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  • Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    cada-homem-e-uma-raca-mia-couto-livroCon­heci a lit­er­atu­ra de Mia Couto durante o perío­do em que fiz Doutora­do em Recife. Jun­tei-me a um grupo de estu­dos denom­i­na­do Lit­er­atu­ra Africana: nar­ra­ti­vas da des­col­o­niza­ção, sob a coor­de­nação de Sil­via Cortez Sil­va, min­ha pro­fes­so­ra e ori­en­ta­do­ra. Entre cafez­in­hos, bolos, livros e boa con­ver­sa, Mia Couto foi sendo assim­i­la­do por mim, ou mel­hor, ele foi comi­do, cheira­do, absorvi­do pela min­ha fome de lit­er­atu­ra e poesia.

    Mia Couto nasceu em Beira, Moçam­bique, no ano de 1955. Faz parte de uma ger­ação de escritores africanos de lín­gua por­tugue­sa. Her­dou da cul­tura oral africana a habil­i­dade de ouvir e con­tar nar­ra­ti­vas. Na min­ha edição do livro “Cada homem é uma raça: con­tos” (edi­to­ra Cia das Letras, 2013), inspi­rador dessa resen­ha afe­ti­va e reflex­i­va, ten­ho reg­istra­do na con­tra­ca­pa um breve autó­grafo do autor: “À Ana Cristi­na. Bei­jo. Mia Couto. 2013.” Guar­do com muito car­in­ho esse “quase” encon­tro, já que a obra foi um pre­sente de min­ha ex-ori­en­tan­da do cur­so de História, que ter­mi­nou por se encan­tar com a obra do autor após a leitu­ra de um arti­go meu sobre out­ro de seus livros: “O Out­ro pé da sereia”. Mia Couto é um dess­es autores que encan­ta pela per­for­mance estilista, pela notáv­el capaci­dade que tem de mover para sua escri­ta a sen­si­bil­i­dade e a del­i­cadeza de quem apren­deu que a mel­hor batal­ha não é trava­da nos cam­pos de guer­ra, mas nos domínios da escrita.

    O livro “Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de onze con­tos escritos em uma lin­guagem colo­quial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sen­ti­dos fáceis. Assim como a rep­re­sen­tação do numer­al onze, na numerolo­gia, diz respeito ao desafio e batal­ha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intri­g­ante por sen­ti­dos, já que os con­tos se ref­er­em a uma prob­lemáti­ca bas­tante opor­tu­na para nos­sa con­tem­po­ranei­dade: se cada pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual, qual é a intenção em se lev­an­tar ban­deiras e pre­con­ceitos con­tra o Out­ro? Se cada indi­ví­duo é uma fron­teira, quem me garante que não esta­mos todos em trân­si­to, em amar­go e sin­istro esta­do de embriaguez?

    Os onze con­tos se dis­tribuem pelo espaço do livro, mas ape­nas para que não o per­camos de vista. Eles infini­tam as fron­teiras do leitor e da leitu­ra, os levan­do para out­ros cenários atem­po­rais com per­son­agens que mais pare­cem humanos (talvez sejam). Ain­da no começo da obra, em for­ma­to de frag­men­to, Mia Couto nos faz pensar:

    Min­ha raça sou eu mes­mo. A pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual. Cada homem é uma raça, sen­hor Polícia.

    Toda essa advertên­cia para que o leitor se pre­pare para uma desci­da aos sub­ter­râ­neos do son­ho, da lou­cu­ra, da amar­gu­ra, do ciúme, da ausên­cia e da solidão. O que faze­mos quan­do nos­sa humanidade vaga em oscilantes dese­qui­líbrios de desumanidade? O que somos quan­do nos res­ta ape­nas o pesade­lo e a desilusão?

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de dese­qui­líbrios nar­ra­tivos equi­li­bra­dos pela suavi­dade e per­spicá­cia do autor, que enche de sen­ti­men­tos e ressen­ti­men­tos os sujeitos que tran­si­tam sob o espaço da obra. No con­to A Rosa Caramela, a per­son­agem é cor­cun­da e magra e tem uma des­ori­en­tação bas­tante ina­bit­u­al: vivia apaixon­a­da por está­tuas. Son­dam alguns que o moti­vo ten­ha sido o son­ho frustra­do de ser noi­va. Ela inven­tara-se noi­va no desas­sossego dos seus son­hos em ter uma fes­ta de casa­men­to com bril­hos e corte­jos. Enam­orou-se de está­tuas com a lev­eza de quem se apaixona pela frieza do amor não cor­re­spon­di­do. Era sua lou­cu­ra que a fazia perder o juí­zo? Ou teria sido a fal­ta de afe­tivi­dade com aque­la que era sem beleza para se aco­modar na (ir)realidade de um casamento?

    A lou­cu­ra de Rosa Caramela cruza-se na nar­ra­ti­va com a do Tio Geguê e do seu sobrin­ho, que pas­sam a nar­ra­ti­va viven­do em um uni­ver­so de insanidade e alu­ci­nação. Os dois per­son­agens vivem cada um a seu modo a desilusão da guer­ra e da orfan­dade. O Tio Geguê havia se tor­na­do par­tic­i­pante de um grupo de vig­ilân­cia e saben­do somente mar­char foi para guer­ra. O sobrin­ho, que vivia tem­pos de alu­ci­nação, acha­va ter fal­a­do com a mãe que nun­ca con­hecera. Ele imag­i­na­va que seu pais não quis­er­am “ver tran­si­tan­do de bicho para meni­no, ran­han­do bar­bas, magro até na tosse.” Ambos cam­in­ham pela nar­ra­ti­va ébrios de nascença e de ausên­cia e descon­fi­avam que “a morte se tor­na­va tão fre­quente que só a vida fazia espan­to”.

    Mas não é somente lou­cu­ra e alu­ci­nação que indi­vid­u­al­iza, human­iza e frag­iliza os per­son­agens da obra de Mia Couto. O moí­do cotid­i­ano do sofri­men­to cas­ti­ga e chega a cri­ar uma ilusão de per­tenci­men­to. Ros­alin­da é gor­da, cheia de saudades do sofri­men­to que havia vivi­do com seu fina­do mari­do Jac­in­to. No cemitério, por vin­gança, tro­ca as inscrições dos túmu­los viz­in­hos para que suas anti­gas namoradas não lhe aco­mo­dem saudades e choros. Espan­ca­da e traí­da, via no gesto sua últi­ma for­ma de vencer os ter­ríveis anos que havia pas­sa­do em sua com­pan­hia. Somente na morte seu sofri­men­to fin­d­a­va; somente na morte e na tro­ca do aqui jaz pode­ria ser final­mente esposa.

    A temáti­ca sobre machis­mo é recor­rente na obra de Mia Couto que inven­ta out­ro per­son­agem quase míti­co, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não acei­ta que sua mul­her fos­se pescar e desse ordem no bar­co. No intu­ito de desmo­bi­lizar a mul­her de suas intenções, ele leva o bar­co — jun­ta­mente com os fil­hos — para o alto das dunas. Fiz­era daque­la embar­cação primeiro sua mora­dia e depois o incen­deia a golpes de insanidade na frente dos fil­hos e da mul­her. Vivia a procu­rar seus olhos no mar e sem quer­er enx­er­gar que a mul­her pre­cisou ir tra­bal­har para traz­er man­ti­men­tos para casa. Des­de o princí­pio da nar­ra­ti­va, o leitor é adver­tido: “vive­mos longe de nós, em dis­tante fin­g­i­men­to. Desa­pare­ce­mo-nos. Porque nos prefe­r­i­mos nes­sa escuridão inte­ri­or?”.

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é uma lit­er­atu­ra de denún­cia sobre as difer­entes maneiras que ergue­mos muros e fin­camos ban­deiras.  A aparên­cia como req­ui­si­to de sofri­men­to é um bom gan­cho de pen­sa­men­to para refle­tir­mos a par­tir de qual momen­to nos­sa aparên­cia físi­ca pas­sa a ser deter­mi­nante para defin­i­mos quem somos. Os estrangeiros que per­am­bu­lam pelos con­tos de Mia Couto são víti­mas do olhar sem­pre indifer­ente do Out­ro. São persegui­dos e vivem sob olhar aten­to da descon­fi­ança e do medo. A len­da de amor entre um forasteiro e sua ama­da, que vivia em uma aldeia, é sig­ni­fica­ti­vo para perce­ber­mos como somos rápi­dos em faz­er jul­ga­men­tos e lentos em apri­morar nos­sa humanidade.

    O con­to O embodeiro que son­ha­va pás­saro nar­ra a história de um vende­dor de pás­saros que pas­sa a ser o prin­ci­pal sus­peito em uma colô­nia de estrangeiros, que viam com descon­fi­ança aque­la difí­cil con­vivên­cia com um homem pobre e pre­to, que vivia a andar pelo lugar venden­do pás­saros e a roubar das cri­anças des­cuida­dos inter­ess­es. Aque­les que não gostavam daque­la inad­e­qua­da junção sen­ti­am ciúmes do pas­sa­do, da feliz arru­mação das criat­uras pela aparên­cia. Em um des­fe­cho fenom­e­nal, o autor nos leva a pen­sar sob quais gaio­las vive­mos pre­sos? Somos pás­saros que son­hamos com voo, mas ape­nas raste­jamos pelo chão?

    Os con­tos em trân­si­to deix­am os leitores ton­tos. Somos lev­a­dos a refle­tir que ape­nas quan­do repen­samos nos­sas ati­tudes nos abri­mos para rever­mos nos­sas certezas.  Duarte Fortin, coxo e encar­rega­do ger­al dos cri­a­dos em uma min­er­ado­ra, em con­fis­são ao padre admite: — “Se Deus for negro, sen­hor padre, estou frito: nun­ca mais vou ter perdão”. Se exis­tem certezas elas nos man­tém cegos pela vida. Deve­mos procu­rar nos­sos olhos não no mar, mas na fun­dura de nos­so Ser. É a par­tir de um movi­men­to de reflexão e de respon­s­abil­i­dade éti­ca com o Out­ro que poder­e­mos abrir nos­sos escuros para mel­hor enx­er­gar­mos nos­sas tes­si­turas. Vag­amos pela leitu­ra de Mia Couto procu­ran­do com­preen­der e jun­tar os sen­ti­dos que habitam nos seus con­tos, mas ape­nas somos lev­a­dos a uma viagem inte­ri­or, em bus­ca de nos­so próprio proces­so de (des)humanização.

  • Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    poema-sujo-ferreira-gullar-livro-capaCatarse (do grego: kathar­sis) é o proces­so de depu­ração dos sen­ti­men­tos, purifi­cação ou pur­gação do espíri­to sen­sív­el. No teatro grego, o herói dramáti­co pre­cisa sofr­er para purificar o espíri­to. Em psi­canálise, é a lib­er­tação de um trau­ma. A gênese da mais famosa obra dos últi­mos 40 anos da poe­sia brasileira, o Poe­ma sujo, é catár­ti­ca, segun­do seu autor, Fer­reira Gullar.

    Gullar esta­va no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quan­do escreveu o poe­ma. Depois de pas­sar anos moran­do em diver­sas cidades do mun­do (Moscou, San­ti­a­go do Chile e Lima), viu ditaduras mil­itares se insta­larem nos país­es sul-amer­i­canos. Com o fra­cas­so da utopia comu­nista no Brasil, depois de um tem­po na Rús­sia, emi­grou para o Chile e assis­tiu à que­da de Allende. Mudou para a Argenti­na em 1974 e reviveu o pesade­lo de ver os ami­gos ao redor serem pre­sos ou fugir. Saben­do que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cer­co no país viz­in­ho, decid­iu escr­ev­er um poe­ma que fos­se um teste­munho final.

    O Poe­ma sujo, escrito em cin­co meses, em esta­do de transe ver­tig­i­noso, foi aca­len­ta­do por anos. Tem como fio con­du­tor a ideia de res­gatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maran­hão. As condições de penúria no exílio e a eminên­cia de calar-se para sem­pre o forçaram a ultra­pas­sar o tom memo­ri­alís­ti­co. O Poe­ma sujo dá voz ao deses­pero do poeta. Deses­pero que, para­doxal­mente, englo­ba grande esper­ança, por situ­ar-se na infân­cia, como demon­stra seu tre­cho mais con­heci­do, trans­for­ma­do na letra da canção O tren­z­in­ho caipi­ra, a toca­ta da Bachi­ana no. 2, de Vil­la-Lobos:

    Lá vai o trem com o menino
    Lá vai a vida a rodar
    Lá vai ciran­da e destino
    Cidade e noite a girar
    Lá vai o trem sem destino
    Pro dia novo encontrar
    Cor­ren­do vai pela terra
    Vai pela serra
    Vai pelo mar
    Can­tan­do pela ser­ra o luar
    Cor­ren­do entre as estre­las a voar
    No ar, no ar…

    A evo­cação da memória da infân­cia em rede­moin­ho é o pon­to de par­ti­da para com­por um poe­ma em vários tons, com momen­tos de inten­si­dade e de banal­i­dade, como cita o poeta, con­struí­dos por frag­men­tos de lem­branças “das pes­soas às coisas, das plan­tas aos bichos, tudo, água, lama, noite estre­la­da, fome, esper­ma, son­ho, humil­hações, tudo era gora matéria poéti­ca”. Antítese entre o claro do pre­sente e o tur­vo da infân­cia, mais que res­gate, é a recom­posição do pas­sa­do no presente.

    A memória da infân­cia é um reg­istro infiel, sujo, recom­pos­ta por destroços: tel­has encar­di­das, gar­fos e facas que se que­braram, e se perder­am nas fal­has do assoal­ho para con­viv­er com baratas e ratos no quin­tal esque­ci­dos entre os pés de erva cidreira. Des­or­dem que é ordem “per­feita­mente fora do rig­or cronológi­co”, do labir­in­to do tem­po inte­ri­or. A casa per­di­da no tem­po, com tal­heres enfer­ru­ja­dos, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gas­tas, armários obso­le­tos raste­jam “pelos túneis das noites clan­des­ti­nas” esperan­do “que o dia ven­ha”. A infân­cia é o úni­co refú­gio para quem perdeu tudo. O cor­po, a úni­ca casa, o úni­co ter­ritório, a pos­si­bil­i­dade de êxtase quan­do já não se per­tence a lugar nenhum.

    A iden­ti­dade são-luisense se con­cretiza no cor­po do poeta, o pas­sa­do se esmiúça, como cita Alcides Vil­laça: o “sujo do poe­ma ref­ere-se tan­to ao impuro quan­to pela com­posição das difer­enças, pelas águas revolvi­das, pelo esti­lo que vai da mão sol­ta no papel à cadên­cia rig­orosa de uma avali­ação […] Mas sujo tam­bém porque par­tic­i­pa de uma história não ofi­cial, sec­re­ta, que soma a con­sciên­cia abafa­da e o cor­po pri­sioneiro de von­tades cal­adas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apo­drece lentamente.

    A canção de exílio dos anos de chum­bo é Sabiá, de Chico Buar­que e Tom Jobim, com­pos­ta em 1968 para um fes­ti­val. A canção traz refer­ên­cias claras ao “dia que virá”, dia em que os exi­la­dos retornar­i­am à pátria. Gullar ante­ci­pa a pátria destruí­da, memória dev­as­ta­da e ilu­mi­na­da ape­nas pelo facho das lem­branças da cidade de infân­cia. Os obje­tos da casa pri­mor­dial gas­taram-se no tem­po e por isso sua lem­brança é de sujeira, ou algo que foi sujo.

    O teste­munho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacional­is­mo insu­fla­do por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tan­to mais comovente quan­to bus­ca negar qual­quer resquí­cio român­ti­co ou pan­fletário. Em nem um momen­to rev­ela tex­tual­mente a dor pela per­da dos ami­gos, o esface­la­men­to famil­iar e a melan­co­l­ia da desterritorialização.

    Depois de con­cluir o poe­ma, Gullar o leu a Viní­cius de Morais, que lev­ou uma gravação da leitu­ra para o Brasil. Gru­pos se for­mavam para ouvir a voz do poeta exi­la­do. O edi­tor Ênio Sil­veira pediu cópia para pub­licá-lo. Com a pub­li­cação, ami­gos, jor­nal­is­tas e escritores cla­ma­ram ao gov­er­no mil­i­tar o fim do exílio de Gullar. O gov­er­no não aten­deu. O poeta, porém cansa­do, resolveu voltar por con­ta própria. Quan­do chegou, foi lev­a­do ao DOI-Codi e inter­ro­ga­do, acarea­do e ameaça­do. Mas graças ao poe­ma, pôde ficar no Brasil.

    A catarse do ago­ra con­tra o futuro marginal

    A repub­li­cação do Poe­ma sujo, em 2013, pela José Olym­pio, o cel­e­bra como mar­co na luta con­tra a repressão mil­i­tar. Mas antes de se tor­na per­sona non gra­ta no país, Gullar já guer­rea­va, e muito, mas por razões estéti­cas, con­tra out­ros adver­sários. Con­trapôs-se ao movi­men­to de van­guar­da da poe­sia conc­re­ta, com­pos­ta pelos irmãos Augus­to e Harol­do de Cam­pos e Décio Pig­natari, defend­en­do o nacional­is­mo da arte brasileira e crian­do a poe­sia neo­conc­re­ta. A prin­ci­pal críti­ca de Gullar aos con­cre­tos era de que com­par­a­vam a poe­sia à matemáti­ca e pre­tendi­am atu­ar em todos os cam­pos, jor­nais, pub­li­ci­dade, da músi­ca (canção pop­u­lar), tevê, rádio, cinema.

    Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.
    Augus­to de Cam­pos, Décio Pig­natari e Harol­do de Cam­pos, a Tríade Concretista.

    Provo­cador, polêmi­co, jamais pací­fi­co, o poeta Paulo Lemins­ki é herdeiro de uma tradição poéti­ca de van­guar­da (ou tradição de rup­tura, como quer Octávio Paz) que no Brasil ren­deu movi­men­tos como o Mod­ernismo, a Poe­sia Conc­re­ta e o Trop­i­cal­is­mo. Por causa do tem­po históri­co de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erronea­mente situ­a­do den­tro da Poe­sia Mar­gin­al, movi­men­to ao qual nun­ca se fil­iou (não gos­to da poe­sia de Caca­so, um dos líderes da poe­sia mar­gin­al car­i­o­ca dos 70/80, afir­mou, em entre­vista ao jor­nal­ista Aramis Mil­larch, em 1986) e con­tra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Críp­ti­cos” (1986).

    Lemins­ki her­dou a briga com os neo­con­cre­tos. Ape­sar de propa­gar a teo­ria da arte como  inuten­sílio, nun­ca fez ape­nas arte pela arte. É o que se com­pro­va na canção Ver­du­ra, veta­da pela cen­sura em 1978.

    De repente
    me lem­bro do verde
    da cor verde
    a mais verde que existe
    a cor mais alegre
    a cor mais triste
    o verde que vestes
    o verde que vestiste
    o dia em que te vi
    o dia em que me viste
    De repente
    ven­di meus filhos
    a uma família americana
    eles têm carro
    eles têm grana
    eles têm casa
    a gra­ma é bacana
    só assim eles podem voltar
    e pegar um sol em Copacabana

    O poeta Fab­rí­cio Mar­ques asso­cia o ver­so de repente me lem­bro do verde ao Trop­i­cal­is­mo, conectan­do o verde cita­do com uma das cores-sím­bo­lo do Brasil:

    todas as suas nuances e con­tradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poe­ma atinge um tom quase lisér­gi­co, no qual ressaltam ecos do trop­i­cal­is­mo: super­ba­cana, de Cae­tano Veloso, e ai de ti, Copaca­bana, de Torqua­to. Ocorre então uma inver­são paródi­ca do nacional­is­mo, prin­ci­pal­mente na segun­da estrofe, que fun­ciona como uma espé­cie de críti­ca políti­ca avant la let­tre à emi­gração de brasileiros em bus­ca de mel­hores condições de vida, numa pro­gressão desen­f­rea­da, prin­ci­pal­mente para os Esta­dos Unidos, nos anos que se seguiram à primeira pub­li­cação do tex­to em livro (1981).

    A asso­ci­ação com o verde trop­i­cal­ista não é a úni­ca pos­sív­el. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o fil­ho para os amer­i­canos. O verde triste trans­for­ma tudo em mer­cado­ria, até as relações afe­ti­vas. Triste ain­da o verde do uni­forme dos mil­itares, cujos cen­sores enten­der­am a iro­nia. A canção só pas­sou pelo cri­vo em 1981, quan­do foi grava­da por Cae­tano Veloso. Mas a refer­ên­cia aos poe­mas trop­i­cal­is­tas é inex­a­ta. Em vez de Super­ba­cana e Ai de mim, Copaca­bana, a asso­ci­ação mais ine­bri­ante pode­ria ser Quan­do o san­to guer­reiro entre­ga as pon­tas, de Torqua­to Neto:

    nada de mais:
    o muro pin­ta­do de verde
    e ninguém que pre­cise dizer-me
    que esse verde que não quero verde
    lírico
    mais planos e mais planos
    se desfaz:
    nada demais
    aqui de den­tro eu pego e furo a fogo
    e luz
    (é movimento)
    vos­so sis­tema pro­te­tor de incêndios
    e pin­to a tela o muro diferente
    porque uso como quero min­ha lentes
    e fil­mo o verde,
    que eu não temo o verde,
    de out­ra cor:
    diari­a­mente encaro bem de perto
    e escar­ro sobre o muro:
    nada demais

    Lemins­ki deg­lute antropofagi­ca­mente o Bis­po Sardinha, como que­ria Oswald, can­tan­do, com dó de peito o momen­to históri­co do iní­cio da diás­po­ra glob­al. O sen­ti­men­to de dor (por ver seu igual par­tir e se par­tir) não fratu­ra o poeta, que final­iza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copaca­bana, com a con­sciên­cia de que a Ale­gria é a Pro­va dos Nove, como can­ta­va Oswald, ou seja, a úni­ca for­ma de resistên­cia a um regime desigual que estim­ula­va o despa­tri­a­men­to só pode­ria ser a iro­nia, trazen­do a capa de um fal­so con­formis­mo. Desse modo, mes­mo nun­ca ten­do se desli­ga­do de sua ter­ra natal, Lemisn­ki par­tic­i­pa dass ago­nias da vida nacional em seu insilio1.

