Dez anos. Esse foi o tempo que durou a parceria entre o ilustrador Eduardo Baptistão e o jornalista Daniel Piza. Durante esse período, Baptistão foi responsável pelas ilustrações da coluna Sinopse, assinada por Piza e publicada aos domingos no Caderno 2 do jornal Estadão (Estado de S. Paulo).
Premiado dentro e fora do Brasil, Baptistão é dono de um traço inconfundível, instigante e lúdico, característica que impactou Daniel Piza. Gentilmente, Eduardo abriu seu arquivo pessoal para compartilhar com todos os leitores e leitoras do interrogAção algumas das ilustrações que fez de Piza.
Confira também as impressões do ilustrador sobre a parceria de uma década:
Começo da parceria
Daniel já havia trabalhado no Estadão no início dos anos 1990, depois passou pela Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil. Voltou ao Estadão em 2000 como editor executivo e colunista de cultura e esportes. No início da publicação — uma coluna semanal no Caderno 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jornal o estilo que mais se adaptava à ideia que tinha, e acabou optando pelo meu. Durante todo o período em que publicou a coluna Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domingos em que eu não a ilustrei. Nessas ocasiões, em que eu estava em férias ou de folga em algum feriado, quem normalmente me substituía era o meu amigo e colega Carlinhos Muller. Coube ao Carlinhos, por sinal, ilustrar a última coluna que Daniel escreveu, pois eu cumpria a folga de Natal.
Daniel Piza no dia a dia
Daniel gostava de conversar. Por ser um cara muito culto e informado, eram sempre ótimos papos! Não éramos íntimos a ponto de abordar assuntos pessoais, mas sempre trocávamos ideias sobre a coluna, sobre o tema proposto e, muitas vezes, eu lhe perguntava se tinha alguma imagem em mente para a coluna da semana. Ele sempre confiou na minha interpretação e me deu carta branca para criar. Em vez de enviar o texto por e‑mail, coisa que raramente fazia, Daniel preferia levar o texto impresso até a minha mesa, e sempre fazia algum comentário sobre o assunto principal da coluna. Nessas ocasiões, eram também comuns as conversas sobre futebol, paixão que tínhamos em comum, embora fôssemos “rivais” – ele corintiano, eu palmeirense. Cheguei a jogar futebol com ele muitas vezes, nas peladas noturnas organizadas pelo pessoal da redação. Daniel tinha muito bom domínio de bola e vocação de artilheiro – mas, devo dizer, isso era facilitado pelo fato de jogar sempre “na banheira” [posição de impedimento].
Repercussão das ilustrações
É difícil falar sobre a repercussão das ilustrações, porque raramente eu tinha algum retorno do público sobre elas. De maneira geral, os leitores comentavam muito as colunas, mas eram raríssimos os comentários sobre as ilustrações. Lembro de um desenho, de um filho correndo em direção ao pai sentado no chão, que fiz para uma coluna sobre o dia dos pais, em que um leitor se declarou emocionado não só pelo texto, mas também pela imagem.
Traços marcantes de Daniel Piza
Algumas colunas do Daniel eram escritas tão em primeira pessoa que me sugeriam usar a figura dele como personagem da ilustração. Mas, nessas ocasiões, eu optava por apenas sugerir o Daniel nos desenhos, sem me preocupar muito com a semelhança. No conjunto de ilustrações que fiz para a coluna ao longo do tempo, foram muitas em que o Daniel aparecia de alguma forma.
O que mais admirava no Daniel era a versatilidade e a produção caudalosa. Era notável a sua capacidade de escrever sobre qualquer assunto, do futebol à culinária, da arquitetura à religião, da política à ciência. E era notável também a quantidade absurda de colunas, reportagens, resenhas, artigos e livros que ele escrevia, assim como a quantidade de livros lidos, de shows, concertos, peças e filmes assistidos e de discos ouvidos para produzir às vezes uma única coluna! Eu sempre o usava como referência, pelo tanto que ele produziu em tão poucos anos de vida em comparação comigo, quatro anos mais velho e infinitamente menos produtivo. Mas eu acredito que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, acima da média.
Veja abaixo as ilustrações criadas pelo Eduardo Baptistão de Daniel Piza:
Em novembro de 2000, o jornalista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) concedeu uma entrevista direta e polêmica ao apresentador do programa Provocações (TV Cultura), Antônio Abujamra.
