Category: Balão de Erlenmeyer

  • Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    Aeon Spoke — Above the Buried Cry (2004) | Crítica

    aeon-spoke-above-the-buried-cry-2004-critica-1Boas ener­gias, luz, calor humano e esper­ança inte­gram o com­pos­to do álbum Above the Buried Cry, da ban­da de alternative/atmospheric rock Aeon Spoke. Falan­do assim até pode pare­cer clichê, mas o tra­bal­ho cap­i­tanea­do pelo tal­en­tosís­si­mo gui­tar­rista, com­pos­i­tor e vocal­ista Paul Masvi­dal, ao lado do seu fiel com­pan­heiro, o bater­ista Sean Rein­ert, não pode­ria ser diferente.

    Os dois músi­cos em questão foram mem­bros da ban­da Death durante a exe­cução e turnê do álbum Human (1991), con­sid­er­a­do um divi­sor de águas na car­reira de uma das maiores ban­das de Heavy Met­al que já exi­s­ti­ram em todos os tem­pos. Con­ta-se que Chuck Schuldin­er, líder do Death, ten­tou dis­suadir Paul Masvi­dal a não deixar o grupo, pois considerava‑o um gui­tar­rista excep­cional. Mas o fato acon­te­ceu, levan­do Masvi­dal e Rein­ert a retomarem suas ativi­dades com o Cyn­ic, tra­bal­ho perene dos músicos.

    Para­le­lo ao Cyn­ic, o ano de 2000 fez emer­gir a primeira demo do Aeon Spoke, com­pos­ta por seis faixas, cul­mi­nan­do depois em um EP lança­do em 2002 e radio ses­sions em 2003. No ano seguinte, o primeiro álbum da ban­da vem à tona com sete faixas (o mate­r­i­al foi regrava­do em 2007). Above the Buried Cry intro­duz men­sagens pos­i­ti­vas e reflexões acer­ca do com­por­ta­men­to humano, o que vem a cal­har com as crenças do por­to-riqueno Paul Masvidal.

    Sean Reinert e Paul Masvidal
    Sean Rein­ert e Paul Masvidal

    Nasci­do Pablo Alber­to Masvi­dal, o músi­co cresceu em Mia­mi, Flóri­da, e estu­dou músi­ca clás­si­ca e jazz des­de os primeiros anos. Paul é envolvi­do com a filosofia Ori­en­tal e com tudo o que diz respeito à espir­i­tu­al­i­dade. Ele tam­bém é ini­ci­a­do na práti­ca do Kriya Yoga, expon­do suas ideias/experiências nas letras de suas com­posições, que abar­cam Cyn­ic, Aeon Spoke, Por­tal e out­ros pro­je­tos paralelos.

    Sean Rein­ert tem acom­pan­hado Masvi­dal des­de a déca­da de 1980 e é con­sid­er­a­do um proem­i­nente bater­ista, escreven­do e apre­sen­tan­do per­for­mances em pro­gra­mas de tele­visão e filmes. Rein­ert parece ter a mes­ma filosofia de vida do seu ami­go Paul, o que resul­tou em faixas como:

    No Answers

    A feli­ci­dade não está em respostas e deve ser procu­ra­da com otimismo.

    https://www.youtube.com/watch?v=6E_8oVxrUKw

    Grace

    Um pedi­do de fé bem ao esti­lo da dout­ri­na ori­en­tal, onde paz e amor devem ser persegui­dos constantemente.

    Silence

    Crença, dese­jo, amor, esper­ança e alusão, uma vez mais, ao sol como fonte de renovação/renascimento.

    Emmanuel

    Belís­si­ma intro, é uma das faixas mais intro­spec­ti­vas do álbum. A músi­ca lança o ouvinte para uma irremediáv­el conexão com uma natureza oníri­ca, que se perde em cada nova nota. Min­ha faixa preferida!

    https://www.youtube.com/watch?v=vWeXxBGzKe0&ob=av2e

    Above the Buried Cry tam­bém traz Pablo at the Park, Sui­cide Boy, Face the Wind, For Good, Noth­ing e Yel­low­man, tudo den­tro da lin­ha “des­cubra-se e entregue-se”. De fato, pen­sa­men­to pra lá de alter­na­ti­vo para um mun­do cada vez mais egói­co, manip­u­lador e obceca­do pela sede de poder. Mas a arte existe para isso: abrir, cati­var e estim­u­lar consciências.

  • O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    O Twitter pode fazer de você um escritor melhor?