    O críti­co Sil­viano San­ti­a­go esclarece que o bor­dão antropofági­co vin­cu­la-se com a catarse do ago­ra: “o ressurg­i­men­to de um cor­po que não estaria mais com­pro­meti­do com a éti­ca protes­tante do tra­bal­ho, um cor­po que recusa, inclu­sive, […] a col­o­niza­ção do futuro. Esse cor­po, então, estaria fin­can­do mais e mais o pé no ago­ra: nesse sen­ti­do, um cor­po que é fruição.” Esta ideia estaria lig­a­da à emergên­cia das mino­rias sex­u­ais nos anos 70: “De cer­ta for­ma, na nos­sa sociedade oci­den­tal, em par­tic­u­lar, o praz­er esteve muito vin­cu­la­do a uma cer­ta nor­mal­iza­ção de con­du­ta sex­u­al, e quan­do essa con­du­ta não era nor­mal­iza­da as pes­soas se sen­ti­am enorme­mente infelizes.”

    Paulo Leminski
    Paulo Lemins­ki

    O críti­co fala de um cor­po não reprim­i­do, de pura ale­gria, em con­trapon­to com a tradição críti­ca que colo­ca o pre­sente como esta­do de martírio. O sofri­men­to cul­tua­do pelos gru­pos políti­cos de esquer­da no Brasil tin­ha como pro­je­to de redenção a pos­si­bil­i­dade de uma utopia social. San­ti­a­go se posi­ciona con­tra este esta­do de pobreza: “Inver­tendo os ter­mos, dizen­do que o pre­sente pode ser vivi­do, pode ser vivi­do ale­gre­mente, sem as amar­ras da repressão, estaríamos descondi­cio­nan­do a pos­si­bil­i­dade de um pen­sa­men­to dito utópi­co.” Nos ver­sos de Leminski:

    praz­er
    da pura percepção
    os sentidos
    sejam a crítica
    da razão
    (Dis­traí­dos Vencer­e­mos, 1987)

    Esta ide­olo­gia está em coal­izão com a microp­olíti­ca do dese­jo de Felix Guat­tari e o com­por­ta­men­to aqui-ago­ra do movi­men­to hip­pie dos anos 70, que vul­gar­iza con­ceitos de filosofias ori­en­tais, como o hin­duís­mo e o zen-bud­is­mo. Os hip­pies trazem a ideia do praz­er na real­i­dade do pre­sente, em que a utopia não se adia, em que o esta­do par­adis­ía­co é vivi­do todos os dias. A poe­sia de Lemins­ki con­strói a catarse do ago­ra con­tra a repressão do pre­sente – no con­tex­to históri­co, a saí­da da ditadu­ra mil­i­tar para a ditadu­ra da econo­mia glob­al. Con­tra um sis­tema no qual a poe­sia é ape­nas o dese­jo, os artefatos de Lemins­ki tor­nam-se instru­men­to críti­co que cor­roem con­ceitos e faz­eres mumi­fi­ca­dos, como na genial inver­são dis­traí­dos vencer­e­mos do títu­lo de livro pub­li­ca­do em 1987, que car­naval­iza o bor­dão Unidos, vencer­e­mos.

    Um dos recur­sos usa­dos pelos poet­as para com­bat­er o regime repres­sor foi o humor. San­ti­a­go difer­en­cia dois proces­sos usa­dos nos movi­men­tos de poe­sia de protesto. O primeiro, a paró­dia, é um recur­so val­oriza­do como instru­men­to poten­cial de irrisão con­tra o poder insti­tuí­do, uma rup­tura. O segun­do, o pas­tiche, é uma der­risão que enfraque­ce o poder da críti­ca: A paró­dia sig­nifi­ca uma rup­tura, um escárnio com relação àquela estéti­ca que é dada como neg­a­ti­va. O pas­tiche não rechaça o pas­sa­do, num gesto de escárnio, de despre­zo, de iro­nia, escreve Santiago.

    A paró­dia tem o mes­mo grau de irrisão do insti­tuí­do pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Man­i­festo Antropofági­co de Oswald, em 1922. A lição mod­ernista foi incor­po­ra­da por Lemins­ki, que des­de sua aparição públi­ca nos jor­nais em Curiti­ba, achin­cal­ha o cul­to ao con­to e a figu­ra mon­u­men­tal­iza­da de Dal­ton Tre­visan, nos anos 70 e 80. Neste momen­to, seu embate não é con­tra as ino­vações de Dal­ton (a lin­guagem sin­téti­ca, a opção pela “cor local”, ado­tadas por Lemins­ki) e sim con­tra a insti­tu­cional­iza­ção de Dalton.

    Ferreira Gullar.
    Fer­reira Gullar

    A dor tão ele­va­da que é capaz de faz­er rir, evo­ca­da por Alice Ruiz no pre­fá­cio do livro La Vie en Close foi a táti­ca de uma guer­ril­ha que tem no riso, no chiste, no witz, na descon­strução de clichês e no aproveita­men­to de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guer­ril­ha cul­tur­al seria her­ança do Trop­i­cal­is­mo. Para Ana Cristi­na César, a Trop­icália é a expressão de uma crise, uma opção estéti­ca que inclui um pro­je­to de vida, em que o com­por­ta­men­to pas­sa a ser ele­men­to críti­co, sub­ver­tendo a ordem mes­ma do cotid­i­ano. A ideia de enfrentar o sufo­co políti­co com as armas do cotid­i­ano foi legit­i­ma­da em Leminski.

    Dois adver­sários no cam­po da estéti­ca da poe­sia lutam con­tra um inimi­go comum. E fil­iam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paró­dia da Canção do Exílio, descon­stru­in­do o nacional­is­mo orig­i­nal. Enquan­to a nação desa­parece, a infân­cia tor­na-se ter­ritório míti­co e o cor­po, o úni­co sacra­men­to, para Gullar. Já Lemins­ki percebe que até a infân­cia será ven­di­da, restando, para a poe­sia, sua úni­ca arma de luta: o praz­er de provo­car sentidos.

    Insílio: De acor­do com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O con­ceito nasce basea­do em sociedades autoritárias. Os insi­la­dos ficam pre­sos no país sofren­do os des­man­dos do regime. Ilie dis­cute o inner exilie da sociedade espan­ho­la sob o regime fran­quista, não exi­ladas de acor­do com o mod­e­lo clás­si­co, mas tiver­am a liber­dade restri­ta, sofren­do com a negação, dom­i­nação, anu­lação, intolerância.

    BIBLIOGRAFIA

    Livros

    • GULLAR, Fer­reira
      • Inda­gações de hoje. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 1989.
      • Poe­ma sujo. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 2013.
    • LEMINSKI, Paulo
      •  Capri­chos e Relax­os. São Paulo: Brasiliense, 1983.
      • Dis­traí­dos Vencer­e­mos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
      • Anseios Críp­ti­cos, Curiti­ba: Cri­ar Edições, 1985.
      • Um Escritor na Bib­liote­ca, Curiti­ba: Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná, 1985.
      • La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.
      • Poe­sia, paixão da lin­guagem. In: Novaes, Adau­to (Org.) Os sen­ti­dos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
      • Uma car­ta uma brasa através – car­tas a Régis Bon­vi­ci­no. 1976–1981 São Paulo: Ilu­min­uras, 1992.
    • SANTIAGO, Sil­viano
      • Nas Mal­has da Letra. São Paulo: Com­pan­hia das Letras, 1989.

    Doc­u­men­tos eletrônicos

  • Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    tres-dedos-um-escandalo-animado-2009-de-rich-koslowski-hqQuan­do éramos cri­anças, cor­ríamos para o sofá (ou cadeira) com o intu­ito de assi­s­tir aos desen­hos ani­ma­dos que envolvi­am per­son­agens-ani­mais, tais como Taz, Per­na­lon­ga, Tom, Jer­ry, Mick­ey, entre out­ros. Mas o que não sabíamos aca­ba de ser rev­e­la­do na obra “Três Dedos: Um escân­da­lo Ani­ma­do” (2009), de Rich Koslows­ki.

    O que muitos críti­cos acusam como um tra­bal­ho vazio ou uma “leitu­ra par­o­dís­ti­ca do mun­do encan­ta­do dos desen­hos” reflete uma ten­ta­ti­va para silen­ciar a gravi­dade no inte­ri­or do escân­da­lo expos­to neste livro.

    Em for­ma de HQ-Doc­u­men­tário, Rich inves­ti­ga os basti­dores da indús­tria cin­e­matográ­fi­ca hol­ly­wood­i­ana através de um lev­an­ta­men­to detal­ha­do que nos mostra seu surg­i­men­to, des­de o fim do cin­e­ma prim­i­ti­vo nos Esta­dos Unidos.

    Nesse con­tex­to, o leitor con­hece a vida do cineas­ta Dizzy Wal­ters, fun­dador do “cin­e­ma ani­ma­do” oci­den­tal. Com uma tra­jetória de vida mar­ca­da por crises e suces­sos, Rich apon­ta que o grande difer­en­cial de Dizzy deu-se na cor­agem de reti­rar do sub­mun­do, os artis­tas – que, por serem “desen­hos ani­ma­dos” — eram demo­niza­dos pela sociedade tradi­cional­ista norte-americana.

    Rich Koslowski
    Rich Koslows­ki

    Viven­do uma fase som­bria, “ele começou a fre­qüen­tar partes cada vez mais perigosas e pouco recomen­dadas da cidade, até que final­mente, uma noite, encon­trou-se vagan­do (…) pela ‘Ani­malân­dia’” e con­heceu – tocan­do numa boate escon­di­da — o rat­in­ho Rick­ey”. Esse encon­tro muda toda a história do cinema.

    O tal­en­to e caris­ma de Rick­ey no pal­co fez Dizzy tomar uma ati­tude arrisca­da: levar para as telas os “ani­ma­dos”, mes­mo cor­ren­do o risco de perder sua dig­nidade, pois nes­sa época, ess­es bich­in­hos sofri­am bas­tante pre­con­ceito, viven­do na mar­gin­al­i­dade e esque­ci­dos pelo poder público.

    Ser um “ani­ma­do” era noci­vo, repug­nante e assus­ta­dor. A sociedade com­pos­ta pelos humanos excluiu a raça ani­ma­da do con­vívio social e a jogou — sem o mín­i­mo de cidada­nia — nos bair­ros per­iféri­cos, no qual muitos deles vivi­am da pros­ti­tu­ição, trá­fi­co de dro­gas e ani­mação em fes­tas infan­tis, onde as cri­anças con­tratavam os “ani­ma­dos” para vio­len­tá-los em orgias envol­ven­do recheio de chi­clete sin­téti­co, refrig­er­ante com alto teor de gás e brigadeiros industriais.

    O risco em tornar um “ani­ma­do” ícone pop era alto, mas Dizzy Wal­ters investiu todo seu din­heiro no filme “Rick­ey na Fer­rovia”. Sur­preen­den­te­mente, o suces­so foi ime­di­a­to! Mes­mo com todo o ceti­cis­mo enraiza­do na críti­ca de cin­e­ma espe­cial­iza­da, as plateias humanas acla­mavam o filme como “rev­olu­cionário”.

    Rich Koslows­ki afir­ma que:

    Rap­i­da­mente, todos os grandes estú­dios de cin­e­ma começaram a pro­duzir filmes estre­la­dos por atores ani­ma­dos. Seis meses após a estréia de ‘Rick­ey na Fer­rovia’, qua­tro dos maiores estú­dios lançari­am pro­duções estre­ladas ape­nas por elen­cos de atores animados.

    Assim, a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca de ani­mação pro­move uma avalanche de filmes mar­ca­dos pelo fra­cas­so de bil­hete­ria. Por algum moti­vo descon­heci­do, o públi­co não respon­dia pos­i­ti­va­mente ao lança­men­to dos novos filmes que sur­gi­ram após o “fenô­meno Rickey”.

    O autor entre­vista (entre ex-atores e teste­munhos da época) Hans Wurstmacher:

    at1

    Enquan­to os filmes ani­ma­dos não estre­la­dos por Rick­ey causavam pre­juí­zos aos atrav­es­sadores, pro­du­tores e exibidores, a fama de Dizzy e seu par­ceiro lotavam as capas de revista, jor­ran­do din­heiro por todos os lados!

    at2

    A alta cúpu­la do setor de ani­mação em Hol­ly­wood estran­hou como Dizzy e Rick­ey tornaram-se, do dia para a noite, os novos mag­natas do cin­e­ma. Algo erra­do esta­va acon­te­cen­do nos cír­cu­los inter­nos do setor.

    O suces­so de Rick­ey aumen­ta­va a cada filme real­iza­do, mas para atin­gir a fama ime­di­a­ta os artis­tas sem­pre pagam um alto preço.

    at3

    Até o ano de 1946, ape­nas os filmes da dupla pros­per­avam, fazen­do Rick­ey tornar-se o maior super-astro ani­ma­do de todos os tem­pos, o que o lev­ou a casar-se com uma humana! A união afe­ti­va com Rosa Bel­mont pro­moveu uma grande dis­cussão étni­ca nos anos 40 nos Esta­dos Unidos: Humanos podem unir-se a Ani­ma­dos? Mes­mo com a fúria do públi­co con­ser­vador norte-amer­i­cano, sem dúvi­da, Rick­ey e Rosa que­braram os tabus em torno do amor entre seres tão distintos.

    A vida de Rick­ey e Dizzy esta­va no seu mel­hor momen­to, até que os seg­re­dos sobre o Rit­u­al são rev­e­la­dos à impren­sa a par­tir de uma denún­cia anôn­i­ma real­iza­da em 1948, que trouxe à tona um dos­siê fotográ­fi­co respon­sáv­el pela des­graça da car­reira de ambos. As ima­gens con­fir­mam: o Rit­u­al é uma ter­rív­el realidade.

    at4

    A par­tir das ima­gens expostas por Rich, “Três Dedos” pro­move um debate com ex-atores ani­ma­dos fra­cas­sa­dos para com­preen­der a pos­sív­el lig­ação dos per­son­agens cen­trais com o escân­da­lo envol­ven­do o Ritual.

    Seria essas práti­cas macabras que o levaram à fama abso­lu­ta? É a par­tir des­ta fór­mu­la bizarra que os desen­hos ani­ma­dos con­seguem hip­no­ti­zar mil­hares de cri­anças atual­mente? Seria o “hor­ror” a palavra de ordem nas ani­mações que for­maram ger­ações de home­ns e mulheres?

    Numa rara aparição à Rich Koslows­ki, Rick­ey polemiza:

    at5

    Comen­tários bom­bás­ti­cos bus­cam ques­tionar a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca e avaliar o raio‑X do maior escân­da­lo da cul­tura pop nos anos 40.

    at6

    Quem lem­bra do Pato Daniel? Engas­guin­ho? Ton­to? Liu Liu? Rapid­in­ho Rodriguez? Gafan­ho­to Can­tante? Per­nalou­ca? Frei­drich Von Gatze? Mil­lie Mar­su­pi­al? Pato Nil­do? Anti­gos grandes astros da ani­mação que hoje vivem em condições precárias, na maio­r­ia dos casos venden­do-se à indús­tria pornográ­fi­ca lig­a­da à cat­e­go­ria Zoo-She­male-Gag­fac­tor ou tra­bal­han­do nas zonas boêmias da Animalândia.

    A reper­cussão em torno do Rit­u­al pro­moveu ataques de artis­tas e políti­cos famosos (como Mar­i­lyn Mon­roe, o senador Theodore Iver­son, Mar­tin Luther King e J. F. Kennedy), que “se lev­an­taram con­tra o abu­so e trata­men­to ruim dado aos ani­ma­dos”. Poucos meses após a man­i­fes­tação de apoio aos ani­ma­dos, os mes­mo críti­cos que acusavam a indús­tria hol­ly­wood­i­ana por tais crimes sofr­eram trági­cos “aci­dentes de per­cur­so” até hoje inex­plicáveis. Have­ria algu­ma lig­ação entre essas mortes e o Ritual?

    Per­nalou­ca, após ser ques­tion­a­do por Rich sobre sua pos­sív­el lig­ação com rit­u­al, reage de for­ma surpreendente:

    at7

    Desse modo, “Três Dedos” apre­sen­ta aos leitores o proces­so de con­strução dos mitos ani­ma­dos da TV e cin­e­ma. Anal­isa como a indús­tria da ani­mação lucra mil­hões de dólares, investin­do em filmes e séries tele­vi­si­vas infan­tis que movi­men­tam um mer­ca­do macabro, obri­g­an­do os artis­tas a se sub­me­terem ao Rit­u­al em tro­ca da fama, luxo e recon­hec­i­men­to de públi­co. Quan­do os pro­du­tores lucram tudo que podem, os jogam no esquec­i­men­to absoluto.

    O que está por trás do uni­ver­so dos filmes infan­tis? Até que pon­to nos­sos fil­hos devem con­sumir tais con­teú­dos, mar­ca­dos por uma atmos­fera de hor­ror e sub­mis­são? “Três Dedos” é um livro que pre­cisa ser lido e divul­ga­do ime­di­ata­mente nas esco­las, crech­es e aos pais mais cuida­dosos, como um aler­ta moral sobre a maldição envol­ven­do os desen­hos animados.

  • Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Histórias Medonhas d’O Recife Assombrado, organização de Roberto Beltrão | Livro

    Have you run your fin­gers down the wall and have you felt your neck skin crawl when you’re search­ing for the light? Some­times when you’re scared to take a look at the cor­ner of the room, you’ve sensed that some­thing’s watch­ing you.”

    (Você já cor­reu seus dedos pela parede e sen­tiu a pele da sua nuca arrepi­ar quan­do está procu­ran­do pela luz? Algu­mas vezes, quan­do você está com medo de olhar no can­to da sala, você sente que algu­ma coisa está lhe obser­van­do. – tradução livre).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livroNa músi­ca “Fear of the Dark”, com­pos­ta pela idol­a­tra­da ban­da Iron Maid­en, o medo do escuro con­some, gera angús­tia e provo­ca o ator­men­ta­do pro­tag­o­nista, que pas­sa a apre­sen­tar uma fobia incon­troláv­el. Para ele, a ausên­cia de luz rev­ela o pavor impalpáv­el e arrepi­ante da “certeza de que há alguém lá”, escon­di­do nas som­bras. Essa mes­ma ideia está pre­sente no livro “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” (edi­to­ra Bagaço, 2007, 127 pági­nas), coletânea de relatos, con­tos e cau­sos sele­ciona­dos por Rober­to Bel­trão. Os acon­tec­i­men­tos fazem refer­ên­cia à cidade de Recife, cap­i­tal de Per­nam­bu­co, con­heci­da no país como pal­co de fenô­menos sobre­nat­u­rais e ativi­dades fantasmagóricas.

    A ideia da coletânea nasceu da paixão de três jovens ami­gos pelo assun­to, impul­sion­a­dos pela leitu­ra do livro “Assom­brações do Recife Vel­ho”, de Gilber­to Freyre. Na época, os rapazes estavam plane­jan­do pub­licar um jor­nal ou escr­ev­er um livro sobre o tema, mas o assun­to foi abafa­do com o pas­sar do tem­po. No entan­to, no iní­cio de 2000, a temáti­ca voltou à tona com força total na vida do trio, resul­tan­do na cri­ação do site O Recife Assom­bra­do, espaço onde os inter­nau­tas podem colab­o­rar com depoi­men­tos, con­tos e nar­ra­ti­vas de ficção sobre exper­iên­cias inexplicáveis.

    Em 2002, o site foi indi­ca­do pelo insti­tu­to iBEST como um dos dez mel­hores sites pro­duzi­dos em Per­nam­bu­co. No espaço, os con­tos ficam lado a lado com quadrin­hos, relatos, nar­ra­ti­vas em áudio e links de vídeos. Todo esse mate­r­i­al foi sele­ciona­do pelo jor­nal­ista Rober­to Bel­trão, um dos rapazes do trio, e pub­li­ca­do como coletânea.