Nela, Daniel Piza fala sobre a prática do jornalismo cultural no Brasil e sua descaracterização: “O jornalismo cultural, em geral, é o jornalismo que eles chamam de variedades. Então, é a pequena reseinha [resenha] do último disco pop que saiu na Inglaterra, ou uma entrevista pingue-pongue com algum ator de Hollywood. Isso é o que chamam de jornalismo cultural no Brasil”, dispara.
Piza destaca que o público brasileiro tem “medo de opinião, medo de discussão, um público que prefere o populismo, o ‘da boca pra fora’, do que realmente você discutir coisas que tenham a ver, que façam sentido, que digam respeito à qualidade”.
As declarações do jornalista possuem um tom controverso, mas eruditamente fundamentado, estilo que acompanhou Daniel Piza durante toda sua carreira. Essa é uma das características marcantes nas reflexões e discursos que permeiam o trabalho de Piza, reconhecido como um dos maiores nomes do jornalismo cultural brasileiro. Reconhecimento e valorização que continuam após sua morte precoce, ocorrida no final de 2011.
Em artigo publicado em uma renomada revista cultural brasileira, o jornalista Daniel Piza escreveu sobre a influência da leitura na vivência dos personagens literários, criando ou destruindo determinados modelos comportamentais e processos de significação. Piza destacou a presença dos livros na transformação e no destino de protagonistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gustave Flaubert), Dom Quixote (personagem do livro homônimo escrito por Miguel de Cervantes), Hamlet (cultuada peça de Shakespeare) e Julien Sorel (O Vermelho e o Negro, de Stendhal). Os exemplos são muitos.
Em toda a história da literatura, existem personagens fortalecidos e metamorfoseados por meio do encontro libertador com a leitura, peça-chave na mudança de vida e consciência. Como destacou Piza, são as palavras vivas dos folhetins românticos que fazem Emma Bovary, por exemplo, detestar a “existência pela metade” que tem ao lado do frígido marido; as novelas de cavalaria encontradas em Amadís de Gaula são responsáveis por Dom Quixote, fidalgo sonhador, enveredar pela loucura fantasiosa com o intuito de viver uma existência com sentido, por mais paradoxal que isso possa soar quando se trata das aventuras imaginárias do cavaleiro visionário e de seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Ao escrever esse artigo, Daniel Piza não poderia imaginar que ele próprio se tornaria um personagem-leitor completo e inspirador. Nem mesmo a morte — que o arrancou precocemente do convívio neste plano, em dezembro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força suficiente para retirá-lo da lembrança de todos os que o amam e o admiram. E acredito que ela nunca encontre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da contribuição do jornalista para o universo cultural. Daniel foi prolífico em todas as atividades que se propôs a realizar, sejam elas suas produções jornalísticas, a publicação de seus 17 livros em apenas duas décadas de carreira, traduções e incontáveis pesquisas. A enorme capacidade de praticar todas as formas de texto jornalístico (entrevista, reportagem, crítica, crônica, ensaio, polêmica) e de optar pela independência do espírito são alguns dos atributos que o mantém perto do coração saudoso de seus leitores.
Comigo não é diferente. Com o passar do tempo, sinto ainda mais falta das ideias e opiniões expressas por Daniel nas colunas diárias e semanais, assim como na antiga ansiedade que eu nutria sempre que o lançamento de um novo livro do jornalista era anunciado. Diante dessa ausência, busco alternativas humanamente possíveis para visitar e revisitar o universo criado por Piza. Entre as opções deixadas pelo escritor e jornalista, escolhi “trazer para perto” o livro “Mistérios da Literatura: Poe, Machado, Conrad, Kafka” (editora Mauad, 2005, pág.119), um trabalho que une reflexão e impressão sensorial, linguagem técnica e memorialismo. Dividido em quatro capítulos, o autor registra nos títulos de abertura a essência do que o leitor pode encontrar em cada fase: os choques de consciência e descoberta impulsionados pela leitura de Edgar Allan Poe na adolescência; a confusão mental e as desilusões humanas que começam a ser experimentadas na fase juvenil, também percebidas nos personagens de Machado de Assis; os grandes riscos e escolhas observados por Joseph Conrad, sentidos na pele quando as responsabilidades e decisões batem à porta, e o eterno universo de incertezas que é a vida, uma solução milagrosa que nunca chega, como bem refletiu Franz Kafka em seus textos.
