Tag: Literatura

  • Mukashi Mukashi* | Crônica

    Mukashi Mukashi* | Crônica

    Masa Sato e todos os netos, Sorocaba, anos 40
    Masa Sato e todos os netos, Soro­ca­ba, anos 40

    Seu nome, Miya, dev­e­ria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japone­sas nasci­das no cam­po usarem o ideogra­ma KO [子]. O uso era per­mi­ti­do ape­nas às mul­heres de origem nobre. O ideogra­ma miya [宮] sig­nifi­ca tem­p­lo xin­toís­ta, príncipe ou prince­sa da família impe­r­i­al. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometi­da a um noi­vo que não gosta­va, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deser­dou. Miya tin­ha um irmão mais vel­ho, Sada­ji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kame­ki. Muito jovem, min­ha avó se inter­es­sou por lit­er­atu­ra. Em sua cidade, que fica na provín­cia de Saga, região sul, per­to de Nagasa­ki, só havia bib­liote­cas na igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Ela se con­ver­teu, só para fre­quen­tar a bib­liote­ca e ler a obra do escritor francês Vic­tor Hugo. Sada­ji e Kame­ki vier­am para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a tra­bal­har no cafezal da família Shi­nobu, na Colô­nia Nipolân­dia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vier­am Miya e Tome.

    Museu de Etnografia de Paranaguá (Foto:  Kingo Kubota)
    Museu de Etno­grafia de Paranaguá (Foto: Kingo Kubota)

    Kun­yo Tiba, meu avô, mar­in­heiro, tam­bém veio para o Brasil, com a mis­são de bus­car a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aven­tu­rar no “País dos fru­tos doura­dos”, como era chama­do pela Imi­gração Japone­sa. Veio como agre­ga­da da família Shi­nobu, um expe­di­ente comum na época. Famílias eram com­postas por mem­bros de difer­entes ori­gens, for­jan­do doc­u­men­tos. Miyoko mora­va na “casa grande”, com a família arti­fi­cial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anex­a­do a Manchúria e começaram os con­fli­tos com a Chi­na. No cafezal, con­heceu Miya e casou com ela.

    No Brasil, Miya con­tin­u­ou fre­quen­tan­do a igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Prat­i­ca­va a arte do tan­ka — uma das for­mas poéti­cas japone­sas. Kuniyo toca­va shakuhachi — a flau­ta de bam­bu japone­sa. Como ele era era mar­in­heiro, poucos ofí­cios restavam em ter­ra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro moran­do na colô­nia japone­sa de Birigui. Decid­iu fab­ricar carvão veg­e­tal e mudou para Tapi­raí, no Sul paulista, que veio a se tornar um impor­tante cen­tro de pro­dução da matéria-pri­ma. A mul­her e os três fil­hos o aju­davam a queimar carvão. Por causa do ofí­cio do patri­ar­ca, a família morou em diver­sos pon­tos da cidade. Kame­ki, o caçu­la Tiba, ficou doente e foi se tratar em Cam­pos de Jordão. Cura­do, decid­iu faz­er um cur­so de far­ma­cêu­ti­co, em São Paulo. Quan­do se for­mou, os irmãos mon­taram uma peque­na far­má­cia no cen­tro de Tapi­raí. Kuniyo decid­iu mon­tar um bar, viz­in­ho à farmácia.

    Família Tiba, Sorocaba, anos 40.
    Família Tiba, Soro­ca­ba, anos 40.

    Meu tio mais vel­ho começou car­reira mil­i­tar e pôde com­prar um sobra­do para os pais, no bair­ro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em mea­d­os dos anos 60. Toda vez que íamos vis­itá-lo, Kuniyo fazia algo­dão-doce para nós. Ele ven­dia o doce nas ruas de São Paulo. Cri­ança, não sabia como o açú­car col­ori­do se trans­for­ma­va em nuvem de algo­dão. A casa de meus avós era meio mág­i­ca. Na coz­in­ha havia um grande telescó­pio. Um dos tios havia entra­do para a Aeronáu­ti­ca e tin­ha mania por ape­tre­chos de avi­ação e aeronáutica.

    Meu avô mor­reu em 1974, de câncer no intesti­no. Na época era uma doença dev­as­ta­do­ra. A família cuidou dele por meses. Depois que o mari­do mor­reu, Miya vin­ha pas­sar férias com min­ha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que fala­va. Sin­to pena de não ter estu­da­do a lín­gua japone­sa quan­do cri­ança. Só desco­bri o que era shakuhachi e tan­ka com quase 40 anos. Zan­nen.**

    * Em japonês: anti­go, anti­go. Em ger­al, as histórias de tradição oral japone­sas começam com “Mukashi, mukashi…”
    **Em japonês: Que pena !

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.

  • Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio

    Swans, de M. C. Escher (Gravura em Madeira) - 1956
    Swans, de M. C. Esch­er (Gravu­ra em Madeira) — 1956

    Louis Aragon (1897 – 1982), poeta, edi­tor e romancista francês, expres­sou como “os home­ns vivem” no poe­ma que car­rega a força dess­es versos:

    (…)

    Eram tem­pos insanos,

    Tín­hamos pos­to os mor­tos à mesa

    Fazíamos caste­los de areia

    Con­fundíamos lobos com cães

    Apro­prian­do-se do poe­ma, nos­sas fale­ci­das memórias voltam do pas­sa­do como uma visão fan­tas­magóri­ca, tri­un­fante e ameaçado­ra, que olha ao redor para se cer­ti­ficar de sua onipresença. A inse­gu­rança e a von­tade incon­troláv­el de lem­brar, sal­var e reg­u­lar tudo nos tor­na con­stru­tores e plateia de uma História doc­u­men­ta­da, cujo efeito de real seja ima­nente. Durante sécu­los, esse raciocínio foi segui­do pela neces­si­dade de difer­en­ciar rigi­da­mente “fato e ficção”, “mito e história”, “real e imag­inário”. A nar­ra­ti­va his­to­ri­ográ­fi­ca pas­sou por lon­gas fas­es de restrição, lim­i­ta­da ao pos­i­tivis­mo, às exigên­cias de vestí­gios e doc­u­men­tos. Sep­a­rar história e lit­er­atu­ra como dois entes de plan­e­tas opos­tos foi o primeiro pas­so para deter­mi­nar cam­in­hos, impor sen­ti­dos, fixar padrões. Ao anal­is­ar o pen­sa­men­to de Gilles Deleuze (1925–1995) sobre a lin­guagem literária e o de-fora,  o autor brasileiro Rober­to Macha­do traz à tona a ideia que o francês pos­suía sobre a escri­ta como “uma ten­ta­ti­va de lib­er­tar a vida daqui­lo que a apri­siona, é procu­rar uma saí­da, encon­trar novas pos­si­bil­i­dades, novas potên­cias de vida”. Se con­tin­u­amos a todo instante pon­do nos­sos mor­tos à mesa, por que igno­rar a estre­i­ta relação entre lin­guagem históri­ca e ficcional?

    Zdzisław Beksiński
    Zdzisław Bek­sińs­ki

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-ggmO escritor colom­biano Gabriel Gar­cía Márquez, que fale­ceu em abril deste ano em con­se­quên­cia de com­pli­cações ger­adas pelo câncer, criou um novo sen­ti­do para o envel­he­cer por meio do pro­tag­o­nista de “Memória de min­has putas tristes”, livro lança­do em 2005 e divul­ga­do no Brasil pela edi­to­ra Record em 2008, com tradução de Eric Nepo­mu­ceno. Tra­ta-se da emblemáti­ca história de um sen­hor no auge dos seus noven­ta anos que, com­ple­ta­mente per­di­do em uma vida comum, sem amores, sem expec­ta­ti­vas, sem ânsias e dese­jos, se vê às voltas com a des­or­dem que só sen­ti­men­tos como o amor podem acar­retar. O sábio decide comem­o­rar sua entra­da em uma nova déca­da na com­pan­hia de uma moça, nin­fe­ta e virgem. Para isso, entra em con­ta­to com uma anti­ga con­heci­da, a cafeti­na Rosa Cabar­cas, e encomen­da a menina.

    Em todo o tex­to, a mis­tu­ra de real­i­dade e ficção é um dos pon­tos altos, levan­do o leitor a ques­tionar: É pos­sív­el sen­tir saudades do que você nun­ca viveu? Como resi­s­tir a um tem­po de começo, meio e fim, atribuin­do-lhe sen­ti­dos que, muitas vezes, o próprio tem­po descon­hece? O his­to­ri­ador Hay­den White entende as nar­ra­ti­vas históri­c­as como ficções ver­bais. Para ele, o his­to­ri­ador “não pode mais igno­rar a estre­i­ta relação entre história e mito. A história não é uma ciên­cia porque não é real­ista, o dis­cur­so históri­co não apreende um mun­do exte­ri­or, porque o real é pro­duzi­do pelo dis­cur­so”. White afir­ma que o his­to­ri­ador pro­duz “con­struções poéti­cas”, sendo a lin­guagem o ele­men­to que con­sti­tui sen­ti­do. Para ele, é inegáv­el a influên­cia do esti­lo literário do autor na escri­ta his­to­ri­ográ­fi­ca, bem como dos recur­sos estilís­ti­cos empre­ga­dos para destacar posi­ciona­men­tos e seleções. Como retoma o teóri­co, os acon­tec­i­men­tos são neu­tros, isto é, não trazem em si nen­hu­ma car­ga val­o­rati­va. No entan­to, são con­ver­tidos em trági­cos, emo­cio­nantes, cômi­cos, român­ti­cos ou irôni­cos pelo próprio enre­do atribuído.

    pinturas-da-memoria-e-mortos-a-mesa-ensaio-agonizoPara o nona­genário cri­a­do por Gar­cía Márquez, atrav­es­sar décadas de fatos históri­cos e reg­istra­dos não sig­nifi­ca absorvê-los de uma úni­ca for­ma; em toda a tra­ma, o vel­ho homem é refa­mil­iar­iza­do com os acon­tec­i­men­tos vivi­dos por meio de suas lem­branças. A for­ma como o mun­do se descorti­nou diante dos seus olhos quase cen­tenários é vista de modo inter­pre­ta­ti­vo, e não metódi­co e pro­je­ta­do. Essa mes­ma atmos­fera pode ser sen­ti­da nos con­tos do ital­iano Anto­nio Tabuc­chi (1943–2012), reunidos no sug­es­ti­vo livro “O tem­po envel­hece depres­sa” (2009), e no romance “Enquan­to Ago­ni­zo” (1930), do norte-amer­i­cano William Faulkn­er (1897–1962). Ape­sar de inve­stirem em lin­gua­gens nar­ra­ti­vas difer­entes, as duas obras tocam a mes­ma questão no que diz respeito à memória e a con­strução de difer­entes pon­tos de vista. É essa dis­pu­ta entre rela­to e sub­je­tivi­dade que traça o con­torno da nar­ra­ti­va históri­ca. A união entre história e lit­er­atu­ra per­mite “delírios sig­ni­fica­tivos”, epi­fa­nias que abrem espaço para o pen­sa­men­to escapar do sis­tema dom­i­nante. O imag­inário traz uma car­ga dev­as­ta­do­ra que parece son­dar o vazio, enx­er­gar nas trevas e escu­tar através dos portões fechados.

    A “imanên­cia”, ter­mo usa­do por Deleuze, está em desco­brir-se além das corti­nas; é não ter medo, por exem­p­lo, de se perder nos labir­in­tos de ilusão de ópti­ca cri­a­dos por M. C. Esch­er (1898–1972) ou na beleza mór­bi­da das pin­turas do polonês Zdzis­law Beksin­s­ki (1929–2005) e seus humanos-esquele­tos, árvores retor­ci­das e ambi­entes cer­ca­dos pela névoa. É saber recon­hecer traços da história na expressão subjetiva.

    Relativity, de M. C. Escher (litografia) - 1953
    Rel­a­tiv­i­ty, de M. C. Esch­er (litografia) — 1953

    A união da lit­er­atu­ra e da história abre cam­in­ho para ver através das palavras, trans­for­mar pen­sa­men­to em sen­sação e ser capaz de traçar lin­has de fuga. Os sen­ti­dos da história não são neu­tros, obje­tivos e rig­orosa­mente cien­tí­fi­cos. Eles são flu­i­dos, optam por pontes e desco­brem novas rotas. É pre­ciso ter cor­agem para recon­hecer que as “coisas têm dimen­sões que são intrínse­cas ao val­or que damos”, e que mas­carar esse fato — como se tal ati­tude fos­se cru­cial para man­ter a zona de con­for­to – só abre mais espaços, mais abis­mos, mais fos­sos. Como lem­braria o jor­nal­ista e escritor brasileiro Daniel Piza (1970–2011): “Quan­to mais escrav­iza­do pelo cos­tume, mais o homem son­ha com o clarão sal­vador”. Por­tan­to, cor­agem! Vamos colo­car nos­sos mor­tos à mesa e ofer­e­cer o banquete.

  • Olhar por trás de estantes

    Olhar por trás de estantes

    Biblioteca de Leminski, fotografada sem produção prévia. Foto : Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira).
    Bib­liote­ca de Lemins­ki, fotografa­da sem pro­dução prévia.
    Foto : Car­los Rober­to Zanel­lo de Aguiar (Macax­eira).

    Des­de ado­les­cente fre­quen­to bib­liote­cas públi­cas. Quan­do cri­ança, não. Nas esco­las em que estudei, em Paranaguá, não havia bib­liote­cas. Uma vez, uma pro­fes­so­ra inven­tou uma bib­liote­ca ambu­lante. Cada aluno dev­e­ria levar um livro. Não fun­cio­nou. Ninguém lev­ou livros. Quan­do mudei para Curiti­ba, pas­sa­va um tem­pão passe­an­do pelos corre­dores da Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Min­has estantes preferi­das eram as de lit­er­atu­ra brasileira e poe­sia. Tam­bém pas­sei quase cem anos de solidão e areia diante da lit­er­atu­ra em lín­gua espan­ho­la, quan­do desco­bri Gabriel Gar­cia Márquez e Jorge Luis Borges.

    Uma bib­liote­ca que sem­pre me fas­ci­nou foi a da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, quan­do ain­da não era alu­na. A diver­si­dade de títu­los, e em lín­guas difer­entes impres­sion­a­va. Lem­bro do encan­to por um livro de Luís da Câmara Cas­cu­do sobre lendas brasileiras. Quan­do me tornei alu­na, pude emprestar um livro de poe­mas de Manuel Ban­deira traduzi­dos para o francês. Mais tarde, na pós-grad­u­ação, li livros sobre lit­er­atu­ra japonesa.

    Out­ra bib­liote­ca que gostei de con­hecer foi a do Insti­tu­to Goethe. Fre­quentei pouco, mas quan­do a con­heci, era uma novi­dade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, vis­itei bib­liote­cas que tam­bém tin­ham seções mul­ti­mí­dia. E nas quais pas­sa­va horas lendo revis­tas sobre todo o tipo de assunto.