    The Haunted House (Daniele Montella)
    The Haunt­ed House (Daniele Montella)

    Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” mis­tu­ra a ficção do uni­ver­so literário (con­tos) com relatos de teste­munhas, iden­ti­fi­cadas ou não. Entre lendas urbanas, estórias e ficções, o leitor entra em con­ta­to com o uni­ver­so intangív­el da vida após a morte, tema que con­tin­ua impres­sio­n­an­do e per­tur­ban­do o homem.

    Ghosts (Joe-Roberts)
    Ghosts (Joe-Roberts)

    Muito antes do pre­domínio do cin­e­ma, tele­visão, rádio e inter­net, as nar­ra­ti­vas orais eram respon­sáveis pela con­strução do con­hec­i­men­to e das exper­iên­cias, repas­sadas de ger­ação em ger­ação. Na roda de con­ver­sas, criat­uras medonhas exer­ci­am papel essen­cial na hora de “edu­car” cri­anças, repri­m­in­do-as. Cau­sos como “o vel­ho do saco” (sujeito que rap­ta e come cri­anças), “a loira do ban­heiro” (aparição que escol­he ban­heiros esco­lares para se mate­ri­alizar) e a “per­na cabe­lu­da” (per­na licantropa que agride transe­untes em ple­na madru­ga­da) eram repas­sa­dos de boca em boca, deixan­do os pequenos, assim como os mar­man­jos, ater­ror­iza­dos. Ativi­dades mediúni­cas, como a con­heci­da “brin­cadeira do copo” (uma supos­ta invo­cação de espíri­tos) são trans­mi­ti­das até hoje entre gru­pos, cau­san­do grande fris­son. Fan­tas­mas, chama­dos muitas vezes de ‘almas penadas’, ain­da são os campeões de audiên­cia no que se ref­ere a relatos fantásticos.

    Residên­cias mal assom­bradas, sons de gri­tos, choros, ranger de dentes, vul­tos brux­u­leantes e mor­tais apa­vo­ra­dos com a pos­si­bil­i­dade de con­ta­to com o além estão entre as nar­ra­ti­vas espal­hadas pelo livro de Bel­trão. Há sem­pre um espíri­to incon­for­ma­do para faz­er com­pan­hia a moradores apa­vo­ra­dos. Den­tre os relatos e con­tos, destaque para Casarão de Setúbal, O baú, O pré­dio do Espin­heiro, A casa, O caseiro e Madru­ga­da no quar­tel, por retratarem histórias de man­i­fes­tações para­nor­mais fazen­do asso­ci­ação a obje­tos e lugares. A série Haunt­ed Col­lec­tor, veic­u­la­da pelo canal de TV por assi­natu­ra Syfy, abor­da exata­mente essa conexão entre matéria (físi­co, cor­po) e ener­gia (espíri­to, metafísica).

    historias-medonhas-do-recife-assombrado-livro-3Na parte aber­ta­mente fic­cional, não pude deixar de notar a semel­hança entre o con­to “O demônio e a rosa”, escrito por Lil­iane Batista de Moura, com a ficção de Robert Louis Steven­son (1850–1894) em “Janet do pescoço tor­ci­do” (Thrawn Janet). Steven­son ficou con­heci­do mundial­mente pela nov­ela “O médi­co e o mon­stro” (The strange case of Doc­tor Jekyll and Mis­ter Hyde), pub­li­ca­da em 1886.

    Janet do pescoço tor­ci­do” e “O demônio e a rosa” falam sobre mul­heres amaldiçoadas por faz­erem pacto com o demônio, cuja aparên­cia e com­por­ta­men­to reme­tem a um esta­do “mor­to-vivo”, que enche de hor­ror todos os que se aprox­i­mam. A semel­hança entre Rosa e Janet é grande, des­de o aci­dente que sofrem até a aparên­cia físi­ca que adquirem.

    Em “Vírginia”, o con­to chama a atenção pelo caráter ultra­r­român­ti­co, onde é pos­sív­el localizar car­ac­terís­ti­cas como fuga da real­i­dade para o mun­do da fan­ta­sia, ide­al­iza­ção da mul­her ama­da, escapis­mo e con­sciên­cia da solidão. O nar­rador nun­ca chegou a con­hecer Virgí­nia, mul­her por quem se apaixo­nou, já que a moça mor­reu muitos anos antes. Ao olhar seu retra­to em uma lápi­de no cemitério, o pro­tag­o­nista começa a imag­i­nar a mor­ta e dese­já-la. A con­se­quên­cia desse amor tran­scende expli­cações razoáveis e cul­mi­na em ativi­dades paranormais.

    "Saturno devorando seu filho'' (Francisco Goya)
    “Sat­urno devo­ran­do seu fil­ho” (Fran­cis­co Goya)

    Histórias Medonhas” é inter­es­sante, diver­tido e, antes de provo­car ter­ror ou espan­to, inci­ta a imag­i­nação do leitor. São histórias de criat­uras bizarras e almas penadas que começam a causar pal­pi­tações na infân­cia, seguin­do para out­ras fas­es da vida com maior ou menor inten­si­dade. O mis­tério da morte ain­da obce­ca o homem, desafian­do sua pre­ten­são de explicar, à luz da ciên­cia, todos os fenô­menos que o cercam.

    Para quem é fasci­na­do pelas histórias de Edgar Allan Poe, Robert Louis Steven­son, Charles Dick­ens, Álvares de Azeve­do, Guy de Mau­pas­sant e Hen­ry James, as pági­nas de “Histórias Medonhas d’O Recife Assom­bra­do” vão con­seguir atrair, diver­tir ou, quem sabe, assombrar.

  • Trilogia Nikopol (2012), de Enki Bilal | HQ

    Trilogia Nikopol (2012), de Enki Bilal | HQ

    Somos todos mon­stros de nós mesmos

    trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-capaAo ler “Trilo­gia Nikopol”, do Enki Bilal, nos deparamos com a seguinte reflexão gilber­tiana: “Quem hoje fala de futuro, sabe­mos que fala num tem­po que já é quase pre­sente, tal a rapi­dez com que esta­mos pas­san­do de pre­sente a futuro. Nun­ca mais do que hoje o homem viveu tem­po aparente só mod­er­no já tão alcança­do pelo pós-mod­er­no e ain­da influ­en­ci­a­do pelo pré-mod­er­no”. O que um per­nam­bu­cano tem em comum com um iugoslavo?

    Ao abrir “Além do Ape­nas Mod­er­no”, de Gilber­to Freyre, e ler esse tre­cho, fiquei com von­tade de escr­ev­er sobre Bilal, um autor muito novo e difí­cil pra mim, mas que me desafiou a for­mu­lar algu­mas con­sid­er­ações sobre sua trilogia.

    A Edi­to­ra Nemo fez um óti­mo tra­bal­ho ao reunir “A Feira dos Imor­tais”, “A Mul­her Armadil­ha” e “Frio Equador” num encader­na­do auda­cioso lança­do em 2012 por aqui, traduzi­do por Fer­nan­do Scheibe.

    Enlaçan­do resum­i­da­mente as histórias, Bilal afir­ma que “se suce­dem nos três livros, cacos obsedantes e grotescos de nos­so mun­do, deuses egíp­cios ver­gonhosa­mente mal­trata­dos, um homem com nome de cidade da Ucrâ­nia (…), uma emblemáti­ca e aber­rante mul­her de pele bran­ca e cabe­los azuis nat­u­rais, ani­mais, ver­dadeiros, fal­sos (…) uma pirâmide voado­ra (…) e tam­bém histórias de amor e son­hos de cin­e­ma”. Este é o mosaico que vamos explo­rar a seguir.

    Esta­mos em março de 2023, Paris. A atmos­fera “facis­ti­za­da” da cidade — mul­ti­povoa­da e sec­ciona­da em dis­tri­tos desiguais – é alter­a­da (em ple­na farsa eleitoral) pela aparição de uma pirâmide, esta­ciona­da no céu cinzen­to, pro­por­cio­nan­do um mal-estar cole­ti­vo aos habi­tantes, sobre­viventes desse “uni­ver­so de degenerescên­cia, mis­éria e imundície”.

    Os ocu­pantes da pirâmide voado­ra exigem com­bustív­el ao dita­dor Fer­di­nand Chou­blanc. O silên­cio dele a respeito do fato “não tran­quil­iza ninguém”.

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    No inte­ri­or da pirâmide, os deuses egíp­cios estão pre­ocu­pa­dos com o sum­iço de Hórus, con­de­na­do a perder sua condição eter­na por deserção e práti­cas sub­ver­si­vas con­tra a “ordem uni­ver­sal e a san­ta eternidade”. Nesse momen­to, Anúbis, Bes, Bastet e a cúpu­la inteira tra­mavam os cam­in­hos necessários para recap­turar Hórus e obri­gar Chou­blanc a ced­er com­bustív­el à pirâmide.

    O proces­so de nego­ci­ação entre o dita­dor e os deuses fica ten­so, pois Chou­blanc sug­ere algo nada amigáv­el: “Estou pron­to a ced­er-lhes todo o com­bustív­el de que vocês neces­si­tam, (…) mas sob a condição de que vocês me con­cedam a imor­tal­i­dade em con­tra­parti­da”, pro­pos­ta que é inter­romp­i­da brus­ca­mente pelo cha­cal: “Bas­ta, Jean- Fer­di­nand Chou­blanc! Está fora de questão con­trari­ar a ordem universal!”

    O dita­dor é expul­so da pirâmide, encer­ran­do as nego­ci­ações. Para­le­lo a esse acon­tec­i­men­to, o jor­nal “A Voz Legal” (instru­men­to pux­as­aquista de Chou­blanc) pub­li­ca um con­jun­to de notí­cias que pode tumul­tu­ar ain­da mais os rumos de Paris.

    A impren­sa local tra­ta das nego­ci­ações entre Chou­blanc e Anúbis com cin­is­mo e vista grossa — típi­co dos jor­nal­is­tas “lambe-botas” dos dias de hoje -, atribuin­do tal como proces­so à “fineza diplomáti­ca”, detur­pan­do o que teste­munhamos nos basti­dores piramidais.

    Corte para a lin­ha 4 (Met­ro­pol­i­tano): Porte D’Orléans de Clig­nan­court. Em proces­so de descon­ge­la­men­to, Alcide Nikopol ain­da não con­segue lem­brar como chegou ali. Joga­do na beira dos tril­hos, a úni­ca sen­sação que o tor­tu­ra é a forte dor na região da per­na amputa­da no aci­dente aéreo da sua cela criogêni­ca. Um sono de 30 anos.

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    Eis que Hórus surge para “aux­il­iar” Nikopol com o grave fer­i­men­to, mas como para tudo é pre­cis­ar tro­car, o pás­saro lança sua pro­pos­ta: ofer­e­cer uma “per­na” (de fer­ro, extraí­da dos tril­hos) para Nikopol, e este con­ced­er seu cor­po para hospedar o espíri­to de Hórus. “E foi assim que teve lugar, no dia 03 de março de 2023, no metrô Alésia, a posse do cor­po de Alcide Nikopol por Hórus de Hierakonópolis”.

    Tal encon­tro, pro­movi­do na primeira sequên­cia da trilo­gia (“A Feira dos Imor­tais”) ger­ou uma resul­tante de forças que irá sacud­ir a supos­ta tran­quil­i­dade do gov­er­no de Chou­blanc, ali­men­tan­do con­fli­tos políti­cos ter­restres e divi­nos, pren­den­do a res­pi­ração do leitor.

    Nikopol e Hórus. Dois deser­tores, dois inimi­gos do poder, dois cor­pos em per­fei­ta sin­to­nia e con­ju­gação. Cor­pos e espíri­tos unidos, Hórus começa sua empre­ita­da e define para Nikopol seus obje­tivos na Ter­ra: depor Chou­blanc e con­stru­ir seu império. Após burlar todas as bar­reiras, final­mente Hórus manip­u­la a mente do gov­er­nante e vai dire­to ao ponto:

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    O pro­longa­men­to da história (ini­ci­a­da nos anos 80) segue com “Mul­her Armadil­ha”, expon­do a fase de Nikopol dois anos após seu inter­na­men­to (eles e Chou­blanc enlouque­ce­r­am com a exper­iên­cia men­tal via-Hórus).

    Através de um lev­an­ta­men­to hemero­grá­fi­co da época, Bilal cos­tu­ra o panora­ma políti­co do perío­do que Hórus/Nikopol pro­movem o golpe à Chou­blanc, para situ­ar o leitor historicamente.

    Após ser con­de­na­do e iso­la­do numa câmara criogêni­ca, Hórus é lib­er­ta­do aci­den­tal­mente e vol­ta com tudo, rein­cor­po­ran­do-se ao cor­po de Nikopol, à contragosto.

    Para­le­lo a este núcleo nar­ra­ti­vo, Bilal nos apre­sen­ta mais dois per­son­agens: o fil­ho de Nikopol (idên­ti­co, com a mes­ma idade do pai) e Jill, uma mul­her bran­ca, de lábios, lágri­mas e cabe­los azuis. Hórus artic­u­la um encon­tro entre Jill e Nikopol, ini­cian­do um triân­gu­lo amoroso-sex­u­al muito útil para os obje­tivos da ave. Os três via­jam ao Egi­to, em bus­ca de um escon­der­i­jo ade­qua­do para escapar da pirâmide voado­ra, que está caçan­do nova­mente Hórus.

    A Mul­her Armadil­ha” bus­ca con­stru­ir um espaço de con­vivên­cia entre os per­son­agens, crian­do os laços necessários para desen­volver as afe­tivi­dades entre Jill e Nikopol, habil­mente con­tro­la­da por Hórus, que visu­al­iza em Jill uma arma potente para con­cretizar seus planos megalomaníacos.

    E assim, Hórus foge do Cairo (Anúbis desco­bre seu escon­der­i­jo) com sua artil­haria pro­te­gi­da: o seu império ini­cia aqui, pois a ponte para a eternidade esta­va dev­i­da­mente acer­ta­da. Jill acred­i­ta que:

    Nos­sa par­ti­da pre­cip­i­ta­da, provo­ca­da pela chega­da da Pirâmide voado­ra ao Cairo, tin­ha um cer­to ar de jogo que não me desagra­da­va. Isso me per­mi­tia, em todo caso, não me faz­er per­gun­tas demais sobre o nasci­men­to de min­has estra­nhas relações com a dupla Nikopol/Hórus, sobre a qual ignoro até hoje, quase tudo”.

    A nave segue rumo ao “Frio Equador”, onde os dois se sep­a­ram e o amor vira son­ho de cin­e­ma. Bilal gos­ta de pro­duzir novos hor­i­zontes para suas histórias, tran­si­tan­do dos quadrin­hos para o cin­e­ma sem­pre que pos­sív­el. É o que podemos con­ferir em adap­tações audio­vi­suais como Bunker Palace Hotel (1989), Tykho Moon — Seg­re­dos da Eternidade (1996) e Immor­tel (ad vitam) (2004), basea­do na trilo­gia Nikopol.

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    Nas suas leituras cin­e­matográ­fi­cas, a adap­tação resul­ta numa “descon­strução” do núcleo nar­ra­ti­vo das HQs, para ger­ar um novo sen­ti­do aos per­son­agens em con­fli­to, como se fos­se uma “exten­são” do que lemos, um pós-história, o que arrisco a chamar de pós-história exper­i­men­tal, para efe­t­u­ar novos rabis­cos no cor­po dos atores, uma per­for­mance em proces­so de ree­scri­ta do tex­to orig­i­nal. Bilal acred­i­ta que suas tra­mas podem ir além dos desen­hos e faz uma exigên­cia: com­por novas pos­si­bil­i­dades aos seus mun­dos, ele quer músi­ca, movi­men­to, mise en scene. Out­ros des­fe­chos para cri­ar out­ras sensibilidades.

    A trilo­gia é recon­fig­u­ra­da num mix de histórias que cruzam out­ros inter­ess­es de Bilal no uni­ver­so Nikopol. Mais nomes, out­ras cores, ten­sões políti­cas ree­scritas surgem para o autor explo­rar livre­mente, tor­nan­do o cin­e­ma fun­da­men­tal para suas vivên­cias estéti­cas em andamento.

    O peso dos tons envel­he­ci­dos de um futuro em crise é sub­sti­tuí­do pela lev­eza azu­la­da de Jill e da ani­mação com­puta­doriza­da, que dis­tan­cia-se dos odores mal-cheirosos, da neve suja de lama, do con­cre­to mal con­ser­va­do e da imagem vis­cer­al expostas na HQ.

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    A pais­agem audio­vi­su­al de “Immor­tel (ad vitam)” é com­pos­ta por uma nova estru­tu­ra nar­ra­ti­va, que serve como suporte para con­stru­ir vari­a­dos exer­cí­cios de cri­ação na jor­na­da dos per­son­agens cen­trais. Aqui podemos sen­tir uma Jill menos rad­i­cal. Aqui ela é car­ente de suas ori­gens, amáv­el e frágil.

    Nos­so Nikopol é menos rús­ti­co, sedu­tor e firme em seus posi­ciona­men­tos per­ante Hórus. Este man­tém sua rigidez — como lemos na trilo­gia — crian­do sua platafor­ma de per­pet­u­ação e con­t­role do plan­e­ta a lon­go pra­zo, toman­do o cor­po de Nikopol como ponte para a vin­gança con­tra os deuses mag­istra­dos do Egi­to (no filme, tal ação é mais “explica­ti­va” do que no texto-base).

    Uma opor­tu­nidade para ampli­ar os hor­i­zontes cria­tivos de Paris pós-tudo. Um cam­in­ho sofisti­ca­do para per­pet­u­ar o lega­do de Hórus, mais difun­di­da ao públi­co não-leitor ou já fã do tra­bal­ho de Bilal (talvez os mais “lig­a­dos ao tex­to-HQ” não aceit­em este per­cur­so, mas, quem se impor­ta? Se o filme é uma par­ti­tu­ra regi­da pelo próprio cri­ador?). Goran Vejvo­da pro­duz uma sonori­dade-sen­so­r­i­al pen­e­trante em todos os momen­tos, cor­ta­da brus­ca­mente por um hap­py-end que deixa a dese­jar, mas nada prej­udique o con­jun­to da obra. Lança­do em 2004, “Immor­tel (ad vitam)” merece atenção e uma cuida­dosa análise com­par­a­ti­va com os quadrinhos.

    trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-4E assim, tomo essa obra como ele­men­to de reflexão sobre o mal-estar do autor per­ante o futuro, que se aprox­i­ma-chega de for­ma assus­ta­do­ra. Um futuro cin­za, demar­ca­do pela deses­per­ança do homem pelo homem, este ati­ra­do numa dis­pu­ta ani­malesca pelo con­t­role do Out­ro e de si.

    Vejo nes­ta trilo­gia a expec­ta­ti­va de um vir-a-ser despedaça­do, cor­pos endure­ci­dos pelo fas­cis­mo tri­un­fante, gov­er­na­do por tira­nos cada vez mais enlouque­ci­dos pelo poder. Uma sociedade regi­da pela sep­a­ração e vio­lên­cia aos “pan­fletários”.

    O homem e a mul­her: sui­ci­das em poten­cial. É pre­ciso tomar os com­prim­i­dos de Jill? Os gatos telepatas serão nos­sos mel­hores ami­gos em tem­pos de enges­sa­men­to do amor e do esgo­ta­men­to da con­fi­ança? Como escapar ao olho mor­tal do KKDZO? Seria a sel­va de Equador City o Eldo­ra­do pós-pós-tudo? As prisões criogêni­cas são penal­i­dades ou o pas­s­aporte para a fuga des­ta ger­ação? Hórus e Chou­blanc encar­nam tem­po­ral­i­dades que rev­e­lam rup­tura o con­tin­uís­mo com o pre­sen­tepas­sad­o­fu­turo? Nikopol é a zona inter­mediária do tem­po tríbio gilber­tiano? Nos­so des­ti­no está sela­do ao impul­so autode­stru­ti­vo? Somos Além de Ape­nas Mod­er­nos ou Aquém de Nos­sas Expectativas?

    Nikopol é uma “real­i­dade [insur­gente] na qual se cruzam sobre­vivên­cias, [pro­jeções] e ante­ci­pações”. Seu cor­po é a “fusão tem­po­ral [que] com­ple­ta [Hórus] e o per­eniza. Eterniza‑o em épocas para além e para aquém do pensamento”.

    Bilal provo­ca uma série de questões que somente as próx­i­mas ger­ações irão respon­der, num futuro bem próx­i­mo, pos­sív­el e cru­el. Nikopol nos deixa uma lição que fica clara aos leitores do pas­sado­p­re­sente: somos mon­stros de nós mesmos.

  • Local (2008–09), de Brian Wood e Ryan Kelly | HQ

    Local (2008–09), de Brian Wood e Ryan Kelly | HQ

    Capa do Vol. 1
    Capa do Vol. 1

    À primeira vista, quan­do peguei, por aca­so, o mate­r­i­al de Bri­an Wood (roteiro) e Ryan Kel­ly (arte) na livraria Quin­ta Capa (a mais legal de Teresina), tive basi­ca­mente a intenção de atu­alizar algu­mas leituras ain­da descon­heci­das por mim na cena dos quadrin­hos. A sen­sação que tive (não sei explicar o moti­vo) ao tatear “Local” foi de encon­trar algo na lin­ha nar­ra­ti­va de Craig Thomp­son em “Retal­hos”, por imag­i­nar que o eixo temáti­co seria pare­ci­do. Feliz­mente esta­va engana­do, e o uni­ver­so que se abriu foi out­ro bem difer­ente, lin­do por sinal.