A escolha dos quatro escritores universais não foi feita de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebemos a conexão existente entre os ideais que começavam a se formar no adolescente que descobriu o mundo aos poucos, levantando questões sobre tudo o que instigava sua curiosidade ou o incomodava. Assim como os personagens clássicos da literatura, o jornalista e escritor paulistano percebia a leitura como uma aventura desafiadora onde podem ser descortinadas as “possibilidades de libertação”. Daniel traçou muitos caminhos e, certamente, descobriria outros tantos se tivesse tido tempo.
No capítulo sobre Poe, o jornalista relembra momentos da sua infância ao assistir os registros guardados em rolos de filme Super‑8, posteriormente convertidos em DVD. Tais momentos são um autêntico baú de tesouros familiar, lembrado por Daniel com muito carinho. Caçula em uma família de quatro irmãos, o jornalista cita as brincadeiras, peladas, aniversários, temporadas na praia, viagens e festas juninas vividas ao lado dos irmãos Sérgio, Renato e Paulo. A infância é lembrada como uma fase doce, sem problemas ou amarguras, repleta de inocência e descobertas, e que por isso mesmo é difícil de abandonar. O começo da adolescência coloca todas as maravilhas por terra, revelando um mundo desconhecido e sombrio, tal qual a obra de Poe.
Daniel faz demorada referência ao conto Ligéia, publicado no livro “Histórias Extraordinárias”, e que o coloca em contato com espirais intensas de desejos, conhecimento e emoção, sentimentos que costumam aflorar com energia arrebatadora nos adolescentes. Desenvolvendo a capacidade de fazer referências e esmiuçar com refinamento detalhes técnicos, o escritor paulistano acrescentava combustível à sede de ampliar a consciência para o que lhe provocava a percepção e os sentidos. É também nesse capítulo que o leitor tem mais contato com a vida particular de Daniel, seja por meio de acontecimentos felizes da infância, como o bife de carne moída à milanesa da avó Toneta, ou nas primeiras tensões, como a descoberta da miopia.
Já no capítulo referente a Machado de Assis, escritor que Piza admirava e de quem se tornou biógrafo, os dilemas da fase juvenil têm início. Ao lado do mundo de obrigações que começa a despontar, o autor faz menção às questões levantadas por Machado através de seus personagens, perdidos em relações de enfrentamento, ilusões de grandeza e interesses disfarçados. O encantamento com Machado aconteceu por conta de uma desventura: em 1986, Daniel foi atropelado, e durante as sessões de fisioterapia esbarrou em “Quincas Borba”. A partir desse momento, uma “longa amizade unilateral” começou a surgir. Piza parece ter aprendido com Machado de Assis que as máscaras caem e que o comportamento humano é mais difuso e complexo do que poderia supor a nossa vã filosofia, como sentenciou Shakespeare em “Hamlet” e nos lembrou Machado no conto “A Cartomante”.
É também nessas digressões “piza-machadianas” onde descubro uma particularidade do jornalista que o aproxima da minha vivência. Assim como Piza, iniciei o curso de Direito esperando encontrar algo que me completasse, mas o que realmente achei foi um redemoinho de decepções. As minutas de contrato, as papeladas e legislações me asfixiavam, não dando espaço algum para a verve literária que trago flamejante dentro do peito. Desse modo, qualquer brocardo jurídico poderia ser capaz de me matar.
Daniel tomou outro caminho: encerrou o curso e optou por procurar espaço dentro do jornalismo, que se revelou sua verdadeira paixão. No meu caso, a situação já era de vida ou morte, então decidi abandonar os processos e seguir a minha carreira jornalística como profissão diplomada. Confesso que me emocionei bastante ao notar essa, dentre outras, similaridades com o jornalista e escritor que mais admiro. Outro gosto compartilhado é o concorrido pebolim, em que gastei horas dos meus recreios escolares pegando fila no salão de jogos do colégio para disputar uma partida. Em um vídeo compartilhado pela filha mais velha de Daniel Piza, Letícia, em uma fanpage do facebook, o jornalista tira de letra o pebolim ao disputar uma partida com outros profissionais do Estadão, veículo em que trabalhava quando faleceu.
