
So this house is empty now There’s nothing I can do To make you want to stay So tell me how Am I supposed to live without you?
This House is Empty Now – de Elvis Costello e Burt Bacharach
O homem de cabelos claros, levemente avermelhados, aparência jovial, mas farto em gestos e expressões carregadas de uma maturidade muito acima da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aquele era Daniel Piza, diretamente dos livros, das impressões do jornal e da tela do computador para o auditório de um dos shoppings da capital piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “finalmente”. Ela começa em 2009 e se desenrola em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou convicta de que não. Como sibilou a poetisa Emily Dickinson:“To see the Summer Sky/ Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam). Dito isso, vamos atender a ordem afetiva dos acontecimentos. Teresina, 18 de março de 2011. Sexta-feira, último dia antes do final de semana, o aclamado suspiro de alívio que tantos trabalhadores, estudantes e até mesmo os adeptos do “ócio refinado” esperam em polvorosa, contando nos dedos. No meio dessa expectativa, às 9 horas da manhã, eu recebi a notícia de que o jornalista Daniel Piza, então editor-executivo e colunista cultural do jornal O Estado de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclusiva promovida pelo Festival Artes de Março, evento que reúne música, literatura e exposições artísticas. Particularmente, aquele seria o momento mais especial da minha vivência jornalística e literária até então. O sujeito que estava vindo participar da programação cultural do festival não era apenas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fizeram passar noites acordada na ânsia de terminá-los para recomeçá-los novamente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ minha grande inspiração nas águas ondulantes do Jornalismo Cultural; o homem que me proporcionou ver uma mudança nítida na forma de informar e partilhar cultura, fazendo com que o conhecimento associado à consciência saísse de um plano da inexistência típica dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há coragem, há iniciativa. E isso não se esquece.
O modelo de inspiração começou a se formar no meu íntimo em março de 2009, dois anos antes e, ironicamente, no mesmo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começado o curso de Jornalismo — um dos meus grandes projetos de vida -, eu estava às voltas com pesquisas bibliográficas e redação de um artigo sobre cultura, jornalismo, análise do discurso e exclusão social. Exatamente nesse período, uma das professoras da faculdade me entregou um livro fino, com uma imagem à moda antiga na capa e com o título de Jornalismo Cultural. Ao folhear distraidamente o livro para começar minhas anotações, não consegui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naquele momento, tive a certeza de que gostaria e deveria saber mais sobre o escritor que retomava tão bem os primórdios do Jornalismo Cultural e esboçava assuntos polêmicos, como a separação entre “alta cultura” e “baixa cultura” de forma lúcida, elegante, interessante. O autor? Um senhor de nome Daniel Luiz de Toledo Piza, nascido em São Paulo no ano de 1970 e formado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Como o destino é terra de ninguém, Daniel deu asas à tendência jornalística que lhe perseguia e enveredou pelos cadernos de cultura do Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, além de atuar como comentarista esportivo.

À época, para saber mais sobre o jornalista, fiz o que qualquer “indivíduo-máquina” do século XXI faria: dei uma “googleada” no nome Daniel Piza e descobri o blog pessoal do autor e inúmeras outras informações. Eu ainda não sabia, mas, ao executar essa procura, eu tinha encontrado o jornalista que viria a ser a minha maior inspiração desde então. Comecei a procurar livros, textos, artigos, ensaios, fragmentos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jornalismo Cultural” (editora Contexto), “Mistérios da Literatura – Poe, Machado, Conrad e Kafka” (editora Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Penta” (editora Nova Alexandria), “Contemporâneo de Mim – Dez anos da coluna Sinopse” (editora Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil), “Amazônia de Euclides” (editora LeYa) e “Dez Anos que Encolheram o Mundo” (editora LeYa). Apesar da pouca idade e cerca de vinte anos de carreira, Daniel escreveu e publicou dezessete livros, além de assinar traduções das obras de Bernard Shaw, Herman Melville e Henry James, nomes de peso da literatura mundial.