    Nesse ano con­heci a bib­liote­ca do Insti­tu­to de Estad­ual de Edu­cação Eras­mo Pilot­to, esco­la na qual Hele­na Kolody foi pro­fes­so­ra. Uma ami­ga, a poeta Jane Sprenger Bod­nar, tra­bal­ha lá. O acer­vo, emb­o­ra seja uma bib­liote­ca esco­lar, é diver­si­fi­ca­do. Além de lit­er­atu­ra e edu­cação, há livros sobre cul­tura pop­u­lar. Pena que pre­cise de refor­mas e não rece­ba atenção do gov­er­no do estado.

    Biblioteca Pública do Paraná (Foto: Yasmin Taketani)
    Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná (Foto: Yas­min Taketani)

    Ape­sar de ter sido reestru­tu­ra­da, espe­cial­mente na área de comu­ni­cação visu­al, hoje ten­ho medo de voltar à Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Lit­er­atu­ra que me inter­es­savam. Há poucos títu­los novos. Con­fes­so que ler os autores da lit­er­atu­ra con­tem­porânea, cel­e­bra­dos em even­tos pro­movi­dos pela própria BPP me atemoriza.

    Não con­si­go mais exercer o rit­u­al juve­nil, de aven­tu­rar entre as estantes para desco­brir um livro estran­ho. Falan­do em estran­heza, tem­pos atrás havia leitores bizarros entre os fre­quen­ta­dores da BPP. Escritores, artis­tas, design­ers, jor­nal­is­tas? Não: sem-teto ou desem­pre­ga­dos, enfur­na­dos nas salas de leitu­ra. A neolib­er­al­iza­ção do lugar expul­sou os bizarros, que devem ter volta­do para o seu lugar: as ruas.

    Cer­ta vez, num pro­gra­ma de tevê, vi a bib­liote­ca da pro­fes­so­ra de lit­er­atu­ra Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em des­or­dem e as estantes roí­das por cupins. Des­or­dem igual às das bib­liote­cas do poeta Paulo Lemins­ki e do ilustrador Clau­dio Seto. Nem tudo está con­forme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que impor­ta é ali­men­tar os ratos de bib­liote­ca. Em tem­po de bien­ais e grandes even­tos de lit­er­atu­ra, bib­liote­cas cheias de poeira são um refú­gio con­tra os que cobrem a história com verniz.

  • A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói | Livro

    A_morte_de_Ivan_Ilitch-capaPre­sença fan­tas­magóri­ca, som­bria, temi­da. Uma car­i­catu­ra de dentes amare­los e ros­to esquáli­do, que vaga pelas noites de tem­pes­tade. Vul­to den­tro de um quar­to escuro, com forte aro­ma de velas mis­tu­ra­do com cipreste e crisân­te­mo, avoluman­do lágri­mas ind­is­farçáveis. Não impor­ta a imagem ou descrição atribuí­da, a morte é uma das obsessões do homem tan­to quan­to a von­tade de saber sobre o iní­cio da existên­cia e seu elo perdido.

    No entan­to, falar sobre o assun­to ain­da con­sti­tui tabu para diver­sas sociedades, rep­re­sen­tan­do con­teú­do a ser evi­ta­do para que a ale­gria de viv­er não se dis­sol­va em ques­tion­a­men­tos sem retorno. Porém, cam­in­han­do do lado opos­to dessa ideia dom­i­nante, o escritor rus­so Liev Niko­laievitch Tol­stói não tin­ha o menor receio em tratar sobre temas que envolvessem a câmara mor­tuária e o pon­to final da exper­iên­cia humana. Nasci­do na sun­tu­osa residên­cia de Yas­naya-Polyana em 1828, o conde Liev Tol­stói teve pen­sa­men­tos con­trários aos dos mem­bros de sua posição social, ques­tio­nan­do-se durante toda a vida sobre a ide­olo­gia que man­tém a estrat­i­fi­cação pre­sente entre ricos e pobres, trans­for­man­do a orga­ni­za­ção da sociedade em um ver­dadeiro abis­mo. As ideias do escritor tam­bém con­trastavam com o pen­sa­men­to reli­gioso, políti­co, artís­ti­co e social da época, reg­istro evi­dente em quase toda a sua obra. Da sua exten­sa ativi­dade int­elec­tu­al, tornaram-se sinôn­i­mos de clás­si­co os romances Guer­ra e Paz e Ana Karên­i­na, e a nov­ela A morte de Ivan Ilitch, con­sid­er­a­da por muitos críti­cos como a pri­ma-dona do gênero na lit­er­atu­ra mundi­al. A edição lança­da pela L&PM Pock­et em 1997, traduzi­da por Ver­am Karam, gan­hado­ra do prêmio Aço­ri­anos de Tradução, foi reim­pres­sa em 2010, pos­si­bil­i­tan­do que a con­sagra­da nov­ela de Tol­stói con­tin­u­asse chegan­do às mãos de novos leitores.

    Pub­li­ca­da em 1886, A morte de Ivan Ilitch é fru­to dos últi­mos anos de vida de Tol­stói, que mor­reu aos 82 anos de idade na estação fer­roviária de Astapo­vo. Naque­la ocasião, o romancista tin­ha fugi­do de casa para iso­lar-se em um mosteiro, pois esta­va imer­so em uma fase de reclusão volta­da para a natureza e con­tem­plação reli­giosa, ati­tude que seguia à rev­elia de famil­iares e ami­gos. Em 1883, o escritor Ivan Tur­guêniev, ami­go ínti­mo de Liev Tol­stói, chegou a lhe escr­ev­er uma der­radeira car­ta dire­ta­mente do seu leito de morte, pedin­do que o ami­go voltasse para a lit­er­atu­ra. Moti­va­do por esse pedi­do ou não, Tol­stói retornou com a história do buro­cra­ta Ivan Ilitch Golovin, um sujeito que não soube viv­er e nem mor­rer, mas ten­tou encon­trar respostas para a morte durante o lon­go proces­so de ago­nia que enfrentou.

    Foto do autor Leo Tolstoy
    Foto do autor Leo Tolstoy

    A nar­ra­ti­va começa pelo final, no pré­dio do Tri­bunal de Justiça em que Ivan Ilitch tra­bal­ha­va e onde sua morte foi comen­ta­da pelos seus cole­gas de tra­bal­ho e cartea­do. Ao invés de con­dolên­cias sin­ceras, os com­pan­heiros dis­cu­ti­am trans­fer­ên­cias e pro­moções de car­gos, vis­to que uma das vagas esta­va em aber­to. Com essa sutileza, Tol­stói per­corre o mun­do mesquin­ho de home­ns e mul­heres sem iden­ti­dade ou con­sciên­cia, cuja per­son­al­i­dade varia de acor­do com inter­ess­es ou posições. Pes­soas para quem a morte é pre­rrog­a­ti­va do viz­in­ho, con­sti­tuin­do-se em real­i­dade dis­tante de suas sossegadas existên­cias. Antes de ser viti­ma­do pela tene­brosa mor­tal­ha, Ivan Ilitch viveu como todos os seus con­frades: fil­ho de ofi­cial lota­do em car­gos e depar­ta­men­tos por puro aper­to de mãos, Ivan cresceu saben­do que seu des­ti­no seria seguir car­reira em órgão públi­co, pulan­do de setor em setor mes­mo que não tivesse a menor aptidão para isso. O que real­mente impor­ta­va eram as lig­ações políti­cas e soci­ais que con­seguiria travar ao lon­go da vida, lega­do que seu pai tra­tou de iniciar.

    Depois de se for­mar em Dire­ito, Ivan Ilitch par­tiu para uma das provín­cias rus­sas para assumir o pos­to de secretário par­tic­u­lar e emis­sário do gov­er­nador, pre­sente dado pelo pai. Essas “entradas pela janela”, práti­ca igual­mente comum na história brasileira, eram o úni­co mun­do que o jovem buro­cra­ta con­hecia. Homem de ambições baseadas no lucro e na imi­tação da elite, Ivan seguia à risca o pro­to­co­lo lança­do por seus supe­ri­ores e pela alta-sociedade, fre­quen­tan­do ambi­entes pom­posos, humil­han­do sub­al­ter­nos, sus­ten­tan­do a máx­i­ma de que “ordens são ordens” e, prin­ci­pal­mente, aper­feiçoan­do-se na arte da bajulação.

    Retrato de Tolstói por Ilya Efimovich Repin (1844-1930).
    Retra­to de Tol­stói por Ilya Efi­movich Repin.

    Esse esti­lo de vida basea­do em más­caras per­sis­tiu até mes­mo no casa­men­to, moti­va­do por beleza e con­veniên­cia, rene­gan­do o amor ao últi­mo plano. Ape­sar das histórias român­ti­cas que ali­men­ta­ram os sécu­los pas­sa­dos, a ideia do amor esta­va longe da alco­va de muitos casais, pois ain­da no sécu­lo XIX pre­domi­na­va o casa­men­to jus­ti­fi­ca­do por acor­dos e tro­ca de van­ta­gens entre as famílias. O buro­cra­ta Ivan Ilitch não fugiu à regra e mer­gul­hou de cabeça em um rela­ciona­men­to que só trouxe amar­guras, recla­mações e cobranças. Casa­do com Praskovya Fiodor­ov­na, mul­her dita de boa família, mas super­fi­cial e rabu­gen­ta, Ivan detes­ta­va o matrimônio e o con­ce­bia como um abis­mo sem fim, razão pela qual vivia enfur­na­do no tra­bal­ho. Nesse ele­men­to, percebe-se a críti­ca de Tol­stói con­tra a hipocrisia dos casa­men­tos sem amor, dese­jo ou respeito, práti­ca comum à época.

    Anos des­gas­tantes se pas­saram e em uma de suas mudanças de car­go e casa, Ivan Ilitch sofreu um aci­dente caseiro, baten­do a região dos rins. No começo, a dor local­iza­da e o gos­to amar­go na boca não impres­sion­aram o buro­cra­ta. Somente depois, com a inten­si­fi­cação da sen­sação penosa, Ivan notou que algo anda­va muito mal. Procu­ran­do diver­sos médi­cos e espe­cial­is­tas, que nada diziam de útil ou váli­do, Ivan teve que encar­ar seu pesade­lo real: a aprox­i­mação da morte. O caráter do rus­so, ante­ri­or­mente mas­cara­do pelas obri­gações soci­ais, perde a camu­flagem e começa a sofr­er alter­ações. A super­fi­cial­i­dade dá lugar a uma dis­tân­cia fria, vio­len­ta, reple­ta de angús­tias e sen­ti­men­tos que tran­scen­dem o próprio Ivan Ilitch. O medo da morte ator­men­ta o con­fi­ante buro­cra­ta, que só encon­tra con­for­to na pre­sença de Geras­sim, empre­ga­do de mod­os serenos e com­por­ta­men­to honesto.

    Durante a ago­nia de Ilitch, Tol­stói faz com que o leitor se aprox­ime do sofri­men­to, do sen­ti­men­to desagradáv­el – e evi­ta­do a todo cus­to – de recon­hecer sua fini­tude, de que um dia irá deixar de exi­s­tir como matéria, aniqui­lan­do tudo o que con­hece. Escri­ta de for­ma sim­ples, sem rodeios, A morte de Ivan Ilitch pos­si­bili­ta o ques­tion­a­men­to de decisões e for­mas com as quais a vida é con­duzi­da. Adi­anta ir emb­o­ra sem levar nada ver­dadeira­mente nos­so? A posição social e a com­ple­ta indifer­ença em relação ao mun­do valem mais a pena do que o amor aos nos­sos pares, a par­til­ha, a igual­dade e out­ros sen­ti­men­tos que deix­am mar­cas? Essas são ape­nas duas das inúmeras reflexões que a obra suscita.

    Quadro “The Garden of Death”, do artista nórdico Hugo Simberg
    Quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Simberg

    Ivan Ilitch, um homem medíocre que acred­i­ta­va viv­er uma vida digna porque repro­duzia leis e aten­dia aos padrões da elite, um indi­ví­duo sem pen­sa­men­tos próprios, for­ma­do pelas ideias dos out­ros, teve como auge da vida o perío­do em que ficou doente ter­mi­nal e “tin­ha de viv­er à beira do pre­cipí­cio, soz­in­ho, sem uma alma que o enten­desse e dele tivesse com­paixão”. Ivan, dono de uma existên­cia sem raízes, encon­trou na mor­tal­i­dade o medo que elu­ci­da, o pâni­co que força a que­da do véu da ignorân­cia. Se a morte age silen­ciosa­mente e traz no ros­to o hor­ror sem gri­tos do quadro “The Gar­den of Death”, do artista nórdi­co Hugo Sim­berg, Tol­stói deu ao mun­do, na for­ma da história comum de um fun­cionário públi­co insignif­i­cante, a biografia de uma humanidade doente, metódi­ca e con­ge­la­da; a história de ani­mais mecâni­cos que só acor­dam com o sus­sur­ro que os leva embora.

  • Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    Contos de Lugares Distantes, de Shaun Tan | Livros

    contos-lugares-distantes-capaHá livros que te encan­tam do iní­cio ao fim, não só pela sua história mas tam­bém por con­ta das suas ilus­trações e seus vários pequenos detal­h­es, onde você se vê o pegan­do inúmeras vezes ape­nas para ten­tar desco­brir algo novo ou rel­er um tre­cho rapid­in­ho. Foi exata­mente esta exper­iên­cia que tive depois de ler Con­tos de Lugares Dis­tantes do escritor e quadrin­ista aus­traliano Shaun Tan, lança­do aqui no Brasil pela Cosac Naify e traduzi­do por Éri­co Assis.

    Ele é com­pos­to de quinze con­tos, que vari­am des­de alguns bem curt­in­hos (de uma ou duas pági­nas), até out­ros mais lon­gos. Ape­sar de todos terem no mín­i­mo um pé den­tro do mun­do fan­tás­ti­co, não são o tipo de histórias que você diria serem impos­síveis de acon­te­cer, pois são con­tadas como se fos­sem algo total­mente cor­riqueiro e tam­bém por usar ele­men­tos ou obje­tos pre­sentes no dia a dia da maio­r­ia das pessoas.

    é engraça­do que hoje em dia, em que toda casa tem seu mís­sil balís­ti­co inter­con­ti­nen­tal, você mal se lem­bre dele.

    Logo no primeiro tex­to já é pos­sív­el perce­ber que este não é exata­mente um livro para cri­anças, pois pos­sui um humor mais sofisti­ca­do e muitas vezes aca­ba sendo meio assus­ta­dor tam­bém. O autor con­tou em uma entre­vista que se inspirou no esti­lo da série Além da Imag­i­nação (The Twi­light Zone) que assis­tia quan­do cri­ança para escrevê-los, que aca­ba expli­can­do bem esse cli­ma meio fan­tás­ti­co e hor­rip­i­lante. Os adul­tos que acom­pan­haram a série e apre­ci­am belos desen­hos, com certeza vão se deleitar nes­ta obra.

