Olhai para o céu | Crônica

Imagem do telescópio Hubble, da NASA

Imagem do telescó­pio Hub­ble, da NASA

Nestes dias de super­lua e pôr-de-sol alaran­ja­do todos olham para o céu. Diante de fenô­menos astronômi­cos e geofísi­cos extra­ordinários volta­mos a ser mul­heres e home­ns pale­olíti­cos, embas­ba­ca­dos pelo poder das forças nat­u­rais, Pas­samos a girar em torno de satélites, astros e estre­las do zodía­co. Não como sim­ples con­sulentes de horós­co­pos, mas como seres deslum­bra­dos sob o cos­mo desconcertante.

Não por aca­so há uma cor­re­spondên­cia entre os sig­nos celestes e os sig­nos lin­guís­ti­cos. “As estre­las no céu lem­bram as letras no papel”, can­tou o poeta. Nos primór­dios, a lua e as estre­las eram fonte de inspi­ração para os aedos. Can­ta­va-se para uma noite român­ti­ca, que ocul­ta­va em seu man­to negro galáx­i­as a serem descober­tas por cien­tis­tas e astrônomos, sécu­los adi­ante. Munidos de lune­tas e telescó­pios potentes, os cien­tis­tas desmisti­ficaram a abóba­da celeste. Ape­sar de hoje saber­mos que as estre­las que vemos no céu são cor­pos moven­do-se a anos-luz da Ter­ra, o encan­to não se diluiu.

Falan­do em roman­tismo, emb­o­ra para a maio­r­ia dos oci­den­tais esta face não seja a mais visív­el, o japonês tem sua porção sen­ti­men­tal­ista bem acen­tu­a­da. Evo­can­do o mote “olhar para o céu”, lem­bro uma canção que fez suces­so nos anos 60: Ue wo muite aruk­ou. Na voz de Kyu Sakamo­to, a canção japone­sa, cuja tradução do títu­lo é Ande olhan­do para o céu, cru­zou os mares e ecoou nas Améri­c­as, reba­ti­za­da nos Esta­dos Unidos como Sukiya­ki.

A letra aparente­mente abor­da um fra­cas­so amoroso e inci­ta o amante rejeita­do a seguir em frente, de cabeça ergui­da. A canção, que em 1963 atingiu o topo das paradas de suces­so amer­i­canas, tornou-se um hino para os japone­ses. Não se tra­ta de uma sim­ples canção român­ti­ca. Seu autor, Rokusuke Ei, escreveu a letra enquan­to ia para casa, voltan­do de protesto estu­dantes japone­ses con­tra a pre­sença mil­i­tar dos amer­i­canos no Japão. Des­de a der­ro­ta na 2a. Guer­ra Mundi­al, o Japão se tornou uma nação ocu­pa­da e até hoje a ilha de Oki­nawa man­tém uma base mil­i­tar amer­i­cana, tor­nan­do-se um pon­to estratégi­co dos EUA no mapa geopolíti­co da Ásia. Vários can­tores do mun­do todo gravaram a canção, inclu­sive brasileiros. Há uma ver­são da canção em que Daniela Mer­cury a can­ta, em japonês, com sotaque e rit­mos brasileiros. Para lev­an­tar os âni­mos dos japone­ses desabri­ga­dos pelo tsunâ­mi de 2011, vários músi­cos japone­ses gravaram a canção, com arran­jos que vão do pop ao jazz.

Isto eu escrevi porque hoje faz 6 meses com­ple­tos de luto pela morte de meu com­pan­heiro. Durante 6 meses a ale­gria muitas vezes bateu à min­ha por­ta e eu a ignor­ei. Hoje à noite, olhan­do para céu, perce­bi que não pos­so mais deixar a por­ta tran­ca­da. Não pos­so chorar pelo ama­do que se foi pelo restante da vida. Ten­ho ami­gos que se enlu­taram e até hoje con­tin­u­am choran­do suas per­das. Mas não con­si­go mais resi­s­tir ao clam­or do céu.

O céu que se alaran­jou na últi­ma sem­ana de out­ubro é a con­fir­mação de uma nova pri­mav­era. Pri­mav­era que per­gun­ta, em sus­sur­ro: “você perdeu seu com­pan­heiro e tem 51 anos. E ago­ra?” Ago­ra só pos­so con­tin­uar ouvin­do Ue wo muite aruk­ou e andar olhan­do para o céu.


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