Além de todas as láureas profissionais, Daniel Piza conseguiu o impossível: provocar minha curiosidade o suficiente para ler e pesquisar sobre futebol, esporte que está longe de alcançar qualquer inclinação da minha parte. Com títulos inusitados, que mais pareciam um anúncio para o Coliseu de Roma, o jornalista descrevia jogos, atletas, ambientes de competições e as tendências do momento. Através dos textos dele, eu soube, por exemplo, quem é Neymar, qual a importância real do Pelé (me desculpem os doutos na vida esportiva, mas devo confessar que não entendia nenhuma reverência ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns técnicos — e torcidas — são tão indigestos. Daniel era corintiano apaixonado e foi responsável por reportagens exclusivas, como o anúncio da aposentadoria do jogador Ronaldo, o Fenômeno, de quem era amigo. O jornalista, escritor e tradutor, filho da Dona Edith e do Sr. Heraldo Piza, e também, como ele mesmo gostava de se descrever, “casado com Renata Piza e pai de Letícia, Maria Clara e Bernardo”, segurava muitos leitores horas a fio na frente do computador, lendo e relendo (a releitura faz parte de um processo de aprendizado), artigos e matérias de conteúdo impecável, bem escrito e persuasivo. Todos os dias, às 7:15h da manhã, eu corria para o computador para me manter informada sobre as atualizações do blog que Daniel mantinha. No trabalho, em alguma folga, o esquema era o mesmo. Lembro de ter apertado F5 ( o que corresponde à operação de atualização) no teclado umas seis vezes em um só dia esperando novas postagens. Quando viajava ou me ausentava, procurava retomar as leituras perdidas e “subornar” com refrigerantes e doces caseiros o jornaleiro da banca que eu frequentava, para que ele guardasse pelo menos algumas edições do Estadão.

Até que, coincidentemente, em março de 2011, Daniel Piza aterrissou em solo piauiense pela primeira vez, com conferência marcada para 19h. Lá estava a minha oportunidade única – e por isso mesmo imperdível — de conferir o que o jornalista-referência dos meus textos e artigos tinha a dizer, agora presencialmente. Cheguei ao local com quatro horas de antecedência — sem necessidade, lógico — e fiquei flanando pela praça de alimentação e livraria. Às 18h, já estava na porta, observando o entra e sai de profissionais da imprensa e do colunismo social piauiense, todos querendo uma declaração, imagem ou gravação para seus respectivos veículos. Afinal, ali estava o autor de ensaios interessantes sobre literatura, onde um trabalho de pesquisa e a paixão o levaram a escrever a biografia de Machado de Assis.O fascínio pela união entre literatura e jornalismo o fez sair Amazônia a dentro para percorrer o caminho de Euclides da Cunha, ou ainda ter atrevimento e, acima de tudo, coragem, para dar opinião, apontar o dedo, dizer o que pensa com responsabilidade e conhecimento.

Daniel Piza conseguia andar pelo futebol sem perna de pau, discorrer sobre política com certa passionalidade, mas com força argumentativa, e falar sobre música, literatura, artes plásticas e arquitetura, adentrando o universo cultural como ninguém. Assim, fica difícil mesmo não querer uma pontinha desse fenômeno, que muitos insistem em chamar de herdeiro de Paulo Francis, mas que agora, depois da maturidade que vem com leituras e reflexões, prefiro mencionar como protagonista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sentando em uma das primeiras filas, à esquerda, e consegui ver Daniel Piza concedendo entrevistas, reconhecendo terreno e falando sobre cultura, cultura e mais cultura. Do meu lugar, observava as expressões e o tom de voz — baixo e explicativo –, imaginando também que tinha me enganado um pouco. Lembro de ter concluído que a televisão e a internet aumentam as pessoas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão corporal transmitia serenidade.

No final do evento, impulsionada por um amigo mentalmente estável – já que minha timidez me prendeu solo abaixo -, troquei algumas palavras com Daniel Piza. Meu diálogo foi repleto de palavras balbuciadas, recheadas de constrangimento. Desnecessário. Notando minha timidez, o biógrafo do grande Machado de Assis simplesmente disse: “Não tem problema. Eu também sou tímido”. Desse momento, apenas um registro feito com câmera de celular. Tímido, como todas as boas inspirações. Na manhã do dia 31 de dezembro de 2011, 9 meses depois da vinda de Daniel Piza à minha cidade, recebo um SMS trucidante às 8h da manhã, dizendo que Daniel tinha sido vítima de um AVC (acidente vascular cerebral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vasto conhecimento e de alguém que soube ser o máximo de encanto em uma vida de desencanto. Daniel Luiz de Toledo Piza vive hoje no coração daqueles que o amam, nas feições de seus três filhos, no legado de obras publicadas, inúmeros textos jornalísticos, artigos, opiniões, prefácios e nas homenagens constantemente prestadas. No dia 04 de julho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A instituição de ensino fica situada em um bairro com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital fluminense, atendendo alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental. Mesmo de longe, Daniel continua transformando, criando e observando o mundo através das palavras. Um gênio raro, constelação intelectual de primeira grandeza. Que ele continue fazendo por muitos outros, inclusive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a consciência e despertar o entendimento para um mundo novo.
(…) Não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Daniel Piza
Se você gostou do infográfico e gostaria de utilizá-lo em outro lugar, você é livre para fazer desde que respeite sua licença. O mesmo está disponível no formato .SVG para download (clique com botão direito no link e selecione “Salvar link como…”).
Leave a Reply