    Muitos de nós, que lemos e rele­mos livros, assim como sites, blogs e tudo que con­cerne ao uni­ver­so literário, cos­tu­mamos man­ter o hábito de escr­ev­er car­tas, arti­gos, e‑mails, matérias, tra­bal­hos acadêmi­cos, reca­dos rápi­dos em redes soci­ais, um tomo de 1.000 pági­nas do romance de estreia ou, sim­ples­mente, um infor­ma­ti­vo para o mur­al da empre­sa – algo do tipo “Área reser­va­da ao tem­po-livre. Chefes de setores, favor respeitar” (ok, não cus­ta imag­i­nar). Enfim, as opções são exten­sas. Muitas vezes, nos per­gun­ta­mos como nos tornar escritores mel­hores, mais rápi­dos, con­cisos, ver­sáteis, cria­tivos e interessantes.

    Marshall McLuhan
    Mar­shall McLuhan

    Pois bem, den­tre os cul­tuadores do totem Novas Tec­nolo­gias — tudo começou com o pro­fe­ta Mar­shall McLuhan, não se culpem — exis­tem aque­les que estão bus­can­do novas for­mas de mel­ho­rar cada vez mais sua capaci­dade de escr­ev­er e pro­duzir con­teú­do. Jen­nifer Blan­chard, uma copy­writer profis­sion­al que até mea­d­os de 2013 man­tinha o blog Pro­cras­ti­nat­ing Writ­ers, é uma dessas entu­si­as­tas e decid­iu usar o twit­ter como pro­va de que 140 car­ac­teres podem sim faz­er de você um escritor mel­hor. No arti­go How Twit­ter Makes You a Bet­ter Writer (Como o Twit­ter faz de você um escritor mel­hor), Blan­chard dá algu­mas dicas e teste­munhos de como uma rede social, lou­va­da e/ou crit­i­ca­da — mas sem­pre anal­isa­da — nas fac­ul­dades de Comu­ni­cação ao redor do mun­do pode dar um upgrade sig­ni­fica­ti­vo nas suas habil­i­dades de escrita.

    Jen­nifer defende que o Twit­ter não é ape­nas um óti­mo espaço para negó­cios e expan­são de mar­cas, mas tam­bém o lugar ide­al para orga­ni­zar as habil­i­dades para escr­ev­er. Segun­do ela, o “Twit­ter força você a ser con­ciso”, ou seja, você pre­cisa ser rápi­do, hábil e cria­ti­vo com as palavras. O recur­so te ofer­ece ape­nas 140 car­ac­teres para diz­er tudo o que você pre­cisa. “Isso não é um monte de espaço. Letras, números, sím­bo­los, pon­tu­ação e espaços, todos con­tam como car­ac­teres no Twit­ter”, reforça Jen­nifer. Você pre­cisa diz­er o que tem que diz­er uti­lizan­do o menor número de palavras pos­sív­el, o que te obri­ga a tomar decisões entre a imen­sid­ão de vocábu­los a usar, reduzin­do suas ideias ao essen­cial. A copy­writer dá a enten­der que para os escritores ver­bor­rági­cos, que cos­tu­mam escr­ev­er lau­das e lau­das sem sair do preâm­bu­lo, esboçar sen­tenças em 140 car­ac­teres é um ver­dadeiro desafio. Dessa for­ma, o Twit­ter — quem diria? — te força a exerci­tar e ampli­ar o vocab­ulário que pos­sui, impul­sio­n­an­do à procu­ra de palavras e expressões novas “para diz­er de modo mel­hor, claro e con­ciso” toda a men­sagem que se quer passar.

    A copywriter Jennifer Blanchard
    A copy­writer Jen­nifer Blanchard

    O últi­mo argu­men­to da auto­ra ver­sa sobre a pos­si­bil­i­dade de mel­ho­rar as habil­i­dades de edição através do Twit­ter. Para Jen­nifer Blan­chard, todo autor deve ser capaz de edi­tar seu próprio tex­to, e a fer­ra­men­ta de 140 car­ac­teres serve para deixar a capaci­dade de edição sim­ples­mente exce­lente (top-notch). “É quase como jog­ar um jogo; ten­tar escr­ev­er uma men­sagem de 140 car­ac­teres e ain­da obter seu pon­to de vista de tal for­ma que inspire seus seguidores a tomar medi­das como clicar no seu link ou retwit­tar seus posts”, afir­ma Blanchard.

