Livro: Pequena Biografia de Desejos — Cezar Tridapalli

Uma das car­ac­terís­ti­cas mais mar­cantes da Lit­er­atu­ra pro­duzi­da hoje é jus­ta­mente o bom uso do real­is­mo do dia a dia — con­sid­er­a­do out­ro­ra um obje­to sem âni­mo e inter­esse — como um con­tex­to rico. O curitibano Cezar Tri­da­pal­li, em Peque­na Biografia de Dese­jos (Edi­to­ra 7Letras, 2011), traz a vida comum e seus per­son­agens como forças motrizes para den­tro do romance, dan­do mais sinais de como a lit­er­atu­ra do pre­sente vem ren­den­do fru­tos extrema­mente inter­es­santes, ali­men­ta­dos pelo anon­i­ma­to do cotidiano.

Desidério é um porteiro que leva uma roti­na insignif­i­cante para a maio­r­ia das pes­soas, o homem pega o mes­mo ônibus todo dia — para quem mora em Curiti­ba, o famoso Ligeirão-Boqueirão — e pas­sa inúmeras horas acor­da­do, lendo e escreven­do. O per­son­agem prin­ci­pal de Peque­na Biografia de Dese­jos é uma espé­cie de anti-herói, só que sem nen­hum tipo de glam­our que ess­es per­son­agens cos­tu­mam ter, con­stru­i­do sob o per­fil de homem comum vis­to pelos olhos do fantástico.

O pro­tag­o­nista se apre­sen­ta através das nar­ra­ti­vas de suas próprias maze­las cos­tu­radas com a história de out­ros per­son­agens que aju­dam a dar for­ma na sua vida-ficção. A mãe que foge de casa, um pai que só existe fisi­ca­mente, um casa­men­to sem o mín­i­mo de amor e os son­hos de escr­ev­er livros tão geni­ais quan­to os que pas­sa as madru­gadas lendo, são peque­nas peças que for­mam detal­hada­mente o enre­do da vida do personagem.

Desidério pode­ria ser um homem comum se os livros não o tirassem do maras­mo do cotid­i­ano. Son­hador, sua real­i­dade — des­de sem­pre urbana e crua pela óti­ca do real­is­mo banal — sem­pre foi molda­da con­forme o liris­mo dos livros. É o homem comum, sem osten­tações, mas reple­to de mecan­is­mos que o tiram do con­formis­mo e o colo­cam den­tro de um real­is­mo fan­tás­ti­co, um dos aspec­tos que intro­duz Peque­na Biografia de Dese­jos como uma obra que se ali­men­ta do con­tem­porâ­neo sem pre­cis­ar, em momen­to algum, ser con­fes­sion­al. Pelo con­trário, Desidério não quer con­fes­sar nada, nem sabe usar as palavras fal­adas, ele suprime seus sen­ti­men­tos e acred­i­ta que a sua real redenção sejam as palavras escritas e num livro só seu.

É prin­ci­pal­mente a paixão e o dese­jo que movi­men­tam a vida de Desidério. Além de ter um fascínio desme­di­do por livros — o homem chega a escr­ev­er tre­chos de livros na mesa da guari­ta — ele encon­tra Adele, uma pro­fes­so­ra de ital­iano, que ali­men­tan­do um amor platôni­co invol­un­tário, ain­da o enco­ra­ja a escr­ev­er sobre todos os sen­ti­men­tos que ele acred­i­ta­va não possuir.

A nar­ra­ti­va de Peque­na Biografia de Dese­jos é movi­da jus­ta­mente por essa paixão e dese­jo literário que o pro­tag­o­nista desen­volve ao lon­go das suas leituras. O nar­rador faz uso de uma voz ínti­ma que fun­ciona como um off cin­e­matográ­fi­co, apre­sen­tan­do a vida dos per­son­agens com dire­ito a flash­backs. A cada capí­tu­lo, novas histórias vão sendo apre­sen­tadas e cos­tu­radas ao mosaico que for­ma a grande biografia de Desidério. Sem as per­son­agens — e suas insignificân­cias detal­his­tas asso­ci­adas a um e out­ro enre­do literário — o pro­tag­o­nista jamais exi­s­tiria e encar­aria com taman­ho dese­jo a sua própria ficção.