    Ilustração do conto "Brinquedos Quebrados"
    Ilus­tração do con­to “Brin­que­dos Quebrados”

    O feri­ado sem nome acon­tece uma vez por ano, geral­mente por vol­ta do fim de agos­to, às vezes em out­ubro. É esper­a­do tan­to por cri­anças como por adul­tos com um mis­to de emoções: não é pro­pri­a­mente fes­ti­vo, mas ain­da assim é uma espé­cie de comem­o­ração, cuja origem há muito se esqueceu.

    Falan­do em desen­hos, a primeira coisa que mais chama atenção no livro são todas as ilus­trações mag­ní­fi­cas. Fol­he­an­do ele com mais cal­ma, é pos­sív­el tam­bém perce­ber que muitas das ima­gens não são sim­ples­mente para ilus­trar a nar­ra­ti­va, mas tam­bém fazem parte dela. Alguns con­tos são total­mente visuais, como no caso de “Chu­va ao Longe” ou “Faça Seu Próprio Ani­mal de Esti­mação”, que são feitos total­mente de recortes. Ao lê-los você vol­ta a ser cri­ança, com aque­les olhos admi­ra­dos ten­tan­do ver todos os detal­h­es e pos­síveis histórias escon­di­das por trás de cada desen­ho. Sem falar em todo o cuida­do na impressão do mes­mo, que aliás é um dos grandes méri­tos dos livros da edi­to­ra Cosac Naify.

    Sec­re­ta­mente, eu esta­va ansioso para rece­ber um vis­i­tante estrangeiro — tin­ha tan­tas coisas para mostrar a ele. Pelo menos uma vez eu pode­ria ser um expert da região, uma fonte de infor­mações e de comen­tários inter­es­santes. Por sorte, Eric era muito curioso e esta­va sem­pre cheio de per­gun­tas. Porém, não era o tipo de per­gun­ta que eu esta­va esperando.

    "O búfalo do rio" que sempre apontava na direção certa
    “O búfa­lo do rio” que sem­pre apon­ta­va na direção certa

    Um dos con­tos mais mar­cantes é “aler­tas mas sem alarme”, que é bem ao esti­lo de Crôni­cas Mar­cianas (Edi­to­ra Globo) do Ray Brad­bury, onde cidadãos comuns recebem um mís­sil balís­ti­co para colo­car em seus jardins, sentin­do assim par­tic­i­pantes da segu­rança nacional. Só que o tem­po foi se pas­san­do e aque­les obje­tos gigantes ape­nas ficavam para­dos em seus quin­tais e aos poucos as pes­soas foram desco­brindo maneiras bem cria­ti­vas da dar util­i­dade a eles.

    A história mais bizarra e hor­rip­i­lante é “Os grave­tos”, que con­ta a história de um lugar onde grave­tos andam pelas ruas e enquan­to as cri­anças mais novas ten­tam se diver­tir com eles vestin­do roupas vel­has como se fos­sem espan­talhos, os garo­tos mais vel­hos ado­ram sair baten­do e destru­in­do eles. Os adul­tos sem­pre os reprimem por mex­er com eles, mas nun­ca expli­cam o por quê. Tam­bém há a bem diver­ti­da “nos­sa expe­dição” onde dois garo­tos intri­ga­dos com o que pode­ria ter nos lugares onde o mapa ter­mi­na, vão em bus­ca para saber se real­mente não há nada além daque­le lim­ite do papel e acabam fazen­do uma descober­ta no mín­i­mo intrigante.

    Bem, a sua avó e eu nos casamos lá do out­ro lado dele, muito antes de vocês exi­s­tirem. Claro, os casa­men­tos eram bem mais com­pli­ca­dos naque­le tem­po, não eram essas coisas melosas de hoje em dia. Para começar, a noi­va e o noi­vo eram envi­a­dos para bem longe antes da cer­imô­nia, e só tin­ham per­mis­são para levar uma foto ao par­tir, nada além dis­so, até voltarem, o que podia demor­ar bas­tante tempo.

    Desenhos da contra-capa do livro
    Desen­hos da con­tra-capa do livro

    Ao falar de con­tos fan­tás­ti­cos talvez alguns lem­brem do Coisas Frágeis do Neil Gaiman, mas os dois pos­suem um esti­lo de nar­ra­ti­va total­mente difer­ente. Tan é mais min­i­mal­ista e rela­ciona as histórias mais ao cotid­i­ano, enquan­to Gaiman explo­ra um lado mais mís­ti­co e lendário.

    Shaun Tan
    Shaun Tan

    Shuan Tan é for­ma­do em artes plás­ti­cas e lit­er­atu­ra ingle­sa na Uni­ver­si­dade da Aus­trália Oci­den­tal. Ini­ciou sua car­reira como ilustrador em revis­tas de ficção cien­tí­fi­ca e lançou seu primeiro livro O Obser­vador (The View­er) em 1997. A ideia para Con­tos de Lugares Dis­tantes surgiu de alguns pequenos ras­cun­hos que man­tinha em um cader­no de desen­hos, que pode ser vis­to abaixo em um vídeo que mostra o estú­dio do autor. O site ofi­cial do autor tam­bém é muito legal, seguin­do bas­tante tam­bém o esti­lo de recortes e desen­hos, vale a pena dar uma visitada.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=c9NCUydoJFk

  • A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    Sin­to-me solidária com as mul­heres que assumi­ram suas vidas e que lutam para ter suces­so, o que não me impede, porém, de inter­es­sar-me pelas que não con­seguiram alcançá-lo.

    O bas­tante lúci­do tre­cho aci­ma – reti­ra­do do livro Bal­anço Final de 1972 — define a sinopse de A Mul­her Desilu­di­da (tradução de Hele­na Sil­veira e Maryan A. Bon Bar­bosa, Nova Fron­teira, 2010), da escrito­ra e uma das per­sonas mais con­heci­das do movi­men­to fem­i­nista no cam­po int­elec­tu­al, a france­sa Simone de Beauvoir.

    É basi­ca­mente impre­scindív­el con­hecer ao menos um pouco da tra­jetória de Beau­voir para se com­preen­der a força dos três con­tos de A Mul­her Desilu­di­da e não se ver lendo ape­nas tex­tos sim­plórios da vida de três mul­heres. Con­heci­da por várias situ­ações que vão des­de seu rela­ciona­men­to con­sid­er­a­do bas­tante inco­mum, movi­da pelo int­elec­tu­al de ambos, que atrav­es­sou décadas com o filó­so­fo Jean Paul-Sartre, a relação pas­sion­al e à dis­tân­cia – pas­saram muitos anos se comu­ni­can­do ape­nas por car­tas — com o escritor amer­i­cano Nel­son Algren (con­heci­do por O Homem do braço de Ouro) ou a ousa­da escrit­u­ra dos dois vol­umes de O Segun­do Sexo, Beau­voir viveu con­forme suas próprias regras bus­can­do sem­pre o sen­ti­do de liber­dade. Com a cru­el con­sciên­cia de que ser livre não é uma questão tão sim­ples quan­do se depende das con­vivên­cias soci­ais e o desprendi­men­to dos papéis pré-esta­b­ele­ci­dos, a escrito­ra deu voz e uni­ver­sos fic­cionais ínti­mos da real­i­dade à mul­heres que matavam seus próprios demônios femininos.

    Em a Mul­her Desilu­di­da, Simone de Beau­voir apre­sen­ta três mul­heres, em momen­tos cru­ci­ais de suas vidas, onde a questão do papel fem­i­ni­no – o pré-esta­b­ele­ci­do ver­sus as escol­has próprias das per­son­agens – entra em con­fli­to com a questão da idade e todo o apara­to psi­cológi­co que acom­pan­ha o para­doxo que pode ser agir ora através dos sen­ti­men­tos, ora respei­tan­do suas próprias ide­olo­gias e escol­has. As mul­heres descritas por Beau­voir refletem muito do momen­to, o ini­cio da déca­da de 70, as rev­oluções fem­i­nistas e as novas situ­ações encar­adas por essas mulheres.

    Des­de quan­do o ter­reno bal­dio do bule­var Edgar-Quinet se tornou esta­ciona­men­to? A mod­ernidade da pais­agem me salta aos olhos, todavia não me lem­bro de tê-la vis­to de out­ra for­ma. Gostaria de con­tem­plar lado a lado os dois cenários: antes e depois, e me espan­tar com a difer­ença. Mas não. O mun­do se con­strói sob meus olhos num eter­no pre­sente. Habituo-me tão depres­sa aos seus aspec­tos que ele não parece mudar. (p.11)

    Simone de Beauvoir
    O livro abre com o con­to A idade da dis­crição que tra­ta de uma acadêmi­ca e escrito­ra entran­do na ter­ceira idade, sentin­do-se dis­tante do momen­to que vive, acred­i­tan­do que não con­segue mais ter ale­grias para viv­er. Sua per­son­al­i­dade de mul­her inde­pen­dente, com um casa­men­to de décadas, aparente­mente bem suce­di­do, e car­reira de pro­fes­so­ra uni­ver­sitária, bate de frente com o papel cru­cial e dom­i­nador de mãe. Com um fil­ho adul­to, cri­a­do con­forme seus próprios ideais, ela se depara com um homem dono de sua própria vida e dis­pos­to a tro­car o foco fem­i­ni­no mater­no e apon­tá-lo para sua esposa.

    É clara a difi­cul­dade da per­son­agem em aceitar que não exis­tem eternidades quan­do se tra­ta de quase todas as relações, sejam elas físi­cas ou mate­ri­ais. A par­tir do momen­to que ela se dá con­ta que tudo ao seu redor está em con­stante proces­so de desen­volvi­men­to e que há um ciclo fun­cio­nan­do por trás dis­so, ela sim­ples­mente encara a força da idade e em vários momen­tos se vê melancóli­ca e descrente.

    Tam­bém é isso envel­he­cer. Tan­tos mor­tos atrás de si, lamen­ta­dos, esque­ci­dos. De repente, quan­do leio o jor­nal, des­cubro uma nova morte: um escritor queri­do, uma cole­ga, um anti­go colab­o­rador de André, um de nos­sos cama­radas políti­cos, um ami­go com quem perdemos o con­ta­to (p.75 e 76)

    Monól­o­go, assim como apon­ta o títu­lo, é nar­ra­do por fluxo de con­sciên­cia de uma mul­her per­tur­ba­da pelo divór­cio e aban­dono. Oscilante entre dormir e acor­dar durante uma madru­ga­da de fes­ta na casa viz­in­ha ela reflete, de for­ma bas­tante pas­sion­al entre amor e ódio, sobre como pode­ria ter sido uma esposa e mãe mel­hor já que seus fil­hos aparente­mente estão com o pai. É uma nar­ra­ti­va assus­ta­da e descon­tro­la­da de uma mul­her que perdeu sua úni­ca refer­ên­cia de posição fem­i­ni­na como esposa e mãe, uma situ­ação nada pecu­liar para uma sociedade que durante tan­to tem­po ale­gou ser esse o úni­co papel da mulher.

    O con­to que car­rega o nome do livro é o mais lon­go e tam­bém dá con­tinuidade, de for­ma mais detal­ha­da e próx­i­ma, a questão do pseu­do pro­tag­o­nis­mo da mul­her no casa­men­to. Nar­ra através da intim­i­dade de um diário, escrito em pouco mais de 3 meses, a vida con­ju­gal de Monique, uma mul­her de 44 anos que ten­ta viven­ciar uma relação aber­ta com o mari­do, mas se vê em ple­na decadên­cia psi­cológ­i­ca quan­do este arru­ma uma amante mais jovem e tor­na-se divi­di­do entre a “segu­rança” da com­pan­heira de anos e a juven­tude sen­su­al da amante independente.

    Quan­do se viveu de tal maneira para os out­ros, é um pouco difí­cil começar a viv­er para si. Não cair nas armadil­has da ded­i­cação: sei muito bem que as palavras dar e rece­ber são inter­cam­biáveis e como eu tin­ha neces­si­dade da neces­si­dade que min­has fil­has tin­ham de mim. Nesse sen­ti­do nun­ca ble­fei. (p.145)

    Monique é a per­son­agem mais conc­re­ta das três apre­sen­tadas no livro pois a con­strução de sua per­son­al­i­dade e con­ceitos próprios se dá através da sua descon­strução como mul­her e mãe nar­ra­da por si própria no seu diário. O con­fli­to com o seu cor­po, o sen­ti­do do sexo longe da juven­tude e a difi­cul­dade de se enten­der os lim­ites de um rela­ciona­men­to aber­to são cru­ci­ais para a deses­ta­bi­liza­ção da auto­con­fi­ança da per­son­agem até porque muitas das regras desse jogo – a relação e o sexo entre o casal – foram delim­i­tadas pelo mari­do que decide a hora que entra ou sai da situação.

    Simone e Sartre cli­ca­dos pelo litu­ano Antanas Sutkus
    Percebe-se nas vozes das três mul­heres de A Mul­her Desilu­di­da um tan­to da Simone e seus dile­mas no entorno do fem­i­nis­mo, prin­ci­pal­mente obser­van­do o con­fli­to pes­soal destas que se encon­tram no fato de encar­ar toda uma sociedade de época, basea­da em padrões morais de família e repro­dução. A divisão clara entre a opção de uma vida profis­sion­al ou de man­tene­do­ra do lar é de uma força cru­cial den­tro dos con­tos. Mas tam­bém traz muito do que se con­hece através de out­ras obras da auto­ra e biografias da sua relação com Sartre.

    Simone de Beau­voir con­segue faz­er com que A Mul­her Desilu­di­da seja tan­to suas exper­iên­cias e relatos que ouviu e viu inti­ma­mente das mul­heres de sua época. São histórias ador­nadas pela beleza da lit­er­atu­ra. Ou como uma própria per­son­agem define: Eis o priv­ilé­gio da lit­er­atu­ra – disse eu – As fig­uras se defor­mam, empalide­cem. As palavras, nós as lev­a­mos conosco. (p.83)

  • Sesi Zoom Cultural de julho traz Daniel Galera e Rafael Urban

    Sesi Zoom Cultural de julho traz Daniel Galera e Rafael Urban

    No dia 4 de jul­ho (quar­ta-feira) acon­tece mais uma edição do Sesi Zoom Cul­tur­al, ini­cia­ti­va que dis­cute com o públi­co jovem a lit­er­atu­ra lig­a­da às mais diver­sas artes. O encon­tro deste mês é com o escritor Daniel Galera e o cineas­ta e jor­nal­ista Rafael Urban. A medi­ação é do jor­nal­ista Omar Godoy. A entra­da é gratuita.