    A auto­ra fala ain­da sobre como o uso dessa rede social a força a pen­sar cada vez mais pro­fun­do den­tro do seu vocab­ulário até encon­trar um modo cur­to de diz­er suas men­sagens. Ela, que diz ser usuária do Twit­ter há algum tem­po, rev­ela que a fer­ra­men­ta não só a tem aju­da­do a mel­ho­rar suas habil­i­dades de escri­ta como tam­bém a realizar cópias (repro­duções) de for­ma mais produtiva.

    E você? Tam­bém acha que o uso do Twit­ter é útil para desen­volver habil­i­dades e, ao con­trário do que uma parte de pen­sadores con­tem­porâ­neos argu­men­ta, pode aju­dar a mel­ho­rar nos­sa capaci­dade no que diz respeito à leitu­ra, escri­ta, pensamento?

  • Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Swans, de M. C. Escher (Gravura em Madeira) - 1956
    Swans, de M. C. Esch­er (Gravu­ra em Madeira) — 1956

    Louis Aragon (1897 – 1982), poeta, edi­tor e romancista francês, expres­sou como “os home­ns vivem” no poe­ma que car­rega a força dess­es versos:

    (…)

    Eram tem­pos insanos,

    Tín­hamos pos­to os mor­tos à mesa

    Fazíamos caste­los de areia

    Con­fundíamos lobos com cães

    Apro­prian­do-se do poe­ma, nos­sas fale­ci­das memórias voltam do pas­sa­do como uma visão fan­tas­magóri­ca, tri­un­fante e ameaçado­ra, que olha ao redor para se cer­ti­ficar de sua onipresença. A inse­gu­rança e a von­tade incon­troláv­el de lem­brar, sal­var e reg­u­lar tudo nos tor­na con­stru­tores e plateia de uma História doc­u­men­ta­da, cujo efeito de real seja ima­nente. Durante sécu­los, esse raciocínio foi segui­do pela neces­si­dade de difer­en­ciar rigi­da­mente “fato e ficção”, “mito e história”, “real e imag­inário”. A nar­ra­ti­va his­to­ri­ográ­fi­ca pas­sou por lon­gas fas­es de restrição, lim­i­ta­da ao pos­i­tivis­mo, às exigên­cias de vestí­gios e doc­u­men­tos. Sep­a­rar história e lit­er­atu­ra como dois entes de plan­e­tas opos­tos foi o primeiro pas­so para deter­mi­nar cam­in­hos, impor sen­ti­dos, fixar padrões. Ao anal­is­ar o pen­sa­men­to de Gilles Deleuze (1925–1995) sobre a lin­guagem literária e o de-fora,  o autor brasileiro Rober­to Macha­do traz à tona a ideia que o francês pos­suía sobre a escri­ta como “uma ten­ta­ti­va de lib­er­tar a vida daqui­lo que a apri­siona, é procu­rar uma saí­da, encon­trar novas pos­si­bil­i­dades, novas potên­cias de vida”. Se con­tin­u­amos a todo instante pon­do nos­sos mor­tos à mesa, por que igno­rar a estre­i­ta relação entre lin­guagem históri­ca e ficcional?

    Zdzisław Beksiński
    Zdzisław Bek­sińs­ki

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-ggmO escritor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, que fale­ceu em abril deste ano em con­se­quên­cia de com­pli­cações ger­adas pelo câncer, criou um novo sen­ti­do para o envel­he­cer por meio do pro­tag­o­nista de “Memória de min­has putas tristes”, livro lança­do em 2005 e divul­ga­do no Brasil pela edi­to­ra Record em 2008, com tradução de Eric Nepo­mu­ceno. Tra­ta-se da emblemáti­ca história de um sen­hor no auge dos seus noven­ta anos que, com­ple­ta­mente per­di­do em uma vida comum, sem amores, sem expec­ta­ti­vas, sem ânsias e dese­jos, se vê às voltas com a des­or­dem que só sen­ti­men­tos como o amor podem acar­retar. O sábio decide comem­o­rar sua entra­da em uma nova déca­da na com­pan­hia de uma moça, nin­fe­ta e virgem. Para isso, entra em con­ta­to com uma anti­ga con­heci­da, a cafeti­na Rosa Cabar­cas, e encomen­da a menina.