Junto com o risco de viver, Daniel encontrou nas narrativas de Conrad um espelho que oferece muito mais do que reflexo, e sim uma eterna busca por caminhos que não podem ser manipulados, mas, ao contrário, são vividos no limite. As referências aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisitam o tema do homem e sua natureza selvagem, um instinto colocado à prova quando os extremos da cobrança física e emocional nos empurram em cima de cordas bambas sem rede de proteção. Piza se detém em Conrad justamente pelo risco, pela procura do desconhecido que parece sempre ter povoado a mente e o coração do jornalista. Nesse capítulo, Daniel fala do encanto inesquecível de algumas das muitas viagens que fez, relatando as sensações despertadas, além de trazer à tona a percepção da viagem como um projeto, um ato com finalidades além do passeio e do turismo, e sim como oportunidade de conhecimento.
A “fuga de olhos abertos” acontece quando percebemos o grande espaço de incertezas em que vivemos, onde placebos permanecem disfarçados de antídotos milagrosos. Esses pensamentos emergem na presença de Franz Kafka e no modo perturbador como o tcheco se relacionou com Piza por meio de obras como “Carta ao Pai”, “A Metamorfose”, “Narrativas do Espólio”, “O Silêncio das Sereias”, “O Pião”, “O Processo” e “O Castelo”. Nesse painel de ideias, percebemos como Daniel encontra ressonância na ruptura proposta por Kafka no que diz respeito a separação entre racional e irracional. Utilizando um aforismo de primeira ordem escrito por Daniel, “quanto mais escravizado pelo costume, mais o homem sonha com o clarão salvador”. A realidade é um mosaico de rotinas, costumes fabricados conscientemente e repassados de forma inconsciente. Por isso mesmo, forma um abismo profundo e perigoso. Ao terminar de ler o capítulo, lembrei da poesia que o russo Vladimir Maiakóvski dedicou ao poeta Sierguei Iessiênin, que cometeu suicídio em 1925, na qual as letras finais falam: “É preciso arrancar alegria ao futuro. Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício”.
No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitura”, com indicações preciosas de autores, livros e referências. Por sinal, no decorrer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomendações imperdíveis e cuidadosamente pesquisadas. Tudo refletindo o estilo renascentista, de múltiplos interesses e curiosidades que fez de Daniel Piza um nome eternizado e destacado no jornalismo brasileiro.
Como leitora e admiradora, ler “Mistérios da Literatura” me deixou mais próxima do ser humano fantástico que foi Daniel Piza. Com o livro, consegui me aproximar mais dos anseios que dominaram a infância, adolescência e idade adulta do jornalista, descobrindo semelhanças com minhas próprias vivências. Nesses dois anos de ausência, Daniel nunca deixou de inspirar a descoberta de novas ideias, e toda vez que penso em cultura e arte, levo em conta o que acabei aprendendo com ele por meio de uma “amizade unilateral” (termo que Piza usou ao falar do relacionamento que travou com Machado de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as minhas percepções, a capacidade de ler o mundo aliando inspiração e questionamento, racionalidade e o sentimento de ter meu coração saltando nas veias quando me deparo com um quadro de Leonid Afremov e Leonor Fini, ou com as composições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ainda quando leio Poe, Machado, Conrad, Kafka e outros muitos autores. Dentre eles, aquele que passou os 41 anos da vida buscando fazer uma existência de independência de espírito.
Se optarmos por contar o tempo da vida em termos de anos, e não de qualidade e de experiências, Daniel Piza viveu pouco, pouquíssimo. Mas se olharmos pelo lado da profundidade e da intensidade, Daniel fez cada segundo da vida valer a pena; para si e para os outros.
So this house is empty now There’s nothing I can do To make you want to stay So tell me how Am I supposed to live without you?
