O diretor inglês Peter Greenaway já vem divulgando desde a década de 80 a sua ideia de que o cinema morreu e em seus últimos projetos, como na trilogia As maletas de Tulse Luper, expande a experiência do cinema inicialmente limitado apenas às suas salas escuras. Devido a exploração mercadológica cada vez maior nesta indústria, é fácil que subprodutos de um longa sejam produzidos para tentar simular esta expansão, mas na verdade são somente pequenos extras ou um making of do que já foi feito, não mudando realmente a experiência cinematográfica em si. Ou seja, são apenas outros meios para conseguir mais dinheiro do consumidor.
É aí que está a grande diferença da graphic novel The Fountain, escrita por Darren Aronofsky e ilustrada por Kent Williams, que foi lançada pelo selo Vertigo da DC Comics em 2005 e ainda é inédita no Brasil. Apesar de ter sido praticamente desenvolvida em paralelo ao filme A Fonte da Vida, lançado em 2006 e dirigido pelo próprio Aronofsky, ela foi criada de maneira completamente independente. A base dos dois é a sua história, mas as semelhanças praticamente acabam por aí. Temos em cada um desses projetos uma versão diferente do enredo inicial, que utilizam ao máximo todas as possibilidades da mídia na qual foi adaptada, respeitando a sua própria linguagem e estilo. Algo similar acontece quando uma adaptação de um livro para as telas não tenta reproduzir a experiência da leitura, mas sim criar algo novo utilizando a linguagem do cinema.
Se você ainda não conhece a história principal, ela narra em três diferentes tempos a jornada de um mesmo personagem (Tomás, Tommy e Tom) em busca da imortalidade para poder ficar junto a sua amada. As três narrativas vão se alternando e uma é interdependente da outra, ou seja, é necessário que o personagem resolva a mesma questão nesses espaços diferentes de tempo para que ele possa finalmente concluir a sua própria história.
Este provavelmente ainda é o projeto mais ambicioso de Aronofsky — posição que talvez vai ser tomada pelo seu novo longa Noé, previsto para 2014 — e também foi o que mais dividiu o público, como ele mesmo comentou em uma entrevista. Isso não só pelo estilo narrativo e pela complexidade dos cenários e situações, algo parecido com que o recente A Viagem dirigido por Tom Tykwer e pelos irmãos Wachowski fez, mas também pelo seu tema principal: aceitar a morte, ou o fim, assim como as nossas próprias limitações como seres humanos.
Por conta do seu alto custo, o projeto foi oficialmente encerrado em 2002, mas o diretor resolveu reescrever todo o roteiro para que ele deixasse de ser uma super produção e seguisse a mesma linha de filmes indie de baixo orçamento, que o mesmo havia feito até aquele momento.
Logo no início das negociações do filme, Aronofsky sabia que este seria um projeto muito difícil, então ele e o produtor lutaram de antemão para que os direitos da graphic novel fossem garantidos de qualquer forma. Quando entrou em contato com a Vertigo, lhe indicaram o artista Kent Williams e, apesar de não o conhecer, cada vez que ia recebendo mais exemplos de seus trabalhos, ficava ainda mais empolgado com essa parceria. Depois de iniciado as produções, eles brincavam bastante a respeito de qual dos dois iriam terminar primeiro, o longa ou a HQ. Quase houve um empate, mas a graphic novel ficou pronta um ano antes do filme.
Williams é um ilustrador americano que já trabalhou para várias editoras de quadrinhos, sendo responsável pelas artes do Wolverine na aclamada série Wolverine & Destrutor: Fusão, lançado aqui no Brasil em quatro edições pela Editora Abril no ano de 1989. Hoje em dia ele deixou um pouco as HQs de lado para se focar mais em suas pinturas, apesar de ter admitido em uma entrevista que está trabalhando em um quadrinho autoral, mas que não tem prazo para terminar. Se você tiver interesse, pode acompanhar seus trabalhos mais recentes neste blog ou em seu site oficial.
Em The Fountain foi possível realizar graficamente todos os detalhes do enredo, que em outra mídia como o cinema, provavelmente seria financeiramente impossível. Este é na real é um dos grandes trunfos de uma história em quadrinho, em um desenho pode-se criar tudo que se imagina e até coisas que são impossíveis de existir. M.C. Escher era, por exemplo, um especialista nesta área, sem ficar se preocupando muito com orçamentos. Isso vale também no quesito de sair do pudor hollywoodiano, nos desenhos não é preciso lidar com a limitação dos estúdios e dos próprios atores. Por exemplo, os personagens da HQ estão completamente nus dentro da bolha, enquanto no filme estão vestidos dos pés á cabeça.
No começo, os desenhos de Williams podem gerar um certo estranhamento, pois ele varia bastante o estilo ao longo da história. Os traços vão desde somente alguns contornos, parecendo um pouco com rascunhos, à páginas completamente coloridas até nos mínimos detalhes. Além dessa grande variação de detalhamento e cor, que cria uma personalidade muito interessante nos desenhos, se nota uma clara separação entre os três diferentes tempos que a história se passa, tanto pela divisão gráfica dos quadros e suas cores determinantes, quanto pela cor utilizada no fundo para preencher o espaço vazio.
O uso de somente duas fontes nos textos, uma para os diálogos e outra para narração, acaba quebrando um pouco toda essa diversidade dos desenhos, mas consegue assim manter uma experiência de leitura bem agradável. É interessante também notar que algumas legendas no início são descrições de sons ou estados dos personagens naquele quadro, como se fosse um roteiro para o filme, mas que durante o desenvolver da história assume uma linguagem mais característica dos quadrinhos.
Pode-se até pensar que The Fountain poderia ser algo como uma “versão do diretor” do longa, mas isto seria equivocado. Também está longe de ser um storyboard do mesmo. Como mencionei anteriormente, ela é uma experiência completamente diferente do filme, sendo uma nova interpretação ao invés de apenas mais uma repetição do que você já viu nas telas. Alguns talvez até podem afirmar que esta HQ é algo mais para um fã do longa ou do diretor. Não posso discordar desta afirmação, mas acredito que a mesma sobrevive tranquilamente como uma obra independente e única no mundo das graphic novels.
Como a HQ ainda é inédita aqui no Brasil, é possível comprá-la em inglês no site de livrarias como a Saraiva e a Cultura. Se você já comprou ou pretende comprar, uma experiência que pode ser bem interessante é a leitura dela junto com a trilha sonora do filme criada por Clint Mansell, que é simplesmente sensacional.
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