Em Paranaguá, minha cidade natal, ainda não há ciclistas, clicloativistas, nem bikeiros. Há pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte. É uma sensação confortável estar na minha cidade natal com músicos na praça e bicicletas. Em vez de ouvir “The Wall”, eu penso em “Cinema Paradiso”. Em breve esta aldeia será igual a todas as outras, com a instalação de dois shopping centers — todos os que ainda andam de bicicleta terão seu carro. Há tempos li que o fotógrafo Pedro Martinelli foi morar na Amazônia para registrar os últimos momentos da floresta em pé. Também quero acompanhar esse momento de transformação em que a minha pequena cidade vai ser se tornar igual a outra qualquer.
Na Alemanha, na Holanda e na Bélgica, na China e no Japão, países em que a bicicleta não é meio de mobilidade alternativa, mas preferencial, as pessoas levam tudo sobre duas rodas. Os japoneses, mais elegantes: executivos pedalam de terno e gravata e hábeis, empunham o guarda-chuva numa das mãos e com a outra agarram o punho do guidão; senhoras alinhadas na última moda desfilam com graça. Os chineses já se parecem mais com os caiçaras, levam a mulher e o filho e a mudança de casa sobre a bike.
No filme “Butch Cassidy and Sundance Kid”, Paul Newman tem uma famosa cena de bicicleta com Katherine Ross. Lá, explica que para os chineses, quando uma mulher e um homem andam juntos numa bicicleta estão namorando.
31Dada a profusão de bicicletas na cidade, meu avô, Kingo Kubota, ao instalar-se na cidade, teve visão de negócios. Abriu a Bicicletaria Santa Cecília, homenageando a cidade que morou anteriormente, no norte do Paraná: Santa Cecília do Pavão. Como todo bom japonês, meu avô cultuava rituais e adorava homenagens. Meu nome, por exemplo, é uma homenagem a outra cidade em que morou, no interior de São Paulo: Marília.
Fui uma criança cujo pai era dono de uma bicicletaria. Meus colegas de escola achavam que eu era a criança mais sortuda do mundo. Era o tempo em que nosso sonho consumista era ganhar uma Caloi, graças à propaganda televisiva: “Eu quero a minha Caloi”, anunciavam em todas as telas. Aprendi a andar de bicicleta com rodinhas e depois, sem rodinhas, caindo algumas vezes. Certa vez, minha escola promoveu um passeio de bicicleta e não fui. Todos me olharam espantados.
Além de vender bicicletas que ele mesmo montava, com a carcaça de bicicletas usadas, meu pai também tinha uma oficina. Os primos de meu pai e meus dois irmãos trabalharam na oficina. Um dia meu irmão mais velho foi para a escola com a mão suja de graxa. A professora perguntou o que era aquilo. Ele ficou com vergonha e nunca mais quis voltar pra escola.
Depois de anos, meu pai decidiu ampliar o negócio de duas rodas para quatro. E passou a vender peças de automóveis. Os primos já não trabalhavam com ele, meu avô havia partido, e o irmão envergonhado não sujava a mão com graxa. No ano de 1995, meus pais foram ao Japão pela primeira vez e viram de perto como o japonês se movia nas grandes cidades com bicicletas. Abandonavam suas bicicletas no estacionamento e pegavam outras, como guarda-chuvas. Já não se comoviam com as magrelas.
Desde que o cicloativismo começou a ganhar força em Curitiba e nas grandes metrópoles, impulsionado pelo exemplo das cidades europeias, passei a ver a bicicleta com os olhos de outros. Não era mais o ganha-pão de minha família, que pagou meus estudos. A bicicleta agora é transporte alternativo na mobilidade urbana.
Em Paranaguá as magrelas continuam em sua condição provinciana. Indo e vindo, levando o mundo sobre duas rodas. Penso que voltei numa hora boa para reciclar meus conceitos sobre a minha aldeia.
Nestes dias de superlua e pôr-de-sol alaranjado todos olham para o céu. Diante de fenômenos astronômicos e geofísicos extraordinários voltamos a ser mulheres e homens paleolíticos, embasbacados pelo poder das forças naturais, Passamos a girar em torno de satélites, astros e estrelas do zodíaco. Não como simples consulentes de horóscopos, mas como seres deslumbrados sob o cosmo desconcertante.
Não por acaso há uma correspondência entre os signos celestes e os signos linguísticos. “As estrelas no céu lembram as letras no papel”, cantou o poeta. Nos primórdios, a lua e as estrelas eram fonte de inspiração para os aedos. Cantava-se para uma noite romântica, que ocultava em seu manto negro galáxias a serem descobertas por cientistas e astrônomos, séculos adiante. Munidos de lunetas e telescópios potentes, os cientistas desmistificaram a abóbada celeste. Apesar de hoje sabermos que as estrelas que vemos no céu são corpos movendo-se a anos-luz da Terra, o encanto não se diluiu.
Falando em romantismo, embora para a maioria dos ocidentais esta face não seja a mais visível, o japonês tem sua porção sentimentalista bem acentuada. Evocando o mote “olhar para o céu”, lembro uma canção que fez sucesso nos anos 60: Ue wo muite arukou. Na voz de Kyu Sakamoto, a canção japonesa, cuja tradução do título é Ande olhando para o céu, cruzou os mares e ecoou nas Américas, rebatizada nos Estados Unidos como Sukiyaki.
A letra aparentemente aborda um fracasso amoroso e incita o amante rejeitado a seguir em frente, de cabeça erguida. A canção, que em 1963 atingiu o topo das paradas de sucesso americanas, tornou-se um hino para os japoneses. Não se trata de uma simples canção romântica. Seu autor, Rokusuke Ei, escreveu a letra enquanto ia para casa, voltando de protesto estudantes japoneses contra a presença militar dos americanos no Japão. Desde a derrota na 2a. Guerra Mundial, o Japão se tornou uma nação ocupada e até hoje a ilha de Okinawa mantém uma base militar americana, tornando-se um ponto estratégico dos EUA no mapa geopolítico da Ásia. Vários cantores do mundo todo gravaram a canção, inclusive brasileiros. Há uma versão da canção em que Daniela Mercury a canta, em japonês, com sotaque e ritmos brasileiros. Para levantar os ânimos dos japoneses desabrigados pelo tsunâmi de 2011, vários músicos japoneses gravaram a canção, com arranjos que vão do pop ao jazz.
Isto eu escrevi porque hoje faz 6 meses completos de luto pela morte de meu companheiro. Durante 6 meses a alegria muitas vezes bateu à minha porta e eu a ignorei. Hoje à noite, olhando para céu, percebi que não posso mais deixar a porta trancada. Não posso chorar pelo amado que se foi pelo restante da vida. Tenho amigos que se enlutaram e até hoje continuam chorando suas perdas. Mas não consigo mais resistir ao clamor do céu.