This House is Empty Now – de Elvis Costello e Burt Bacharach
O homem de cabelos claros, levemente avermelhados, aparência jovial, mas farto em gestos e expressões carregadas de uma maturidade muito acima da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aquele era Daniel Piza, diretamente dos livros, das impressões do jornal e da tela do computador para o auditório de um dos shoppings da capital piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “finalmente”. Ela começa em 2009 e se desenrola em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou convicta de que não. Como sibilou a poetisa Emily Dickinson:“To see the Summer Sky/ Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam). Dito isso, vamos atender a ordem afetiva dos acontecimentos. Teresina, 18 de março de 2011. Sexta-feira, último dia antes do final de semana, o aclamado suspiro de alívio que tantos trabalhadores, estudantes e até mesmo os adeptos do “ócio refinado” esperam em polvorosa, contando nos dedos. No meio dessa expectativa, às 9 horas da manhã, eu recebi a notícia de que o jornalista Daniel Piza, então editor-executivo e colunista cultural do jornal O Estado de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclusiva promovida pelo Festival Artes de Março, evento que reúne música, literatura e exposições artísticas. Particularmente, aquele seria o momento mais especial da minha vivência jornalística e literária até então. O sujeito que estava vindo participar da programação cultural do festival não era apenas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fizeram passar noites acordada na ânsia de terminá-los para recomeçá-los novamente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ minha grande inspiração nas águas ondulantes do Jornalismo Cultural; o homem que me proporcionou ver uma mudança nítida na forma de informar e partilhar cultura, fazendo com que o conhecimento associado à consciência saísse de um plano da inexistência típica dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há coragem, há iniciativa. E isso não se esquece.
O modelo de inspiração começou a se formar no meu íntimo em março de 2009, dois anos antes e, ironicamente, no mesmo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começado o curso de Jornalismo — um dos meus grandes projetos de vida -, eu estava às voltas com pesquisas bibliográficas e redação de um artigo sobre cultura, jornalismo, análise do discurso e exclusão social. Exatamente nesse período, uma das professoras da faculdade me entregou um livro fino, com uma imagem à moda antiga na capa e com o título de Jornalismo Cultural. Ao folhear distraidamente o livro para começar minhas anotações, não consegui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naquele momento, tive a certeza de que gostaria e deveria saber mais sobre o escritor que retomava tão bem os primórdios do Jornalismo Cultural e esboçava assuntos polêmicos, como a separação entre “alta cultura” e “baixa cultura” de forma lúcida, elegante, interessante. O autor? Um senhor de nome Daniel Luiz de Toledo Piza, nascido em São Paulo no ano de 1970 e formado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Como o destino é terra de ninguém, Daniel deu asas à tendência jornalística que lhe perseguia e enveredou pelos cadernos de cultura do Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, além de atuar como comentarista esportivo.
À época, para saber mais sobre o jornalista, fiz o que qualquer “indivíduo-máquina” do século XXI faria: dei uma “googleada” no nome Daniel Piza e descobri o blog pessoal do autor e inúmeras outras informações. Eu ainda não sabia, mas, ao executar essa procura, eu tinha encontrado o jornalista que viria a ser a minha maior inspiração desde então. Comecei a procurar livros, textos, artigos, ensaios, fragmentos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jornalismo Cultural” (editora Contexto), “Mistérios da Literatura – Poe, Machado, Conrad e Kafka” (editora Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Penta” (editora Nova Alexandria), “Contemporâneo de Mim – Dez anos da coluna Sinopse” (editora Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil), “Amazônia de Euclides” (editora LeYa) e “Dez Anos que Encolheram o Mundo” (editora LeYa). Apesar da pouca idade e cerca de vinte anos de carreira, Daniel escreveu e publicou dezessete livros, além de assinar traduções das obras de Bernard Shaw, Herman Melville e Henry James, nomes de peso da literatura mundial.
Além de todas as láureas profissionais, Daniel Piza conseguiu o impossível: provocar minha curiosidade o suficiente para ler e pesquisar sobre futebol, esporte que está longe de alcançar qualquer inclinação da minha parte. Com títulos inusitados, que mais pareciam um anúncio para o Coliseu de Roma, o jornalista descrevia jogos, atletas, ambientes de competições e as tendências do momento. Através dos textos dele, eu soube, por exemplo, quem é Neymar, qual a importância real do Pelé (me desculpem os doutos na vida esportiva, mas devo confessar que não entendia nenhuma reverência ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns técnicos — e torcidas — são tão indigestos. Daniel era corintiano apaixonado e foi responsável por reportagens exclusivas, como o anúncio da aposentadoria do jogador Ronaldo, o Fenômeno, de quem era amigo. O jornalista, escritor e tradutor, filho da Dona Edith e do Sr. Heraldo Piza, e também, como ele mesmo gostava de se descrever, “casado com Renata Piza e pai de Letícia, Maria Clara e Bernardo”, segurava muitos leitores horas a fio na frente do computador, lendo e relendo (a releitura faz parte de um processo de aprendizado), artigos e matérias de conteúdo impecável, bem escrito e persuasivo. Todos os dias, às 7:15h da manhã, eu corria para o computador para me manter informada sobre as atualizações do blog que Daniel mantinha. No trabalho, em alguma folga, o esquema era o mesmo. Lembro de ter apertado F5 ( o que corresponde à operação de atualização) no teclado umas seis vezes em um só dia esperando novas postagens. Quando viajava ou me ausentava, procurava retomar as leituras perdidas e “subornar” com refrigerantes e doces caseiros o jornaleiro da banca que eu frequentava, para que ele guardasse pelo menos algumas edições do Estadão.