    Local” expõe a importân­cia dos lugares e das cam­in­hadas que faze­mos pelos espaços. No iní­cio da leitu­ra, tive pre­con­ceito em achar que a história não teria uma potên­cia poéti­ca uni­ver­sal na lin­ha de tra­bal­hos autorais como de Emilio Fra­ia e DW Rib­ats­ki (“Cam­po em Bran­co”) ou do próprio Craig, mas não. Mes­mo com uma nar­ra­ti­va que fre­qüen­ta ambientes/paisagens estadunidens­es, o impacto da obra uni­ver­sal­iza o que somos e o que podemos ser… É surpreendente!

    Estru­tu­ra­do em 12 capí­tu­los “auto­con­ti­dos” (encader­na­do em dois vol­umes: “Pon­to de Par­ti­da” e “Fim da Jor­na­da”, pelo Devir Livraria), as histórias estão demar­cadas na vida de Megan McK­eenan, uma jovem em bus­ca de novas exper­iên­cias, que segue via­jan­do pelos EUA atrás de si mesma.

    Cada capí­tu­lo situa Megan numa cidade-aven­tu­ra, no qual ela vive uma série de situ­ações cotid­i­anas com pes­soas nor­mais, que vivem seus prob­le­mas, suas con­quis­tas, afe­tivi­dades e deses­per­os, que nem sem­pre é fácil de enten­der: um mer­gul­ho nas particularidades.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-3Entre empre­gos, namora­dos, sus­tos, exper­iên­cias cul­tur­ais, decepções e ima­turi­dades, Megan nos encan­ta com sua von­tade de descen­trar o Eu que a habi­ta, pul­ver­izan­do as raízes que a pren­dem no chão, car­regan­do nas costas sua mochi­la rec­hea­da de dese­jos e son­hos. Que­brar as lin­has rígi­das do mapa e com­preen­der-se enquan­to car­tografia: se jog­ar sem medo ou cul­pa, pelo Não do previsível.

    Megan cam­in­ha pela cidade encarando‑a como um lab­o­ratório de sen­si­bil­i­dades. Talvez ela não com­preen­da ini­cial­mente a força dos ele­men­tos afe­tivos que está crian­do, mas do decor­rer da nar­ra­ti­va é pos­sív­el acom­pan­har que cada espaço prat­i­ca­do rep­re­sen­ta uma micro-rev­olução fun­da­men­tal na con­strução da sua personalidade.

    Megan muda seu olhar para o mun­do a cada apren­diza­do vivi­do. Poten­cial­iza os estil­haços recol­hi­dos dos con­fron­tos urbanos inte­ri­ores e das pes­soas que habitam estas ten­sões. Ser a soma dos cruza­men­tos das avenidas, dos gri­tos e estouros alheios, dos par­ceiros de quar­to mal-resolvi­dos, do irmão prob­lemáti­co e dos corações-fan­tas­mas. Histórias muitas vezes incon­clusas, encer­radas às pres­sas com um bil­hete de despedida.

    A paixão de Megan pela fuga/deambulação/desprendimento dos cen­tros de fix­idez vem des­de a infân­cia, quan­do avisa­va para a mãe que esta­va fug­in­do para algum lugar e tin­ha como respos­ta: “Mas daqui a pouco é hora de jan­tar. O que você vai com­er? Quem vai coz­in­har pra você?”.

    Capa do Vol. 2
    Capa do Vol. 2

    Sua primeira ten­ta­ti­va de explo­rar o mun­do foi frustra­da, pois não pas­sou do “car­val­ho no nos­so quin­tal da frente”. A supos­ta “indifer­ença” da mãe em torno das fugas era, na ver­dade, um incen­ti­vo para que Megan seguisse seu des­ti­no sem medo de sonhar.

    Enquan­to nos­sas mães nos sufo­cam com pro­teção e mimo, “ela esta­va removen­do qual­quer obstácu­lo que sur­gisse no meu cam­in­ho. Ela que­ria que eu me sen­tisse livre”. A mãe era víti­ma de uma pro­fun­da prisão inte­ri­or, e não dese­ja­va o mes­mo à filha.

    A mãe atua como espaço livre de trav­es­sia para o mun­do em con­strução. A figu­ra pater­na aparece como ele­men­to repres­sor na jor­na­da, mas nada que atra­pal­he seus obje­tivos: “Meu pai nun­ca a desafiou [mãe], nun­ca levan­tou um dedo para tirá-la da sua roti­na diária. Acho que na cabeça dela, me lim­i­tar seria uma for­ma de mau trato”.

    Apren­den­do com a mãe que o desprendi­men­to rep­re­sen­ta os son­hos e a esper­ança da liber­dade, Megan só encer­ra sua cam­in­ha­da quan­do a pontes entre o coração mater­no e o mun­do rompem-se com a vio­lên­cia ines­per­a­da da morte.

    Após o falec­i­men­to da mãe, é hora de voltar. A dis­per­são e a iden­ti­dade flâneur con­vertem-se em fechadu­ra-por­ta-casa. Ago­ra é pre­ciso sen­tar no sofá, tomar um leite quente e ser impor­tu­na­da por todos os espíri­tos que o pas­sa­do guardou na mochi­la. Quan­tos ter­ritórios te perseguem? Quan­do amores não enter­ra­dos te per­tur­bam? Quan­tas feri­das não cica­trizaram na memória? Qual o preço de per­cor­rer tan­tos uni­ver­sos em bus­ca da liber­dade? Os fan­tas­mas “querem saber por que você os abandonou?”.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-4O trân­si­to pelo mun­do é encer­ra­do (por enquan­to) na casa da fale­ci­da mãe, em Ver­mont, soz­in­ha. O lar mater­no é chave para o auto-con­hec­i­men­to. Recol­her-se para o des­can­so, até que novas aven­turas e con­vites para futur­os saltos apareçam por aí.

    Meu primeiro instin­to é fugir, ir emb­o­ra, sim­ples­mente se esqui­var da questão e evi­tar a situ­ação. Mas não há pra onde fugir. Por que fui emb­o­ra todas aque­las vezes? Eu não sei por quê!”

    Num encon­tro com o espíri­to da mãe, ela con­fes­sa que suas fugas pelo mun­do resul­taram em pro­fun­das crises exis­ten­ci­ais. A solidão da cam­in­ha­da a obrigou a enten­der seus con­fli­tos pes­soais soz­in­ha, já que, até então, nun­ca com­preen­deu por que as pes­soas foram tão hor­ríveis com ela, porque esta­va deslo­ca­da de tudo.

    Pre­cisamos sen­tir saudade, talvez esse foi o erro de Megan: neg­li­gen­ciar tal sentimento.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-5Sen­ta­da na varan­da da vel­ha casa, ela pen­sa: “No fim, o que real­mente impor­ta­va era o que eu pen­sa­va, como eu respon­dia às min­has próprias per­gun­tas. Demor­ei muito tem­po pra perce­ber isso. E com o tem­po, eu fiquei ver­dadeira­mente feliz comi­go mesma.”

    O retorno ao anti­go lar move a per­gun­ta final: “A sua cidade natal se impor­ta com você?”

    Somos como Megan. Sujeitos em construção/contradição. Um pedaço de muitos lugares, cacos de muitas esquinas, retal­hos de amores feri­dos, rup­turas em bus­ca de aconchego, mutações diárias, ilhas descon­heci­das. Somos conexões de olhares e sabores de cidades pas­sadas. De nen­hum lugar, de todos os lugares.

    No final, o cheiro da infân­cia nos tor­na pes­soas fortes.

  • Uma História de Sarajevo (2005), de Joe Sacco | HQ da Semana

    Uma História de Sarajevo (2005), de Joe Sacco | HQ da Semana

    uma-historia-de-sarajevo-2005-de-joe-sacco-hq-da-semana-capaDiante das ten­sões políti­cas que estão explodin­do na Ucrâ­nia, Síria e uma pos­sív­el re-polar­iza­ção inter­na­cional, ten­to mon­tar o que­bra-cabeças indi­vid­ual des­ta con­jun­tu­ra tur­bu­len­ta. Esse “redesen­har” de fron­teiras do Leste europeu e adjacên­cias me obrigam a com­preen­der (como pro­fes­sor de História) min­i­ma­mente isso tudo. Assim, des­de que tive aces­so às reflexões de Edward Said com “Ori­en­tal­is­mo” (2007), da dire­to­ra de cin­e­ma Kathryn Bigelow e das con­ver­sas em sala de aula, fui atrás de novas refer­ên­cias sobre algo que descon­hece­mos: O out­ro lado do mapa.

    No meu trân­si­to de leitor/HQ amador, encon­trei por aca­so dois nomes bem posi­ciona­dos no debate políti­co que segue: Joe Sac­co e Enki Bilal. Hoje quero falar de Sac­co, ape­sar de Bilal pos­suir algu­mas con­vergên­cias poéti­cas muito inter­es­santes com ele. Talvez o explore nas min­has próx­i­mas pon­tas soltas.

    Após sor­rir e chorar com “Der­ro­tista” (2006) retiro da estante “Uma História de Sara­je­vo” (2005). Esse livro pren­deu min­ha leitu­ra numa sen­ta­da, pois ele rev­ela o quan­to descon­hece­mos as cica­trizes de um dos con­fli­tos mais san­gren­tos da História: o con­fli­to na Bós­nia entre 1992–95.

    Joe Sacco (por Don Usner)
    Joe Sac­co (por Don Usner)

    Com seu tal­en­to volta­do para o jor­nal­is­mo em quadrin­hos, o escritor maltês desven­da o cenário de guer­ra a par­tir de um con­jun­to de lem­branças da sua fonte mais per­ti­nente: o ex-sol­da­do, Neven.

    A par­tir de pequenos paga­men­tos (bebidas, almoços) a Neven, Sac­co é fis­ga­do para visu­alizar uma memória san­grenta, mar­ca­do por gru­pos para­mil­itares que coman­davam o con­fli­to na Bós­nia, for­ma­do por ex-pre­sidiários, mer­cenários, artis­tas e qual­quer um que deci­da lutar por Sara­je­vo “livre”.

    Neven é seu guia, um com­pan­heiro fun­da­men­tal: “Enten­da, estou vul­neráv­el. É uma guer­ra pelo amor de Deus, e ago­ra que eu me envolvi nela pre­ciso de um ombro ami­go (…), alguém que me car­regue suave­mente pelas ruínas”.

    Através da rigidez típi­ca do seu traço em p&b, somos lev­a­dos a um uni­ver­so com­ple­ta­mente descon­heci­do aos oci­den­tais (leitores da impren­sa ofi­cial), no qual o sig­nifi­ca­do da vida perde o val­or em nome da “limpeza étni­ca”, chamus­ca­da por uma com­plexa teia envol­ven­do religião, geopolíti­ca, intri­gas e morte.

    Seu quadrin­ho-doc­u­men­tário nar­ra o proces­so de desin­te­gração da Iugoslávia (1991), enquan­to “na Bós­nia, a repúbli­ca de maior mis­tu­ra étni­ca, tudo parece estar em paz na cap­i­tal Sara­je­vo, enquan­to políti­cos nacional­is­tas sérvios debatem acalo­rada­mente o futuro da ter­ra que divi­dem”. Com o pós-guer­ra fria e o des­man­te­lo da URSS, novos inter­ess­es geopolíti­cos con­fig­u­ram-se, prin­ci­pal­mente a eman­ci­pação de país­es antes vin­cu­la­dos ao gigante soviéti­co. Na Bós­nia, a situ­ação não foi diferente.

    Trecho de "Uma História de Sarajevo"
    Tre­cho de “Uma História de Sarajevo”

    Nesse sen­ti­do, Neven faz um retra­to da frag­men­tação a par­tir da for­mação de gru­pos arma­dos que bus­cam impedir o cer­co a Sara­je­vo pelos sérvios e croatas. No con­jun­to de sol­da­dos ded­i­ca­dos ao con­fli­to, os eixos nar­ra­tivos prin­ci­pais cir­cu­lam nas exper­iên­cias mil­itares como Ismet Bajramovic, Jusuf Praz­i­na, Musan Tapalovic e Ramiz Delal­ic, e seus pequenos impérios de sangue. Vale a pena fris­ar que não há didatismo na obra, aqui você não vai “apren­der” sobre o con­fli­to na Bós­nia, mas sim mer­gul­har nos seus destroços.

    Ao tran­si­tar por estes líderes, Neven rela­ta uma história até então pouco con­heci­da sobre o con­fli­to, da ascen­são dos gru­pos para­mil­itares, as atro­ci­dades cometi­das aos civis, o impacto políti­co que tais “exérci­tos” provo­caram na esfera políti­ca nacional até seu enfraque­c­i­men­to total, após a Bós­nia neu­tralizar suas zonas de atu­ação “ile­gais”.

    Página da HQ
    Pági­na da HQ

    Neven declara que “começam a se acu­mu­lar provas com­pro­m­ete­do­ras con­tra out­ros sen­hores da guer­ra (…) incluin­do o assas­si­na­to de cidadãos, em espe­cial sérvios (…) os anti­gos heróis de Sara­je­vo não serão per­doa­d­os. Eles ameaçaram a autori­dade do gov­er­no em casa e o enver­gonharam fora dela”.

    Como con­fi­ar em Neven? Que lim­ites Sac­co esta­b­ele­ceu para con­stru­ir uma ponte entre a amizade e a con­fi­ança entre os dois? Afi­nal, o que este con­fli­to rep­re­sen­ta para nós? Para Bruno Gar­cia, “con­trar­ian­do o bom sen­so, o con­fli­to com­ple­ta [22] anos sendo melan­col­i­ca­mente igno­ra­do pela impren­sa inter­na­cional, que parece já ter extraí­do do even­to tudo que era pos­sív­el para vender jornais”.

    A con­tribuição de Sac­co para ilu­mi­nar nos­sos olhares para o Out­ro reforça o abis­mo cri­a­do pelos oci­den­tais, diante de con­fli­tos expos­tos nos tele­jor­nais na hora do jan­tar. Até quan­do não vamos enx­er­gar as crises inter­na­cionais como algo que nos afe­ta dire­ta­mente? Inspi­ra­do em Edward Said, seria o Ori­ente um mito Oci­den­tal? Até quan­do as bom­bas vão explodir em nos­sa indifer­ença? Joe Sac­co, com “Uma História de Sara­je­vo”, provo­ca e atiça com o obje­ti­vo de reti­rar o leitor do lugar comum.

  • O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    O mistério das bolas de gude, de Gilberto Dimenstein | Livro

    Se a dor da invis­i­bil­i­dade está por trás de uma doença social, parte da cura está em tornar-se visível.

    o-misterio-das-bolas-de-gude-de-gilberto-dimenstein-livro-capaO tre­cho aci­ma dá a tôni­ca do livro “O mis­tério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis” (edi­to­ra Papirus, 2006, págs. 192), escrito pelo jor­nal­ista Gilber­to Dimen­stein, con­heci­do por atu­ar em impor­tantes veícu­los de comu­ni­cação brasileiros e ide­alizar pro­je­tos soci­ais e cul­tur­ais, den­tre eles o Cidade Esco­la Apren­diz e o site cul­tur­al Catra­ca Livre. Fin­ca­da em inves­ti­gações jor­nalís­ti­cas e reg­istros de via­gens, orde­na­dos como um diário pes­soal, a obra per­corre o uni­ver­so de seres humanos mar­gin­al­iza­dos, rejeita­dos e excluí­dos da teia social. O jor­nal­ista faz emer­gir a dolorosa sobre­vivên­cia de home­ns, mul­heres e cri­anças que, igno­ra­dos e evi­ta­dos por uma sociedade cega e can­cerí­ge­na, não se sen­tem parte do mun­do, mem­bros efe­tivos de um lugar.

    Entre os excluí­dos estão pros­ti­tu­tas, vici­a­dos, traf­i­cantes, mães ado­les­centes, meni­nos de rua, cri­anças explo­radas e escrav­izadas sex­ual­mente, por­ta­dores do vírus HIV e chefes de facções crim­i­nosas. Por meio da nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, inter­cal­a­da pelas vozes das per­son­agens de cada história verídi­ca, acom­pan­hamos relatos que chocam, depoi­men­tos que machu­cam e dados estatís­ti­cos espan­tosa­mente reais.

    Gilber­to Dimen­stein fala sobre os para­dox­os encon­tra­dos nas mais difer­entes regiões brasileiras, onde bol­sões de mis­éria con­trastam com man­sões sun­tu­osas. Se de um lado, meni­nas são obri­gadas a leiloar sua vir­gin­dade para con­tin­uarem vivas, no out­ro extremo há fil­hos de lat­i­fundiários dis­pos­tos a pagar peso de ouro para “desvir­ginar” cri­anças de doze anos. Enquan­to pes­soas vivem em meio a restos de comi­da, excre­men­tos e dro­gas, com­ple­ta­mente entor­peci­das pelo uso do nar­cóti­co, a força poli­cial espan­ca, hos­tiliza e mata.

    Gilberto Dimenstein
    Gilber­to Dimenstein

    Os exem­p­los de desre­speito e invis­i­bil­i­dade são muitos: cri­anças escrav­izadas para o mer­ca­do do sexo, ado­les­centes jura­dos de morte por chefes do trá­fi­co, bebês espan­ca­dos até a morte por pais dese­qui­li­bra­dos, inter­nos tor­tu­ra­dos den­tro de insti­tu­ições repres­so­ras, por­ta­dores da AIDS trata­dos com pre­con­ceito e aver­são. Essas são algu­mas das real­i­dades descorti­nadas pelo jor­nal­ista, mostran­do que por trás das fachadas mega­lo­manía­cas da famosa Aveni­da Paulista, local­iza­da na maior metró­pole brasileira, escon­dem-se histórias de indi­ví­du­os que há muito tem­po esque­ce­r­am-se de sua condição de pes­soa humana, ten­do o dire­ito à cidada­nia cotid­i­ana­mente usurpado.

    No entan­to, ao lado da tragé­dia, Dimen­stein tam­bém abor­da as “pontes de resistên­cia” cri­adas por pes­soas cujo obje­ti­vo é trans­for­mar a injus­ta e depri­mente real­i­dade em algo mel­hor. Ten­do como armas a per­sistên­cia, teimosia e amor ao próx­i­mo, vol­un­tários se reúnem doan­do tem­po e recur­sos para mudar a vida de out­ras pes­soas. O livro elen­ca exem­p­los de pro­je­tos que nasce­r­am den­tro de fave­las, orga­ni­za­ções não gov­er­na­men­tais de apoio as mais vari­adas causas, cidadãos anôn­i­mos que não esper­aram finan­cia­men­to gov­er­na­men­tal para inve­stir em jovens e ado­les­centes em situ­ações de risco social, entre muitos outros.

    Gilberto Dimenstein
    O autor

    A arte, a músi­ca, a poe­sia, a edu­cação e o tra­bal­ho se trans­for­mam em refú­gio, pro­por­cio­nan­do reflexão e mudança. Se, como propõe a obra de Gilber­to Dimen­stein, a vio­lên­cia está dire­ta­mente lig­a­da à sen­sação de mar­gin­al­i­dade e invis­i­bil­i­dade, esse é o pon­to de par­ti­da para a mudança que faz nascer o sen­ti­men­to de pertença e recon­hec­i­men­to do out­ro como ser humano, que par­til­ha dos mes­mos dire­itos e deveres. A coop­er­ação faz parte do desen­volvi­men­to humano e social, equi­li­bran­do e pro­por­cio­nan­do condições justas.

    O mis­tério das bolas de gude” esboça novas rotas e pro­postas para a recon­quista da cidada­nia, bem tão caro para pes­soas em situ­ação de risco, além de traz­er à tona temas del­i­ca­dos e necessários. O livro peca pelo deslum­bra­men­to inocente que Gilber­to Dimen­stein apre­sen­ta ao escr­ev­er sobre os exem­p­los de suces­so norte-amer­i­canos – obser­va­dos no perío­do em que o jor­nal­ista foi cor­re­spon­dente do jor­nal Fol­ha de São Paulo em Nova York –, bem como a ausên­cia de críti­cas às práti­cas nada igual­itárias de insti­tu­ições e gru­pos brasileiros que detém o poder e manip­u­lam o apar­el­ho estatal; organ­is­mos estes que finan­ciam o trá­fi­co, explo­ram a mão de obra tra­bal­hado­ra e fecham os olhos para todos aque­les que não fazem parte da engrenagem impos­ta, trans­for­man­do o que está fora do jogo em meras peças invisíveis.

  • Por Dentro do Máscara de Ferro, de Bernardo Aurélio | HQ

    Por Dentro do Máscara de Ferro, de Bernardo Aurélio | HQ

    Será que temos de ser loucos para ser­mos heróis? Será que todos não usamos máscaras?