O céu que se alaranjou na última semana de outubro é a confirmação de uma nova primavera. Primavera que pergunta, em sussurro: “você perdeu seu companheiro e tem 51 anos. E agora?” Agora só posso continuar ouvindo Ue wo muite arukou e andar olhando para o céu.
Quando comecei a trabalhar em jornal, minha primeira incumbência como estagiária foi fazer a página de óbitos. Eu detestava aquilo. Queria escrever críticas de livros e de filmes e ser célebre. Mas nem um estagiário é contratado para escrever críticas de livros e filmes. Para não ter que apenas digitar a página com o nome dos mortos do dia, inventava nomes estapafúrdios como Epaminondas Pantagruel e metia no meio da lista. Se alguém percebeu a pequena traquinagem, nunca fiquei sabendo.
A primeira reportagem que fiz na vida foi sobre irregularidades de estacionamentos privados na cidade. Eu não lia jornais locais, só revistas semanais e as páginas de cultura, além de 4 ou 5 livros de ficção por semana. Não sabia como funcionava a administração pública, nem os negócios. Trabalhei durante muito tempo na editoria “Geral”, como se chamavam os cadernos que traziam notícias e reportagens sobre a cidade. Entrevistei muito buraco de rua. Hoje nem sei como escrevi essas matérias. Além de tímida (não sabia fazer perguntas), não sabia escrever matérias para a editoria de notícias locais. Algumas devem ter sido estapafúrdias, e posso ter metido um poema ou citação literária no meio.
Até hoje não sei como consegui ser aprovada em todos os cursos vestibulares para os quais prestei concurso. No curso de jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, nos cursos de Letras da Pontífice Universidade Católica do Paraná e da Universidade Federal do Paraná e no curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná. Se tivesse juízo, teria morado 4 anos em Londrina. Um dos professores do curso dizia que o jornalismo era arte, como a arquitetura. E que teve uma aluna que não conseguia organizar as ideias para escrever uma notícia. Me identifiquei imediatamente. Nunca consegui organizar ideias para escrever uma notícia. Não sei como fiz entrevistas e escrevi reportagens durante 25 anos de profissão.
Revisores e editores sempre sofreram comigo. Na verdade, jamais publiquei poemas meus nos jornais em que trabalhei. Também não escrevia textos poéticos em reportagens jornalísticas, embora algumas notícias — pela minha falta de contato com a realidade concreta — fossem estapafúrdias.
Com o tempo, aprendi a não levar tudo tão a sério. Mas ainda é difícil ser simpática e agradável o tempo todo. Em grupo, gosto de ficar em silêncio, mais observando do que falando. Sozinha, gosto de curtir melancolia e ler sobre tipos esquisitos. Se um poema, crônica ou novela trata da vida de um tipo esquisito, me apaixono, como os bizarros de J.D. Salinger ou os solitários de Dostoievski.
Hoje em dia prefiro seguir o caminho contrário ao dos que se apressam para chegar a algum lugar. Ando em ruas solitárias e descubro que alguns consensos podem ser rompidos. Andando a pé, converso com moradores de rua e muitos parecem não ser perigosos. Pelo contrário, têm medo de receber um não. Não devia conversar com desconhecidos. Isso acontece por acidente. Alguém pede dinheiro e eu digo que não tenho, mas dou um sorriso. Daí o marginal perde o medo e começa a conversar.
Algumas pessoas me acham insuportável por esquecer tudo. Desde acontecimentos a nomes de pessoas. Esquecia o chuveiro ligado ou a chave na porta de casa. Cheguei a esquecer de pegar documentos para ir viajar, as passagens de avião ou as malas. Minha distração chega a tal ponto que acabo esquecendo muita gente. Nesse caso, corroboro o ditado “há males que vêm para bem”. Esquecer se torna uma dádiva quando é preciso apagar ofensas e ressentimentos da alma. Já dizia o inesquecível Mário Quintana; “tenta esquecer-me… Ser lembrado é como evocar/Um fantasma”. Assim é…
Seu nome, Miya, deveria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japonesas nascidas no campo usarem o ideograma KO [子]. O uso era permitido apenas às mulheres de origem nobre. O ideograma miya [宮] significa templo xintoísta, príncipe ou princesa da família imperial. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometida a um noivo que não gostava, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deserdou. Miya tinha um irmão mais velho, Sadaji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kameki. Muito jovem, minha avó se interessou por literatura. Em sua cidade, que fica na província de Saga, região sul, perto de Nagasaki, só havia bibliotecas na igreja presbiteriana. Ela se converteu, só para frequentar a biblioteca e ler a obra do escritor francês Victor Hugo. Sadaji e Kameki vieram para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a trabalhar no cafezal da família Shinobu, na Colônia Nipolândia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vieram Miya e Tome.
Kunyo Tiba, meu avô, marinheiro, também veio para o Brasil, com a missão de buscar a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aventurar no “País dos frutos dourados”, como era chamado pela Imigração Japonesa. Veio como agregada da família Shinobu, um expediente comum na época. Famílias eram compostas por membros de diferentes origens, forjando documentos. Miyoko morava na “casa grande”, com a família artificial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anexado a Manchúria e começaram os conflitos com a China. No cafezal, conheceu Miya e casou com ela.
No Brasil, Miya continuou frequentando a igreja presbiteriana. Praticava a arte do tanka — uma das formas poéticas japonesas. Kuniyo tocava shakuhachi — a flauta de bambu japonesa. Como ele era era marinheiro, poucos ofícios restavam em terra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro morando na colônia japonesa de Birigui. Decidiu fabricar carvão vegetal e mudou para Tapiraí, no Sul paulista, que veio a se tornar um importante centro de produção da matéria-prima. A mulher e os três filhos o ajudavam a queimar carvão. Por causa do ofício do patriarca, a família morou em diversos pontos da cidade. Kameki, o caçula Tiba, ficou doente e foi se tratar em Campos de Jordão. Curado, decidiu fazer um curso de farmacêutico, em São Paulo. Quando se formou, os irmãos montaram uma pequena farmácia no centro de Tapiraí. Kuniyo decidiu montar um bar, vizinho à farmácia.
Meu tio mais velho começou carreira militar e pôde comprar um sobrado para os pais, no bairro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em meados dos anos 60. Toda vez que íamos visitá-lo, Kuniyo fazia algodão-doce para nós. Ele vendia o doce nas ruas de São Paulo. Criança, não sabia como o açúcar colorido se transformava em nuvem de algodão. A casa de meus avós era meio mágica. Na cozinha havia um grande telescópio. Um dos tios havia entrado para a Aeronáutica e tinha mania por apetrechos de aviação e aeronáutica.
Meu avô morreu em 1974, de câncer no intestino. Na época era uma doença devastadora. A família cuidou dele por meses. Depois que o marido morreu, Miya vinha passar férias com minha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que falava. Sinto pena de não ter estudado a língua japonesa quando criança. Só descobri o que era shakuhachi e tanka com quase 40 anos. Zannen.**
* Em japonês: antigo, antigo. Em geral, as histórias de tradição oral japonesas começam com “Mukashi, mukashi…” **Em japonês: Que pena !