O espaço onde cir­cu­la o per­son­agem é Curiti­ba, um pon­to inter­es­sante se pen­sa­do sob a situ­ação que boa parte dos romances con­tem­porâ­neos se orga­nizem em out­ras metrópoles do país. A Curiti­ba de Desidério é descri­ta pelo pon­to de vista de um eter­no transe­unte que con­hece bem ape­nas o bair­ro em que viveu, o tra­je­to que faz há tan­to tem­po de casa para o tra­bal­ho, e vice-ver­sa, e claro, a Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná.

A voz que Tri­da­pal­li faz uso é sufo­cado­ra, dire­ta e reple­ta de refer­ên­cias, o que pode não agradar leitores receosos com o romance con­tem­porâ­neo. Peque­na Biografia de Dese­jos lem­bra obras ao esti­lo de Enrique Vila-Matas, Sara­m­a­go e o fan­tás­ti­co — mais mod­er­a­do — das real­i­dades lati­nas de Gabriel Gar­cia Màrquez e mes­mo assim, man­ten­do sua própria con­strução. Há uma neces­si­dade de res­pi­ração depois de cada capí­tu­lo na saga de Desidério, o que fez min­ha leitu­ra ter con­ta­do com boas pausas entre um capí­tu­lo e out­ro, sendo que isso não é de for­ma algu­ma um prob­le­ma e sim um óti­mo proces­so de assim­i­lação. Além dis­so, é bas­tante líri­co e atu­al o dis­cur­so sem pausa e caóti­co da obra que, mes­mo usan­do muitos recur­sos de lin­guagem con­tem­porânea, man­tém o rit­mo romanesco clássico.

Peque­na Biografia de Dese­jos nem de longe parece um romance de estreia. É uma ode — e isso é o que mais encan­ta — às paixões e dese­jos que os livros podem causar. É sobre­tu­do, um romance sobre livros para leitores apaixonados.

Seguem alguns tre­chos do livro:

¨Qual a mar­ca que o porteiro de um edi­fi­cio deixaria no mun­do? Pen­sara no livro que havia começa­do e, com estran­ho aliv­io, enfim lhe subiu à face a esper­a­da sen­sação de tris­teza autên­ti­ca, doí­da. Qual a mar­ca que aque­le cara que escreveu O deser­to dos Tár­taros deixara no mun­do? Qual a mar­ca que os quarenta e dois autores lidos por Desidério até ali deixaram no mun­do, no seu mun­do? A respos­ta lhe pare­cia evi­dente, óbvia demais; no entan­to, sen­tia-se enver­gonhado e quase enfure­ci­do por não saber o que respon­der, pois, ain­da que dissesse que as obras dess­es autores fos­sem suas mar­cas, uma voz inter­na insis­tia em pro­por out­ra per­gun­ta: mas para que servem essas mar­cas? Ora, para nos lem­brar de que esta­mos vivos, de que o show tem que con­tin­uar, e que as ilusões devem con­tin­uar sendo ali­men­tadas, e que pre­cisamos con­tin­uar nos per­gun­tan­do para que serve tudo isso.¨ (pg. 90 e 91)

¨Assim se arras­tam os dese­jos humanos, às vezes céleres, sor­ri­dentes e fagueiros como cri­anças no cam­po ou pro­pa­gan­das de mar­ga­ri­na, às vezes entre­va­dos, cujos movi­men­tos úni­cos pare­cem ser fas­ci­c­u­lações invol­un­tárias. De uma for­ma ou de out­ra, com­preen­di­dos todos os matizes pos­síveis nesse entremeio, estão sem­pre mor­ren­do sem se terem satisfeitos.¨(pg.218)


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