­dor de estru­turas históri­c­as e as obser­va fazen­do anális­es plás­ti­cas, como faria Teju que é his­to­ri­ador de arte. Em deter­mi­na­do pas­seio por um museu, ele encon­tra o quadro “Fran­cis O. Watts With Bird” do pin­tor amer­i­cano John Brew­ster Jr. e além de rela­cionar e con­tex­tu­alizar a pin­tu­ra, ele rela­ta uma lig­ação muito ínti­ma entre obser­vador e obra, não deixan­do dúvi­das que está con­duzin­do o leitor pelo passeio.

    O pas­sar­in­ho rep­re­sen­ta­va a alma da cri­ança, como tam­bém acon­te­cia no retra­to feito por Goya do mal­fada­do Manuel Oso­rio Man­rique de Zúñi­ga, de três anos de idade. A cri­ança na pin­tu­ra de Brew­ster mira­va aten­ta, com uma expressão ser­e­na e etérea, do ano de 1805. Ao con­trário de muitas out­ras cri­anças pin­tadas por Brew­ster, o meni­no tin­ha sua audição per­fei­ta. Seria aque­le retra­to um amule­to con­tra a morte? Uma em cada três pes­soas, naque­la época mor­ria antes dos vinte anos de idade. Seria aqui­lo a expressão de um dese­jo mági­co de que a cri­ança resis­tisse e se agar­rase à vida, assim como se agar­ra­va ao cordão?” (p.52)

    A iden­ti­dade de imi­grante, tão penosa de se con­quis­tar mes­mo estando em um lugar por uma decisão própria, é clara em Cidade Aber­ta. Por exem­p­lo, o com­por­ta­men­to dos pás­saros é usa­do em dois momen­tos pelo per­son­agem, ambos retratam a neces­si­dade de migração, quase que nat­ur­al mas mes­mo assim com seus per­calços. O livro tra­ta bas­tante dis­so, da tran­si­to­riedade das pes­soas e espaços a fim de bus­car algo, aparente­mente tão nor­mal em tem­pos de efemeridade. 

    Nova York sem­pre está se mutan­do, se adap­tan­do às crises, ataques e mes­mo assim ain­da guar­da de for­ma orgul­hosa suas mar­cas que con­tam a história da Améri­ca como um lugar do futuro. O nar­rador con­duz muitos dos seus pas­seios afim de em var­ios momen­tos tirar a maquiagem da cidade, por mais que ele diga que não tro­caria esse lugar, ele tam­bém não con­segue se desven­cil­har da sua primeira iden­ti­dade, da sua cor e origens.

    Cer­ca de duzen­tos anos depois, quan­do um jovem da região do Forte Orange desceu pelo rio Hud­son e se esta­b­ele­ceu em Man­hat­tan, decid­iu escr­ev­er seu opus mag­num sobre um Levi­atã albi­no. O autor, que no pas­sa­do tiha sido paro­quiano da Igre­ja da Trindade, inti­t­u­lou seu livro A baleia; o sub­tí­tu­lo, Moby Dick, só foi acres­cen­ta­do depois da primeira edição. Essa mes­ma Igre­ja da Trindade ago­ra não me rece­beu, deixou-me do lado de fora, expos­to ao cor­tante ar mar­in­ho sem me ofer­e­cer nen­hum lugar para rezar. (p.66)

    Mas há tam­bém alguns pon­tos neg­a­tivos em Cidade Aber­ta. Em alguns momen­tos a nar­ra­ti­va des­per­ta um cer­to cansaço por con­ta das descrições detal­hadas e tam­bém das posições políti­cas e críti­cas, lev­adas bas­tante a sério por Julius, que sem­pre aca­ba encon­tran­do motivos para criticar o domínio amer­i­cano. Essas mes­mas opiniões acabam por deixar algu­mas opções do enre­do repet­i­ti­vas e desnecessárias.

    Mas por ser tam­bém uma uma nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, mescla­da pela intim­i­dade do jovem psiquia­tra com sua visão do urbano, Cidade Aber­ta é bas­tante atraente ao leitor curioso. Julius con­segue ques­tionar a solidão e a vida mes­mo quan­do anal­isa as pes­soas e fatos através do seu olhar clíni­co, medin­do a quími­ca e con­ceitos das situações.

    A visão de grandes mas­sa humanas descen­do afobadas para câmaras sub­ter­râneas era per­pet­u­a­mente estran­ha para mim, e eu tin­ha a sen­sação de que a raça humana inteira se pre­cip­i­ta­va, empurra­da por um impul­so de morte anti­nat­ur­al, rumo a cat­acum­bas móveis. Na super­fí­cie da ter­ra, eu esta­va com mil­hares de out­ros em sua solidão, mas den­tro do metrô, de pé entre descon­heci­dos, empurran­do e sendo empurra­do em bus­ca de espaço e de uma brecha para res­pi­rar, todos nós recon­stí­tuíamos trau­mas não admi­ti­dos, a solidão inten­si­fi­ca­da. (p.14
    (…) o pro­fes­sor Saito disse cer­ta vez: Adoro mon­stros imag­inários, mas fico apa­vo­ra­do com os mon­stros reais. (p.19)

    A prin­ci­pio pode-se pen­sar que é ape­nas um estrangeiro vitimiza­do pela cul­tura amer­i­cana, mas ele é bem além dis­so, é um ser humano e seu fluxo de con­sciên­cia com­pro­va que Cidade aber­ta é um livro tam­bém sobre solidão.