No livrinho “Infância”, o escritor J. Coetzee conta que ele e seus irmãos se escondiam quando os parentes do lado materno chegavam para visitá-los. Ele descreve a hipocrisia das gentilezas sociais e a tentativa da mãe em ensinar “bons modos” aos filhos. Fora do ambiente doméstico, denuncia o apartheid da África do Sul, dando como exemplo sua experiência escolar. Crianças não europeias, ou seus filhos, eram espancadas pelas europeias. Coetzee contou numa palestra em Curitiba que seus livros passaram pelo crivo da censura oficial, mas foram liberados sob a alegação de que a linguagem erudita só seria entendida pela elite letrada.
O escritor moçambicano Mia Couto diz que a mãe passava apuros com o pai, poeta, que não conseguia ajudar em nenhum trabalho da vida doméstica. E ela rezava para que não surgisse na família mais poetas. Uma vez, mandou o filho à padaria, a algumas quadras de casa. No caminho, Mia se distraiu seguindo uma borboleta e esqueceu o que ia fazer. Sentado na calçada, passou horas vendo formigas. Em sua casa, uma confusão: o pai havia passado mal. O menino ficou na rua até que, tarde da noite, quando lembraram dele o foram buscar. Encontraram-no ainda a observar o formigueiro.
Essas duas histórias me vieram à cabeça, quando voltava da consulta à minha médica homeopata. De repente, o ônibus parou. Lá atrás uma passageira gritou: “o que aconteceu?” Um barbudo com camisa do Atlético respondeu: “Quer saber o que aconteceu? Quer mesmo saber ? Veja aqui, já te mostro.” Remexeu na mochila e por alguns segundos, os passageiros ficaram apreensivos. Como o sujeito demorou remexendo na mochila, um outro passageiro, a seu lado, gritou “Vai demorar pra dar o tiro?” O nervosinho acabou sacando da mochila uma barra de banana-passa. “Olha aqui a banana de dinamite”, brincou, caindo na gargalhada.
Uma passageira mudou de lugar, perguntando por que o ônibus havia parado. “Não sei”, respondi. Ouvi o motorista ao celular: uma carreta bloqueava o trânsito. As cobradoras desceram do ônibus e convidaram o torcedor do Atlético a ajudar. “Sair daqui só na contramão”, disse o motorista. As cobradoras e o passageiro bloquearam os carros, como se fossem guardas. Os três pareciam crianças travessas brincando de guardas de trânsito. Apoiamos o trio para poder continuar seguindo viagem.
As moças, coradas, e o torcedor do Atlético retornaram. Alguém gritou que mais um passageiro havia descido. Tinha que parar o ônibus pra ele reembarcar. Quando o ônibus voltou a navegar, me senti estranha. Da janelinha do coletivo avistei uma mãe e uma filha rindo uma com a outra, numa luta de sacolas de supermercado.
Nos últimos tempos penso se é necessário preservar a infância em nós. Se, adultos, não corremos o risco de nos infantilizar. Para mim, ler ou escrever poesia é uma forma de cultivar o lado criança. Quanto mais envelhecemos, a criança se torna solitária. Algumas se sufocam comendo chocolates, indo à Disneylândia, ou proferindo discursos sobre caixotes de madeira. Outras, desenham histórias em quadrinhos, recitam versinhos, cantam e tocam violão. As que nunca morrem são as bufonas, como o torcedor do Atlético. Que sabem que tudo na vida é passageiro, menos quem conduz a graça.
Catarse (do grego: katharsis) é o processo de depuração dos sentimentos, purificação ou purgação do espírito sensível. No teatro grego, o herói dramático precisa sofrer para purificar o espírito. Em psicanálise, é a libertação de um trauma. A gênese da mais famosa obra dos últimos 40 anos da poesia brasileira, o Poema sujo, é catártica, segundo seu autor, Ferreira Gullar.
Gullar estava no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quando escreveu o poema. Depois de passar anos morando em diversas cidades do mundo (Moscou, Santiago do Chile e Lima), viu ditaduras militares se instalarem nos países sul-americanos. Com o fracasso da utopia comunista no Brasil, depois de um tempo na Rússia, emigrou para o Chile e assistiu à queda de Allende. Mudou para a Argentina em 1974 e reviveu o pesadelo de ver os amigos ao redor serem presos ou fugir. Sabendo que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cerco no país vizinho, decidiu escrever um poema que fosse um testemunho final.
O Poema sujo, escrito em cinco meses, em estado de transe vertiginoso, foi acalentado por anos. Tem como fio condutor a ideia de resgatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maranhão. As condições de penúria no exílio e a eminência de calar-se para sempre o forçaram a ultrapassar o tom memorialístico. O Poema sujo dá voz ao desespero do poeta. Desespero que, paradoxalmente, engloba grande esperança, por situar-se na infância, como demonstra seu trecho mais conhecido, transformado na letra da canção O trenzinho caipira, a tocata da Bachiana no. 2, de Villa-Lobos:
Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar…
A evocação da memória da infância em redemoinho é o ponto de partida para compor um poema em vários tons, com momentos de intensidade e de banalidade, como cita o poeta, construídos por fragmentos de lembranças “das pessoas às coisas, das plantas aos bichos, tudo, água, lama, noite estrelada, fome, esperma, sonho, humilhações, tudo era gora matéria poética”. Antítese entre o claro do presente e o turvo da infância, mais que resgate, é a recomposição do passado no presente.
A memória da infância é um registro infiel, sujo, recomposta por destroços: telhas encardidas, garfos e facas que se quebraram, e se perderam nas falhas do assoalho para conviver com baratas e ratos no quintal esquecidos entre os pés de erva cidreira. Desordem que é ordem “perfeitamente fora do rigor cronológico”, do labirinto do tempo interior. A casa perdida no tempo, com talheres enferrujados, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gastas, armários obsoletos rastejam “pelos túneis das noites clandestinas” esperando “que o dia venha”. A infância é o único refúgio para quem perdeu tudo. O corpo, a única casa, o único território, a possibilidade de êxtase quando já não se pertence a lugar nenhum.
A identidade são-luisense se concretiza no corpo do poeta, o passado se esmiúça, como cita Alcides Villaça: o “sujo do poema refere-se tanto ao impuro quanto pela composição das diferenças, pelas águas revolvidas, pelo estilo que vai da mão solta no papel à cadência rigorosa de uma avaliação […] Mas sujo também porque participa de uma história não oficial, secreta, que soma a consciência abafada e o corpo prisioneiro de vontades caladas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apodrece lentamente.