    Daniel Galera é escritor, autor dos romances Até o dia em que o cão mor­reu, Cordil­heira e Mãos de Cav­a­lo, e roteirista da graph­ic nov­el Cachalote. Escreveu seu primeiro livro com 16 anos. Em seus livros, Daniel tra­ta de con­fli­tos da vida con­tem­porânea em ficções ambi­en­tadas no meio urbano. Nos últi­mos três anos tem tra­bal­ha­do em um novo romance.

    Rafael Urban é cineas­ta e jor­nal­ista. Foi dire­tor do cur­ta Ovos de Dinos­sauro na Sala de Estar, que já foi exibido em mais de 70 even­tos no Brasil e exte­ri­or e rece­beu mais de 20 prêmios. Ain­da nesse ano fil­ma o próx­i­mo tra­bal­ho, um cur­ta chama­do Max, que é codi­rigi­do por Ter­ence Keller e con­ta a história de um sen­hor que tem oito salas de sua casa e uma vida ded­i­ca­da a coleções de livros, revis­tas, quadros, car­tazes e assinaturas.

    Sesi Zoom Cultural
    Data: 04/07
    Horário: 20h
    Local: Teatro Sesi no Cietep – Auditório Mário De Mari — Av. Com. Fran­co, 1341 – Jardim Botâni­co – Curiti­ba — PR

    Infor­mações aqui.

    Entra­da gratuita.

  • Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao —  Junot Díaz

    Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao — Junot Díaz

    A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao (Record, 2009), do escritor domini­cano Junot Díaz, é o livro per­feito para quem gos­ta de história e de apren­der sobre out­ras cul­turas. Esse romance acla­ma­do como um dos mel­hores livros de 2008 ren­deu à Díaz o Prêmio Pulitzer de ficção e esteve na lista dos livros mais ven­di­dos do The New York Times por mais de vinte sem­anas, chegan­do ao segun­do lugar.

    Pro­fes­sor de cri­ação literária do Mass­a­chu­setts Insti­tute of Tech­nol­o­gy (MIT) e edi­tor da Boston Review, Díaz já é con­sid­er­a­do nos EUA como um dos escritores mais promis­sores de lín­gua ingle­sa da atu­al­i­dade. Sim, Junot Díaz escreve em inglês. O autor cariben­ho se mudou para o esta­do amer­i­cano de Nova Jer­sey quan­do tin­ha ape­nas seis anos, o mes­mo esta­do que cede cenário à grande parte do seu romance.

    No começo de A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao, Oscar, o pro­tag­o­nista, é um meni­no tími­do, fã de ficção cien­tí­fi­ca, obe­so e virgem – o típi­co nerd que não sai da frente do vídeo-game. Ele tem dois grandes son­hos: ser o J. R. R. Tolkien de sua ger­ação e ter um grande amor que seja correspondido.

    Junot Diaz
    Nasci­do na Repúbli­ca Domini­cana afe­ta­da pelos desav­i­sos do dita­dor Gen­er­al Rafael Leónidas Tru­jil­lo, da mes­ma for­ma que o próprio Díaz, Oscar aca­ba por aban­donar Nova Jer­sey para voltar às ter­ras domini­canas, ain­da na ânsia do seu primeiro bei­jo e das grandes con­quis­tas que ele alme­ja. Víti­ma do que ele acred­i­ta ser uma maldição de família, con­heci­da na ilha como fukú, tudo dá erra­do na vida do já adul­to Oscar e na de out­ros mem­bros da família de León.

    Há quem não acred­ite em fukú e culpe a depressão e tendên­cias sui­ci­das do Oscar, somadas ao azar de ter nasci­do um meni­no sen­sív­el e nerd na cul­tura lati­na de cul­tuação da figu­ra do macho, pelo seu azar. Mas e de onde surgiu a má sorte dos seus par­entes e, na ver­dade, de todos que cruzam o cam­in­ho de Oscar e com­pan­hia? O sen­so de mist­i­cis­mo, super­stição, tradição e até mes­mo mág­i­ca que persegue a família é o que faz deste dra­ma uma obra inesquecível.

    Esta epopeia de uma família imi­grante con­ta um pouco da vida dos mil­hões de lati­nos que vivem tão longe de suas ter­ras e par­entes. Díaz faz exten­so uso da lín­gua espan­ho­la (man­ti­do na tradução para o por­tuguês), gírias e palavrões no seu tex­to, fazen­do pos­sív­el iden­ti­ficar a classe social e nív­el de esco­lar­i­dade dos per­son­agens através da linguagem.

    Pos­sivel­mente, o títu­lo do livro faz uma refer­ên­cia indi­re­ta ao con­to “A Feliz Vida Breve de Fran­cis Macomber”, em tradução livre, do escritor Hem­ing­way. Essen­cial­mente, o con­to fala sobre cor­agem e covar­dia, dois dos temas mais recor­rentes des­ta obra de Díaz.

    O romance é rec­hea­do de notas de rodapé que dão uma aula de história domini­cana e de refer­ên­cias cul­tur­ais que vão de H. P. Love­craft, Frank Her­bert e Matrix a Paulo Coel­ho, A Noviça Rebelde, Gabriel Gar­cía Mar­quez e Oscar Wilde — de onde surgiu o nome do nos­so pro­tag­o­nista. Cer­ta­mente foi necessária mui­ta pesquisa, espe­cial­mente para man­ter os fatos rela­ciona­dos ao Tru­jil­la­to mais próx­i­mos o pos­sív­el da real­i­dade, como prom­ete o autor. Eu asso­cio de cara este livro com A Fes­ta do Bode (Alfaguara, 2011), ficção do gan­hador do Prêmio Nobel Mario Var­gas Llosa que tam­bém retra­ta os últi­mos anos de poder de Trujillo.

    Junot Díaz demor­ou onze anos para escr­ev­er a tumul­tua­da vida breve de Oscar, que, na ver­dade, não é nem tão breve assim. Como disse Abra­ham Lin­coln, não são os anos da vida que con­tam, mas a vida em anos.

  • Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Nor­mal­mente a primeira coisa que vem em mente quan­do falam­os em Neil Gaiman é Sand­man, ou algu­ma de suas out­ras Graph­ic Nov­el, mas asso­ciar o nome aos seus tra­bal­hos literários ain­da não é algo muito comum. Acred­i­to que como muitos, ini­cial­mente nem sequer sabia que ele pos­suía tra­bal­hos além dos quadrin­hos e deci­di então ini­ciar min­ha leitu­ra nes­ta nova fac­eta — para mim — do autor pelo livro Coisas Frágeis (2010, Con­rad Edi­to­ra), com tradução de Michele de Aguiar Vartuli.

    É inter­es­sante já avis­ar que se você é daque­les que não gos­ta de saber cer­tas infor­mações antes de ler/assistir algo, aí vai uma dica impor­tante: leia a intro­dução só depois que você tiv­er lido Coisas Frágeis inteiro. Porque nela Neil Gaiman con­ta a história do moti­vo e situ­ação em que escreveu cada um dos con­tos, além de muitas vezes citar no esti­lo de quem se influ­en­ciou. Par­tic­u­lar­mente pre­firo deixar esse tipo de leitu­ra para depois, assim como não gos­to de ler críti­cas antes de ver um filme — as vezes evi­to até trail­ers — para assim poder depois com­parar as min­has impressões com aque­la do autor. Mas se você gostar de saber algu­mas par­tic­u­lar­i­dades antes, é garan­ti­do que são infor­mações que aju­dam e muito em uma com­preen­são mel­hor de cada um dos contos.

    Acho que pos­so afir­mar sem­pre ter sus­peita­do que o mun­do fos­se uma farsa bara­ta e tosca, um pés­si­mo dis­farce para algo mais pro­fun­do, mais esquisi­to e infini­ta­mente mais estran­ho, e de algu­ma for­ma sem­pre ter sabido a ver­dade. (p. 105)

    Coisas Frágeis é com­pos­to de nove con­tos e como não tin­ha ideia do que esper­ar e não haven­do ordem para seguir, deci­di escol­her aque­le que tin­ha o títu­lo mais inter­es­sante e par­ti para a leitu­ra. Emper­rei. Não era algo do tipo que eu que­ria ler naque­le momen­to. Próx­i­mo con­to. Depois de mais duas tro­cas, deci­di final­mente parar e ler um até o final. Desco­bri que o iní­cio de alguns deles é meio arras­ta­do mes­mo, pois a apre­sen­tação dos per­son­agens e situ­ações cos­tu­mam ser feitas de maneira bem pon­tu­a­da em um mar de out­ras infor­mações. Mas logo que você avança mais um pouco na leitu­ra e se ambi­en­ta neste mun­do, muitas vezes nada con­ven­cional, o con­to vai gan­han­do um óti­mo rit­mo, as vezes até bem frenéti­co, onde a últi­ma coisa que você quer faz­er é largar o livro de tão ansioso que fica para saber o seu desfecho.

    O inter­es­sante em todos os con­tos do Coisas Frágeis é que por mais cotid­i­anas e nor­mais que algu­mas situ­ações aparentam ser, sem­pre aparece algum ele­men­to fan­tás­ti­co no meio, mas que não que­bra total­mente esta sen­sação de que aqui­lo pode­ria acon­te­cer com qual­quer um a qual­quer momen­to. E por que não acon­te­cer com você tam­bém? Com certeza seria uma aven­tu­ra incrív­el acom­pan­har o mis­te­rioso dete­tive de Um estu­do em esmer­al­da ou assi­s­tir o curioso rit­u­al do O monar­ca do Vale.

    E então seu son­ho se encheu de deuses: deuses vel­hos e esque­ci­dos, mal-ama­dos e aban­don­a­dos, e novos deuses, coisas assus­tadas e tran­sitórias, ilu­di­das e con­fusas. (p. 175)

    Mas um dos con­tos em par­tic­u­lar, enti­t­u­la­do de O Pás­saro-do-Sol, me cativou de maneira sur­preen­dente! Não só pela excên­tri­ca ideia de um grupo cuja mis­são é exper­i­men­tar tudo que é comestív­el no mun­do, mas tam­bém pelos ele­men­tos mais mís­ti­cos e sim­bóli­cos, car­ac­terís­ti­ca que acred­i­to ser a mais inter­es­sante em Neil Gaiman e que é, de cer­ta for­ma, onipresente em seu tra­bal­ho. Se eu fos­se recomen­dar um con­to para alguém começar a ler Coisas Frágeis, com certeza seria este! Mas vou deixar a curiosi­dade pairan­do mes­mo sobre ele, pois ten­ho receio de estra­gar qual­quer agradáv­el sur­pre­sa que pos­sa vir a quem lê-lo.

    As reuniões men­sais dos epi­cu­ri­anos vêm acon­te­cen­do há mais de 150 anos, des­de a época do meu pai, do meu avô e do meu bisavô, e ago­ra temo que seja necessário parar, porque não res­ta mais nada que nós, ou nos­sos ante­ces­sores no clube, já não ten­hamos comi­do. (p. 135)

    O esti­lo dos con­tos de Coisas Frágeis muda dras­ti­ca­mente, poden­do assim causar uma cer­ta sen­sação de estran­heza se forem lidos muito segui­dos. Por isso recomen­do que sejam lidos com um cer­to inter­va­lo de tem­po, até para poder digerir todas as infor­mações de cada um. Por isso tam­bém, pode ser que alguns não sejam do gos­to de todos, mas que em ger­al o livro pos­sa ser do inter­esse de vários tipos difer­entes de pessoas.

    Acred­i­to que a dica mais impor­tante é: este­ja total­mente aber­to para o ines­per­a­do no iní­cio de cada con­to de Coisas Frágeis. Pois no mín­i­mo será uma aven­tu­ra por lugares, pes­soas e criat­uras fasci­nantes que você nun­ca esper­a­va, mas talvez gostaria, encon­trar. Se ao final de todos eles você ain­da sen­tir um gostin­ho de quero mais, como acon­te­ceu comi­go, foi tam­bém lança­do pela Con­rad a con­tin­u­ação Coisas Frágeis 2. Nos vemos no próx­i­mo livro?

  • Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Estas estórias falam desse ter­ritório onde nos vamos refazen­do e vamos mol­han­do de esper­ança o ros­to da chu­va, água aben­son­ha­da. Desse ter­ritório onde todo homem é igual, assim: fin­gin­do que está, son­han­do que vai, inven­tan­do que vol­ta. (Pre­fá­cio de Estórias Abensonhadas)

    Ten­ho uma grande con­vicção de que grandes leitores sem­pre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, con­ver­sas de ônibus e qual­quer out­ro lugar. Ter essa sen­sív­el per­cepção quan­to ao mun­do me parece bas­tante per­ti­nente quan­do você lê livros como se estivesse ouvin­do uma série de boas histórias, assim como acon­tece com Estórias Aben­son­hadas (Com­pan­hia das Letras, 2012) , de Mia Couto.

    É prati­ca­mente indis­pen­sáv­el a apre­sen­tação da figu­ra do escritor Moçam­bi­cano que comu­mente é colo­ca­do no hall dos grandes escritores fan­tás­ti­cos e inven­tivos. Assim como Gabriel Gar­cía Mar­quez, Guimarães Rosa e Manoel de Bar­ros, Mia Couto recria a real­i­dade ressaltan­do situ­ações com tons de magia. Nada é banal na vida dos per­son­agens que com­põem as suas nar­ra­ti­vas e essas fig­uras, com seu próprio por­tuguês e modo de se expres­sar, cir­cu­lam pelo tex­to dire­cio­nan­do o leitor.

    Estórias Aben­son­hadas é um con­jun­to de con­tos e como sinal­iza­do na intro­dução, foram escritos num perío­do pós-guer­ras — em 1994, ano de lança­men­to do livro, fazia ape­nas dois anos que a Guer­ra Civ­il de Moçam­bique soma­da a Guer­ra da Inde­pên­den­cia que se arras­tou des­de os anos 60, havi­am ter­mi­na­do — e o livro é for­ma­do por con­tos onde fig­uras como o sangue e a guer­ra são ele­men­tos de histórias de recomeço e ilu­mi­nações, como se os per­son­agens estivessem apren­den­do a ver a luz nova­mente e assim recon­stru­in­do suas rotinas.

    Mia Couto escreve com a lin­guagem dos son­hos, opera a palavra como um tra­bal­hador opera o seu mel­hor instru­men­to. E vai além, recria seu uso e funções provan­do que a lín­gua Por­tugue­sa se trans­mu­ta con­forme a sua geografia, é viva. E em Estórias Aben­son­hadas essa lín­gua gan­ha ares de esper­ança num ter­reno onde tudo pre­cisa de recon­strução e mes­mo que a morte este­ja pre­sente em boa parte dos con­tos, não há como escon­der a esper­ança de ir adiante.

