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Timidez pra que te quero | Crônica
O processo de aceitação da timidez em um mundo onde se ensina que para ter sucesso é preciso ser extrovertido
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Campo de Trigo com Corvos (1890), de Vincent van Gogh
Desde criança fui tímida. A primeira vez que escutei minha voz em público levei um susto. Pensei: Que voz de pato! Feia, grasnava. Falava baixo para ninguém ouvir. Isso fez com que me ouvissem cada vez menos. Sofria de “falta de iniciativa”, como acusavam os boletins escolares. Tirava dez em tudo, menos nesse item.
Em um mundo que não pára de falar, o tímido é doente. Pensei assim por 20 anos de vida. Desisti da escola, aos 15 anos, porque não conseguia fazer palestras. Fiz terapia para tratar a “fobia social”. Não me curei. Voltei a estudar aos 18, fiz curso de Comunicação Social. E continuei tímida.
Me apoiei na escrita para suprir o déficit. Primeiro veio a leitura, refúgio contra a horda de falantes. Como não sabia abrir a boca, abria um livro para “conversar”. Assim aprendi a dialogar com vozes distantes no tempo e no espaço, e com meus botões. Pensei que me tornaria uma escritora, publicada e conhecida. A timidez impediu de divulgar meus escritos, crivados pela autocrítica.
Quando comecei a trabalhar, estranhando a “falta de iniciativa”, colegas e amigos recomendavam que fizesse teatro. Nunca me entusiasmei, nem para desinibir. Hoje há atores nipo-brasileiros que oferecem ótimos cursos, baseados em técnicas teatrais, para ajudar os tímidos a se soltarem.
Para fazer a defesa de meu mestrado, tomei aulas de impostação de voz com um amigo. Mas o que me ajudou a falar em público foi ir a eventos onde precisava falar sobre o andamento da pesquisa. Essas comunicações científicas, como se diz no jargão, duravam dez minutos. Depois de falar meia dúzia de vezes para estudantes e professores que talvez não entendessem patavina do que eu falava, comecei a ficar menos ansiosa.
Carl Gustav Jung na Suiça (Foto: absolut Medien)
Há cerca de dois anos, ainda pensando o quanto me custava abrir a boca em público, fiz o tal curso de teatro. Foi um desastre. O problema não era só falar. Eu não tinha inteligência corporal como os estudantes de artes cênicas. O meu azar é que era um curso voltado para atores e não para leigos. Mas, para não dizer que não falei de flores, nesse ano, no Dia da Mulher, atuei no palco, pela primeira vez na vida, para falar meus poemas e de outras autoras. Percebi que ser tímido pode não ser um problema, mas um estilo de personalidade.
Por causa daquilo que achava ser um obstáculo ao desenvolvimento social em minha vida, comecei a estudar sobre a timidez. Descobri que o psicólogo Carl Gustav Jung classifica os tipos de personalidade em extrovertidos e introvertidos. Se timidez é considerada doença, pelo menos de falta de sociabilidade, a introversão pode ser um modo como se comporta metade da humanidade.
É o que diz Susan Cain, autora do best-seller “O poder dos quietos”. Li um e‑book em que ela abomina tipos vendedores como Dalie Carnegie, autor do best-seller “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. Susan critica o reacionarismo de Carnegie, que nos anos 60, ensinava que para ter sucesso era preciso sorrir, falar e ter pensamentos positivos o tempo todo. E fingir que ignorava os horrores da guerra do Vietnã, sorrindo. Quando cruzo com pessoas que parecem ter lido esse livro, ou incorporado suas ideias, tenho vontade de fugir. Em geral, acabo tendo experiências desagradáveis com quem não para de falar bobagens tentando ser simpático.
Depois de tanto tempo, aceito a timidez. Gosto de ficar sozinha, lendo e escrevendo. Os tímidos, ou introvertidos, são mais independentes e têm melhor desempenho trabalhando sozinhos. Descobri, lendo o livro de Susan, que depois de passar algum tempo com outras pessoas, trabalhando ou em eventos sociais, os tímidos precisam “recarregar as baterias”. Ou seja, ficar um tempo a sós.
Não preciso mais expor num diário público tudo que acontece comigo por me sentir só. Tenho um companheiro, uma família, bons amigos e uma rede de trabalho e contatos. Fiz as pazes com a garotinha envergonhada que baixava a cabeça diante do piano da sala de professores para posar numa foto escolar. Ainda bem. Não aguentava mais deixá-la de lado. Com o tempo, vi que é até bom cultivar a vergonha numa cultura em que os mais sem-vergonha acabam passando por cima de tudo e de todos.
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