    Não, aqui você não encon­tra ninguém vesti­do com roupas super-col­ori­das, poderes daque­les que soltam fogo pela boca, raios pelos olhos, muito menos lutas core­ografadas. O tra­bal­ho do quadrin­ista e artic­u­lador cul­tur­al — isso, artic­u­lador: pro­du­tor de ambi­entes cul­tur­ais na área das HQs em Teresina, o que fal­ta a muitos cri­adores hoje em dia — Bernar­do Aurélio pas­sa longe das explosões gra­tu­itas dos nos­sos ama­dos heróis impe­ri­al­is­tas, mas com uma influên­cia fun­da­men­tal no seu proces­so criativo.

    por-dentro-do-mascara-de-ferro-de-bernardo-aurelio-hq-capaAntes de falar de “Por Den­tro do Más­cara de Fer­ro”, vale a pena situ­ar a importân­cia do autor na cena das HQs na cidade. Autor de “Foic­es e Facões – A Batal­ha do Jeni­pa­po” (jun­to com Caio Oliveira, seu irmão e artista dos bons, que par­tic­i­pa do livro como desen­hista con­vi­da­do), Bernar­do faz parte do Núcleo de Quadrin­hos do Piauí, onde orga­ni­za (ao lado de uma equipe muito coer­ente) feiras temáti­cas em Teresina des­de 2001 até então, movi­men­tan­do o cir­cuito dos quadrin­hos inde­pen­dentes por aqui com mui­ta responsabilidade.

    O culpo diari­a­mente por me tornar um apaixon­a­do pelos quadrin­hos há quase um ano. Depois da indi­cação de “Bat­man: Ano Um” não con­si­go parar de ler HQs. Enfim, vamos voltar ao que interessa!

    Por Den­tro do Más­cara de Fer­ro” é um livro que te atrai fisi­ca­mente. Grande, ver­mel­ho, com uma capa impos­sív­el de resi­s­tir à leitu­ra, gos­toso de segu­rar e car­regar por aí. Um difer­en­cial que gostei foi o cruza­men­to com out­ras lin­gua­gens, mar­ca­dos pela inserção do tex­to em prosa no iní­cio da história, seguin­do com seus traços em p&b, bem como a pre­ocu­pação com a pais­agem sono­ra nos momen­tos mais impor­tantes da saga. Músi­ca e HQ tran­si­tam no mes­mo espaço.

    Já no índice, Bernar­do lança para o leitor uma tril­ha indi­ca­da, pre­scrição sono­ra que des­obe­de­ci — quan­do come­cei a ler, veio out­ro barul­ho na min­ha cabeça, já que na min­ha con­strução sono­ra do per­son­agem cou­ber­am out­ros sons, como Ten Years After e alguns momen­tos de Neil Young — para exper­i­men­tar out­ras pos­si­bil­i­dades de leitu­ra e exer­cí­cios par­tic­u­lares de imaginação.

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    A cada situ­ação valiosa na tra­ma, Bernar­do faz as indi­cações sono­ras apare­cerem ao leitor, como podemos visu­alizar em Aceleran­do em mar­cha ré, com a tril­ha “Foi tudo cul­pa do amor”, de Odair José ou “As rosas não falam”, de Car­to­la, e out­ras sequên­cias musi­cais artic­u­ladas ao enre­do. Assim, Bernar­do abre espaço para ampli­ar as sen­sações do públi­co, tor­nan­do seu tra­bal­ho mais sonoro-visu­al-pop-exper­i­men­tal. Um jogo de mix­agem que deve ser feito tan­to com as músi­cas sug­eri­das e as que com­põem o uni­ver­so do leitor, sacud­in­do as exper­iên­cias do personagem.

    Numa ofic­i­na de car­ros, o jovem mecâni­co ten­ta recu­per­ar o motor de um Mav­er­ick (entra o som de Alvin Lee e Ten Years After… viu? Não pude evi­tar). Neste cenário é que a história do Más­cara ini­cia em tex­to-prosa. Sua mente está divi­di­da entre o fim de um rela­ciona­men­to e o tra­bal­ho que o con­some, a roti­na, a repetição, a von­tade de mudar o per­cur­so: “ten­ho pen­sa­do em ten­tar coisa nova (…). O prob­le­ma é esse: não sei o que quero. Só sei que pre­ciso sair dessa ofic­i­na vez ou out­ra (…)”.

    Uma inqui­etação move aque­le mecâni­co, algo esta­va fora do lugar. A oper­ação de reviv­er o Mav­er­ick foi um fra­cas­so. Fecham-se as por­tas da ofic­i­na. A pais­agem fica cada vez mais notur­na e úmi­da. Um leve chu­vis­co, daque­les leves e demor­a­dos, com relâm­pa­gos e tro­vões ao fun­do. Nos­so olho está do lado de fora da garagem aparente­mente vazia e triste, esperan­do algo acon­te­cer, pois dá pra ver lá den­tro que a luz está acesa.

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    A garagem abre. Dois faróis acen­dem (…). A Kom­bi gan­ha a rua. Den­tro dele, pela primeira vez, a alma de um aven­tureiro encon­tra aque­le botão de adren­a­li­na escon­di­do, que inje­ta bati­das fortes no peito”. Eis que explode o Más­cara de Fer­ro.

    Car­ac­ter­i­za­do por uma más­cara típi­ca dos sol­dadores, car­regan­do no seu “cin­to de util­i­dades” um maçari­co, umas chaves de boca e roda, marte­lo, pre­gos, por­cas, um cano e o “anti­go 38 do meu vel­ho pai”, o Más­cara de Fer­ro sai em bus­ca de aven­turas nas noites de Teresina.

    Entre ações frustradas como “super-herói” da noite e explo­rações das suas habil­i­dades, o Más­cara abre para nós uma reflexão que move sua cam­in­ha­da: “Será que temos de ser loucos para ser­mos heróis? Será que todos não usamos más­caras?

    por-dentro-do-mascara-de-ferro-de-bernardo-aurelio-hq-3E assim, vamos acom­pan­han­do o proces­so de autode­scober­ta do Más­cara. Após a cômi­ca “car­ga dramáti­ca” que movi­men­ta a per­for­mance do nos­so herói, ele salta pelo ar e viven­cia um con­jun­to de exper­iên­cias fun­da­men­tais para reor­ga­ni­zar seus sen­ti­men­tos, mes­mo em con­fli­to com seu mel­hor ami­go: “Algu­ma vez, da altura dess­es teus vinte e poucos anos, tu já sen­tiu uma maldita certeza de que que­ria faz­er algu­ma coisa na vida e que só o que te impe­dia era tu mes­mo?

    Cam­in­han­do por Teresina (já escu­ra), ele vai em direção aos seus fan­tas­mas, pois a sua más­cara é o instru­men­to que poten­cial­iza todas as suas von­tades mais sec­re­tas, ago­ra com­par­til­hadas entre nós. É aí que fui imag­i­nan­do os traços auto­bi­ográ­fi­cos em con­vergên­cia entre Más­cara e seu autor, que o toma como ele­men­to para explo­rar pais­agens talvez inabitadas, se não hou­vesse a armadu­ra con­struí­da para tal.

    A bus­ca por justiça, ameaça­da por um dese­jo mal com­preen­di­do? A angús­tia e a von­tade de invadir os olhos da anti­ga ama­da? Uma curiosi­dade insis­tente pela feli­ci­dade dela? Por que tomar os olhos dos out­ros? “Você ain­da não con­seguiu colo­car uma pedra por cima dis­so”? Estaria o Más­cara, (como todos nós) bus­can­do uma armadu­ra para resolver seus con­fli­tos mais ínti­mos? Quan­tas Kás­sias pre­cisamos (diari­a­mente) para exor­cizar nos­sos demônios, a fim de rein­ven­tar a noção de dese­jo e todo aque­le pó que cobre nos­sas taras? Aqui entra Mari­na Lima (na min­ha tril­ha sono­ra), situan­do o amor dos dois: “Os dois cansa­dos, de tan­to amar, empapuça­dos, pra poder fugir, os dois cansa­dos, de via­jar, mar­avil­ha­dos, pra poder fugir, enquan­to você se afas­ta me desen­ter­ro…”.

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    Nada como a água para purificar os con­fli­tos inter­nos, mes­mo com Deus cus­pin­do ver­dades que a gente não quer ouvir. Às vezes a gente toma o apren­diza­do como algo doloroso e é dessa for­ma que vejo o Más­cara, um per­son­agem que car­rega a von­tade de des­bravar todos os seus lim­ites e de con­hecer esferas que fogem das con­venções esta­b­ele­ci­das. Como invadir sem pro­teção? Como não sen­tir dor se algu­mas explo­rações podem nos cus­tar um preço alto?

    Todos os des­bravadores da vida, seja por meio líc­i­to ou não, guardam nas mochi­las suas más­caras de fer­ro, pois o cor­po não supor­ta todas as pressões: “somos tão falíveis”!

    Sen­ta­do na calça­da, con­ver­san­do com uma garo­ta per­to da Ponte Metáli­ca, talvez o Más­cara ten­ha encon­tra­do algum estil­haço que pos­sa ser útil para aliviar seus con­fli­tos. “Sabe o que acon­tece quan­do se pede algo a Deus? Ele te dá a opor­tu­nidade de provar para si mes­mo se você merece o que quer… depende mais de você e das suas escol­has do que da von­tade dele”.

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    Os demônios que o cer­cam são expul­sos para que um Amor pos­sa entrar. O Más­cara enfrenta todos os seus inimi­gos inte­ri­ores, amplia todos os seus hor­i­zontes de exper­iên­cia, para final­mente com­ple­tar seu obje­ti­vo mais impor­tante: se reen­con­trar a par­tir do outro.

    Bernar­do é o Más­cara de Fer­ro? E você? Aonde você esconde a sua? Já explodiu em si mes­mo para arran­car as armaduras que o impe­dem de viv­er um grande amor? Não seria a nos­sa más­cara um artefa­to moral­ista-con­ser­vador diante da mar­avil­hosa pos­si­bil­i­dade de tran­si­tar pelo Infer­no e por vários cor­pos ofer­e­ci­dos por Dino Buz­za­ti? A difer­ença entre Más­cara e Orfi é que aque­le não usa vio­lão para lutar con­tra seus maus espíri­tos, mas con­vergem no mes­mo “inven­tário de ‘baix­ezas’ e de ‘nobrezas’, aque­las que se abrigam no coração de todos” (TOSCANI, Cláudio).

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    Orfi sofre o luto de não cap­turar Eura e o Más­cara vive feliz, jogan­do fora sua armadu­ra para poder (final­mente) olhar sem medo para a mul­her que ama, encer­ran­do uma saga inte­ri­or, pois “pou­cas coisas no mun­do devem ser como estar no fun­do da rede com quem você quer”. A vida segue.

  • Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    Boneco de Neve, de Jo Nesbø | Livro

    boneco-de-neve-de-jo-nesbo-livro-capaUm trau­ma emo­cional é o tipo de veneno com grande con­cen­tração de sub­stân­cias mortíferas. Agin­do inter­na­mente e induzin­do a um grande sofri­men­to, o trau­ma quase sem­pre vem acom­pan­hado de esta­dos físi­cos ou psíquicos lesion­a­dos pelo tem­po e pelas vivên­cias neg­a­ti­vas acu­mu­ladas. Sor­rateira­mente, ele vai crescen­do em dimen­sões e poder destru­ti­vo, e tal qual uma epi­demia, é difí­cil extirpá-lo.

    Retal­hos de difer­entes trau­mas com­põem a obra “Boneco de Neve” (orig­i­nal Snø­man­nen, tradução de Grete Ske­vik, edi­to­ra Record, 2013, págs. 420), séti­mo livro da série “inspetor Har­ry Hole”, tra­bal­ho do escritor, músi­co e econ­o­mista norueguês Jo Nes­bø. Acla­ma­do na Europa e em fran­ca ascen­são pelo mun­do, Nes­bø já vendeu mais de 20 mil­hões de livros, con­qui­s­tan­do o Prêmio Glass Key como mel­hor romance nórdi­co de 1998.

    Na obra “Boneco de Neve”, o ter­ror psi­cológi­co dos thrillers poli­ci­ais lança­dos pelo autor norueguês retor­na com força total, per­son­ifi­ca­do ago­ra pela pre­sença do assas­si­no em série que, antes de sumir com as víti­mas, deixa um “sim­páti­co” bonequin­ho feito de gelo em frente ao local em que comete os seque­stros. O lunáti­co cos­tu­ma atacar sem­pre quan­do cai a primeira neve do ano, agin­do den­tro de um padrão. Desco­brir que tipo de lin­ha de ação e quais são os mod­e­los (e seg­re­dos) que ori­en­tam o ser­i­al killer é tare­fa do prob­lemáti­co inspetor Har­ry Hole.

    Mar­ca­do pelas trág­i­cas lem­branças de um pas­sa­do tumul­tua­do, Hole amar­ga o rompi­men­to de um rela­ciona­men­to, a morte de ami­gos em mis­são, o defin­hamen­to da mãe em um leito de hos­pi­tal, além de situ­ações famil­iares com­pli­cadas e a dependên­cia do álcool. Quan­do donas de casa começam a desa­pare­cer mis­te­riosa­mente, com a pos­te­ri­or des­o­va de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o trauma­ti­za­do inspetor começa a medir pis­tas, con­tan­do com a aju­da da poli­cial Katrine Bratt, recém-integra­da à cor­po­ração em que Har­ry é lotado.

    Jo Nesbø por Cato Lein
    Jo Nes­bø por Cato Lein

    A tra­ma é estru­tu­ra­da com idas e vin­das na ordem cronológ­i­ca, além de digressões dos per­son­agens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A nar­ra­ti­va é inten­sa, reple­ta de picos de ten­são, mis­tu­ran­do ele­men­tos macabros e per­tur­badores, mas sem apelar para a escat­olo­gia vis­cer­al de livros como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, de Bret Eas­t­on Ellis. O grande trun­fo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enig­ma ao desafi­ar a per­cepção do leitor; a todo o momen­to, o sen­so de obser­vação é colo­ca­do à pro­va, pois cada detal­he rev­ela mais – ou menos – do que aparenta.

    Con­fes­so que antes de começar a leitu­ra, subes­timei o emble­ma do boneco de neve como assi­natu­ra de um assas­si­no per­ver­so. Lig­a­da à figu­ra do ‘homem de gelo’ como metá­fo­ra natali­na próx­i­ma do uni­ver­so infan­til, não con­segui perce­ber de ime­di­a­to que nes­sa escol­ha tam­bém reside uma pista impor­tante. De obje­to lúdi­co à mar­ca de crime, a imagem do boneco atrav­es­sa cic­los difer­entes, que aju­dam a com­preen­der um pouco do uni­ver­so que o autor apresentou.

    O autor por Niklas R. Lello
    O autor por Niklas R. Lello

    Seguin­do o rit­mo frenéti­co da obra, deslum­brei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e con­tin­u­assem em mar­cha, afi­nal, são 420 pági­nas vorazes. Inter­es­sante notar que a descrição físi­ca do poli­cial Har­ry Hole me fez supor que a per­son­agem pode se tratar de um alter ego de Jo Nes­bø, pois as asso­ci­ações são ime­di­atas. Fora isso, Nes­bø criou uma espé­cie de “cer­tidão pes­soal e profis­sion­al” para o pro­tag­o­nista de suas séries, com dire­ito a descrições de per­son­al­i­dade, cur­ricu­lum vitae, inter­ess­es, ambições e planos futur­os. Gostei de desco­brir que estou lig­a­da ao dete­tive ator­men­ta­do pelo gos­to musi­cal (Sex Pis­tols e Neil Young) e pela ambição pes­soal, que con­siste em enten­der o que é a mal­dade e o amor.

    Com­para­do pelo jor­nal britâni­co The Sun­day Times ao influ­ente “O silên­cio dos inocentes”, do escritor Thomas Har­ris, a carnific­i­na silen­ciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a pen­e­trar em uma ver­são mod­er­na do mitológi­co labir­in­to de Déda­lo, onde uma besta movi­da por emoções humanas seques­tra e aniquila suas víti­mas, deixan­do um ras­tro silen­cioso de ter­ror. Jo Nes­bø cati­va o leitor ao traz­er o dia­bóli­co e a redenção lado a lado, em capí­tu­los que pul­sam, dilatam e escon­dem. Uma dica pre­ciosa: este­ja aten­to aos mín­i­mos detal­h­es e sím­bo­los espal­ha­dos em toda a nar­ra­ti­va. Como escreveu o dra­matur­go William Shake­speare na peça “Mac­beth”: “Pelo comichar do meu pole­gar, sei que deste lado vem vin­do um malvado”.

    Assista o book trail­er sen­sa­cional do livro (ver­são do Reino Unido):

  • Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Mistérios da Literatura, de Daniel Piza

    Foto: Damião A. Francisco
    Foto: Damião A. Francisco

    Em arti­go pub­li­ca­do em uma reno­ma­da revista cul­tur­al brasileira, o jor­nal­ista Daniel Piza escreveu sobre a influên­cia da leitu­ra na vivên­cia dos per­son­agens literários, crian­do ou destru­in­do deter­mi­na­dos mod­e­los com­por­ta­men­tais e proces­sos de sig­nifi­cação. Piza desta­cou a pre­sença dos livros na trans­for­mação e no des­ti­no de pro­tag­o­nistas famosos, como Emma Bovary (Madame Bovary, romance do francês Gus­tave Flaubert), Dom Quixote (per­son­agem do livro homôn­i­mo escrito por Miguel de Cer­vantes), Ham­let (cul­tua­da peça de Shake­speare) e Julien Sorel (O Ver­mel­ho e o Negro, de Stend­hal). Os exem­p­los são muitos.

    Em toda a história da lit­er­atu­ra, exis­tem per­son­agens for­t­ale­ci­dos e meta­mor­fos­ea­d­os por meio do encon­tro lib­er­ta­dor com a leitu­ra, peça-chave na mudança de vida e con­sciên­cia. Como desta­cou Piza, são as palavras vivas dos fol­hetins român­ti­cos que fazem Emma Bovary, por exem­p­lo, detes­tar a “existên­cia pela metade” que tem ao lado do frígi­do mari­do; as nov­e­las de cav­alar­ia encon­tradas em Amadís de Gaula são respon­sáveis por Dom Quixote, fidal­go son­hador, enveredar pela lou­cu­ra fan­ta­siosa com o intu­ito de viv­er uma existên­cia com sen­ti­do, por mais para­dox­al que isso pos­sa soar quan­do se tra­ta das aven­turas imag­inárias do cav­aleiro visionário e de seu fiel escud­eiro San­cho Pança.

    Ao escr­ev­er esse arti­go, Daniel Piza não pode­ria imag­i­nar que ele próprio se tornar­ia um per­son­agem-leitor com­ple­to e inspi­rador. Nem mes­mo a morte — que o arran­cou pre­co­ce­mente do con­vívio neste plano, em dezem­bro de 2011, aos 41 anos -, foi capaz de ter força sufi­ciente para retirá-lo da lem­brança de todos os que o amam e o admi­ram. E acred­i­to que ela nun­ca encon­tre espaço para exercer esse poder, tal é a grandeza da con­tribuição do jor­nal­ista para o uni­ver­so cul­tur­al. Daniel foi pro­lí­fi­co em todas as ativi­dades que se propôs a realizar, sejam elas suas pro­duções jor­nalís­ti­cas, a pub­li­cação de seus 17 livros em ape­nas duas décadas de car­reira, traduções e incon­táveis pesquisas. A enorme capaci­dade de praticar todas as for­mas de tex­to jor­nalís­ti­co (entre­vista, reportagem, críti­ca, crôni­ca, ensaio, polêmi­ca) e de optar pela inde­pendên­cia do espíri­to são alguns dos atrib­u­tos que o man­tém per­to do coração saudoso de seus leitores.

    2005 - Mistérios da LiteraturaComi­go não é difer­ente. Com o pas­sar do tem­po, sin­to ain­da mais fal­ta das ideias e opiniões expres­sas por Daniel nas col­u­nas diárias e sem­anais, assim como na anti­ga ansiedade que eu nutria sem­pre que o lança­men­to de um novo livro do jor­nal­ista era anun­ci­a­do. Diante dessa ausên­cia, bus­co alter­na­ti­vas humana­mente pos­síveis para vis­i­tar e revis­i­tar o uni­ver­so cri­a­do por Piza. Entre as opções deix­adas pelo escritor e jor­nal­ista, escol­hi “traz­er para per­to” o livro “Mis­térios da Lit­er­atu­ra: Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad, 2005, pág.119), um tra­bal­ho que une reflexão e impressão sen­so­r­i­al, lin­guagem téc­ni­ca e memo­ri­al­is­mo. Divi­di­do em qua­tro capí­tu­los, o autor reg­is­tra nos títu­los de aber­tu­ra a essên­cia do que o leitor pode encon­trar em cada fase: os choques de con­sciên­cia e descober­ta impul­sion­a­dos pela leitu­ra de Edgar Allan Poe na ado­lescên­cia; a con­fusão men­tal e as desilusões humanas que começam a ser exper­i­men­tadas na fase juve­nil, tam­bém perce­bidas nos per­son­agens de Macha­do de Assis; os grandes riscos e escol­has obser­va­dos por Joseph Con­rad, sen­ti­dos na pele quan­do as respon­s­abil­i­dades e decisões batem à por­ta, e o eter­no uni­ver­so de incertezas que é a vida, uma solução mila­grosa que nun­ca chega, como bem refletiu Franz Kaf­ka em seus textos.