A canção de exílio dos anos de chumbo é Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, composta em 1968 para um festival. A canção traz referências claras ao “dia que virá”, dia em que os exilados retornariam à pátria. Gullar antecipa a pátria destruída, memória devastada e iluminada apenas pelo facho das lembranças da cidade de infância. Os objetos da casa primordial gastaram-se no tempo e por isso sua lembrança é de sujeira, ou algo que foi sujo.
O testemunho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacionalismo insuflado por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tanto mais comovente quanto busca negar qualquer resquício romântico ou panfletário. Em nem um momento revela textualmente a dor pela perda dos amigos, o esfacelamento familiar e a melancolia da desterritorialização.
Depois de concluir o poema, Gullar o leu a Vinícius de Morais, que levou uma gravação da leitura para o Brasil. Grupos se formavam para ouvir a voz do poeta exilado. O editor Ênio Silveira pediu cópia para publicá-lo. Com a publicação, amigos, jornalistas e escritores clamaram ao governo militar o fim do exílio de Gullar. O governo não atendeu. O poeta, porém cansado, resolveu voltar por conta própria. Quando chegou, foi levado ao DOI-Codi e interrogado, acareado e ameaçado. Mas graças ao poema, pôde ficar no Brasil.
A catarse do agora contra o futuro marginal
A republicação do Poema sujo, em 2013, pela José Olympio, o celebra como marco na luta contra a repressão militar. Mas antes de se torna persona non grata no país, Gullar já guerreava, e muito, mas por razões estéticas, contra outros adversários. Contrapôs-se ao movimento de vanguarda da poesia concreta, composta pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, defendendo o nacionalismo da arte brasileira e criando a poesia neoconcreta. A principal crítica de Gullar aos concretos era de que comparavam a poesia à matemática e pretendiam atuar em todos os campos, jornais, publicidade, da música (canção popular), tevê, rádio, cinema.
Provocador, polêmico, jamais pacífico, o poeta Paulo Leminski é herdeiro de uma tradição poética de vanguarda (ou tradição de ruptura, como quer Octávio Paz) que no Brasil rendeu movimentos como o Modernismo, a Poesia Concreta e o Tropicalismo. Por causa do tempo histórico de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erroneamente situado dentro da Poesia Marginal, movimento ao qual nunca se filiou (não gosto da poesia de Cacaso, um dos líderes da poesia marginal carioca dos 70/80, afirmou, em entrevista ao jornalista Aramis Millarch, em 1986) e contra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Crípticos” (1986).
Leminski herdou a briga com os neoconcretos. Apesar de propagar a teoria da arte como inutensílio, nunca fez apenas arte pela arte. É o que se comprova na canção Verdura, vetada pela censura em 1978.
De repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste
De repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana
O poeta Fabrício Marques associa o verso de repente me lembro do verde ao Tropicalismo, conectando o verde citado com uma das cores-símbolo do Brasil:
todas as suas nuances e contradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poema atinge um tom quase lisérgico, no qual ressaltam ecos do tropicalismo: superbacana, de Caetano Veloso, e ai de ti, Copacabana, de Torquato. Ocorre então uma inversão paródica do nacionalismo, principalmente na segunda estrofe, que funciona como uma espécie de crítica política avant la lettre à emigração de brasileiros em busca de melhores condições de vida, numa progressão desenfreada, principalmente para os Estados Unidos, nos anos que se seguiram à primeira publicação do texto em livro (1981).
A associação com o verde tropicalista não é a única possível. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o filho para os americanos. O verde triste transforma tudo em mercadoria, até as relações afetivas. Triste ainda o verde do uniforme dos militares, cujos censores entenderam a ironia. A canção só passou pelo crivo em 1981, quando foi gravada por Caetano Veloso. Mas a referência aos poemas tropicalistas é inexata. Em vez de Superbacana e Ai de mim, Copacabana, a associação mais inebriante poderia ser Quando o santo guerreiro entrega as pontas, de Torquato Neto:
nada de mais:
o muro pintado de verde
e ninguém que precise dizer-me
que esse verde que não quero verde
lírico
mais planos e mais planos
se desfaz:
nada demais
aqui de dentro eu pego e furo a fogo
e luz
(é movimento)
vosso sistema protetor de incêndios
e pinto a tela o muro diferente
porque uso como quero minha lentes
e filmo o verde,
que eu não temo o verde,
de outra cor:
diariamente encaro bem de perto
e escarro sobre o muro:
nada demais
Leminski deglute antropofagicamente o Bispo Sardinha, como queria Oswald, cantando, com dó de peito o momento histórico do início da diáspora global. O sentimento de dor (por ver seu igual partir e se partir) não fratura o poeta, que finaliza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copacabana, com a consciência de que a Alegria é a Prova dos Nove, como cantava Oswald, ou seja, a única forma de resistência a um regime desigual que estimulava o despatriamento só poderia ser a ironia, trazendo a capa de um falso conformismo. Desse modo, mesmo nunca tendo se desligado de sua terra natal, Lemisnki participa dass agonias da vida nacional em seu insilio1.
O crítico Silviano Santiago esclarece que o bordão antropofágico vincula-se com a catarse do agora: “o ressurgimento de um corpo que não estaria mais comprometido com a ética protestante do trabalho, um corpo que recusa, inclusive, […] a colonização do futuro. Esse corpo, então, estaria fincando mais e mais o pé no agora: nesse sentido, um corpo que é fruição.” Esta ideia estaria ligada à emergência das minorias sexuais nos anos 70: “De certa forma, na nossa sociedade ocidental, em particular, o prazer esteve muito vinculado a uma certa normalização de conduta sexual, e quando essa conduta não era normalizada as pessoas se sentiam enormemente infelizes.”
O crítico fala de um corpo não reprimido, de pura alegria, em contraponto com a tradição crítica que coloca o presente como estado de martírio. O sofrimento cultuado pelos grupos políticos de esquerda no Brasil tinha como projeto de redenção a possibilidade de uma utopia social. Santiago se posiciona contra este estado de pobreza: “Invertendo os termos, dizendo que o presente pode ser vivido, pode ser vivido alegremente, sem as amarras da repressão, estaríamos descondicionando a possibilidade de um pensamento dito utópico.” Nos versos de Leminski:
prazer
da pura percepção
os sentidos
sejam a crítica
da razão
(Distraídos Venceremos, 1987)
Esta ideologia está em coalizão com a micropolítica do desejo de Felix Guattari e o comportamento aqui-agora do movimento hippie dos anos 70, que vulgariza conceitos de filosofias orientais, como o hinduísmo e o zen-budismo. Os hippies trazem a ideia do prazer na realidade do presente, em que a utopia não se adia, em que o estado paradisíaco é vivido todos os dias. A poesia de Leminski constrói a catarse do agora contra a repressão do presente – no contexto histórico, a saída da ditadura militar para a ditadura da economia global. Contra um sistema no qual a poesia é apenas o desejo, os artefatos de Leminski tornam-se instrumento crítico que corroem conceitos e fazeres mumificados, como na genial inversão distraídos venceremos do título de livro publicado em 1987, que carnavaliza o bordão Unidos, venceremos.