Até que, coincidentemente, em março de 2011, Daniel Piza aterrissou em solo piauiense pela primeira vez, com conferência marcada para 19h. Lá estava a minha oportunidade única – e por isso mesmo imperdível — de conferir o que o jornalista-referência dos meus textos e artigos tinha a dizer, agora presencialmente. Cheguei ao local com quatro horas de antecedência — sem necessidade, lógico — e fiquei flanando pela praça de alimentação e livraria. Às 18h, já estava na porta, observando o entra e sai de profissionais da imprensa e do colunismo social piauiense, todos querendo uma declaração, imagem ou gravação para seus respectivos veículos. Afinal, ali estava o autor de ensaios interessantes sobre literatura, onde um trabalho de pesquisa e a paixão o levaram a escrever a biografia de Machado de Assis.O fascínio pela união entre literatura e jornalismo o fez sair Amazônia a dentro para percorrer o caminho de Euclides da Cunha, ou ainda ter atrevimento e, acima de tudo, coragem, para dar opinião, apontar o dedo, dizer o que pensa com responsabilidade e conhecimento.
Daniel Piza conseguia andar pelo futebol sem perna de pau, discorrer sobre política com certa passionalidade, mas com força argumentativa, e falar sobre música, literatura, artes plásticas e arquitetura, adentrando o universo cultural como ninguém. Assim, fica difícil mesmo não querer uma pontinha desse fenômeno, que muitos insistem em chamar de herdeiro de Paulo Francis, mas que agora, depois da maturidade que vem com leituras e reflexões, prefiro mencionar como protagonista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sentando em uma das primeiras filas, à esquerda, e consegui ver Daniel Piza concedendo entrevistas, reconhecendo terreno e falando sobre cultura, cultura e mais cultura. Do meu lugar, observava as expressões e o tom de voz — baixo e explicativo –, imaginando também que tinha me enganado um pouco. Lembro de ter concluído que a televisão e a internet aumentam as pessoas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão corporal transmitia serenidade.
No final do evento, impulsionada por um amigo mentalmente estável – já que minha timidez me prendeu solo abaixo -, troquei algumas palavras com Daniel Piza. Meu diálogo foi repleto de palavras balbuciadas, recheadas de constrangimento. Desnecessário. Notando minha timidez, o biógrafo do grande Machado de Assis simplesmente disse: “Não tem problema. Eu também sou tímido”. Desse momento, apenas um registro feito com câmera de celular. Tímido, como todas as boas inspirações. Na manhã do dia 31 de dezembro de 2011, 9 meses depois da vinda de Daniel Piza à minha cidade, recebo um SMS trucidante às 8h da manhã, dizendo que Daniel tinha sido vítima de um AVC (acidente vascular cerebral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vasto conhecimento e de alguém que soube ser o máximo de encanto em uma vida de desencanto. Daniel Luiz de Toledo Piza vive hoje no coração daqueles que o amam, nas feições de seus três filhos, no legado de obras publicadas, inúmeros textos jornalísticos, artigos, opiniões, prefácios e nas homenagens constantemente prestadas. No dia 04 de julho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A instituição de ensino fica situada em um bairro com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital fluminense, atendendo alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental. Mesmo de longe, Daniel continua transformando, criando e observando o mundo através das palavras. Um gênio raro, constelação intelectual de primeira grandeza. Que ele continue fazendo por muitos outros, inclusive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a consciência e despertar o entendimento para um mundo novo.
(…) Não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Daniel Piza
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