    A escol­ha dos qua­tro escritores uni­ver­sais não foi fei­ta de modo aleatório; lendo o livro de Daniel Piza, percebe­mos a conexão exis­tente entre os ideais que começavam a se for­mar no ado­les­cente que desco­briu o mun­do aos poucos, lev­an­tan­do questões sobre tudo o que insti­ga­va sua curiosi­dade ou o inco­mo­da­va. Assim como os per­son­agens clás­si­cos da lit­er­atu­ra, o jor­nal­ista e escritor paulis­tano perce­bia a leitu­ra como uma aven­tu­ra desafi­ado­ra onde podem ser descorti­nadas as “pos­si­bil­i­dades de lib­er­tação”. Daniel traçou muitos cam­in­hos e, cer­ta­mente, desco­briria out­ros tan­tos se tivesse tido tempo.

    Foto: Grupo Estadão
    Foto: Grupo Estadão

    No capí­tu­lo sobre Poe, o jor­nal­ista relem­bra momen­tos da sua infân­cia ao assi­s­tir os reg­istros guarda­dos em rolos de filme Super‑8, pos­te­ri­or­mente con­ver­tidos em DVD. Tais momen­tos são um autên­ti­co baú de tesouros famil­iar, lem­bra­do por Daniel com muito car­in­ho. Caçu­la em uma família de qua­tro irmãos, o jor­nal­ista cita as brin­cadeiras, peladas, aniver­sários, tem­po­radas na pra­ia, via­gens e fes­tas jun­i­nas vivi­das ao lado dos irmãos Sér­gio, Rena­to e Paulo. A infân­cia é lem­bra­da como uma fase doce, sem prob­le­mas ou amar­guras, reple­ta de inocên­cia e descober­tas, e que por isso mes­mo é difí­cil de aban­donar. O começo da ado­lescên­cia colo­ca todas as mar­avil­has por ter­ra, rev­e­lando um mun­do descon­heci­do e som­brio, tal qual a obra de Poe.

    Daniel faz demor­a­da refer­ên­cia ao con­to Ligéia, pub­li­ca­do no livro “Histórias Extra­ordinárias”, e que o colo­ca em con­ta­to com espi­rais inten­sas de dese­jos, con­hec­i­men­to e emoção, sen­ti­men­tos que cos­tu­mam aflo­rar com ener­gia arrebata­do­ra nos ado­les­centes. Desen­vol­ven­do a capaci­dade de faz­er refer­ên­cias e esmi­uçar com refi­na­men­to detal­h­es téc­ni­cos, o escritor paulis­tano acres­cen­ta­va com­bustív­el à sede de ampli­ar a con­sciên­cia para o que lhe provo­ca­va a per­cepção e os sen­ti­dos. É tam­bém nesse capí­tu­lo que o leitor tem mais con­ta­to com a vida par­tic­u­lar de Daniel, seja por meio de acon­tec­i­men­tos felizes da infân­cia, como o bife de carne moí­da à milane­sa da avó Tone­ta, ou nas primeiras ten­sões, como a descober­ta da miopia.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Pâni­co Band — Podcast

    Já no capí­tu­lo ref­er­ente a Macha­do de Assis, escritor que Piza admi­ra­va e de quem se tornou bió­grafo, os dile­mas da fase juve­nil têm iní­cio. Ao lado do mun­do de obri­gações que começa a despon­tar, o autor faz menção às questões lev­an­tadas por Macha­do através de seus per­son­agens, per­di­dos em relações de enfrenta­men­to, ilusões de grandeza e inter­ess­es dis­farça­dos. O encan­ta­men­to com Macha­do acon­te­ceu por con­ta de uma desven­tu­ra: em 1986, Daniel foi atro­pela­do, e durante as sessões de fisioter­apia esbar­rou em “Quin­cas Bor­ba”. A par­tir desse momen­to, uma “lon­ga amizade uni­lat­er­al” começou a sur­gir. Piza parece ter apren­di­do com Macha­do de Assis que as más­caras caem e que o com­por­ta­men­to humano é mais difu­so e com­plexo do que pode­ria supor a nos­sa vã filosofia, como sen­ten­ciou Shake­speare em “Ham­let” e nos lem­brou Macha­do no con­to “A Cartomante”.

    É tam­bém nes­sas digressões “piza-macha­di­anas” onde des­cubro uma par­tic­u­lar­i­dade do jor­nal­ista que o aprox­i­ma da min­ha vivên­cia. Assim como Piza, ini­ciei o cur­so de Dire­ito esperan­do encon­trar algo que me com­ple­tasse, mas o que real­mente achei foi um rede­moin­ho de decepções. As min­u­tas de con­tra­to, as papeladas e leg­is­lações me asfix­i­avam, não dan­do espaço algum para a verve literária que tra­go flame­jante den­tro do peito. Desse modo, qual­quer bro­car­do jurídi­co pode­ria ser capaz de me matar.

    Daniel tomou out­ro cam­in­ho: encer­rou o cur­so e optou por procu­rar espaço den­tro do jor­nal­is­mo, que se rev­el­ou sua ver­dadeira paixão. No meu caso, a situ­ação já era de vida ou morte, então deci­di aban­donar os proces­sos e seguir a min­ha car­reira jor­nalís­ti­ca como profis­são diplo­ma­da. Con­fes­so que me emo­cionei bas­tante ao notar essa, den­tre out­ras, sim­i­lar­i­dades com o jor­nal­ista e escritor que mais admiro. Out­ro gos­to com­par­til­ha­do é o con­cor­ri­do pebolim, em que gastei horas dos meus recreios esco­lares pegan­do fila no salão de jogos do colé­gio para dis­putar uma par­ti­da. Em um vídeo com­par­til­ha­do pela fil­ha mais vel­ha de Daniel Piza, Letí­cia, em uma fan­page do face­book, o jor­nal­ista tira de letra o pebolim ao dis­putar uma par­ti­da com out­ros profis­sion­ais do Estadão, veícu­lo em que tra­bal­ha­va quan­do faleceu.

    Foto: Pânico Band - Podcast
    Foto: Dulce Helfer/Agência RBS

    Jun­to com o risco de viv­er, Daniel encon­trou nas nar­ra­ti­vas de Con­rad um espel­ho que ofer­ece muito mais do que reflexo, e sim uma eter­na bus­ca por cam­in­hos que não podem ser manip­u­la­dos, mas, ao con­trário, são vivi­dos no lim­ite. As refer­ên­cias aos livros “Coração das Trevas” e “Lord Jim” revisi­tam o tema do homem e sua natureza sel­vagem, um instin­to colo­ca­do à pro­va quan­do os extremos da cobrança físi­ca e emo­cional nos empurram em cima de cor­das bam­bas sem rede de pro­teção. Piza se detém em Con­rad jus­ta­mente pelo risco, pela procu­ra do descon­heci­do que parece sem­pre ter povoa­do a mente e o coração do jor­nal­ista. Nesse capí­tu­lo, Daniel fala do encan­to inesquecív­el de algu­mas das muitas via­gens que fez, rela­tan­do as sen­sações des­per­tadas, além de traz­er à tona a per­cepção da viagem como um pro­je­to, um ato com final­i­dades além do pas­seio e do tur­is­mo, e sim como opor­tu­nidade de conhecimento.

    A “fuga de olhos aber­tos” acon­tece quan­do percebe­mos o grande espaço de incertezas em que vive­mos, onde place­bos per­manecem dis­farça­dos de antí­do­tos mila­grosos. Ess­es pen­sa­men­tos emergem na pre­sença de Franz Kaf­ka e no modo per­tur­bador como o tcheco se rela­cio­nou com Piza por meio de obras como “Car­ta ao Pai”, “A Meta­mor­fose”, “Nar­ra­ti­vas do Espólio”, “O Silên­cio das Sereias”, “O Pião”, “O Proces­so” e “O Caste­lo”. Nesse painel de ideias, percebe­mos como Daniel encon­tra ressonân­cia na rup­tura pro­pos­ta por Kaf­ka no que diz respeito a sep­a­ração entre racional e irra­cional. Uti­lizan­do um aforis­mo de primeira ordem escrito por Daniel, “quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. A real­i­dade é um mosaico de roti­nas, cos­tumes fab­ri­ca­dos con­scien­te­mente e repas­sa­dos de for­ma incon­sciente. Por isso mes­mo, for­ma um abis­mo pro­fun­do e perigoso. Ao ter­mi­nar de ler o capí­tu­lo, lem­brei da poe­sia que o rus­so Vladimir Maiakóvs­ki dedi­cou ao poeta Sier­guei Ies­siênin, que come­teu suicí­dio em 1925, na qual as letras finais falam: “É pre­ciso arran­car ale­gria ao futuro. Nes­ta vida mor­rer não é difí­cil. O difí­cil é a vida e seu ofício”.

    Foto: Daniel Deak
    Foto: Daniel Deak

    No final do livro, Daniel expõe um “Guia de Leitu­ra”, com indi­cações pre­ciosas de autores, livros e refer­ên­cias. Por sinal, no decor­rer de toda a obra, o leitor tem uma ampla lista de recomen­dações imperdíveis e cuida­dosa­mente pesquisadas. Tudo refletindo o esti­lo renascen­tista, de múlti­p­los inter­ess­es e curiosi­dades que fez de Daniel Piza um nome eterniza­do e desta­ca­do no jor­nal­is­mo brasileiro.

    Como leito­ra e admi­rado­ra, ler “Mis­térios da Lit­er­atu­ra” me deixou mais próx­i­ma do ser humano fan­tás­ti­co que foi Daniel Piza. Com o livro, con­segui me aprox­i­mar mais dos anseios que dom­i­naram a infân­cia, ado­lescên­cia e idade adul­ta do jor­nal­ista, desco­brindo semel­hanças com min­has próprias vivên­cias. Ness­es dois anos de ausên­cia, Daniel nun­ca deixou de inspi­rar a descober­ta de novas ideias, e toda vez que pen­so em cul­tura e arte, levo em con­ta o que acabei apren­den­do com ele por meio de uma “amizade uni­lat­er­al” (ter­mo que Piza usou ao falar do rela­ciona­men­to que travou com Macha­do de Assis através de sua obra). Aos 26 anos, amadureço dia após dias as min­has per­cepções, a capaci­dade de ler o mun­do alian­do inspi­ração e ques­tion­a­men­to, racional­i­dade e o sen­ti­men­to de ter meu coração saltan­do nas veias quan­do me deparo com um quadro de Leonid Afre­mov e Leonor Fini, ou com as com­posições de Erik Satie e do grupo The xx, ou ain­da quan­do leio Poe, Macha­do, Con­rad, Kaf­ka e out­ros muitos autores. Den­tre eles, aque­le que pas­sou os 41 anos da vida bus­can­do faz­er uma existên­cia de inde­pendên­cia de espírito.

    Se optar­mos por con­tar o tem­po da vida em ter­mos de anos, e não de qual­i­dade e de exper­iên­cias, Daniel Piza viveu pouco, pouquís­si­mo. Mas se olhar­mos pelo lado da pro­fun­di­dade e da inten­si­dade, Daniel fez cada segun­do da vida valer a pena; para si e para os outros.

  • Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    Abaixo de Zero, de Bret Easton Ellis | Livro

    You and I are under­dosed and we’re ready to fall. Raised to be stu­pid, taught to be noth­ing at all. I don’t like the drugs but the drugs like me. (…) There’s a hole in our soul that we fill with dope. And we’re feel­ing fine”.

    (Você e eu esta­mos dopa­dos, e nós esta­mos pron­tos para cair. Cri­a­dos para ser­mos estúpi­dos, ensi­na­dos a não ser nada. Eu não gos­to das dro­gas, mas elas gostam de mim. (…) Há um bura­co em nos­sas almas que preenchemos com dro­gas, e nós esta­mos nos sentin­do bem – tradução livre).

    O tre­cho aci­ma per­tence à músi­ca “I don’t like the drugs (But the drugs like me)”, lança­da pela ban­da Mar­i­lyn Man­son no álbum “Mechan­i­cal Ani­mals” (1998). O vocal­ista e per­former norte-amer­i­cano Bri­an Warn­er, con­heci­do mundial­mente pelo pseudôn­i­mo que deu nome à ban­da, car­rega nas costas inúmeras polêmi­cas e escân­da­los, dos quais se desta­cam o uso abu­si­vo de dro­gas, per­for­mances de pal­co con­sid­er­adas insól­i­tas, além de ter tido seu nome asso­ci­a­do ao Mas­sacre de Columbine, uma das mais ter­ríveis tragé­dias envol­ven­do ado­les­centes e assas­si­na­to nos Esta­dos Unidos.

    Marilyn Manson (Brian Warner)
    Mar­i­lyn Man­son (Bri­an Warner)

    No álbum “Mechan­i­cal Ani­mals”, Mar­i­lyn Man­son fala aber­ta­mente sobre a degradação de uma sociedade vazia, nar­co­ti­za­da e mecan­iza­da, onde só há lugar para “sis­temas ner­vosos desati­va­dos” (Dis­as­so­cia­tive) e “pílu­las para entor­pecer, embur­recer e trans­for­mar você em out­ra pes­soa” (Coma White). Em 1985, treze anos antes do polêmi­co e pre­mi­a­do álbum de Man­son dividir opiniões, o escritor Bret Eas­t­on Ellis pub­li­ca­va Abaixo de Zero (orig­i­nal Less than Zero), seu livro de estreia. Assim como “Mechan­i­cal Ani­mals”, a obra de Eas­t­on Ellis foi igual­mente cer­ca­da por con­tro­vér­sias ao traz­er de for­ma crua e dire­ta o retra­to dete­ri­o­ra­do da ger­ação dos anos 80, afun­da­da em um mun­do onde fama, pornografia, dro­gas e crimes refletem a iden­ti­dade (ou a fal­ta dela) de jovens e adolescentes.

    Capa do livro pela editora L&PM
    Capa do livro pela edi­to­ra L&PM

    A nar­ra­ti­va começa com o retorno de Clay, pro­tag­o­nista da tra­ma, à casa dos pais em Los Ange­les para pas­sar o perío­do de férias da fac­ul­dade. Na vol­ta ao lar, Clay reen­con­tra os vel­hos ami­gos do colé­gio, assim como sua ex-namora­da, Blair. Todos eles têm em comum vidas super­fi­ci­ais, con­tro­ladas pela fal­sa ilusão de poder e, espe­cial­mente, pelo uso abu­si­vo de nar­cóti­cos. Clay vive em uma casa sem afe­to, sem saber dire­ito difer­en­ciar as irmãs pelo nome (ado­les­centes que con­somem cocaí­na sem o menor con­strang­i­men­to), cujos pais não pos­suem nen­hum sen­so de respon­s­abil­i­dade e com­pro­mis­so. Julian, um dos ami­gos mais próx­i­mos de Clay, entra no uni­ver­so da pros­ti­tu­ição mas­culi­na para man­ter o vício das dro­gas; Blair bus­ca refú­gio na bebi­da, e as demais com­pan­hias de Clay são com­postas por garo­tas bulími­cas, rapazes que banal­izam o ato sex­u­al, transformando‑o em um mero “por que não?”, além de vici­a­dos e traficantes.

    Inseri­das nesse meio, estão famílias despedaças, pais e mães atuan­do dire­ta­mente no show busi­ness hol­ly­wood­i­ano, mas sem saber como lidar com os próprios fil­hos – e sem o menor inter­esse em apren­der. Enquan­to isso, a dro­ga, o sexo e o din­heiro fácil roubam a tutela e dire­cionam a vida dess­es “fil­hos do vazio”, sem per­spec­ti­vas ou son­hos. Se a juven­tude é acla­ma­da como a fase das con­quis­tas e a luta por uma existên­cia com propósi­to, a ger­ação de Bret Eas­t­on Ellis gri­tou para ser sauda­da pela incon­se­quên­cia, alien­ação, pas­sivi­dade, pelo “desa­pareça aqui”. O enre­do de Abaixo de Zero (tradução de Rick Good­win, edi­to­ra L&PM em parce­ria com a edi­to­ra Roc­co, 2011, pág. 176) rev­ela mentes arru­inadas e cam­in­hos per­di­dos em uma nar­ra­ti­va inter­romp­i­da por flux­os de con­sciên­cia, memórias e lap­sos. O leitor exper­i­men­ta a pos­si­bil­i­dade de entrar na cabeça de Clay, sentin­do, obser­van­do e viven­do como se estivesse exata­mente na pele do pro­tag­o­nista. Essa téc­ni­ca pode ser encon­tra­da em out­ras obras de Eas­t­on Ellis, como “O Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, que tam­bém abor­da, de for­ma incom­par­a­vel­mente vis­cer­al, o fun­do do poço da ger­ação per­di­da. As cica­trizes da época juve­nil con­ce­dem ao tra­bal­ho do escritor norte-amer­i­cano um tom quase biográ­fi­co, con­fes­sa­do por ele em entre­vista ao site Sab­o­tage Times, em que afir­ma ter sido Patrick Bate­man, pro­tag­o­nista do livro “O Psi­co­pa­ta Americano”.

    Christian Bale em "Psicopata Americano", dirigido por Mary Harron
    Chris­t­ian Bale em “Psi­co­pa­ta Amer­i­cano”, dirigi­do por Mary Harron

    Lev­a­do para as telonas, Abaixo de Zero foi estre­la­do por Andrew McCarthy, Robert Downey Jr. e James Spad­er, inter­pre­tan­do respec­ti­va­mente Clay, Julian e Rip. Ape­sar das polêmi­cas ini­ci­adas logo no primeiro romance, Bret Eas­t­on Ellis estende a temáti­ca e aler­ta para o prob­le­ma cen­tral do con­sumo desen­f­rea­do de dro­gas, soma­do à decadên­cia e o vazio exis­ten­cial do ser humano.

    Poster do filme dirigido por Marek Kanievska
    Poster do filme dirigi­do por Marek Kanievska

    A real­i­dade descri­ta nas obras de Bret Ellis em mea­d­os dos anos 80 não está tão dis­tante do cenário brasileiro encon­tra­do, por exem­p­lo, nas fes­tas regadas à bebidas, sexo bara­to e dro­gas, cap­i­taneadas por jovens da classe média alta em ambi­entes par­adis­ía­cos. Enquan­to o dese­jo de cur­tir a vida alcança o sta­tus de “feli­ci­dade supre­ma”, lema espal­ha­do por cam­pan­has pub­lic­itárias, pro­gra­mas e nov­e­las, o Brasil con­tabi­liza o infe­liz número de 370 mil usuários reg­u­lares de crack nas cap­i­tais de seus estados.

    Para quem ain­da ousa diz­er que “real­i­dade e ficção não se mis­tu­ram”, sugiro lig­ar a tele­visão em qual­quer canal, aces­sar a inter­net ou sin­tonizar a emis­so­ra de rádio. Dis­farçadas e ráp­i­das, elas estarão lá, em diver­sas cores, for­matos e taman­hos. Inúmeras promes­sas de ele­vação e pop­u­lar­iza­ção. O ciclo do vazio con­tin­ua e, como enlouquece Mar­i­lyn Man­son na músi­ca “The Dope Show”: “Eles te amam quan­do você está em todas as capas. Quan­do você não está, eles amam outro”.

  • Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

    Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

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    Capa do livro pela Com­pan­hia das Letras

    Nos últi­mos meses, o mun­do tem con­heci­do o poder da mobi­liza­ção pop­u­lar na Turquia, onde protestos reuni­ram quase 2,5 mil­hões de pes­soas. As cidades de Istam­bul e Ancara, esta últi­ma a cap­i­tal do país, con­cen­tram o maior número de atos de protesto con­tra o gov­er­no vigente. No Brasil, a situ­ação não tem sido difer­ente e, à semel­hança do que vêm acon­te­cen­do na Turquia, os movi­men­tos pop­u­lares estão sendo dura­mente reprim­i­dos por gov­er­nos autoritários e coercitivos.

    Antes dess­es impor­tantes acon­tec­i­men­tos soci­ais e políti­cos, a grande maio­r­ia dos brasileiros teve o primeiro con­ta­to com a cul­tura tur­ca através da afe­ta­da nov­ela glob­al Salve Jorge, com suas dançari­nas de olhos mar­ca­dos, cenários hiper­boli­ca­mente exóti­cos e uma pop­u­lação “arabesca”, bem ao gos­to dos fetich­es oci­den­tais. Diminuir a importân­cia de uma cul­tura transformando‑a em pro­du­to das indús­trias cul­tur­ais tem sido uma práti­ca incan­sáv­el de veícu­los de entreten­i­men­to e comu­ni­cação, bem como de insti­tu­ições sacra­men­tadas, que usam tudo o que podem para angari­ar lucros e difundir ideologias.

    Feliz­mente, não foi dessa vez que eu despen­quei no abis­mo desse esque­ma, pois meu inter­esse pela cul­tura tur­ca remete aos meus treze anos de idade, quan­do escutei pela primeira vez a músi­ca “Şımarık”, do can­tor e per­former Tarkan. De lá para cá, ten­ho sido guia­da por uma espé­cie de “mão invisív­el do des­ti­no” para tudo o que faz refer­ên­cia à Turquia: fiz grandes ami­gos em Istam­bul, Ancara, İzmir e Amas­ra, come­cei a apren­der a lín­gua do país e procu­rar por escritores, poet­as e músi­cos tur­cos. Foi assim que me deparei com Istam­bul – Memória e Cidade (orig­i­nal İst­anb­ul: Hatıralar ve Şehir), exten­so romance memo­ri­al­ista de Orhan Pamuk, primeiro escritor tur­co a rece­ber o Prêmio Nobel de Lit­er­atu­ra (ano de 2006). A edi­to­ra Com­pan­hia das Letras lançou a pub­li­cação brasileira em 2007, com tradução de Ser­gio Flaks­man e basea­da na tradução ingle­sa da obra, assi­na­da por Mau­reen Freely.