Um dos recursos usados pelos poetas para combater o regime repressor foi o humor. Santiago diferencia dois processos usados nos movimentos de poesia de protesto. O primeiro, a paródia, é um recurso valorizado como instrumento potencial de irrisão contra o poder instituído, uma ruptura. O segundo, o pastiche, é uma derrisão que enfraquece o poder da crítica: A paródia significa uma ruptura, um escárnio com relação àquela estética que é dada como negativa. O pastiche não rechaça o passado, num gesto de escárnio, de desprezo, de ironia, escreve Santiago.
A paródia tem o mesmo grau de irrisão do instituído pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Manifesto Antropofágico de Oswald, em 1922. A lição modernista foi incorporada por Leminski, que desde sua aparição pública nos jornais em Curitiba, achincalha o culto ao conto e a figura monumentalizada de Dalton Trevisan, nos anos 70 e 80. Neste momento, seu embate não é contra as inovações de Dalton (a linguagem sintética, a opção pela “cor local”, adotadas por Leminski) e sim contra a institucionalização de Dalton.
A dor tão elevada que é capaz de fazer rir, evocada por Alice Ruiz no prefácio do livro La Vie en Close foi a tática de uma guerrilha que tem no riso, no chiste, no witz, na desconstrução de clichês e no aproveitamento de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guerrilha cultural seria herança do Tropicalismo. Para Ana Cristina César, a Tropicália é a expressão de uma crise, uma opção estética que inclui um projeto de vida, em que o comportamento passa a ser elemento crítico, subvertendo a ordem mesma do cotidiano. A ideia de enfrentar o sufoco político com as armas do cotidiano foi legitimada em Leminski.
Dois adversários no campo da estética da poesia lutam contra um inimigo comum. E filiam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paródia da Canção do Exílio, desconstruindo o nacionalismo original. Enquanto a nação desaparece, a infância torna-se território mítico e o corpo, o único sacramento, para Gullar. Já Leminski percebe que até a infância será vendida, restando, para a poesia, sua única arma de luta: o prazer de provocar sentidos.
Insílio: De acordo com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O conceito nasce baseado em sociedades autoritárias. Os insilados ficam presos no país sofrendo os desmandos do regime. Ilie discute o inner exilie da sociedade espanhola sob o regime franquista, não exiladas de acordo com o modelo clássico, mas tiveram a liberdade restrita, sofrendo com a negação, dominação, anulação, intolerância.
BIBLIOGRAFIA
Livros
GULLAR, Ferreira
Indagações de hoje. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1989.
Poema sujo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2013.
LEMINSKI, Paulo
Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardiente paciencia’ escrito pelo chileno Antonio Skármeta em 1985, e adaptado para o cinema em 1994. Mas muitos lembrarão o personagem Mario Ruppolo, o carteiro que queria aprender a escrever poemas com Pablo Neruda, a quem entregava cartas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políticas. Quando Neruda vai embora, Mario se casa e passa a ter uma profunda consciência social. Com saudades do poeta, grava os sons do mar e a batida do coração do filho no ventre da esposa grávida e os envia ao célebre interlocutor.
Em várias entrevistas, Skármeta conta um episódio saboroso sobre o personagem. Logo depois de receber indicações ao Oscar, frustrou uma jornalista de uma grande rede de tevê americana, que o procurou para que a levasse até o amigo de Neruda. O escritor revelou que o carteiro era fruto de sua imaginação.
O chileno foi grande amigo de Pablo Neruda. Mas a faísca para a criação de Mario pode ter sido disparada num encontro com o escritor argentino Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para celebrar a vitória dos sandinistas, convocados por Ernesto Cardenal. Apareceu um carteiro, com um telegrama para Cortázar. Skármeta indicou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mexicano Augusto Monterroso perguntou: “Quem é o poste e quem é Julio?”
A poesia tem sido a peça de resistência, ao longo da obra de Skármeta. O lirismo é um recurso literário estratégico, usado para tratar questões espinhosas, como a repressão política e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciência’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insurreição’ (La insurrención, 1985), os três publicados no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As novelas relatam parte da história recente do Chile, desde o golpe de Augusto Pinochet, que derrubou o socialista Salvador Allende, em 1973, ao processo de redemocratização, em 1990. O escritor se vale de personagens secundários, em geral jovens ou nascidos nas camadas populares, para relatar dramas vividos por protagonistas em protestos contra regimes de exceção.
A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estudou Filosofia na Universidade do Chile, orientado pelo filósofo alemão Francisco Soler Grima, discípulo de Julián Marías e José Ortega y Gasset. Ainda na universidade, atuou como diretor de teatro e montou obras de Calderón de la Barca, García Lorca, William Saroyan e Edward Albee. Ganhou concursos literários nos jornais La Nación e El Sur. Traduziu Hermann Melville, Jack Kerouac, Scott Fitzgerald e Norman Mailer.
Em 1969, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas’ por ‘Desnudo en el tejado’. Já havia produzido um filme sobre o Movimento de ação popular e Unitária (MAPU), do qual era membro. Incorporou, mais tarde, a história à novela ‘La insurrección’. Com o golpe militar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedicou ao cinema. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mundo. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um programa de televisão chamado ‘O show dos livros’.
Em 1994, estreou no cinema a segunda versão de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o título ‘El cartero de Neruda’. O filme, dirigido por Michael Radford e estrelado por Massimo Troisi, teve cinco indicações ao Oscar. A partir daí, Skármeta passou a ser reconhecido mundialmente e recebeu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Internacional de Literatura Bocaccio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Premio Altazor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grinzane Cavour’, em 2003. Em 2006, recebeu o ‘Premio Internazionale Ennio Flaiano’ pelo “valor cultural e artístico de sua obra”, em particular pelo romance ‘El baile de la Victoria’.
Se a maior parte dos escritores contemporâneos se rendem à sedução neoliberal, pulverizando sua obra no entretenimento para camadas médias, Skármeta resiste, fundindo ficção e memória histórica. Utópico, o escritor crê na função social da arte: ’em momentos árduos da vida de um país, celebrar a imaginação do artista, que combinada com a força da gente ativa, pode produzir mudanças libertárias na sociedade’, afirma em entrevista em 2011, publicada em seu site oficial.
Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas novelas suas foram adaptadas para outras linguagens artísticas. ‘Ardiente Paciencia’ virou filme e ópera, cantada por Plácido Domingo, em Los Angeles e um musical interpretado pela Orquestra Sinfônica de Londres. ‘El plebiscito’, originalmente texto para o teatro, com montagem frustrada em 2008, foi remontado na novela ‘Los dias del arco iris’. A narrativa ‘Un padre de pelicula’, que tem à frente um jovem que sente a falta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser filmado em 2015, pelo diretor e ator brasileiro Selton Mello.