    Nas Águas do Tem­po, o con­to que abre o livro, o leitor é apre­sen­ta­dos à magia do rela­to e a importân­cia da figu­ra do avô, um sím­bo­lo do con­ta­dor de histórias. O avô per­mite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fan­tas­mas da guer­ra ain­da cir­cu­lam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários out­ros con­tos, a pre­sença maciça da mitolo­gia da região rep­re­sen­ta­da por fig­uras e palavras próprias dá ordem do tom de oral­i­dade de Mia Couto.

    No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para den­tro, ess­es que usamos para ver os son­hos. O que acon­tece, meu fil­ho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver ess­es out­ros que nos visi­tam. Os out­ros? sim, ess­es que nos ace­nam da out­ra margem. E assim lhes causamos uma total tris­teza. Eu levo-lhe lá nos pân­tanos para que você apren­da a ver. Não pos­so ser o últi­mo a ser vis­i­ta­do pelos panos. (p.13)

    Em out­ros tex­tos como em O Cego Estre­lin­ho é a força da palavra que faz recri­ar ima­gens nun­ca vis­tas. Com uma grande sen­si­bil­i­dade os per­son­agens tem nomes muito sug­es­tivos como é o caso de Estre­lin­ho que, ori­en­ta­do pelas mãos de Gig­i­to é apre­sen­ta­do por um mun­do fan­tás­ti­co e pul­sante e quan­do este é man­da­do à guer­ra — mata­do­ra de esper­anças e cores — o cego pas­sa a ser ori­en­ta­do pela irmã, a Infe­lizmi­na que não vê nada demais no mun­do ali fora.

    O erro da pes­soa é pen­sar que os silên­cios são todos iguais. Enquan­to não: há dis­tin­tas qual­i­dades de silên­cio. É assim o escuro, este nada apa­ga­do que estes meus olhos tocam: cada um é um, des­b­o­ta­do à sua maneira. Entende, mano Gig­i­to? (p.23)

    Boa parte dos per­son­agens de Estórias Aben­son­hadas tem seus pares que con­tra­bal­ançam a fal­ta de esper­ança, como a capa da edição brasileira sug­ere, duas cadeiras frente a frente ven­do o sol nascer. Duas pes­soas são capazes de ini­ciar uma guer­ra como sinal­iza A Guer­ra dos Pal­haços onde dois pal­haços brin­cantes, numa acalo­ra­da dis­cussão, começam uma guer­ra entre os espec­ta­dores que ten­tam inter­pre­tar a per­for­mance. Um tex­to cur­to mas imen­so de ale­go­rias sobre a estu­pid­ez de um conflito.

    Com romances pre­mi­a­dos e igual­mente inven­tivos, Mia Couto demon­stra maior ver­sa­til­i­dade ain­da em con­tos ou crôni­cas porque são relatos cur­tos e boa parte deles pub­li­ca­do no jor­nal por­tuguês Públi­co. O fato de estarem pre­sentes em jor­nal, além de dar uma grande vis­i­bil­i­dade, dialo­ga muito inti­ma­mente com o leitor, mes­mo aque­le desacos­tu­ma­do com o seu tom fan­tás­ti­co. Creio que um dos fatos cru­ci­ais do escritor con­seguir cri­ar essa relação de intim­i­dade é a sua profis­são de biól­o­go que per­mite que ele seja inven­ti­vo unin­do o ser humano e sua relação com o espaço, ambi­ente e o lugar.

    Estórias Aben­son­hadas ultra­pas­sa qual­quer relação sim­plória de leitor e obra, é como se olhásse­mos através de uma janela e con­hecesse­mos ess­es per­son­agens como nos­sos viz­in­hos, ami­gos e par­entes. São histórias fan­tás­ti­cas escritas com a liber­dade de um con­ta­dor de histórias, pois além de Mia não se pren­der à con­veções lin­guís­ti­cas, ele dialo­ga de muito per­to com as nos­sas próprias raízes, é a lin­guagem uni­ver­sal dos sonhos.

  • Companhia das Letras lança quatro novos selos

    Companhia das Letras lança quatro novos selos

    O mun­do livreiro — aqui inclui des­de livrarias, bib­liote­cas e claro, o mer­ca­do edi­to­r­i­al — vive a incerteza sobre o futuro do livro. Aqui no Brasil, o alarde não é de grandes pro­porções porque somente há pouco tem­po começamos um proces­so de democ­ra­ti­za­ção do livro com um cres­cente número de livrarias e edi­toras expandin­do suas alternativas.

    A Com­pan­hia das Letras, uma das maiores edi­toras do país, atua há 25 anos no mer­ca­do edi­to­r­i­al e há pouco menos de um ano anun­ciou sua junção com a famosa edi­to­ra ingle­sa Pen­guin, lança nesse ano mais qua­tro selos para dar con­ta do cres­cente mer­ca­do de livros que o Brasil vem apre­sen­tan­do. Mostran­do que o mer­ca­do está em pleno vig­or, seja no impres­so ou na con­strução da pop­u­lar­iza­ção do e‑book, o anún­cio de novos selos sem­pre deixa os leitores em polvorosa.

    O selo Para­lela vem para suprir um mer­ca­do cres­cente com best-sell­ers de ficção e não-ficção procu­ra­dos e de boa qual­i­dade. As tira­gens serão supe­ri­ores do que as nor­mais da edi­to­ra e serão lança­dos até dois títu­los por mês, começan­do já nesse mês de abril com o romance poli­cial Scar­pet­ta da escrito­ra Patri­cia Corn­well, e O sinal, livro sobre o San­to Sudário e a origem do Cristianismo.

    Os selos Seguinte e Boa Com­pan­hia serão mais volta­dos ao públi­co jovem, lançan­do até 12 títu­los por ano. O primeiro vai abranger o catál­o­go do selo Cia das Letras, onde famoso escritor Lemo­ny Snick­et (Desven­turas em Série), por exem­p­lo, é um dos nomes que pode ilus­trar o catál­o­go do Seguinte. Já a Boa Com­pan­hia vai edi­tar antolo­gias de clás­si­cos brasileiros para for­t­ale­cer a for­mação de leitores.

    E em 2013 a edi­to­ra pas­sa a edi­tar livros pelo selo Port­fo­lio Pen­guin, com cer­ca de 10 títu­los anu­ais, volta­do para o seg­men­to de mar­ket­ing, negó­cios e empreende­doris­mo em ger­al, com suas óti­mas traduções.

    A Com­pan­hia das Letras afir­ma que com o surg­i­men­to de novos e pequenos selos a edi­to­ra pas­sa a viv­er um novo momen­to de maior alcance de leitores, geran­do uma deman­da maior e com mais seg­men­tos. Torce­mos que sim!

  • Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Ler poe­sia é como ler prosa? Ler poe­sia como se lê prosa é desler? Para ler poe­sia ler e rel­er ao relen­to, desli­gan­do o relé do pen­sa­men­to. Desli­gar a face, reli­gar o ver­so. No epi­cen­tro da poe­sia a palavra, a músi­ca, a imagem movem ter­re­mo­tos de imag­i­nação. Para uma sociedade cen­tra­da na fun­cional­i­dade da palavra, que não admite ambigu­idade sub­je­ti­va, ou a comu­ni­cação por exces­so, poe­sia é um desvio que excede a palavra em rit­mo e imagem.

    Fiquei pen­san­do isto quan­do li o Poe­sia é Não (Ilu­min­uras, 2011), de Estrela Lemins­ki. Primeiro li os poe­mas. Depois, a auto­bi­ografia da poeta, nas orel­has do livro. E fol­he­an­do, vi aqui e ali pági­nas com­postas em nuances de cores e tipos difer­entes. Depois li a resen­ha de Mar­cos Pasche no Jor­nal Ras­cun­ho. “Fal­tou Poe­sia”, avi­sou o críti­co, logo no títu­lo. E escreveu um arti­go ante­ci­pan­do sua defe­sa por não criticar a poe­sia e sim a per­son­al­i­dade de Estrela, fil­ha de um casal de poet­as céle­bres. O modo que o críti­co escol­heu é um modo de desler poe­sia, con­cen­tran­do-se na per­son­al­i­dade do poeta e não em sua poe­sia, nem sem­pre con­ti­da ape­nas nos versos.

    Estrela joga com o títu­lo Poe­sia é Não, indi­can­do o que a poe­sia não é. Catarse, obje­to útil, notí­cia, mer­cado­ria, ras­cun­ho de gave­ta, protesto, influên­cia. A neg­a­tivi­dade se lê nos escritos, nas pági­nas grá­fi­cas. Ao deixar de lado o que está escrito e pas­sar a ler o códi­go visu­al, a leitu­ra é outra.Papel de embrul­ho, doc­u­men­to ofi­cial, jor­nal, livro, operária, con­ta e pagado­ra de con­ta, gave­ta, pan­fle­to, ver­bete de dicionário, lit­er­atu­ra, sig­no, as pági­nas grá­fi­cas apon­tam para o que a poe­sia não é. O que ela é , então ?

    Poe­sia é ver o ver­so, o aves­so do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue ado­les­cente”, pode ser que a poe­sia diga, como Estrela, a ale­gria pelo Não, ale­gria de quem cresce e con­hece os praz­eres de viv­er, praz­er da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de ado­lescer, é amadure­cer ado­lescen­do, envel­he­cer ado­lescen­do, mor­rer ado­lescen­do. Ser poeta é não desi­s­tir da infân­cia para se pre­ocu­par em como escr­ev­er, escr­ev­er bem, escr­ev­er para um públi­co, escr­ev­er sagran­do o já sagra­do. Escr­ev­er poe­sia é desescr­ev­er, é não saber, não acer­tar o rit­mo, ler livros de poe­sia e esque­cer, saber lín­guas e con­fun­di-las com a lín­gua da boca. Sem esquec­i­men­to, ignorân­cia, erro, a poe­sia é pobre, por que uma vida per­fei­ta é pobre, ou impos­sív­el. Quer­er que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mun­do deve nascer velho.

    Juven­tude nem sem­pre é vital­i­dade. Vel­hice não é sinôn­i­mo de decrepi­tude. O domínio sobre a lin­guagem, que os críti­cos esper­am dos bons (?) escritores não é sinal de maturi­dade. É sinal de quem tem medo de cri­ar, de quem se pro­tege por trás da ter­mi­nolo­gia letra­da. O jargão int­elec­tu­al não inter­es­sa para a maio­r­ia dos mor­tais. A maio­r­ia silen­ciosa, ao con­trário do que pen­sam os críti­cos, ama a poe­sia — ama ouvir canções pop­u­lares, por exem­p­lo. A maio­r­ia silen­ciosa ama escr­ev­er ver­sos, na ado­lescên­cia cronológ­i­ca ou tar­dia. E a maio­r­ia silen­ciosa se enver­gonha de amar a poe­sia, quan­do o críti­co se lev­an­ta em nome do cânone literário e pre­ga que é pre­ciso ter ver­gonha por amar poe­sia e escr­ev­er bobagens que qual­quer um escreve quan­do o coração dispara.

    Atirem o poeta ao mar”, diz um dos ver­sos de Estrela, evo­can­do o pai, que escreveu um livro juve­nil (Guer­ra den­tro da gente, Sci­p­i­one) no qual um poeta, con­sid­er­a­do o pal­haço da trip­u­lação de uma embar­cação é ati­ra­do ao mar. A úni­ca solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qual­quer sociedade. Que faz­er com os que amam seus encan­ta­men­tos? Não se pode ati­rar os amadores de poe­sia ao mar, não sobraria mar para todos. Prefer­ív­el diz­er ao críti­co não leia seus poe­mas e con­dene a per­son­al­i­dade do poeta. Assim ape­nas um será afo­ga­do por suas más palavras.

    Mas o poeta é trezen­tos ou trezen­tos mil, e seus ver­sos se des­do­bram entre as palavras de ordem. Ape­sar das advertên­cias do críti­co, os leitores atrav­es­sam o tex­to e seus pre­tex­tos e saem atrás de mira­gens. Para os que amam se diver­tir, a poe­sia de Estrela é, sim. 

    *Marília Kub­o­ta, além de colab­o­rado­ra do inter­ro­gAção, escreve no seu blog Micrópo­lis.

  • Café Literário: As múltiplas faces da narrativa

    Café Literário: As múltiplas faces da narrativa

    Deixe-me ver quais de mim vou usar hoje… (Elvi­ra Vigna)

    A nar­ra­ti­va é sim­ples­mente um dos meios de um escritor colo­car no papel todo o vas­to mun­do em que os seus eus vivem. E segun­do eles próprios, o ato de escr­ev­er é lidar com obsessões, deslo­ca­men­to e a neces­si­dade extrema de expressão. Essas afir­mações, feitas pelos escritores Elvi­ra Vigna, Max Mall­man e Menal­ton Braff, na mesa As múlti­plas faces da nar­ra­ti­va, na Bien­al do Livro Rio 2011, per­me­ar­am as opiniões de três fic­cionistas bem difer­entes entre si.

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes é que com a respos­ta de cada escritor, alguns assun­tos se desen­volver­am com várias fac­etas. Para, o tam­bém roteirista, Max Mall­mann, escr­ev­er é deslo­car-se para muitos lugares e se colo­car naque­las situ­ações. Já Menal­ton encara a escri­ta como uma expressão con­tínua do que sente e vê, sua própria ver­bor­ra­gia. E Elvi­ra Vigna luta com suas obsessões quan­do escreve, inclu­sive, aque­las não tão pos­síveis no real como a neces­si­dade de sem­pre matar alguém em suas ficções.

    Obser­van­do as três respostas dadas, se percebe que lidar com os per­son­agens diari­a­mente é quase uma pre­mis­sa para um escritor. Mes­mo que na hora da escri­ta todos eles mudem de nome e posição, per­manecem refletindo um lugar do real, talvez um dos pon­tos que per­mitem a cri­ação de laços entre leitor e a palavra den­tro da ficção. Elvi­ra Vigna admite que não inven­ta abso­lu­ta­mente nada nos seus livros pois não tem imag­i­nação para cri­ar, afir­man­do que todas aque­las pes­soas e vivên­cias estão aqui fora. Afi­nal, nada mais fic­cional que a vida real.

    A per­gun­ta, até aparente­mente clichê, de onde ficam os lim­ites entre escritor e ficção é respon­di­da de ime­di­a­to: O autor é aque­le que escol­he qual ou quais dele próprio irão parar em deter­mi­na­da obra, como se fos­sem peças de ves­tuário para cada situ­ação. Cabe ao escritor a liber­dade de cri­ar, recri­ar, imag­i­nar e enfim, enx­er­gar a vas­ta real­i­dade fornece­do­ra de ficção.

    Elvi­ra Vigna diz que há muito glam­our em torno da roti­na do escritor. Deixa claro que odeia roti­na e por isso mes­mo não escreve todos os dias, mes­mo que con­vi­va diari­a­mente com os per­son­agens das suas ficções. Já Max, que é roteirista de tele­visão, e Menal­ton dizem que sen­tem a neces­si­dade de escr­ev­er todos os dias, mas tam­bém acred­i­tam que cada escritor tem seu próprio tem­po. Alguns escritores garan­tem que pos­suem sua própria roti­na como o amer­i­cano Philip Roth e Luiz Ruffa­to, que já declar­ou isso em entre­vista para o inter­ro­gAção.