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    Orhan Pamuk

    As memórias auto­bi­ográ­fi­cas de Orhan Pamuk se mis­tu­ram a relatos de via­jantes oci­den­tais famosos, escritores tur­cos imer­sos em ruí­nas e tris­tezas e acon­tec­i­men­tos que mar­caram para sem­pre o coração da cidade mais famosa da Turquia. O livro é um apan­hado detal­ha­do da vida em Istam­bul com todas as suas belezas e decadên­cias, onde as ruas estão cer­cadas pelas man­sões dos anti­gos paxás, com­ple­ta­mente destruí­das pelo fogo e pelo tem­po; famílias ric­as dese­jam a qual­quer cus­to osten­tar uma imagem oci­den­tal­iza­da, desprezan­do tudo o que faz refer­ên­cia ao império otomano ou às tradições ori­en­tais. Entre citações de escritores tur­cos como Yahya Kemal, Reşat Ekrem Koçu, Ahmet Ham­di Tan­pı­nar e Ahmet Rasim, famosos por descreverem detal­h­es que até mes­mo uma boa parte dos “Istan­bul­lus” descon­hece, o pre­mi­a­do memo­ri­al­ista dá ao leitor um panora­ma ger­al da cidade que o viu nascer e crescer, capaz tam­bém de des­per­tar sen­ti­men­tos contraditórios.

    Orhan Pamuk nasceu em 1952, den­tro de uma família bur­gue­sa que entra­va grada­ti­va­mente em ruí­na finan­ceira. Jun­to com seu irmão mais vel­ho, Orhan cresceu rodea­do por par­entes e pela pre­sença autoritária da avó pater­na. Ape­sar das inten­sas dis­putas inter­nas pela posse de pro­priedades e bens, tios, tias, mães, pais, irmãos, sobrin­hos e avó se reu­ni­am na mesa de jan­tar e sus­ten­tavam as aparên­cias. Segun­do descrição con­ti­da no livro, esse tipo de com­por­ta­men­to inco­mo­da­va o escritor des­de pequeno, mas só ao pon­to de não inter­ferir em seu próprio mun­do. As brigas ger­adas no seio do Edifí­cio Pamuk trazi­am à tona a real­i­dade de uma sociedade des­gas­ta­da, arru­ina­da pelas mudanças que se oper­avam na ten­ta­ti­va de apa­gar o pas­sa­do, impon­do uma vida oci­den­tal­iza­da para esque­cer as ori­gens. A família Pamuk não era reli­giosa e não fix­a­va seus princí­pios em segui­men­tos tradi­cionais de obe­diên­cia cega, o que deixou espaço para um desen­volvi­men­to int­elec­tu­al e pes­soal maior. Orhan e seu irmão vivi­am no con­for­to de car­ros impor­ta­dos, esco­las caras e pas­seios famil­iares ao Bós­foro, desta­ca­do pelo autor como parte cen­tral da vida de qual­quer habi­tante de Istambul.

    Pintura de Melling, do livro "Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore"
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    O livro vem reple­to de fotografias em pre­to e bran­co – exata­mente como o autor con­cebe a cidade -, além de traz­er um min­u­cioso tra­bal­ho de pesquisa. Para falar a ver­dade, Orhan Pamuk colo­ca para fora toda a obsessão de memo­ri­al­ista que o persegue, com 408 pági­nas de uma trav­es­sia lenta, melancóli­ca e silen­ciosa, escri­ta em tons de cin­za. Para o “olhar oci­den­tal”, é inter­es­sante con­hecer as impressões que o fab­u­loso pin­tor Antoine Ignace Melling teve de Istam­bul, através das ima­gens de suas obras repro­duzi­das no livro. Destaque tam­bém para comen­tários de Pamuk aos difer­entes relatos dos france­ses Gerárd de Ner­val, Theóphile Gau­ti­er e Gus­tave Flaubert sobre Istam­bul, influ­en­cian­do dire­ta­mente autores turcos.

    Orhan Pamuk
    Orhan Pamuk

    É inegáv­el a destreza e segu­rança com que Pamuk expõe as nuances que car­ac­ter­i­zam a sua cidade, procu­ran­do faz­er para­le­los com sua vida pes­soal. No decor­rer das pági­nas, o leitor tam­bém se depara com fotos do arqui­vo famil­iar, mostran­do Orhan e seu irmão pequenos, assim como os par­entes em ger­al. Par­tic­u­lar­mente, tive a sen­sação de que as palavras do autor trazem uma car­ga de melan­co­l­ia, con­fir­ma­da ain­da mais pelas fotografias das ruas cinzen­tas, degradadas e pouco ilu­mi­nadas de Istam­bul, assim como pelo triste olhar da mãe de Orhan, mul­her lindís­si­ma e de embaraço melancóli­co, eterniza­do pela imo­bil­i­dade fotográfica.

    Assim como o Brasil tem a palavra “Saudade” como um vocábu­lo úni­co, os “Istan­bul­lus” têm o ter­mo “Hüzün” para definir a inten­sa melan­co­l­ia que sen­tem. A importân­cia dessa palavra é tão grande para enten­der os sig­nifi­ca­dos da cidade que Pamuk dedi­cou um capí­tu­lo inteiro para esmi­uçar as mais difer­entes acepções para o ter­mo. Essa ‘tris­teza’ reflete uma rup­tura, um far­do cul­tur­al enorme, uma exper­iên­cia espir­i­tu­al que ultra­pas­sa o entendi­men­to e se trans­for­ma em poe­sia diária de quem res­pi­ra o ar do Bós­foro e cam­in­ha pelas ruas de casas de madeira queimadas, anti­gas mora­dias de paxás e por vielas que divi­dem lugar com ciprestes e cemitérios.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Istam­bul – Memória e Cidade parece ser uma ten­ta­ti­va de retorno e redenção de Orhan Pamuk, já que o próprio autor viveu momen­tos de con­fli­to e negação com relação à cidade. Seja em meio aos momen­tos da infân­cia, brigas de família, iní­cio da vida esco­lar e, anos mais tarde, entra­da desan­i­ma­da na fac­ul­dade de Arquite­tu­ra, Pamuk mostra o lado que per­tence aos ver­dadeiros nativos da cidade em pre­to e bran­co. No meio de tan­tas lem­branças, há tam­bém os estu­dos que o autor real­i­zou para escr­ev­er o livro, o qual­i­fi­ca­do con­hec­i­men­to históri­co que ele apre­sen­ta, a sua desen­f­rea­da bus­ca por arquiv­os públi­cos e tam­bém a par­til­ha de sen­ti­men­tos que mar­caram a sua vida, como a dolorosa sep­a­ração do ambi­ente famil­iar, quan­do começou a fre­quen­tar o colé­gio; sua neces­si­dade de expressão por meio de desen­hos e pin­turas e o inesquecív­el caso de amor que ele teve com uma garo­ta a quem dele­gou um pseudôn­i­mo curioso (Rosa Negra). Lamen­tavel­mente para o autor – e isso fica bem claro no decor­rer desse capí­tu­lo -, o romance não dá cer­to e a cul­pa recai em cima da opção de Pamuk pela arte.

    Barış Akarsu
    Barış Akar­su

    Min­ha exper­iên­cia com a leitu­ra desse livro foi bas­tante pos­i­ti­va, mas pre­ciso men­cionar a vagarosi­dade na sequên­cia de alguns capí­tu­los, que exigem grande esforço de con­cen­tração por parte do leitor, e tam­bém a lacu­na que sen­ti por não perce­ber nen­hum capí­tu­lo ou comen­tário mais detal­ha­do sobre a pro­dução musi­cal de Istam­bul, tão rica e diver­si­fi­ca­da. A Turquia tem pro­duzi­do os mais vari­a­dos tipos de músi­ca, e eu não pode­ria deixar de enfa­ti­zar o instru­men­tista Hüs­nü Şen­lendiri­ci que, a propósi­to, tem uma com­posição belís­si­ma chama­da  İst­anb­ul İst­anb­ul Olalı, e o fab­u­loso can­tor e per­former Barış Akar­su, vence­dor da série tele­vi­si­va Akade­mi Türkiye (Acad­e­mia Tur­ca), em 2004, com a inter­pre­tação prodi­giosa da músi­ca Islak Islak. Barış tam­bém atu­ou na série Yalancı Yarim (algo como “meu amante men­tiroso” ou ain­da “metade men­tiroso”), atingin­do um suces­so estron­doso até sua morte, aos 28 anos, viti­ma­do por um aci­dente de carro.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Como entu­si­as­ta da pro­dução cul­tur­al da Turquia, e sem esque­cer da importân­cia de Pamuk para a lit­er­atu­ra tur­ca como o autor mais ven­di­do do país, com obras traduzi­das para mais de sessen­ta lín­guas, recomen­do a leitu­ra de Istam­bul – Memória e Cidade porque, muito mais do que uma viagem ao pas­sa­do, essa obra con­strói pontes que, ao invés de dis­tan­cia­rem, aproximam.

  • Folheteen: direto ao ponto | HQ da Semana

    Folheteen: direto ao ponto | HQ da Semana

    folheteen-capaArran­jar um novo emprego, aju­dar a pagar o aluguel e as con­tas da casa, estu­dar pras provas no colé­gio, aceitar o novo namora­do da mãe den­tro da família. Ess­es são os prob­le­mas de Malu.

    Malu não tem super-poderes, não pre­cisa sal­var o mun­do, não teve uma exper­iên­cia traumáti­ca, não vive uma grande história de amor. Ela é a meni­na que te atende no caixa do super­me­r­ca­do, é a meni­na que dis­tribui fol­hetos nos sinais de trânsito.

    Essa é a pro­tag­o­nista do álbum Fol­heteen: dire­to ao pon­to, escrito pelo curitibano José Aguiar. E a cidade de Curiti­ba se faz pre­sente em toda a história, nos detal­h­es dos lam­bre­quins, pré­dios, pon­tos de ônibus. Ain­da assim, não é uma história bair­rista. A moça Malu pode­ria morar em qual­quer cidade. O forte do álbum é essa nar­ra­ti­va despre­ten­siosa e adoráv­el sobre essa meni­na abso­lu­ta­mente comum.

    folheteen-1

    A tra­ma de Fol­heteen começa quan­do a pro­tag­o­nista perde seu emprego no super­me­r­ca­do. A par­tir dis­so, acom­pan­hamos as dúvi­das e pre­ocu­pações de Malu, ten­tan­do aju­dar a man­ter sua casa, equi­li­bran­do estu­dos com sua vida pes­soal. Ela pre­cisa resolver prob­le­mas den­tro de sua família e, prin­ci­pal­mente, prob­le­mas den­tro de si mesma.

    folheteen-2Os per­son­agens no traço de José Aguiar gan­ham uma forte expressão grá­fi­ca em lin­has geométri­c­as e for­mas sim­ples. O esti­lo de desen­ho aju­da na nar­ra­ti­va que flui de maneira nat­ur­al e aumen­ta ain­da mais a sen­sação de “cotid­i­ano”.

    Tra­ta-se de um tra­bal­ho hon­esto, muito bem real­iza­do e cheio de humanidade. O acaba­men­to grá­fi­co do álbum é belís­si­mo e ain­da apre­sen­ta um tex­to sobre a car­reira profis­sion­al do autor e a gênese de sua obra.

    Fol­heteen: dire­to ao pon­to foi lança­do ago­ra, em de jun­ho de 2013, e pode ser encon­tra­do nas livrarias e com­ic shops com preços var­ian­do entre R$40,00 e R$49,00. Você tam­bém pode adquirir um exem­plar dire­to com o autor, auto­grafa­do, pelo e‑mail projeto.quadrinho [arro­ba] gmail [pon­to] com.

    Fol­heteen: dire­to ao ponto
    Autor: José Aguiar
    Edi­to­ra: Quadrinhofilia
    Preço: Entre R$ 40,00 e R$49,00

  • Vertigo Especial: Atire | HQ da Semana

    Vertigo Especial: Atire | HQ da Semana

    Vertigo_Especial_atireLança­da esse mês, essa edição de 232 pági­nas reúne um grande apan­hado de diver­sas histórias pub­li­cadas pelo selo Ver­ti­go, da edi­to­ra norte-amer­i­cana DC Comics. A maio­r­ia são histórias cur­tas, de 8 pági­nas em média, falan­do sobre fan­ta­sia e ficção cien­tí­fi­ca. Mas há aque­las que fogem desse tema.

    Atire é uma delas e recebe grande destaque, sendo capa da edição. A história, pro­tag­on­i­za­da pelo mago John Con­stan­tine, cau­sou mui­ta polêmi­ca. Ela foi com­ple­ta­mente cen­sura­da na época de sua real­iza­ção, em 1999, e só veio a ser pub­li­ca­da em 2010.

    A tra­ma de Atire mostra uma inves­ti­gado­ra do con­gres­so norte-amer­i­cano ten­tan­do com­preen­der o porquê de uma série de matanças que acon­te­ci­am nas esco­las do país. Cri­anças e ado­les­centes que matavam out­ros e se sui­ci­davam. Seria cul­pa de videogames, dro­gas, vio­lên­cia na tv? Durante a inves­ti­gação, a mul­her percebe a pre­sença de Con­stan­tine em muitas fil­ma­gens feitas em cenários de diver­sos crimes. A princí­pio isso levaria o leitor, que acom­pan­ha as histórias do per­son­agem, a imag­i­nar que os assas­si­natos seri­am cau­sa­dos por forças sobre­nat­u­rais. Mas o real moti­vo das mortes que John Con­stan­tine sug­ere é muito mais per­tur­bador e cor­riqueiro. A con­clusão da história é impactante.

    Recorte de uma das páginas de “Atire”
    Recorte de uma das pági­nas de “Atire”

    Atire foi escri­ta e esta­va prestes a ser pub­li­ca­da quan­do acon­te­ceu o mas­sacre em Columbine. A edi­to­ra DC Comics sug­eriu alter­ações na história, que o autor War­ren Ellis não aceitou. Então, a edi­to­ra decid­iu sim­ples­mente não pub­licar e arquiv­ou o mate­r­i­al. Incon­for­ma­do, Ellis demitiu-se.

    Emb­o­ra Atire seja a prin­ci­pal atração, a mel­hor HQ da revista é Mate seu namora­do, um dos roteiros mais inspi­ra­dos e insti­gantes do escocês Grant Mor­ri­son. A mais lon­ga história apre­sen­ta­da nes­sa edição, com 56 pági­nas, Mate seu namora­do não tem nada a ver com fan­ta­sia ou ficção cien­tí­fi­ca. Tra­ta-se de uma tra­ma sobre amor, vio­lên­cia, rebel­dia e ado­lescên­cia, que lem­bra um boca­do filmes como Assas­si­nos por Natureza (1994).

    Recorte de uma das páginas de “Mate seu namorado”
    Recorte de uma das pági­nas de “Mate seu namorado”

    Ver­ti­go Espe­cial: Atire apre­sen­ta diver­sos autores e desen­his­tas reno­ma­dos em suas pági­nas, como Mor­ri­son, Ellis, Bri­an Azzarel­lo, Garth Ennis, Peter Mil­li­gan, Jim Lee, Frank Quite­ly, Bri­an Bol­land, Jeff Lamire, Eduar­do Ris­so e muitos outros.

    Como toda coletânea, há histórias fra­cas, porém a média do mate­r­i­al apre­sen­ta­do é óti­ma. Vale con­ferir com atenção as HQs Par­ceiros, Ultra: o mul­ti­alien, Brin­que­dos Novos, O Kapas… Enfim, tra­ta-se do lança­men­to com a mel­hor relação qualidade/custo do mês.

    Ver­ti­go Espe­cial: Atire
    Autores: diversos
    Edi­to­ra: Panini
    Preço: R$19,90

  • Frequência Global | HQ da Semana

    Frequência Global | HQ da Semana

    encadernado_frequencia-capa1A Fre­quên­cia Glob­al é uma força-tare­fa não gov­er­na­men­tal, inde­pen­dente, com­pos­ta por 1001 agentes. Miran­da Zero, a líder do grupo, e Aleph, a moça que coor­de­na a comu­ni­cação da equipe, são as úni­cas per­son­agens con­stantes nas histórias. O elen­co da equipe prin­ci­pal, assim como os próprios desen­his­tas da série, não se repete nunca.

    A par­tir dessa pre­mis­sa, War­ren Ellis cria 12 episó­dios que podem ser lidos em qual­quer ordem. São histórias fechadas que ver­sam sobre diver­sos temas, anco­ra­dos em ideias con­tem­porâneas sobre sis­temas de infor­mação e tec­nolo­gia. Fre­quên­cia Glob­al lem­bra um pouco o espíri­to do seri­ado Arqui­vo X, com a equipe reunin­do-se para resolver situ­ações extraordinárias.

    Cada caso requer uma habil­i­dade especí­fi­ca e sem­pre há urgên­cia na ação. Assim, uma bom­ba escon­di­da em Lon­dres pede uma espe­cial­ista em le park­our para encon­trá-la a tem­po, uma invasão aliení­ge­na via um vírus cog­ni­ti­vo deve ser com­bat­i­da por uma espe­cial­ista em lin­guís­ti­ca, e por aí vai.

    encadernado_frequencia-1

    Como cada mis­são requer um tipo de agente e não há nec­es­sari­a­mente um pro­tag­o­nista fixo, nun­ca se sabe se o per­son­agem que acom­pan­hamos con­seguirá cumprir sua mis­são ou chegar vivo ao final da história.

    O roteirista Warren Ellis
    O roteirista War­ren Ellis

    Além do rit­mo acel­er­a­do e da ação con­stante, War­ren Ellis enriquece suas tra­mas apre­sen­tan­do con­ceitos tec­nológi­cos insti­gantes e explo­ran­do-os den­tro de uma ficção fantástica.

    A série foi escri­ta entre 2002 e 2004 e muitas das ideias tec­nológ­i­cas abor­dadas por Ellis já não impres­sion­am mais. Ain­da assim, vale acom­pan­har pelos out­ros méri­tos da série, como o roteiro insti­gante e as cria­ti­vas situações.

    encadernado_frequencia-capa2O grande méri­to de Fre­quên­cia Glob­al é a val­oriza­ção do tra­bal­ho cole­ti­vo. É a cole­tivi­dade, a coop­er­ação e a diver­si­dade de seus agentes que per­mite atin­gir soluções para os prob­le­mas mais ter­ríveis e emergenciais.

    Fre­quên­cia Glob­al — Vol­umes 1 e 2
    Autores: War­ren Ellis (roteirista) e diver­sos desenhistas
    Edi­to­ra: Panini.
    Preço: R$ 39,90 (vol­ume 1) e R$42,00 (vol­ume 2)

  • O Inescrito | HQ da Semana

    O Inescrito | HQ da Semana

    O-inescritoEssa história em quadrin­hos mostra um mun­do muito, muito pare­ci­do com o nos­so. A prin­ci­pal difer­ença é que nele o maior best-sell­er de fan­ta­sia não é Har­ry Pot­ter, mas um garo­to bruxo chama­do Tom­my Tay­lor. Ao invés de enfrentar Vold­mort, o inimi­go é Conde Ambró­sio. No lugar de uma coru­ja, temos um gato com asas.

    O autor Wil­son Tay­lor escreveu 13 livros com as aven­turas de Tom­my e então desa­pare­ceu mis­te­riosa­mente. Seu fil­ho, Tom Tay­lor, jamais desco­briu o que acon­te­ceu ao pai. Hoje, Tom gan­ha a vida par­tic­i­pan­do de con­venções, auto­grafan­do pôsteres e livros e tiran­do retratos com a legião de fãs do per­son­agem que inspirou.

    Tudo vai muito bem até que aparece uma moça que ten­ta con­vencer Tom de que ele não é bem quem pen­sa que é.

    Essa é a pre­mis­sa de O Ine­scrito, série de quadrin­hos que começou a ser lança­da no Brasil esse ano e que se encon­tra em seu segun­do vol­ume. Os autores baseiam-se clara­mente na obra de J.K. Rowl­ing, mas com out­ra abor­dagem. Ao invés de falar de mág­i­ca, eles querem falar de lit­er­atu­ra e ficção.

    O-inescrito-2

    O-inescrito-3À medi­da que se acom­pan­ha as aven­turas de Tom Tay­lor, percebe­mos que a história é fan­tás­ti­ca, mas baseia-se na força das ficções, dos per­son­agens inven­ta­dos. Partin­do da pre­mis­sa que algo não pre­cisa ser real para ser ver­dadeiro (e vice-ver­sa), os autores apre­sen­tam uma tra­ma insti­gante onde os mis­térios do des­ti­no de Wil­son Tay­lor, de uma sin­is­tra orga­ni­za­ção sec­re­ta e de um mapa com os locais de livros e ficções se mis­tu­ram e pren­dem a atenção do leitor.