Uma característica de suas obras são os personagens de apelo popular: pessoas humildes, jovens tímidos e tristes, prostitutas. Esses personagens sofrem uma brutal transformação em suas vidas ao entrar em contato com o mundo da alta cultura. A fricção entre a espontaneidade da cultura popular e as profundidade do conhecimento erudito acaba criando figuras transbordantes de humanidade, palpáveis como as que encontramos no cotidiano.
Criar esses tipos parece ter sido uma lição que Skármeta aprendeu do teatro e do cinema, para atrair o leitor médio. Graças à formação intelectual e política, o escritor agrada também o leitor exigente, ambientando sua ficção em contexto histórico. O encontro entre personagens da baixa e da alta cultura põe em movimento a ideia de que a literatura pode transformar a realidade através da educação. Educar, nesse caso, é levar o leitor à consciência social e à descoberta da poesia, através da identificação com os personagens mais ingênuos.
Chegar em qualquer lugar, mesmo um ambiente preparado para receber poesia é um desafio. Tenho que desfazer expectativas. A primeira, em relação à etnia japonesa. Vou logo dizendo: não escrevo haicai. Depois, explicar que sou poeta, não poetisa. “Poeta, porque em poetisa todo mundo pisa”, como diz Leila Miccolis.
Óbvio: “japonesa” escreve haicai. Aí é que está: não sou japonesa. Nasci no Brasil, nunca fui ao Japão. Meus quatro avós nasceram no Japão. Por isso, sou sansei: a terceira geração de imigrantes japoneses no Brasil. Até há um tempo atrás teria paciência para explicar o que é um nikkei. Palavra japonesa que designa o descendente de japoneses nascido fora do Japão. No Brasil, nipo-brasileiros. Nos EUA, nipo-americanos. No Peru, nipo-peruanos. Netos de imigrantes japoneses são nativos do país que recebeu seus avós.
Mas ascendência japonesa “forçou a barra” para que eu orientasse oficinas sobre haicai. Aí, passei a estudar o tema e a escrever mais haicai. Não sou haijin — haicaísta praticante. Meus poemas ainda não tem haimi — o sabor, aquilo que os mestres — Matsuo Bashô, Kobayashi Issa, Yosa Buson e outros — diziam ser a essência do poema.
Nunca fiz parte de grêmios literários que praticam haicai. Conheço Teruko Oda, sobrinha de Masuda Goga, fundador do primeiro grêmio de haicai do Brasil, o Ipê. Goga aprendeu com Nempuku Sato, o maior propagador do haiku — o haicai tradicional japonês. Em 2008, para divulgar o haiku no Brasil, promovi, pelo Nikkei Curitiba, o Concurso Nacional de Haicai Nempuku Sato, em parceria com a Secretaria da Cultura do Paraná.
Admiro poetas que, com liberdade de espírito transpuseram o haicai para o Brasil: Helena Kolody, Millôr Fernandes, Paulo Leminski e Alice Ruiz. Admiro menos Guilherme de Almeida e desconheço Afrânio Peixoto e Fanny Dupré, citados em estudos sobre a história do haicai no Brasil.
A jornalista e poeta Karen Debertólis, em entrevista para o programa de rádio “Contracapa”, disse que meus poemas parecem encadeamentos de haicais. Espécie de renga, que é mesmo um encadeamento de poemas. Mesmo com essa pista, me sentia alienígena na poesia japonesa.
Nos anos 90, fiz curso de vídeo e a professora, documentarista de São Paulo, disse algo curioso: que eu, tendo raízes japonesas não precisava escrever haicai ou cantar em karaokê. Podia escrever letras de baladas e ser fã de jazz. Gostei do que ela disse. Me encorajou a escrever poesia em composições ready-made, como diz o crítico Martin Palácio Gamboa, na antologia argentina “Bicho de Siete Cabezas”, para a qual tive a honra de ser selecionada e foi lançada no começo desse ano, em Buenos Aires.
O que não sabia e fui aprender estudando, é que na poesia japonesa é comum a composição de textos em fragmentos, seja em diários (nikki), “ensaios” (zuihitsu) ou poesia (haiku, tanka e outras formas). Um amigo, de tanto de ler meus poemas no Facebook, pôs na cabeça que ia pesquisar poesia contemporânea de Curitiba. E disse que encontrou a palavra sol em muitos de meus poemas.
Percebi que, de modo trôpego e sem forçar a barra do enraizamento, estou voltando para um lugar que nunca pareço ter saído. E assim retorno, caiçara japonesa, a uma onda feita de lágrimas. No Brasil a expressão é piegas, mas em japonês já foi usada em poema, só por causa do trocadilho: onda é nami, e lágrimas, namida. Não existe nada mais confortável do que voltar pra casa, mesmo que a casa seja a toda hora sacudida por tsunamis e ressacas.
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim
Eu sou assim
Quem quiser gostar de mim eu sou assim
Meu mundo é hoje
Não existe amanhã pra mim
E sou assim
Assim morrerei um dia
Não levarei arrependimentos
Nem o peso da hipocrisia
Tenho pena daqueles
Que se agacham até o chão
Enganando a si mesmos
Com dinheiro, posição
Nunca tomei parte
Desse enorme batalhão
Pois sei que além de flores
Nada mais vai no caixão
Meu mundo é hoje.
(Wilson Batista)
Desde criança fui tímida. A primeira vez que escutei minha voz em público levei um susto. Pensei: Que voz de pato! Feia, grasnava. Falava baixo para ninguém ouvir. Isso fez com que me ouvissem cada vez menos. Sofria de “falta de iniciativa”, como acusavam os boletins escolares. Tirava dez em tudo, menos nesse item.
Em um mundo que não pára de falar, o tímido é doente. Pensei assim por 20 anos de vida. Desisti da escola, aos 15 anos, porque não conseguia fazer palestras. Fiz terapia para tratar a “fobia social”. Não me curei. Voltei a estudar aos 18, fiz curso de Comunicação Social. E continuei tímida.
Me apoiei na escrita para suprir o déficit. Primeiro veio a leitura, refúgio contra a horda de falantes. Como não sabia abrir a boca, abria um livro para “conversar”. Assim aprendi a dialogar com vozes distantes no tempo e no espaço, e com meus botões. Pensei que me tornaria uma escritora, publicada e conhecida. A timidez impediu de divulgar meus escritos, crivados pela autocrítica.
Quando comecei a trabalhar, estranhando a “falta de iniciativa”, colegas e amigos recomendavam que fizesse teatro. Nunca me entusiasmei, nem para desinibir. Hoje há atores nipo-brasileiros que oferecem ótimos cursos, baseados em técnicas teatrais, para ajudar os tímidos a se soltarem.
Para fazer a defesa de meu mestrado, tomei aulas de impostação de voz com um amigo. Mas o que me ajudou a falar em público foi ir a eventos onde precisava falar sobre o andamento da pesquisa. Essas comunicações científicas, como se diz no jargão, duravam dez minutos. Depois de falar meia dúzia de vezes para estudantes e professores que talvez não entendessem patavina do que eu falava, comecei a ficar menos ansiosa.