    Mes­mo que as roti­nas sejam dis­tin­tas, em um pon­to os três escritores con­cor­dam: escr­ev­er é trans­gredir. E para se ir além não há muitas regras, inclu­sive, Elvi­ra faz menção a um tex­to do escritor norte-amer­i­cano Kurt Von­negut que ele fala sobre a importân­cia de se escr­ev­er e de como ofic­i­nas de pro­dução literária não são milagrosas.

    Há um cer­to glam­our míti­co em saber as for­mas que um autor dá vida aos seus livros e per­son­agens, mas o mais bacana mes­mo é saber que cada um tem os seus méto­dos tão par­tic­u­lares entre si. A nar­ra­ti­va é uma for­ma tão par­tic­u­lar que sem dúvi­da nen­hu­ma tem várias faces, e claro, refleti­das, de uma for­ma ou out­ra, pela face de seus autores.

    Ouça a palestra com­ple­ta: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o down­load)

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  • Livro: Pequena Biografia de Desejos — Cezar Tridapalli

    Livro: Pequena Biografia de Desejos — Cezar Tridapalli

    Uma das car­ac­terís­ti­cas mais mar­cantes da Lit­er­atu­ra pro­duzi­da hoje é jus­ta­mente o bom uso do real­is­mo do dia a dia — con­sid­er­a­do out­ro­ra um obje­to sem âni­mo e inter­esse — como um con­tex­to rico. O curitibano Cezar Tri­da­pal­li, em Peque­na Biografia de Dese­jos (Edi­to­ra 7Letras, 2011), traz a vida comum e seus per­son­agens como forças motrizes para den­tro do romance, dan­do mais sinais de como a lit­er­atu­ra do pre­sente vem ren­den­do fru­tos extrema­mente inter­es­santes, ali­men­ta­dos pelo anon­i­ma­to do cotidiano.

    Desidério é um porteiro que leva uma roti­na insignif­i­cante para a maio­r­ia das pes­soas, o homem pega o mes­mo ônibus todo dia — para quem mora em Curiti­ba, o famoso Ligeirão-Boqueirão — e pas­sa inúmeras horas acor­da­do, lendo e escreven­do. O per­son­agem prin­ci­pal de Peque­na Biografia de Dese­jos é uma espé­cie de anti-herói, só que sem nen­hum tipo de glam­our que ess­es per­son­agens cos­tu­mam ter, con­stru­i­do sob o per­fil de homem comum vis­to pelos olhos do fantástico.

    O pro­tag­o­nista se apre­sen­ta através das nar­ra­ti­vas de suas próprias maze­las cos­tu­radas com a história de out­ros per­son­agens que aju­dam a dar for­ma na sua vida-ficção. A mãe que foge de casa, um pai que só existe fisi­ca­mente, um casa­men­to sem o mín­i­mo de amor e os son­hos de escr­ev­er livros tão geni­ais quan­to os que pas­sa as madru­gadas lendo, são peque­nas peças que for­mam detal­hada­mente o enre­do da vida do personagem.

    Desidério pode­ria ser um homem comum se os livros não o tirassem do maras­mo do cotid­i­ano. Son­hador, sua real­i­dade — des­de sem­pre urbana e crua pela óti­ca do real­is­mo banal — sem­pre foi molda­da con­forme o liris­mo dos livros. É o homem comum, sem osten­tações, mas reple­to de mecan­is­mos que o tiram do con­formis­mo e o colo­cam den­tro de um real­is­mo fan­tás­ti­co, um dos aspec­tos que intro­duz Peque­na Biografia de Dese­jos como uma obra que se ali­men­ta do con­tem­porâ­neo sem pre­cis­ar, em momen­to algum, ser con­fes­sion­al. Pelo con­trário, Desidério não quer con­fes­sar nada, nem sabe usar as palavras fal­adas, ele suprime seus sen­ti­men­tos e acred­i­ta que a sua real redenção sejam as palavras escritas e num livro só seu.

    É prin­ci­pal­mente a paixão e o dese­jo que movi­men­tam a vida de Desidério. Além de ter um fascínio desme­di­do por livros — o homem chega a escr­ev­er tre­chos de livros na mesa da guari­ta — ele encon­tra Adele, uma pro­fes­so­ra de ital­iano, que ali­men­tan­do um amor platôni­co invol­un­tário, ain­da o enco­ra­ja a escr­ev­er sobre todos os sen­ti­men­tos que ele acred­i­ta­va não possuir.

    A nar­ra­ti­va de Peque­na Biografia de Dese­jos é movi­da jus­ta­mente por essa paixão e dese­jo literário que o pro­tag­o­nista desen­volve ao lon­go das suas leituras. O nar­rador faz uso de uma voz ínti­ma que fun­ciona como um off cin­e­matográ­fi­co, apre­sen­tan­do a vida dos per­son­agens com dire­ito a flash­backs. A cada capí­tu­lo, novas histórias vão sendo apre­sen­tadas e cos­tu­radas ao mosaico que for­ma a grande biografia de Desidério. Sem as per­son­agens — e suas insignificân­cias detal­his­tas asso­ci­adas a um e out­ro enre­do literário — o pro­tag­o­nista jamais exi­s­tiria e encar­aria com taman­ho dese­jo a sua própria ficção.

    O espaço onde cir­cu­la o per­son­agem é Curiti­ba, um pon­to inter­es­sante se pen­sa­do sob a situ­ação que boa parte dos romances con­tem­porâ­neos se orga­nizem em out­ras metrópoles do país. A Curiti­ba de Desidério é descri­ta pelo pon­to de vista de um eter­no transe­unte que con­hece bem ape­nas o bair­ro em que viveu, o tra­je­to que faz há tan­to tem­po de casa para o tra­bal­ho, e vice-ver­sa, e claro, a Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná.

    A voz que Tri­da­pal­li faz uso é sufo­cado­ra, dire­ta e reple­ta de refer­ên­cias, o que pode não agradar leitores receosos com o romance con­tem­porâ­neo. Peque­na Biografia de Dese­jos lem­bra obras ao esti­lo de Enrique Vila-Matas, Sara­m­a­go e o fan­tás­ti­co — mais mod­er­a­do — das real­i­dades lati­nas de Gabriel Gar­cia Màrquez e mes­mo assim, man­ten­do sua própria con­strução. Há uma neces­si­dade de res­pi­ração depois de cada capí­tu­lo na saga de Desidério, o que fez min­ha leitu­ra ter con­ta­do com boas pausas entre um capí­tu­lo e out­ro, sendo que isso não é de for­ma algu­ma um prob­le­ma e sim um óti­mo proces­so de assim­i­lação. Além dis­so, é bas­tante líri­co e atu­al o dis­cur­so sem pausa e caóti­co da obra que, mes­mo usan­do muitos recur­sos de lin­guagem con­tem­porânea, man­tém o rit­mo romanesco clássico.

    Peque­na Biografia de Dese­jos nem de longe parece um romance de estreia. É uma ode — e isso é o que mais encan­ta — às paixões e dese­jos que os livros podem causar. É sobre­tu­do, um romance sobre livros para leitores apaixonados.

    Seguem alguns tre­chos do livro:

    ¨Qual a mar­ca que o porteiro de um edi­fi­cio deixaria no mun­do? Pen­sara no livro que havia começa­do e, com estran­ho aliv­io, enfim lhe subiu à face a esper­a­da sen­sação de tris­teza autên­ti­ca, doí­da. Qual a mar­ca que aque­le cara que escreveu O deser­to dos Tár­taros deixara no mun­do? Qual a mar­ca que os quarenta e dois autores lidos por Desidério até ali deixaram no mun­do, no seu mun­do? A respos­ta lhe pare­cia evi­dente, óbvia demais; no entan­to, sen­tia-se enver­gonhado e quase enfure­ci­do por não saber o que respon­der, pois, ain­da que dissesse que as obras dess­es autores fos­sem suas mar­cas, uma voz inter­na insis­tia em pro­por out­ra per­gun­ta: mas para que servem essas mar­cas? Ora, para nos lem­brar de que esta­mos vivos, de que o show tem que con­tin­uar, e que as ilusões devem con­tin­uar sendo ali­men­tadas, e que pre­cisamos con­tin­uar nos per­gun­tan­do para que serve tudo isso.¨ (pg. 90 e 91)

    ¨Assim se arras­tam os dese­jos humanos, às vezes céleres, sor­ri­dentes e fagueiros como cri­anças no cam­po ou pro­pa­gan­das de mar­ga­ri­na, às vezes entre­va­dos, cujos movi­men­tos úni­cos pare­cem ser fas­ci­c­u­lações invol­un­tárias. De uma for­ma ou de out­ra, com­preen­di­dos todos os matizes pos­síveis nesse entremeio, estão sem­pre mor­ren­do sem se terem satisfeitos.¨(pg.218)

  • Porta na Cara: Férias do Barulho, três recomendações de leitura

    Porta na Cara: Férias do Barulho, três recomendações de leitura

    Olá. Você pode me chama de Bruno, mas o que eu mais quero é que você me chame de ami­go. Esta­mos cer­tos? Eu acred­i­to que sim. Então pegue na min­ha mão e vamos embar­car nes­sa empre­ita­da juntos.

    Pen­san­do em você, caro leitor (a) jovem e baladeiro (a), eu vou aqui relatar três livros com selo de qual­i­dade “Que Trem Bão, Sô” para tem­po­ra­da de férias que está por vir. Mas olha só, livros são legais, mas tudo tem lim­ite. Eles não vão deixar você mais inteligente ou algo do tipo. Como diria o sábio Arnal­do Bran­co: se quis­er posar de inteligente, use um cachim­bo. Enfim, segue o baile.


    Ruí­do Bran­co, Don DeLil­lo – Um per­son­agem que usa túni­ca e ócu­los escuro para lecionar pre­cisa — mais do que nun­ca — ser ama­do. E como não amar Jack Glad­ney, um pro­fes­sor uni­ver­sitário pio­neiro no estu­do de Hitlerolo­gia (!), mas que não sabe falar uma palavra em alemão? Ruí­do Bran­co é foca­do na vida desse pro­fes­sor excên­tri­co, sua família nada con­ven­cional e a sua fasci­nação por um assun­to pouco queri­do: A morte. Além de tudo, há um aci­dente nuclear em sua cidade e um sujeito extrema­mente engraça­do chama­do Mur­ray. Mais não pos­so con­tar, mas pos­so diz­er que DeLil­lo influ­en­ciou uma ger­ação de escritores como David Fos­ter Wal­lace, Bret Eas­t­on Ellis, Chuck Palah­niuk, entre out­ros. O romance inspirou uma músi­ca do Mog­wai chama­da White Noise (duh), que está no álbum Hard­core Will Nev­er Die (but you will) (2011).


    Eu Falar Boni­to um Dia, David Sedaris – As rem­i­nis­cên­cias de David Sedaris são uma das coisas mais engraçadas que já li em anos. Mas não espere um cli­ma Clarah Aver­buck de falar do próprio umbi­go, nada dis­so. Sedaris tra­bal­ha com engen­ho rela­tan­do sua tem­po­ra­da em sube­m­pre­gos, sua fase “artís­ti­ca”, sua família para lá de estran­ha e como seu namora­do, Hugh, o aguen­ta mes­mo David sendo desagradáv­el a todo instante. Seus con­tos tam­bém podem ser vis­tos como pequenos ensaios sobre gente comum, ralan­do para ter uma vida digna, extrema­mente bem escrito. David Sedaris é colab­o­rador fre­quente de revis­tas como New York­er, Esquire e tan­tas out­ras. Bril­ha muito esse rapaz. 


    The Alco­holic, Jonathan Ames TREVAS. Assim mes­mo, com caps lock e tudo, é a palavra per­fei­ta para descr­ev­er essa HQ de Jonathan Ames, roteirista do seri­ado Bored to Death, da HBO. Jonathan (o per­son­agem, não o autor) quan­do jovem, era um óti­mo aluno até con­hecer o álcool. Sua vida cai num abis­mo gigan­tesco, mas ele con­segue se safar do prob­le­ma e vira um escritor de romances poli­ci­ais de suces­so – claro que o álcool vol­ta para tornar a vida de nos­so herói um infer­no dos dia­bos nova­mente. Além dis­so, a tra­ma con­ta com sua relação com seu cha­pa, Sal, que não é das mel­hores. Nota 10 de dez estre­las pos­síveis. Con­fi­ra para enten­der porque virei um fã con­strage­dor desse autor. 

    Espero que as recomen­dações agra­dem pelo menos um ou out­ro jovem inter­es­sa­do nes­sas coisas. Estou aqui para con­tribuir com seu bem estar. É o mín­i­mo que pos­so faz­er por vocês, lin­dezas. Até a próx­i­ma e evitem serem fla­gra­dos fazen­do besteira. Sabe­mos que assim é fei­ta a juven­tude, mas vamos com calma.

    Boas férias a todos.

  • Crítica: Meia Noite em Paris

    Crítica: Meia Noite em Paris

    A real­i­dade ali­men­ta a ficção e vice-ver­sa e para um escritor a relação das duas pode, inclu­sive, ser ter­apêu­ti­ca. Em Meia Noite em Paris (Mid­night In Paris, Espanha/E.U.A., 2011), Woody Allen colo­ca um escritor — sem­pre uma per­son­ifi­cação de si mes­mo — cara a cara com seus ído­los, dan­do a ele uma chance para ali­men­tar ain­da mais sua paixão pelo passado.

    Gil Pen­der (Owen Wil­son) é um escritor frustra­do que tra­bal­ha com roteiros hol­ly­wood­i­anos e está noi­vo de Inez (Rachel McAdams). Ele e a noi­va deci­dem acom­pan­har os pais dela numa viagem de negó­cios até Paris, a cidade, que segun­do Gil, man­tém os espíri­to dos anos áure­os da Lit­er­atu­ra e que o inspi­ra pro­fun­da­mente. Além de nos­tál­gi­co, o escritor está con­fu­so em ter que lidar com sua vida super­fi­cial de roteirista e noi­vo de uma mul­her que em pouco con­diz com suas ideias. E é passe­an­do pela mág­i­ca Paris que Gil Pen­der vai ali­men­tar sua real­i­dade com boas dos­es de uma diver­ti­da mág­i­ca literária onde seus ído­los o aju­dam a dar rumos para sua vida.

    Woody Allen é sem­pre o mes­mo e de for­ma nen­hu­ma essa afir­mação é ruim. O dire­tor apos­ta no seu esti­lo para sem­pre tratar assun­tos diver­tidos e com boas dos­es de inteligên­cia e sar­cas­mo. Em Meia Noite em Paris é a magia de suas próprias paixões que mesclam o son­ho e o real em situ­ações que não são absur­das e sim total­mente dese­jáveis. O lon­ga tem um cli­ma que lem­bra bas­tante A Rosa Púr­pu­ra do Cairo (1985) em que a per­son­agem de Mia Far­row dese­ja muito a ficção mas não sabe lidar com ela quan­do esta se tor­na a sua realidade. 