    Além do bom rit­mo e do sus­pense, as refer­ên­cias à lit­er­atu­ra, cul­tura pop e mídias são exce­lentes e dão uma dimen­são dinâmi­ca e extrema­mente con­tem­porânea à história. Vale muito a pena con­hecer e acom­pan­har a tra­jetória do sen­hor Tom Taylor.

    O Ine­scrito
    Autores: Mike Carey (roteiro) e Peter Gross (desen­hos)
    Edi­to­ra Panini
    Preço: R$ 18,90

  • A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A_morte_de_Ivan_Ilitch-capaPre­sença fan­tas­magóri­ca, som­bria, temi­da. Uma car­i­catu­ra de dentes amare­los e ros­to esquáli­do, que vaga pelas noites de tem­pes­tade. Vul­to den­tro de um quar­to escuro, com forte aro­ma de velas mis­tu­ra­do com cipreste e crisân­te­mo, avoluman­do lágri­mas ind­is­farçáveis. Não impor­ta a imagem ou descrição atribuí­da, a morte é uma das obsessões do homem tan­to quan­to a von­tade de saber sobre o iní­cio da existên­cia e seu elo perdido.

    No entan­to, falar sobre o assun­to ain­da con­sti­tui tabu para diver­sas sociedades, rep­re­sen­tan­do con­teú­do a ser evi­ta­do para que a ale­gria de viv­er não se dis­sol­va em ques­tion­a­men­tos sem retorno. Porém, cam­in­han­do do lado opos­to dessa ideia dom­i­nante, o escritor rus­so Liev Niko­laievitch Tol­stói não tin­ha o menor receio em tratar sobre temas que envolvessem a câmara mor­tuária e o pon­to final da exper­iên­cia humana. Nasci­do na sun­tu­osa residên­cia de Yas­naya-Polyana em 1828, o conde Liev Tol­stói teve pen­sa­men­tos con­trários aos dos mem­bros de sua posição social, ques­tio­nan­do-se durante toda a vida sobre a ide­olo­gia que man­tém a estrat­i­fi­cação pre­sente entre ricos e pobres, trans­for­man­do a orga­ni­za­ção da sociedade em um ver­dadeiro abis­mo. As ideias do escritor tam­bém con­trastavam com o pen­sa­men­to reli­gioso, políti­co, artís­ti­co e social da época, reg­istro evi­dente em quase toda a sua obra. Da sua exten­sa ativi­dade int­elec­tu­al, tornaram-se sinôn­i­mos de clás­si­co os romances Guer­ra e Paz e Ana Karên­i­na, e a nov­ela A morte de Ivan Ilitch, con­sid­er­a­da por muitos críti­cos como a pri­ma-dona do gênero na lit­er­atu­ra mundi­al. A edição lança­da pela L&PM Pock­et em 1997, traduzi­da por Ver­am Karam, gan­hado­ra do prêmio Aço­ri­anos de Tradução, foi reim­pres­sa em 2010, pos­si­bil­i­tan­do que a con­sagra­da nov­ela de Tol­stói con­tin­u­asse chegan­do às mãos de novos leitores.

    Pub­li­ca­da em 1886, A morte de Ivan Ilitch é fru­to dos últi­mos anos de vida de Tol­stói, que mor­reu aos 82 anos de idade na estação fer­roviária de Astapo­vo. Naque­la ocasião, o romancista tin­ha fugi­do de casa para iso­lar-se em um mosteiro, pois esta­va imer­so em uma fase de reclusão volta­da para a natureza e con­tem­plação reli­giosa, ati­tude que seguia à rev­elia de famil­iares e ami­gos. Em 1883, o escritor Ivan Tur­guêniev, ami­go ínti­mo de Liev Tol­stói, chegou a lhe escr­ev­er uma der­radeira car­ta dire­ta­mente do seu leito de morte, pedin­do que o ami­go voltasse para a lit­er­atu­ra. Moti­va­do por esse pedi­do ou não, Tol­stói retornou com a história do buro­cra­ta Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viv­er e nem mor­rer, mas ten­tou encon­trar respostas para a morte durante o lon­go proces­so de ago­nia que enfrentou.

    Foto do autor Leo Tolstoy
    Foto do autor Leo Tolstoy

    A nar­ra­ti­va começa pelo final, no pré­dio do Tri­bunal de Justiça em que Ivan Ilitch tra­bal­ha­va e onde sua morte foi comen­ta­da pelos seus cole­gas de tra­bal­ho e cartea­do. Ao invés de con­dolên­cias sin­ceras, os com­pan­heiros dis­cu­ti­am trans­fer­ên­cias e pro­moções de car­gos, vis­to que uma das vagas esta­va em aber­to. Com essa sutileza, Tol­stói per­corre o mun­do mesquin­ho de home­ns e mul­heres sem iden­ti­dade ou con­sciên­cia, cuja per­son­al­i­dade varia de acor­do com inter­ess­es ou posições. Pes­soas para quem a morte é pre­rrog­a­ti­va do viz­in­ho, con­sti­tuin­do-se em real­i­dade dis­tante de suas sossegadas existên­cias. Antes de ser viti­ma­do pela tene­brosa mor­tal­ha, Ivan Ilitch viveu como todos os seus con­frades: fil­ho de ofi­cial lota­do em car­gos e depar­ta­men­tos por puro aper­to de mãos, Ivan cresceu saben­do que seu des­ti­no seria seguir car­reira em órgão públi­co, pulan­do de setor em setor mes­mo que não tivesse a menor aptidão para isso. O que real­mente impor­ta­va eram as lig­ações políti­cas e soci­ais que con­seguiria travar ao lon­go da vida, lega­do que seu pai tra­tou de iniciar.

    Depois de se for­mar em Dire­ito, Ivan Ilitch par­tiu para uma das provín­cias rus­sas para assumir o pos­to de secretário par­tic­u­lar e emis­sário do gov­er­nador, pre­sente dado pelo pai. Essas “entradas pela janela”, práti­ca igual­mente comum na história brasileira, eram o úni­co mun­do que o jovem buro­cra­ta con­hecia. Homem de ambições baseadas no lucro e na imi­tação da elite, Ivan seguia à risca o pro­to­co­lo lança­do por seus supe­ri­ores e pela alta-sociedade, fre­quen­tan­do ambi­entes pom­posos, humil­han­do sub­al­ter­nos, sus­ten­tan­do a máx­i­ma de que “ordens são ordens” e, prin­ci­pal­mente, aper­feiçoan­do-se na arte da bajulação.

    Retrato de Tolstói por Ilya Efimovich Repin (1844-1930).
    Retra­to de Tol­stói por Ilya Efi­movich Repin.

    Esse esti­lo de vida basea­do em más­caras per­sis­tiu até mes­mo no casa­men­to, moti­va­do por beleza e con­veniên­cia, rene­gan­do o amor ao últi­mo plano. Ape­sar das histórias român­ti­cas que ali­men­ta­ram os sécu­los pas­sa­dos, a ideia do amor esta­va longe da alco­va de muitos casais, pois ain­da no sécu­lo XIX pre­domi­na­va o casa­men­to jus­ti­fi­ca­do por acor­dos e tro­ca de van­ta­gens entre as famílias. O buro­cra­ta Ivan Ilitch não fugiu à regra e mer­gul­hou de cabeça em um rela­ciona­men­to que só trouxe amar­guras, recla­mações e cobranças. Casa­do com Praskovya Fiodor­ov­na, mul­her dita de boa família, mas super­fi­cial e rabu­gen­ta, Ivan detes­ta­va o matrimônio e o con­ce­bia como um abis­mo sem fim, razão pela qual vivia enfur­na­do no tra­bal­ho. Nesse ele­men­to, percebe-se a críti­ca de Tol­stói con­tra a hipocrisia dos casa­men­tos sem amor, dese­jo ou respeito, práti­ca comum à época.

    Anos des­gas­tantes se pas­saram e em uma de suas mudanças de car­go e casa, Ivan Ilitch sofreu um aci­dente caseiro, baten­do a região dos rins. No começo, a dor local­iza­da e o gos­to amar­go na boca não impres­sion­aram o buro­cra­ta. Somente depois, com a inten­si­fi­cação da sen­sação penosa, Ivan notou que algo anda­va muito mal. Procu­ran­do diver­sos médi­cos e espe­cial­is­tas, que nada diziam de útil ou váli­do, Ivan teve que encar­ar seu pesade­lo real: a aprox­i­mação da morte. O caráter do rus­so, ante­ri­or­mente mas­cara­do pelas obri­gações soci­ais, perde a camu­flagem e começa a sofr­er alter­ações. A super­fi­cial­i­dade dá lugar a uma dis­tân­cia fria, vio­len­ta, reple­ta de angús­tias e sen­ti­men­tos que tran­scen­dem o próprio Ivan Ilitch. O medo da morte ator­men­ta o con­fi­ante buro­cra­ta, que só encon­tra con­for­to na pre­sença de Geras­sim, empre­ga­do de mod­os serenos e com­por­ta­men­to honesto.

    Durante a ago­nia de Ilitch, Tol­stói faz com que o leitor se aprox­ime do sofri­men­to, do sen­ti­men­to desagradáv­el – e evi­ta­do a todo cus­to – de recon­hecer sua fini­tude, de que um dia irá deixar de exi­s­tir como matéria, aniqui­lan­do tudo o que con­hece. Escri­ta de for­ma sim­ples, sem rodeios, A morte de Ivan Ilitch pos­si­bili­ta o ques­tion­a­men­to de decisões e for­mas com as quais a vida é con­duzi­da. Adi­anta ir emb­o­ra sem levar nada ver­dadeira­mente nos­so? A posição social e a com­ple­ta indifer­ença em relação ao mun­do valem mais a pena do que o amor aos nos­sos pares, a par­til­ha, a igual­dade e out­ros sen­ti­men­tos que deix­am mar­cas? Essas são ape­nas duas das inúmeras reflexões que a obra suscita.

    Quadro “The Garden of Death”, do artista nórdico Hugo Simberg
    Quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Simberg

    Ivan Ilitch, um homem medíocre que acred­i­ta­va viv­er uma vida digna porque repro­duzia leis e aten­dia aos padrões da elite, um indi­ví­duo sem pen­sa­men­tos próprios, for­ma­do pelas ideias dos out­ros, teve como auge da vida o perío­do em que ficou doente ter­mi­nal e “tin­ha de viv­er à beira do pre­cipí­cio, soz­in­ho, sem uma alma que o enten­desse e dele tivesse com­paixão”. Ivan, dono de uma existên­cia sem raízes, encon­trou na mor­tal­i­dade o medo que elu­ci­da, o pâni­co que força a que­da do véu da ignorân­cia. Se a morte age silen­ciosa­mente e traz no ros­to o hor­ror sem gri­tos do quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Sim­berg, Tol­stói deu ao mun­do, na for­ma da história comum de um fun­cionário públi­co insignif­i­cante, a biografia de uma humanidade doente, metódi­ca e con­ge­la­da; a história de ani­mais mecâni­cos que só acor­dam com o sus­sur­ro que os leva embora.

  • Homem-Aranha 2099 | HQ da Semana

    Homem-Aranha 2099 | HQ da Semana

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    Edição lança­da pela Panini

    No começo da déca­da de 1990 a edi­to­ra Mar­vel ten­tou lançar uma nova ver­são de alguns de seus per­son­agens mais pop­u­lares. Imag­i­nan­do um mun­do futur­ista, cheio de ele­men­tos tec­nológi­cos de ficção cien­tí­fi­ca e uma sociedade com um forte lega­do cul­tur­al dos super-heróis, o selo “2099” chegou às ban­cas com qua­tro títu­los apre­sen­tan­do ver­sões do Jus­ti­ceiro, Dr. Des­ti­no e Homem-Aran­ha. O quar­to títu­lo era um per­son­agem inédi­to chama­do Rav­age. Mais tarde, diver­sos out­ros per­son­agens entraram para o uni­ver­so 2099: X‑Men, Hulk, Moto­queiro Fantasma.

    Essas ver­sões futur­is­tas foram pub­li­cadas nos Esta­dos Unidos entre 1993 e 1996. No Brasil, a série fez bas­tante suces­so. Den­tre todos os títu­los, o mais pop­u­lar era o Homem-Aran­ha. Mas ele não tin­ha muito a ver com o Peter Park­er que con­hece­mos hoje. Em 2099, o Homem-Aran­ha era um cien­tista, empre­ga­do de uma grande cor­po­ração, chama­do Miguel O’Hara. Geneticista, ele se inspi­ra no herói dos nos­sos dias para cri­ar um novo tipo de ser humano, capaz de escalar pare­des e dar saltos de 15 metros.

    homemaranha2099-1 Como toda boa história de super-herói, O’Hara é víti­ma de um aci­dente no lab­o­ratório que, ao invés de matá-lo, lhe con­fere super­poderes. Esse Homem-Aran­ha do futuro pos­sui gar­ras nas pon­tas dos dedos e com elas é capaz de escalar pare­des, além de ras­gar inimi­gos. Tam­bém é capaz de pro­duzir organi­ca­mente a própria teia, pro­duz veneno, é sen­sív­el à luz. Enfim, é muito mais “aran­ha” do que o Homem-Aran­ha atual.

    O grande atra­ti­vo desse gibi é o roteiro de Peter David. Ele cria uma sequên­cia de histórias alu­ci­nante, onde o pobre Miguel O’Hara vai sain­do de uma encren­ca para entrar em out­ra pior ain­da num rit­mo frenéti­co. Mas o mel­hor são os diál­o­gos. Peter David dá a Miguel O’Hara um sen­so de humor sen­sa­cional, mor­daz, cíni­co. É difí­cil não rir ao ler as histórias. Além dis­so, o roteirista tam­bém não leva a sério a história como um todo: sem­pre há espaço para uma pia­da, para uma brin­cadeira ou uma situ­ação engraçada.

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    Homem-Aran­ha 2099 é lança­do como encader­na­da, que reúne as 10 primeiras histórias do per­son­agem pub­li­cadas em 1993 e 1994. É boa, despre­ten­siosa e pura diversão.

    Homem-Aran­ha 2099
    Autores: Peter David (roteiro) e Rick Leonar­di (arte)
    Edi­to­ra: Panini.
    Preço esti­ma­do: R$ 22,90

  • O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    O Hóspede de Drácula, de Bram Stoker | E‑Book

    Capa da versão lançada pela editora DarkSide
    Capa do e‑book lança­do pela edi­to­ra DarkSide

    Drácu­la, per­son­agem da lit­er­atu­ra de hor­ror cri­a­do pelo irlandês Bram Stok­er, tem o poder de dom­i­nar ger­ações inteiras. A estória do sug­ador de sangue demonía­co e sedu­tor, que se ali­men­ta da vida – e con­se­quente­mente da alma – de suas víti­mas, surgiu por meio dos pesade­los de Bram Stok­er, gan­han­do cor­po em 1897. A inspi­ração do romancista tam­bém veio das pesquisas que real­iza­va sobre a vida do príncipe Vlad III da Valáquia, região da Romê­nia. Con­heci­do como “O Empal­ador”, Vlad III era extrema­mente temi­do pelo sadis­mo e carnific­i­na com o qual trata­va inimi­gos e pri­sioneiros, impon­do punições cruéis. Segun­do a len­da, o príncipe romeno se deli­ci­a­va ao ver os cor­pos dos inimi­gos empal­a­dos em esta­cas ver­tendo sangue.

     

    Retrato de Vlad III, datado por volta de 1560
    Retra­to de Vlad III, data­do por vol­ta de 1560

    Mas nem só de biografias e mitos vivia o cri­ador de Drácu­la. As nar­ra­ti­vas que envolvem vam­piros remon­tam à tradição oral de povos da antigu­idade, mas só gan­haram espaço na lit­er­atu­ra em mea­d­os do sécu­lo XIX. Antes de Bram Stok­er, os escritores Sheri­dan Le Fanu (1814 – 1873) e John Poli­dori (1795 – 1821) já havi­am abor­da­do a temáti­ca do vam­piro em suas obras, mas a con­sagração só viria com Drácu­la. Ape­sar do suces­so do livro, Bram Stok­er con­tin­u­ou viven­do sem muitos alardes até sua morte, em 1912, aos 65 anos. Dois anos depois, Flo­rence Stok­er, esposa do escritor, pub­li­ca uma coletânea de con­tos do mari­do, cujo títu­lo é “O Hós­pede de Drácu­la e out­ras histórias estra­nhas” (orig­i­nal ‘Dracula’s Guest And Oth­er Weird Sto­ries’), lança­do pela edi­to­ra George Rout­ledge & Sons, Ltd. of Lon­don. O con­to de aber­tu­ra é o homôn­i­mo O Hós­pede de Drácu­la, e segun­do o pre­fá­cio escrito por Flo­rence Bram Stok­er, a história é parte inte­grante do livro de suces­so do mari­do, mas que não foi inseri­da à época por questões de espaço, con­sideran­do à exten­são do romance.

    Imagem do filme Drácula, dirigido por Tod Browning em 1931, com Béla Lugosi e Helen Chandler
    Imagem do filme “Drácu­la” (1931), dirigi­do por Tod Brown­ing, com Béla Lugosi e Helen Chandler

    A nar­ra­ti­va começa com a visi­ta de um inglês à Munique, cidade alemã, e sua von­tade de dar um pas­seio pelos arredores da região. Na saí­da do hotel, o cocheiro encar­rega­do de faz­er a con­dução do vis­i­tante é aler­ta­do pelo maître a retornar antes do cair da noite. O inglês chegara bem em cima da “Walpur­gis­nacht”, con­heci­da como a “Noite de San­ta Val­bur­ga”, tradi­cional fes­ta cristão com ori­gens pagãs, cel­e­bra­da na noite do dia 30 de abril. Durante as cel­e­brações, são feitas grandes fogueiras com o intu­ito de expul­sar demônios e espíri­tos sem rumo que vagam pela dimen­são dos vivos.

    O autor Bram Stoker (Foto Hulton Archive/Getty Images)
    O autor Bram Stok­er (Foto: Hul­ton Archive/Getty Images)

    Empol­ga­do pela pais­agem vibrante, o tur­ista não dá ouvi­dos aos ape­los do cocheiro quan­do este sug­ere que voltem, pois estavam se aprox­i­man­do de um vilare­jo aban­don­a­do e con­sid­er­a­do por toda gente local como amaldiçoa­do. Osten­tan­do a racional­i­dade e sober­ba ingle­sas, o homem decide que vai seguir em frente sem o con­du­tor da car­ru­agem, e a par­tir desse momen­to começam a sur­gir diver­sos per­rengues que nem mes­mo a ina­baláv­el razão ingle­sa é capaz de dis­sim­u­lar. Alter­ações climáti­cas explo­si­vas, seguidas de uma atmos­fera lúgubre, desabam sobre o destemi­do inglês e o leitor começa a sen­tir os efeitos da nar­ra­ti­va bem con­struí­da de Bram Stok­er, que uti­liza muito bem a mis­tu­ra de super­stição com ter­ror psi­cológi­co. Par­tic­u­lar­mente, uma das situ­ações mais inter­es­santes do con­to foi acom­pan­har o bom sen­so tipi­ca­mente inglês ser dis­solvi­do nas molécu­las do medo e mist­i­cis­mo, já que o vis­i­tante começa a pal­pi­tar mais forte e dese­jar até ter aten­di­do aos ape­los do afli­to cocheiro, de quem des­den­hou e duvidou.

    Imagem do filme "Drácula de Bram Stoker" (1992), dirigido por Francis Ford Coppola, com Gary Oldman e Keanu Reeves
    Imagem do filme “Drácu­la de Bram Stok­er” (1992), dirigi­do por Fran­cis Ford Cop­po­la, com Gary Old­man e Keanu Reeves

    Essa fal­ta de “imu­nidade” ao sobre­nat­ur­al faz com­pan­hia ao leitor durante toda a nar­ra­ti­va, trans­for­man­do o cenário de raios enfure­ci­dos, lobos san­guinários, esta­cas e mor­tos que lev­an­tam em res­pi­ração ofe­gante, quase fan­tas­magóri­ca. Quem leu “Drácu­la” vai estar famil­iar­iza­do com o ter­reno e pode até imag­i­nar o des­fe­cho final da história, que tam­bém assom­brou o próprio pro­tag­o­nista. Um dos destaques da tra­ma é a capaci­dade de Bram Stok­er em envolver e pro­je­tar cenários imag­inários na mente do leitor, cati­van­do pelo medo. Drácu­la é, antes de tudo, o fascínio por um mun­do sem amar­ras, noturno, irre­al e sem a ânco­ra da racional­i­dade. Um estereótipo de poder onde tudo é per­mi­ti­do e onde a magia esbar­ra na eternidade, afi­nal de con­tas, “os mor­tos via­jam depressa”.

    O Hós­pede de Drácu­la é um con­to rápi­do, com 36 pági­nas, que se divide entre a história, pre­fá­cio e curiosi­dades, e pode ser lido entre vinte e trin­ta min­u­tos. Li a história na ver­são e‑book pub­li­ca­da pela edi­to­ra Dark­Side em 2012 e traduzi­da por Maria Clara Carneiro e Bruno Dori­gat­ti. O site Dark­side­books ofer­ece o con­to em for­ma­to e‑book gra­tuita­mente para down­load.