Uma vez uma amiga veio em casa e comentou: “As pessoas dizem: não ligue para a bagunça. Mas todo mundo tem a casa bagunçada.” Era uma observação sobre a desordem permanente de minha casa. Livros por todos os lados, blocos de anotação, cadernos, cópias de xerox, uma casa em que o papel predomina e causa desordem. Gostei do comentário da amiga. Depois disso, passei a não me importar que as visitas vissem a casa em caos.
Fico com medo de entrar em casas limpas e organizadas demais. Medo de pisar no chão limpo e brilhante. Medo de sentar no sofá limpo e brilhante. Uma amiga tem uma casa tão limpa e organizada que tenho medo de sentar no sofá e morrer. Lembro o sofá de Julio Cortázar, com uma estrelinha pontiaguda, no qual as crianças convidavam as velhinhas chatas a sentarem para morrer.
Na casa da minha avó havia uma geladeira que só fechava com barbante. Ela aproveitava o jornal que meus tios liam para forrar o chão onde caía gordura do fogão. Quando criança, eu não achava sua casa uma bagunça. Não sabia que organizar o espaço é fundamental para a vida ter um prumo, como ensinam os administradores de tempo. Na casa da avó tínhamos liberdade máxima para não nos preocuparmos em não sujar e não bagunçar nada. Era o lugar em que bombons e pizzas surgiam de forma mágica.
Na casa de Hélio Leites há objetos inúteis por todos os lados. Latas de sardinha, botas, sapatos, livros, pedaços de papel, embalagens de leite. Tudo que ele usa em suas colagens. Entre várias associações estapafúrdias que criou, Hélio fez parte do clube de Arte Postal, e “guarda” os cartões entre parafusos, porcas, potes de iogurte, chaves. Descobri, entre seus papéis, o boletim Hitlelírico, com paródias inspiradas no Grande Ditador. E também artigos, gozações homéricas, publicados no jornal “O Estado do Paraná”.
Na chácara de Hilda Hilst, em Campinas, os cachorros dormiam em cima de sua cama. O jardim era seco e ela bebia nos fins de tarde. Tive emoções difusas nos dois dias em que estive lá. Ouvi histórias sobre abortos, a mágoa por ter sido “esquecida” pelos críticos, menos Léo Gilson Ribeiro. A visita se deu antes que Fernanda Montenegro encenasse “A obscena senhor D.” e Hilda tivesse a sua obra republicada pela Editora Globo. Ela ficava na sala, bebendo com os amigos. Mas quando estive em sua casa, ficou impressionada com o meu silêncio e veio descascar batatas comigo, na cozinha. E confidenciou: “tenho pena dos poetas, são tão sozinhos.”
Na sala de minha terapeuta há livros espalhados numa mesa que ela nunca arruma. Muitas vezes pensei porque uma pessoa responsável por ajudar a organizar o caos interior de outros mantém uma mesa de trabalho em desordem. Na última vez em que estive com ela, descobri. É preciso aceitar a desordem interior. Não sabemos de tudo, não vemos tudo. O que está em aparente desordem, pode estar afinado na ordem de um sistema — familiar, comunitário, social, galáctico.
Durante anos me preocupei por não ser organizada, nem produtiva, eficiente e útil. Ler, escrever, conversar, discutir são uma enorme perda de tempo. Hoje sei que isso é apenas um ponto de vista. É preciso perder tempo, deixar-se desorganizar-se. Quando se entende o que é ter equilíbrio, a organização vai acontecendo sem perceber.
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