    Talvez na atu­al­i­dade, a român­ti­ca Paris não ofer­eça mui­ta inspi­ração literária, mas no ini­cio do sécu­lo a cap­i­tal france­sa era o des­ti­no de boa parte dos grandes escritores — que vivi­am seu auge — em bus­ca de inspi­ração na van­guardista cap­i­tal cul­tur­al e fug­in­do da fal­ta de recon­hec­i­men­to à lit­er­atu­ra na Améri­ca. A cap­i­tal france­sa da época, habita­da pela arte e cul­tura, é a que se apre­sen­ta em Meia Noite em Paris. Ao invés de ape­nas um enre­do como des­cul­pa para exibir os pon­tos turís­ti­cos da cidade, o lon­ga traz um uni­ver­so oníri­co e deli­cioso para o espec­ta­dor, seja ele um nova­to ou um vel­ho con­heci­do dos filmes do americano.

    Um dos pon­tos mais inter­es­santes no elen­co de Meia Noite em Paris é jus­ta­mente a escol­ha de atores que cos­tumeira­mente atu­am em filmes mais com­er­ci­ais estarem em exce­lentes atu­ações. Owen Wil­son real­mente impres­siona no papel de Gil Pen­der, um Woody Allen mais alto e loiro, mas que em nen­hum momen­to deixa de ter o sar­cas­mo, a gagueira e a neu­rose típi­cas dos per­son­agens alter-ego do cineas­ta. Já Mar­i­on Cot­ti­lard empres­ta seu charme francês para uma per­son­agem de época incrív­el, sem citar tam­bém os out­ros atores que inter­pre­tam as fig­uras cânones da Lit­er­atu­ra e Artes Pás­ti­cas memoravelmente.

    Mas Meia Noite em Paris não se des­ti­na a ser ape­nas um filme sobre paixões literárias com ares de hom­e­nagem. O lon­ga traz à tona muito das cos­tumeiras críti­cas — e ao mes­mo tem­po paixões — do dire­tor sobre o pas­sa­do e a val­oriza­ção dele,superando a pre­mis­sa do que o anti­go é supe­ri­or ao atu­al. Ele pro­va que de for­ma nen­hu­ma desiste do seu próprio estilo.

    Ain­da, Allen colo­ca à pro­va e faz pia­da — e boas piadas — do int­elec­tu­al­is­mo acadêmi­co. O dire­tor pro­va que a ver­dadeira arte é aque­la em que a vida exper­i­men­ta a arte e vice-ver­sa, deixan­do mais claro o esti­lo que mar­cou a fil­mo­grafia do diretor. 

    Sim, Woody Allen é sem­pre o mes­mo e isso nun­ca será prob­le­ma. Com Meia Noite em Paris — vale ressaltar que é o filme com maior número de cópias de filmes do dire­tor no Brasil até hoje — deixa claro que seus filmes não são para uma mino­ria e muito menos de cun­ho int­elec­tu­al. O lon­ga vale para qual­quer tipo de expec­ta­dor que vá em bus­ca de risos ou em bus­ca de genial­i­dade. Com certeza o filme vale o ingres­so e inúmeras vezes se possível.

    Um úni­co porém é o car­taz de divul­gação no Brasil ser tão pouco con­dizente com o filme em si. Vale a pena con­ferir o belís­si­mo tra­bal­ho do car­taz inter­na­cional, um mix entre a figu­ra do escritor Gil Pen­der e o quadro A Noite Estre­la­da de Van Gogh.

    Out­ras críti­cas interessantes:

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=kdgdX2Sra5Y

  • Entrevista Lau Siqueira: Poesia a vida inteira

    Entrevista Lau Siqueira: Poesia a vida inteira

    O poeta Lau Siqueira nasceu em Jaguarão (RS), em 21 de março de 1957. Começou a pub­licar poe­mas no Jor­nal Cor­reio do Povo, de Por­to Ale­gre, nos anos 70. Seu primeiro livro foi O Comí­cio das Veias, pub­li­ca­do em 1993. Seguem O Guardador de Sor­risos (1998), Sem Meias Palavras (2000). Par­ticipou das antolo­gias Mário Quin­tana – 1985, Na Vira­da do Sécu­lo — Poe­sia de Invenção no Brasil (Landy, 2002) e Agen­das da Tri­bo. Há 20 anos mora em João Pes­soa (PB), e há out­ro par de anos man­tém o blogue Poe­sia Sim

    Lau Siqueira tam­bém esteve em Curiti­ba lançan­do o livro Poe­sia Sem Pele.

    Teu nome é Lau­re­ci Siqueira . De onde vem o “ Lau”?

    O que é o nos­so nome? É o que está na cédu­la de iden­ti­dade ou é o nome no qual as pes­soas nos recon­hecem? Nem sem­pre essas coisas coin­ci­dem. Acho que este é o meu caso. Na min­ha iden­ti­dade está escrito Lau­recí Siqueira dos San­tos. Foi assim que meu pai me bati­zou. No entan­to, nem ele me chama­va pelo nome de batismo. Meu apeli­do de infân­cia era Dido. Até hoje alguns ami­gos de infân­cia lá de Jaguarão, me chamam assim. O “codi­nome” Lau foi se empoderan­do nat­u­ral­mente da min­ha existên­cia e da min­ha inex­istên­cia. Tudo porque quan­do apre­sen­ta­do às pes­soas a con­fusão apare­cia logo: Laude­cir, Lau­re­mi, Laude­ci?… As pes­soas sim­pli­fi­cavam nat­u­ral­mente, rap­i­da­mente, reduzin­do para Lau. Isso acon­te­ceu muito com cole­gas de tra­bal­ho e na esco­la, prin­ci­pal­mente, mas em out­ros espaços tam­bém . Depois veio o primeiro livro e eu pen­sei que era mais coer­ente assi­nar o nome pelo qual eu já esta­va con­heci­do entre os ami­gos. Enfim, se tudo tem uma história, esta min­ha história é assim. O nome tam­bém expli­ca uma poe­sia que bus­ca se despir das sonori­dades desnecessárias. Assim, o meu nome literário é tam­bém mín­i­mo e ao mes­mo tem­po de den­sa sonoridade.

    Você nasceu em Jaguarão , pas­sou a infân­cia, lá, depois morou em Por­to Ale­gre ? Con­ta um pouco sobre a tua juventude.

    É ver­dade, nasci em Jaguarão, cidade históri­ca e muito boni­ta, às mar­gens de um rio (Rio Jaguarão) que cor­ta a fron­teira com o Rio Uruguay. A cidade tem uma vida cul­tur­al inten­sa, pro­duzin­do uma Feira Bina­cional do Livro onde farei uma sessão de autó­grafos no mês de novem­bro. Mor­ei lá até os 15 anos e fui para Por­to Ale­gre, de onde voltei no final do serviço mil­i­tar para aju­dar a cuidar do meu pai que esta­va muito doente. Assim, fiquei nova­mente em Jaguarão no ano de 1977, até que meu pai mor­reu no dia 3 de dezem­bro e em janeiro de 78 voltei para Por­to Ale­gre onde mor­ei nova­mente até me mudar para a Paraí­ba, “de mala e cuia”, em 1985. Este é o resumo da ópera.

    Por que mudou do Rio Grande para a Paraíba?

    Por motivos muito par­tic­u­lares. Eu casei na Paraí­ba, vivi casa­do 13 anos e depois divor­ciei. Mas aí já tin­ha duas fil­has para dar con­ta dos meus afe­tos e das min­has respon­s­abil­i­dades de pai apaixon­a­do e fui fican­do. Hoje ten­ho uma neta, tam­bém por aqui. Além dis­so, o povo paraibano é muito espe­cial, muito acol­he­dor e sem­pre me sen­ti queri­do por aqui. Hoje me sin­to um ser­tane­jo do pam­pa ou um pam­peano do sertão que mora num dos litorais mais belos do País. Não é difí­cil largar tudo e vir pra cá. Os encan­tos são muitos. A cap­i­tal da Paraí­ba é a ter­ceira mais anti­ga do país. É uma das cidades mais verdes do país e ain­da não está assim tão caóti­ca. Aqui se con­vive com pas­sa­do e futuro numa mes­ma avenida. 

    Em Por­to Ale­gre você con­heceu Mário Quin­tana ? Que lem­brança tem dele ? Que out­ros poet­as foram impor­tantes para sua for­mação e informação ?

    Mário era uma per­son­al­i­dade das ruas de Por­to Ale­gre. Quem andou pelo cen­tro da cap­i­tal gaúcha até os anos 80, pelo menos algu­ma deve ter vis­to o poeta cam­in­han­do pela Rua da Pra­ia, pelas ruas do cen­tro. Ele tin­ha hábitos reg­u­lares. Mora­va no Hotel Majes­tic, onde hoje é a Casa de Cul­tura Mário Quin­tana. Toma­va café sem­pre no anti­go Ryan, gosta­va de uma sal­a­da de fru­tas no Mer­ca­do Cen­tral. Eu vi Mário muitas vezes, na Feira do Livro, na anti­ga Livraria do Globo, na Bib­liote­ca Públi­ca onde até assisti um recital com ele, nos anos 80. Tam­bém tive o priv­ilé­gio de entre­vistá-lo, jun­ta­mente com a jor­nal­ista Joana Belarmi­no, em janeiro de 1987. Enfim, além dis­so, podia encon­trá-lo nos livros que escreveu e traduz­iu. A primeira tradução de Proust que li, foi sua. Ele tra­bal­ha­va no jor­nal Cor­reio do Povo e quan­do o jor­nal fechou, pude vê-lo em uma passea­ta de jor­nal­is­tas pelas ruas de Por­to Ale­gre. Acho que foi sim um poeta impor­tante para a min­ha for­mação, mas eu admiro muitos poet­as. Inclu­sive me sin­to a von­tade para diz­er que não gos­to de tudo que leio nos poet­as que admiro. Sin­to da mes­ma for­ma quan­to aos meus con­tem­porâ­neos. Sou um escritor abso­lu­ta­mente aber­to às influên­cias e não me pre­ocupo em ser engoli­do por algum esti­lo. Acho que quan­to maiores e mais diver­si­fi­cadas as leituras, mais pos­si­bil­i­dades temos de con­stru­ir uma lin­guagem sin­gu­lar, que não seja a mais pura e bela diluição, a imi­tação de algum poeta ama­do. Enfim, os poet­as que mais me fasci­nam são os que cam­in­ham no fio da naval­ha, os que bus­cam o extremo, a margem do erro… o risco permanente.

    E a poe­sia, quan­do se tornou impor­tante? Ao con­trário de tan­tos, você não começou escreven­do poesia…

    A poe­sia foi se tor­nan­do grada­ti­va­mente impor­tante pra mim. Na ado­lescên­cia eu detes­ta­va poe­sia. Apren­di a gostar com os român­ti­cos Cas­tro Alves e Fagun­des Varela por motivos abso­lu­ta­mente extra-literários. Um pelo dis­cur­so agu­do con­tra o sitema de escrav­is­mo da monar­quia brasileira, out­ro pela dor de ter per­di­do um fil­ho. Dig­amos que não come­cei a escr­ev­er poe­sia, mas tam­bém não come­cei escreven­do gênero algum. Escr­ev­er era ape­nas uma for­ma de res­pi­rar mel­hor num mun­do em que o silên­cio ger­a­va o medo e tudo era de uma vio­lên­cia assus­ta­do­ra. Cresci numa área de segu­rança nacional, em ple­na ditadu­ra. Acho que isso tudo me ensi­nou uma for­ma de ver as coisas. Escr­ev­er é um ato úni­co e con­tín­uo. Sin­to que des­de sem­pre estive escreven­do o mes­mo livro, mes­mo já ten­do pub­li­ca­do cin­co inédi­tos e um pela Coleção Dul­cinéia Cata­do­ra que con­sidero, talvez, o mais impor­tante de todos. Procuro sem­pre fugir dos rótu­los e, pra diz­er a ver­dade, algu­mas vezes ques­tiono até mes­mo o fato de ser chama­do de poeta. O que é ser poeta? Eu acho que ser poeta é exata­mente não ser.

    Par­ticipou do movi­men­to Arte Postal ? O que era este movimento ?

    Como se diz aqui no Nordeste, fui me metendo meio que de “enx­eri­do” e acabei tro­can­do toques com nomes impor­tantes do movi­men­to arte-postal e com artis­tas da van­guar­da visu­al, como Paulo Brusky, Sama­r­al, Hugo Pontes, Moa­cy Cirne e Con­stança Lucas. Pes­soas que depois acabei con­hecen­do pes­soal­mente (menos Sama­r­al que fale­ceu pre­mat­u­ra­mente) e hoje são meus ami­gos. Con­heci mui­ta gente bacana, mui­ta cri­ação na área da Poe­sia Visu­al que cir­cula­va como se estivesse ante­ci­pan­do o que hoje temos na inter­net. Eu envi­a­va fanzines que pro­duzia para divul­gar min­ha pro­dução poéti­ca, min­has exper­iên­cias, mes­mo antes de sequer pen­sar em pub­licar livros. Fazia um orig­i­nal numa fol­ha de ofí­cio e imprim­ia em aero­gra­mas, encam­in­han­do não ape­nas para out­ros mil­i­tantes da arte postal, mas sele­cio­nan­do aleato­ri­a­mente endereços nas vel­has lis­tas tele­fôni­cas e encam­in­han­do cor­re­spondên­cias poéti­cas, geral­mente anôn­i­mas. Enfim, no meu caso foi da for­ma como hoje se envia spam pela internet.

    Você tra­bal­hou na sec­re­taria de cul­tura de João Pes­soa ? Que car­go exerceu ? Quais os feitos mem­o­ráveis de sua pas­sagem por lá ?