Há cerca de dois anos, ainda pensando o quanto me custava abrir a boca em público, fiz o tal curso de teatro. Foi um desastre. O problema não era só falar. Eu não tinha inteligência corporal como os estudantes de artes cênicas. O meu azar é que era um curso voltado para atores e não para leigos. Mas, para não dizer que não falei de flores, nesse ano, no Dia da Mulher, atuei no palco, pela primeira vez na vida, para falar meus poemas e de outras autoras. Percebi que ser tímido pode não ser um problema, mas um estilo de personalidade.
Por causa daquilo que achava ser um obstáculo ao desenvolvimento social em minha vida, comecei a estudar sobre a timidez. Descobri que o psicólogo Carl Gustav Jung classifica os tipos de personalidade em extrovertidos e introvertidos. Se timidez é considerada doença, pelo menos de falta de sociabilidade, a introversão pode ser um modo como se comporta metade da humanidade.
É o que diz Susan Cain, autora do best-seller “O poder dos quietos”. Li um e‑book em que ela abomina tipos vendedores como Dalie Carnegie, autor do best-seller “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. Susan critica o reacionarismo de Carnegie, que nos anos 60, ensinava que para ter sucesso era preciso sorrir, falar e ter pensamentos positivos o tempo todo. E fingir que ignorava os horrores da guerra do Vietnã, sorrindo. Quando cruzo com pessoas que parecem ter lido esse livro, ou incorporado suas ideias, tenho vontade de fugir. Em geral, acabo tendo experiências desagradáveis com quem não para de falar bobagens tentando ser simpático.
Depois de tanto tempo, aceito a timidez. Gosto de ficar sozinha, lendo e escrevendo. Os tímidos, ou introvertidos, são mais independentes e têm melhor desempenho trabalhando sozinhos. Descobri, lendo o livro de Susan, que depois de passar algum tempo com outras pessoas, trabalhando ou em eventos sociais, os tímidos precisam “recarregar as baterias”. Ou seja, ficar um tempo a sós.
Não preciso mais expor num diário público tudo que acontece comigo por me sentir só. Tenho um companheiro, uma família, bons amigos e uma rede de trabalho e contatos. Fiz as pazes com a garotinha envergonhada que baixava a cabeça diante do piano da sala de professores para posar numa foto escolar. Ainda bem. Não aguentava mais deixá-la de lado. Com o tempo, vi que é até bom cultivar a vergonha numa cultura em que os mais sem-vergonha acabam passando por cima de tudo e de todos.
Havia o diário, onde eu podia escrever minhas verdades, minhas inquietações, minhas aflições pessoais, minhas confissões, meus amores, e havia poesia, que era uma outra coisa, e que eu não entendia direito o que era. Até que começaram a se aproximar os dois, entendeu? As duas coisas começaram a se aproximar. Percebi que no ato de escrever a intimidade ia se perder mesmo.
(Ana Cristina César, Escritos no Rio, Brasiliense, 1993, p. 206)
No Japão as crianças são estimuladas a escrever diários. Lá, o nikki não é só um registro pessoal. É considerado gênero literário. Obras clássicas, como “O livro do travesseiro” (Makura no Sôchi), de Sei Shônagon e “Contos de Genji” (Genji monogatari) podem ser classificados como diários ou miscelâneas do gênero, já que a categorização literária é fluida no país de Matsuo Bashô. Aliás, o poeta tem um célebre diário de viagem, “Sendas do Oku” (Oku no Hosomichi). A palavra japonesa oku, grosso modo, pode ser traduzida como “profundezas”, o interior mais profundo. No caso de Bashô, significava a viagem que empreendeu por todas as províncias japonesas, chegando às aldeias mais remotas, no século XVII.
No ocidente, ao contrário do Oriente, o diário é considerado relato pessoal. Nos anos 50, era comum mulheres, donas-de-casa e mães de família manterem diários. Uma diarista famosa, a poeta Ana Cristina César, explica o motivo: o diário é um interlocutor. Ana C. percebia a diferença entre o diário pessoal e o diário literário, mais aproximado da literatura japonesa.
No Japão, o diário literário contém poemas e desenhos, é um haibun, como o de Bashô. O diário de Ana C., publicado em “A teus pés”, difere do diário da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, por exemplo. Ana C. capricha na linguagem poética, enquadrando a sua intimidade sob o molde literário. O diário de Mansfield é o tipo de documento apreciado pela crítica genética, que examina documentos pessoais do escritor. A poesia de Bashô ou de Ana C., embora pertençam à escrita da intimidade, categorizadas como diários, são literatura. O que difere um e outro é a linguagem que se emprega.
No plano pessoal, diário não é só para ficar batendo-papo consigo, num exercício exacerbado de auto-narcisismo. Funciona como arquivo, para organizar a memória. Para uma geração de mulheres educadas para serem donas-de-casa ou servirem à família, os diários funcionavam como válvula de escape. Não bastava o confessionário da igreja para expiar as culpas. Essa geração não havia sido introduzida ao discurso da psicanálise e da psicologia. O diário era a saída para preservar a sanidade mental.
Nos anos 90, os blogs se tornaram moda no Brasil. Blog é também uma espécie de diário. Lançaram mais de um escritor à celebridade: Fabrício Carpinejar, Clarah Averbuck, Marcelino Freire, Andréa Del Fuego, Daniel Galera, Angélica Freitas, todos tinham seus blogs, e registravam entradas diárias. Com Roland Barthes decretando a morte do autor, tornar-se autor já não era privilégio de uma elite de predestinados. Os softwares que facilitavam a publicação de diários eletrônicos ajudaram. Depois vieram as redes sociais, e os blogs se tornaram ultrapassados.
Mesmo depois da explosão das redes sociais, continuei a escrever em meu blog. Hoje ele já não é mais um confessionário virtual. Ainda mantenho o registro da intimidade, mas busco uma linguagem mais literária, próxima do nikki. O blog não busca autoexposição aleatória. E também quer preservar o estado de solidão. Estabelecer uma comunicação. Isso é literatura: o meu caminho.
Uma vez uma amiga veio em casa e comentou: “As pessoas dizem: não ligue para a bagunça. Mas todo mundo tem a casa bagunçada.” Era uma observação sobre a desordem permanente de minha casa. Livros por todos os lados, blocos de anotação, cadernos, cópias de xerox, uma casa em que o papel predomina e causa desordem. Gostei do comentário da amiga. Depois disso, passei a não me importar que as visitas vissem a casa em caos.
Fico com medo de entrar em casas limpas e organizadas demais. Medo de pisar no chão limpo e brilhante. Medo de sentar no sofá limpo e brilhante. Uma amiga tem uma casa tão limpa e organizada que tenho medo de sentar no sofá e morrer. Lembro o sofá de Julio Cortázar, com uma estrelinha pontiaguda, no qual as crianças convidavam as velhinhas chatas a sentarem para morrer.