    Em todo o tex­to, a mis­tu­ra de real­i­dade e ficção é um dos pon­tos altos, levan­do o leitor a ques­tionar: É pos­sív­el sen­tir saudades do que você nun­ca viveu? Como resi­s­tir a um tem­po de começo, meio e fim, atribuin­do-lhe sen­ti­dos que, muitas vezes, o próprio tem­po descon­hece? O his­to­ri­ador Hay­den White entende as nar­ra­ti­vas históri­c­as como ficções ver­bais. Para ele, o his­to­ri­ador “não pode mais igno­rar a estre­i­ta relação entre história e mito. A história não é uma ciên­cia porque não é real­ista, o dis­cur­so históri­co não apreende um mun­do exte­ri­or, porque o real é pro­duzi­do pelo dis­cur­so”. White afir­ma que o his­to­ri­ador pro­duz “con­struções poéti­cas”, sendo a lin­guagem o ele­men­to que con­sti­tui sen­ti­do. Para ele, é inegáv­el a influên­cia do esti­lo literário do autor na escri­ta his­to­ri­ográ­fi­ca, bem como dos recur­sos estilís­ti­cos empre­ga­dos para destacar posi­ciona­men­tos e seleções. Como retoma o teóri­co, os acon­tec­i­men­tos são neu­tros, isto é, não trazem em si nen­hu­ma car­ga val­o­rati­va. No entan­to, são con­ver­tidos em trági­cos, emo­cio­nantes, cômi­cos, român­ti­cos ou irôni­cos pelo próprio enre­do atribuído.

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-agonizoPara o nona­genário cri­a­do por Gar­cía Márquez, atrav­es­sar décadas de fatos históri­cos e reg­istra­dos não sig­nifi­ca absorvê-los de uma úni­ca for­ma; em toda a tra­ma, o vel­ho homem é refa­mil­iar­iza­do com os acon­tec­i­men­tos vivi­dos por meio de suas lem­branças. A for­ma como o mun­do se descorti­nou diante dos seus olhos quase cen­tenários é vista de modo inter­pre­ta­ti­vo, e não metódi­co e pro­je­ta­do. Essa mes­ma atmos­fera pode ser sen­ti­da nos con­tos do ital­iano Anto­nio Tabuc­chi (1943–2012), reunidos no sug­es­ti­vo livro “O tem­po envel­hece depres­sa” (2009), e no romance “Enquan­to Ago­ni­zo” (1930), do norte-amer­i­cano William Faulkn­er (1897–1962). Ape­sar de inve­stirem em lin­gua­gens nar­ra­ti­vas difer­entes, as duas obras tocam a mes­ma questão no que diz respeito à memória e a con­strução de difer­entes pon­tos de vista. É essa dis­pu­ta entre rela­to e sub­je­tivi­dade que traça o con­torno da nar­ra­ti­va históri­ca. A união entre história e lit­er­atu­ra per­mite “delírios sig­ni­fica­tivos”, epi­fa­nias que abrem espaço para o pen­sa­men­to escapar do sis­tema dom­i­nante. O imag­inário traz uma car­ga dev­as­ta­do­ra que parece son­dar o vazio, enx­er­gar nas trevas e escu­tar através dos portões fechados.

    A “imanên­cia”, ter­mo usa­do por Deleuze, está em desco­brir-se além das corti­nas; é não ter medo, por exem­p­lo, de se perder nos labir­in­tos de ilusão de ópti­ca cri­a­dos por M. C. Esch­er (1898–1972) ou na beleza mór­bi­da das pin­turas do polonês Zdzis­law Beksin­s­ki (1929–2005) e seus humanos-esquele­tos, árvores retor­ci­das e ambi­entes cer­ca­dos pela névoa. É saber recon­hecer traços da história na expressão subjetiva.

    Relativity, de M. C. Escher (litografia) - 1953
    Rel­a­tiv­i­ty, de M. C. Esch­er (litografia) — 1953

    A união da lit­er­atu­ra e da história abre cam­in­ho para ver através das palavras, trans­for­mar pen­sa­men­to em sen­sação e ser capaz de traçar lin­has de fuga. Os sen­ti­dos da história não são neu­tros, obje­tivos e rig­orosa­mente cien­tí­fi­cos. Eles são flu­i­dos, optam por pontes e desco­brem novas rotas. É pre­ciso ter cor­agem para recon­hecer que as “coisas têm dimen­sões que são intrínse­cas ao val­or que damos”, e que mas­carar esse fato — como se tal ati­tude fos­se cru­cial para man­ter a zona de con­for­to – só abre mais espaços, mais abis­mos, mais fos­sos. Como lem­braria o jor­nal­ista e escritor brasileiro Daniel Piza (1970–2011): “Quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. Por­tan­to, cor­agem! Vamos colo­car nos­sos mor­tos à mesa e ofer­e­cer o banquete.