    Na ver­dade, fui o dire­tor exec­u­ti­vo da Fun­dação Cul­tur­al de João Pes­soa – FUNJOPE, entre 2007 e 2008. É a Fun­dação que dirige as políti­cas de cul­tura na cidade. Não temos Sec­re­taria Munic­i­pal de Cul­tura aqui. De 2005 a 2006, eu era o dire­tor adjun­to na gestão do ator Luiz Car­los Vas­con­ce­los que fez o médi­co em Carandiru, Baile Per­fuma­do e out­ros filmes. Ele se afas­tou para fil­mar Pedra do Reino, na Rede Globo e eu assu­mi. Depois veio o Chico Cesar e ago­ra a Fun­dação é dirigi­da por Mil­ton Dor­nel­las, um ami­go músi­co dos bons que foi meu adjun­to. Por­tan­to, tive­mos teatro, lit­er­atu­ra e músi­ca na direção da Fun­dação nos últi­mos anos. Olha, para falar dos feitos mem­o­ráveis, não sei se ten­ho jeito. Até porque ess­es feitos não são meus. Vou falar de algu­mas coisas que con­sidero rel­e­vantes, como ter cri­a­do o depar­ta­men­to de Lit­er­atu­ra na Fun­dação, coisa que antes não exis­tia; tam­bém assinei jun­ta­mente com o secretário da Edu­cação da época, Wal­ter Galvão, a cri­ação da primeira bib­liote­ca públi­ca do municí­pio de João Pes­soa. Na ver­dade, lev­a­mos arte e cul­tura para prati­ca­mente todos os bair­ros da cidade e desta­co aí o pro­je­to Cir­cuito Cul­tur­al das Praças que até hoje visa aproveitar os anfiteatros que foram cri­a­dos pela Prefeitu­ra nas praças públi­cas para apre­sen­tação sem­anal de gru­pos da cidade, em todas as áreas, em todas as estéti­cas. Tra­bal­hamos muito pela preser­vação da diver­si­dade cul­tur­al, pela preser­vação das tradições da cul­tura pop­u­lar, dos bens ima­te­ri­ais, trazen­do para a cena expressões que se encon­travam mar­gin­al­izadas, como as Cam­bindas, o Cav­a­lo Mar­in­ho, o Boi de Reis, o Coco de Roda, o Babau, o Coco de Embo­la­da, o tradi­cional for­ró pé-de-ser­ra que hoje Chico Cesar bus­ca preser­var no Esta­do, enquan­to Secretário de Cul­tura da Paraí­ba. Até mes­mo o Cordel anda­va deix­a­do de lado porque a gestão ante­ri­or bus­ca­va preser­var as ações de pão e cir­co, deixan­do a cul­tura na mín­gua. Nós afir­mamos as políti­cas de cul­tura den­tro da gestão. Pau­ta­mos politi­ca­mente a cul­tura na cidade. Dialog­amos com a cena con­tem­porânea, apoian­do a cri­ação de even­tos under­grounds ou pop­u­lares, aju­damos a con­sol­i­dar aqui o Fes­ti­val de Cin­e­ma de Lín­gua Por­tugue­sa, o CINEPORT, imple­men­ta­mos ofic­i­nas de arte pela cidade inteira, bus­camos a qual­i­dade musi­cal para os nos­sos even­tos de verão que hoje ref­er­en­ci­am João Pes­soa nacional­mente. A cidade tem hoje um dos mais impor­tantes fes­ti­vais de verão do país, o Estação Nordeste. Na ver­dade tudo isso foi fru­to de um debate cole­ti­vo que vin­ha se for­man­do através dos anos, nos instru­men­tos da luta dos artis­tas, como o Musi­clube da Paraí­ba, nas idéias do gru­pos como Jaguaribe Carne, com Pedro Osmar, Chico Cesar e Paulo Ró, de pen­sadores e gestores da cul­tura paraibana como Car­los Aran­ha e Fer­nan­do Abath… Enfim, bus­camos preser­var a iden­ti­dade cul­tur­al nordes­ti­na e dialog­ar com a con­tem­po­ranei­dade. São essas as idéias que ain­da prevale­cem por lá. Não são coisas min­has, relevân­cias min­has, mas questões cole­ti­vas, debati­das e imple­men­tadas cole­ti­va­mente. Por­tan­to, estive den­tro de um proces­so e não fiz nada soz­in­ho. E esse é o que foi o difer­en­cial e que ain­da está sendo. Foi uma gestão de com­pan­heiros e con­tin­ua sendo uma gestão de com­pan­heiros e com­pan­heiras. Como diz Chico Cesar, no meu tem­po, eu fui “ape­nas o orde­nador de despe­sas”. (risos)

    Para que ou para quem serve a poesia ?

    A poe­sia não serve para abso­lu­ta­mente nada, ain­da bem. Não existe nada mais inútil que a dana­da da poe­sia. Para quem serve? Sei lá… acho que serve de pano de fun­do aos que curtem jog­ar amare­lin­ha com psiquia­tras que inves­tigam as pro­fun­dezas do espíri­to humano.

    Um poeta pre­cisa ter grupo, site, blogue, livro , ser dinâmi­co, ati­vo, empreende­dor ? Pre­cisa gan­har prêmios, rece­ber bol­sas de cri­ação literária e coisas tais ?

    Um poeta pre­cisa ter con­sciên­cia do seu ofí­cio que é: tra­bal­har, tra­bal­har, tra­bal­har… Tra­bal­har para sus­ten­tar o cadáver desajeita­do que é e tra­bal­har exaus­ti­va­mente a palavra, escreven­do ou não. Então ele pode ter grupo, pode ter blog, ser dinâmi­co, ati­vo, pas­si­vo, malu­co, empreende­dor, bundão… Ele só não pode achar que já está pron­to, que já é uma cele­bri­dade por ser razoavel­mente con­heci­do ou elo­gia­do pelos ami­gos. Um poeta nun­ca é uma cele­bri­dade. Pelo menos, não deve pen­sar que é. Porque aí ele terá mor­ri­do e será ape­nas uma camisa e uma calça flu­tuan­do pelas ruas em bus­ca de algum tipo de imor­tal­i­dade. O poeta não pode ter medo de arriscar-se. Ser poeta é não ter medo do abis­mo, ser poeta é cor­rer riscos per­ma­nen­te­mente. É não ter medo do ridícu­lo. Ele pode até rece­ber prêmios, bol­sas de cri­ação literária, mas acho com­pli­ca­do alguém achar que pode escr­ev­er um grande livro ape­nas porque rece­beu uma bol­sa de cri­ação literária. Poe­sia é como diz meu queri­do poeta Ronald Augus­to, “coisa nen­hu­ma” e por­tan­do o poeta tem que estar pre­ocu­pa­do é com coisa nen­hu­ma mes­mo. O poeta pre­cisa viv­er inten­sa­mente a vida (como qual­quer pes­soa), viv­er pro­fun­da­mente a palavra e bus­car exper­i­men­tar esse mis­tério que é a pul­sação dos seus movi­men­tos, dos seus sig­nifi­ca­dos den­tro da invenção poéti­ca, den­tro das pos­si­bil­i­dades de trans­gressão dos próprios processos.

    Você lançou teu livro Poe­sia sem Pele na Sem­ana Anti­man­i­co­mi­al, na Paraí­ba. Como a lou­cu­ra pode ser arte na cidade ?

    Sim, acho que a poe­sia não pode ser enga­ja­da — emb­o­ra pos­sa ser temáti­ca. No entan­to, o poeta pode escol­her entre ser um cidadão enga­ja­do ou não. Eu estou enga­ja­do na Luta Anti­man­i­co­mi­al, con­tra o anti­go e crim­i­noso mod­e­lo dos choques, das lobot­o­mias… ações que viti­maram pes­soas do meu mais pro­fun­do afe­to. Des­de muito novo estou enga­ja­do nas questões humanas. Na ver­dade eu sabia e sei que cuidar do out­ro é cuidar de si mes­mo. E acho que a arte é uma das curas da humanidade. Por isso, a lou­cu­ra pode ser arte na cidade.

    quar­ta capa

    o poeta

    é o que bus­ca na palavra

    a dimen­são do átomo

    o silên­cio extremo

    por detrás de cada fato

    o poeta é o etéreo e o ácido

    na pele dos val­ores estáticos

    estéti­cos são seus baralhos

    o poeta é o vapor bara­to e o

    lance de dados

    o aca­so e o atalho

    macalé e mallarmé

    no mes­mo saco

    o poeta é um guapo

    (de: POESIA SEM PELE , Casa Verde, 2011. Pedi­dos pelo email: poesiasempele@gmail.com)

  • Livro: O Sobrevivente — Chuck Palahniuk

    Livro: O Sobrevivente — Chuck Palahniuk

    O Sobre­vivente (Edi­to­ra Nova Alexan­dria, 2003) foi incumbido a ser o suces­sor da bem rece­bi­da adap­tação de O Clube da Luta, escrito pelo amer­i­cano Chuck Palah­niuk. O autor é o nome mais lem­bra­do — até mais que o dire­tor David Finch­er — quan­do se comen­ta do lon­ga-metragem estre­la­do por Brad Pitt e Edward Nor­ton. O filme deu entra­da ao escritor, que até aque­le momen­to era só um cara mal com­preen­di­do, um mar­gin­al mod­er­no da lit­er­atu­ra amer­i­cana, ao grande públi­co. Mar­ca­do por uma lin­guagem con­tro­ver­sa, Palah­niuk pas­sou a escr­ev­er muito e sem demo­ra, repetindo sem­pre a fór­mu­la de lin­guagem que o dera tan­ta visibilidade.

    O homem da vez é Ten­der Bran­son, um dos poucos sobre­viventes da Igre­ja do Cre­do — um mis­to de igre­ja que pos­sui cos­tumes puri­tanos e tendên­cias sui­ci­das com sociedade fecha­da — e não entende muito qual a sua função fora dos parâmet­ros esta­b­ele­ci­dos pela sua religião. Não que a sociedade fora da Igre­ja tam­bém não impon­ha regras, mas a supos­ta liber­dade de escol­ha que se diz haver, inco­mo­da esse homem. Bran­son é um empre­ga­do esforça­do numa man­são que nem ele mes­mo con­hece os donos, é manía­co por orga­ni­za­ção e sabe todos os truques para man­ter a ¨ordem¨. Mas toda essa fal­sa per­feição esconde lados som­brios dele como, por exem­p­lo, sua iden­ti­dade notur­na de con­sel­heiro para sui­ci­das via tele­fone. No dia em que Ten­der resolve mudar as regras, sua vida sim­ples­mente dá uma revi­ra­vol­ta rumo à situ­ações pouco prováveis, mas realistas.

    Como todo bom per­son­agem anti-herói que se preze, Bran­son vive os momen­tos dis­tin­tos de subi­da ao cli­max, indo até a máx­i­ma de poder — que ele acred­i­ta ter — e sim­ples­mente decai, pois a que­da é inevitáv­el e ele sabe muito bem dis­so. Chuck Palah­niuk usa um recur­so muito inter­es­sante para mostrar a con­tagem regres­si­va da que­da do últi­mo sobre­vivente: o livro tem exatos 50 capí­tu­los, ao chegar no 25 a con­tagem é regres­si­va, a cada capí­tu­lo o leitor sabe que o fim está próx­i­mo, há um deses­pero apáti­co na voz de Branson.

    A lin­guagem usa­da em O Sobre­vivente é a mes­ma que já mar­cou a car­reira do escritor amer­i­cano, dom­i­na­da por um fluxo de con­sciên­cia com­ple­ta­mente trans­gres­sor ela não poupa palavrões e nem ele­men­tos total­mente mar­gin­ais que deix­am o tex­to extrema­mente frag­men­ta­do, mas de fácil com­preen­são pelo leitor. Afi­nal isso se assemel­ha muito com o fluxo de falas cotid­i­anas, claro, com um tom bem mais esquizofrênico.

    As críti­cas per­manecem muito pare­ci­das com as abor­dadas em O Clube da Luta, a apa­tia do homem mod­er­no e a fácil ilusão que o con­sum­is­mo traz se fazem pre­sentes nos per­son­agens que o úni­co fim passív­el é a que­da. Chuck Palah­niuk acer­ta todos em O Sobre­vivente, deixan­do claro que todos somos molda­dos para seguir um padrão e quan­do há que­bra dis­so, ocorre uma inevitáv­el mudança ‑muitas vezes fatal — de per­cur­so. Um livro de tirar o fôlego e acer­tar em todas as feridas.

  • Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Alguns livros você lê rap­i­da­mente, mas torce para que demor­em para ter­mi­nar, taman­ha a qual­i­dade. Só Garo­tos (Com­pan­hia das Letras, 2010) de Pat­ti Smith é exata­mente assim. Mais con­heci­da por causa da sua car­reira na músi­ca, Smith sem­pre lidou com diver­sas áreas da arte. Começou escreven­do poe­sias e desen­han­do, a músi­ca veio mais tarde. Em meio a essa jor­na­da, ela con­heceu Robert Map­plethor­pe. É jus­ta­mente sobre a relação entre eles que Pat­ti escreve.

    Nasci­da em 1946, Pat­ti Smith sem­pre soube que seu cam­in­ho seria pelas artes. Aos 21 anos ela se mudou para Nova Iorque para tra­bal­har com o que real­mente gosta­va. Ali, con­heceu Robert, que se tornar­ia sua alma gêmea até a morte dele, em 1989. Os dois começaram uma relação amorosa, mas de inten­so afe­to fra­ter­nal. Jun­tos, escrevi­am, fotografavam e desen­havam. Chegaram a con­hecer grandes artis­tas da época, como Warhol e seus artis­tas da Fac­to­ry, bem como músi­cos (Janis Joplin, Jim­my Hen­drix, entre out­ros) e escritores (Allen Gins­berg e William S. Burroughs).

    A escri­ta de Pat­ti em Só Garo­tos beira o tom con­fes­sion­al, ela rela­ta acon­tec­i­men­tos de sua vida, sem­pre citan­do a influên­cia de Robert. Tam­bém sem­pre faz refer­ên­cia às seus poet­as preferi­dos, como Rim­baud e William Blake. Por se tratar de uma auto­bi­ografia, podemos con­hecer a artista por ela mes­ma. Ape­sar de ser um tex­to verídi­co, ele tam­bém é literário. A auto­ra escol­he bem as palavras e tor­na a leitu­ra bas­tante fluída.

    Um livro bom é aque­le que causa as mais diver­sas sen­sações no leitor. E nesse que­si­to Pat­ti Smith escreve com maes­tria. No iní­cio de Só Garo­tos, ficamos amar­gu­ra­dos com sua bus­ca, depois ficamos felizes com suas con­quis­tas, logo os sen­ti­men­tos caem para uma nos­tal­gia daqui­lo que não vive­mos. Somos ape­nas espec­ta­dores daque­la dor que ela sen­tiu ao perder sua alma gêmea. Robert diz que enquan­to ela car­rega­va a vida den­tro dela, ele car­rega­va a morte. Impos­sív­el não sen­tir uma pon­ta­da de tris­teza, por causa de duas mentes iguais que foram separadas.

    Este livro é recomen­da­do não ape­nas para os fãs, mas para qual­quer pes­soa inter­es­sa­da em uma boa leitu­ra. A tra­jetória de Pat­ti e Robert, em que viven­cia­ram momen­tos de deses­pero e humil­hação, até se tornarem grandes artis­tas, é muito bem descri­ta. Vale lem­brar que Só Garo­tos gan­hou o Nation­al Book Award de não ficção, mere­ci­da­mente. Ao ler o livro, nos sen­ti­mos como se a própria Pat­ti estivesse nos con­tan­do a história, o que tor­na seu livro tão ínti­mo e bem escrito.