Na casa da minha avó havia uma geladeira que só fechava com barbante. Ela aproveitava o jornal que meus tios liam para forrar o chão onde caía gordura do fogão. Quando criança, eu não achava sua casa uma bagunça. Não sabia que organizar o espaço é fundamental para a vida ter um prumo, como ensinam os administradores de tempo. Na casa da avó tínhamos liberdade máxima para não nos preocuparmos em não sujar e não bagunçar nada. Era o lugar em que bombons e pizzas surgiam de forma mágica.
Na casa de Hélio Leites há objetos inúteis por todos os lados. Latas de sardinha, botas, sapatos, livros, pedaços de papel, embalagens de leite. Tudo que ele usa em suas colagens. Entre várias associações estapafúrdias que criou, Hélio fez parte do clube de Arte Postal, e “guarda” os cartões entre parafusos, porcas, potes de iogurte, chaves. Descobri, entre seus papéis, o boletim Hitlelírico, com paródias inspiradas no Grande Ditador. E também artigos, gozações homéricas, publicados no jornal “O Estado do Paraná”.
Na chácara de Hilda Hilst, em Campinas, os cachorros dormiam em cima de sua cama. O jardim era seco e ela bebia nos fins de tarde. Tive emoções difusas nos dois dias em que estive lá. Ouvi histórias sobre abortos, a mágoa por ter sido “esquecida” pelos críticos, menos Léo Gilson Ribeiro. A visita se deu antes que Fernanda Montenegro encenasse “A obscena senhor D.” e Hilda tivesse a sua obra republicada pela Editora Globo. Ela ficava na sala, bebendo com os amigos. Mas quando estive em sua casa, ficou impressionada com o meu silêncio e veio descascar batatas comigo, na cozinha. E confidenciou: “tenho pena dos poetas, são tão sozinhos.”
Na sala de minha terapeuta há livros espalhados numa mesa que ela nunca arruma. Muitas vezes pensei porque uma pessoa responsável por ajudar a organizar o caos interior de outros mantém uma mesa de trabalho em desordem. Na última vez em que estive com ela, descobri. É preciso aceitar a desordem interior. Não sabemos de tudo, não vemos tudo. O que está em aparente desordem, pode estar afinado na ordem de um sistema — familiar, comunitário, social, galáctico.
Durante anos me preocupei por não ser organizada, nem produtiva, eficiente e útil. Ler, escrever, conversar, discutir são uma enorme perda de tempo. Hoje sei que isso é apenas um ponto de vista. É preciso perder tempo, deixar-se desorganizar-se. Quando se entende o que é ter equilíbrio, a organização vai acontecendo sem perceber.
Desde adolescente frequento bibliotecas públicas. Quando criança, não. Nas escolas em que estudei, em Paranaguá, não havia bibliotecas. Uma vez, uma professora inventou uma biblioteca ambulante. Cada aluno deveria levar um livro. Não funcionou. Ninguém levou livros. Quando mudei para Curitiba, passava um tempão passeando pelos corredores da Biblioteca Pública do Paraná. Minhas estantes preferidas eram as de literatura brasileira e poesia. Também passei quase cem anos de solidão e areia diante da literatura em língua espanhola, quando descobri Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges.
Uma biblioteca que sempre me fascinou foi a da Universidade Federal do Paraná, quando ainda não era aluna. A diversidade de títulos, e em línguas diferentes impressionava. Lembro do encanto por um livro de Luís da Câmara Cascudo sobre lendas brasileiras. Quando me tornei aluna, pude emprestar um livro de poemas de Manuel Bandeira traduzidos para o francês. Mais tarde, na pós-graduação, li livros sobre literatura japonesa.
Outra biblioteca que gostei de conhecer foi a do Instituto Goethe. Frequentei pouco, mas quando a conheci, era uma novidade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, visitei bibliotecas que também tinham seções multimídia. E nas quais passava horas lendo revistas sobre todo o tipo de assunto.
Nesse ano conheci a biblioteca do Instituto de Estadual de Educação Erasmo Pilotto, escola na qual Helena Kolody foi professora. Uma amiga, a poeta Jane Sprenger Bodnar, trabalha lá. O acervo, embora seja uma biblioteca escolar, é diversificado. Além de literatura e educação, há livros sobre cultura popular. Pena que precise de reformas e não receba atenção do governo do estado.
Apesar de ter sido reestruturada, especialmente na área de comunicação visual, hoje tenho medo de voltar à Biblioteca Pública do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Literatura que me interessavam. Há poucos títulos novos. Confesso que ler os autores da literatura contemporânea, celebrados em eventos promovidos pela própria BPP me atemoriza.
Não consigo mais exercer o ritual juvenil, de aventurar entre as estantes para descobrir um livro estranho. Falando em estranheza, tempos atrás havia leitores bizarros entre os frequentadores da BPP. Escritores, artistas, designers, jornalistas? Não: sem-teto ou desempregados, enfurnados nas salas de leitura. A neoliberalização do lugar expulsou os bizarros, que devem ter voltado para o seu lugar: as ruas.
Certa vez, num programa de tevê, vi a biblioteca da professora de literatura Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em desordem e as estantes roídas por cupins. Desordem igual às das bibliotecas do poeta Paulo Leminski e do ilustrador Claudio Seto. Nem tudo está conforme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que importa é alimentar os ratos de biblioteca. Em tempo de bienais e grandes eventos de literatura, bibliotecas cheias de poeira são um refúgio contra os que cobrem a história com verniz.
Quem escreve conto ou poesia predetermina que não terá público em massa. Conto e poesia são gêneros destinados a um público fora do alvo do mercado editorial. Uma ex-jornalista que trabalha no mercado adverte: se quiser entrar, o candidato a escritor tem que escrever romance. Autores publicados por grandes editoras são romancistas. Exceção, os consagrados ao longo do tempo. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.
Valêncio Xavier, Jamil Snege, Manoel Carlos Karam, Wilson Bueno talvez sejam daquele tipo de autores que jamais atinjam o grande público. O “grande público”, essa entidade fantástica que lê “50 tons de cinza”, “O diário de um mago”, “Harry Potter” e é visado pelo mercado, nem sempre se interessa por boa literatura. Assim, se priva de ler, além dos já citados, Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato, Ricardo Lísias e J.M. Coetzee. E, claro, nem quer saber de poesia. A não ser que o poeta se torne um fenômeno comercial, como Paulo Leminski. O grande público seguirá ignorando as obras de Alice Ruiz, Paulo Henriques Britto, Adília Lopes, Micheliny Verunschk. Lerá, quando muito, Manoel de Barros.
Reconhecido pela crítica, Valêncio morreu “esquecido” . Tão esquecido que nem sabia mais dizer seu nome. