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Pinturas da Memória e Mortos à Mesa | Ensaio
Ensaio fala sobre a necessidade de construir pontes entre História e Literatura
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Swans, de M. C. Escher (Gravura em Madeira) — 1956
Louis Aragon (1897 – 1982), poeta, editor e romancista francês, expressou como “os homens vivem” no poema que carrega a força desses versos:
Apropriando-se do poema, nossas falecidas memórias voltam do passado como uma visão fantasmagórica, triunfante e ameaçadora, que olha ao redor para se certificar de sua onipresença. A insegurança e a vontade incontrolável de lembrar, salvar e regular tudo nos torna construtores e plateia de uma História documentada, cujo efeito de real seja imanente. Durante séculos, esse raciocínio foi seguido pela necessidade de diferenciar rigidamente “fato e ficção”, “mito e história”, “real e imaginário”. A narrativa historiográfica passou por longas fases de restrição, limitada ao positivismo, às exigências de vestígios e documentos. Separar história e literatura como dois entes de planetas opostos foi o primeiro passo para determinar caminhos, impor sentidos, fixar padrões. Ao analisar o pensamento de Gilles Deleuze (1925–1995) sobre a linguagem literária e o de-fora, o autor brasileiro Roberto Machado traz à tona a ideia que o francês possuía sobre a escrita como “uma tentativa de libertar a vida daquilo que a aprisiona, é procurar uma saída, encontrar novas possibilidades, novas potências de vida”. Se continuamos a todo instante pondo nossos mortos à mesa, por que ignorar a estreita relação entre linguagem histórica e ficcional?
Zdzisław Beksiński
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, que faleceu em abril deste ano em consequência de complicações geradas pelo câncer, criou um novo sentido para o envelhecer por meio do protagonista de “Memória de minhas putas tristes”, livro lançado em 2005 e divulgado no Brasil pela editora Record em 2008, com tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se da emblemática história de um senhor no auge dos seus noventa anos que, completamente perdido em uma vida comum, sem amores, sem expectativas, sem ânsias e desejos, se vê às voltas com a desordem que só sentimentos como o amor podem acarretar. O sábio decide comemorar sua entrada em uma nova década na companhia de uma moça, ninfeta e virgem. Para isso, entra em contato com uma antiga conhecida, a cafetina Rosa Cabarcas, e encomenda a menina.
Em todo o texto, a mistura de realidade e ficção é um dos pontos altos, levando o leitor a questionar: É possível sentir saudades do que você nunca viveu? Como resistir a um tempo de começo, meio e fim, atribuindo-lhe sentidos que, muitas vezes, o próprio tempo desconhece? O historiador Hayden White entende as narrativas históricas como ficções verbais. Para ele, o historiador “não pode mais ignorar a estreita relação entre história e mito. A história não é uma ciência porque não é realista, o discurso histórico não apreende um mundo exterior, porque o real é produzido pelo discurso”. White afirma que o historiador produz “construções poéticas”, sendo a linguagem o elemento que constitui sentido. Para ele, é inegável a influência do estilo literário do autor na escrita historiográfica, bem como dos recursos estilísticos empregados para destacar posicionamentos e seleções. Como retoma o teórico, os acontecimentos são neutros, isto é, não trazem em si nenhuma carga valorativa. No entanto, são convertidos em trágicos, emocionantes, cômicos, românticos ou irônicos pelo próprio enredo atribuído.
Para o nonagenário criado por García Márquez, atravessar décadas de fatos históricos e registrados não significa absorvê-los de uma única forma; em toda a trama, o velho homem é refamiliarizado com os acontecimentos vividos por meio de suas lembranças. A forma como o mundo se descortinou diante dos seus olhos quase centenários é vista de modo interpretativo, e não metódico e projetado. Essa mesma atmosfera pode ser sentida nos contos do italiano Antonio Tabucchi (1943–2012), reunidos no sugestivo livro “O tempo envelhece depressa” (2009), e no romance “Enquanto Agonizo” (1930), do norte-americano William Faulkner (1897–1962). Apesar de investirem em linguagens narrativas diferentes, as duas obras tocam a mesma questão no que diz respeito à memória e a construção de diferentes pontos de vista. É essa disputa entre relato e subjetividade que traça o contorno da narrativa histórica. A união entre história e literatura permite “delírios significativos”, epifanias que abrem espaço para o pensamento escapar do sistema dominante. O imaginário traz uma carga devastadora que parece sondar o vazio, enxergar nas trevas e escutar através dos portões fechados.
A “imanência”, termo usado por Deleuze, está em descobrir-se além das cortinas; é não ter medo, por exemplo, de se perder nos labirintos de ilusão de óptica criados por M. C. Escher (1898–1972) ou na beleza mórbida das pinturas do polonês Zdzislaw Beksinski (1929–2005) e seus humanos-esqueletos, árvores retorcidas e ambientes cercados pela névoa. É saber reconhecer traços da história na expressão subjetiva.
Relativity, de M. C. Escher (litografia) — 1953
A união da literatura e da história abre caminho para ver através das palavras, transformar pensamento em sensação e ser capaz de traçar linhas de fuga. Os sentidos da história não são neutros, objetivos e rigorosamente científicos. Eles são fluidos, optam por pontes e descobrem novas rotas. É preciso ter coragem para reconhecer que as “coisas têm dimensões que são intrínsecas ao valor que damos”, e que mascarar esse fato — como se tal atitude fosse crucial para manter a zona de conforto – só abre mais espaços, mais abismos, mais fossos. Como lembraria o jornalista e escritor brasileiro Daniel Piza (1970–2011): “Quanto mais escravizado pelo costume, mais o homem sonha com o clarão salvador”. Portanto, coragem! Vamos colocar nossos mortos à mesa e oferecer o banquete.
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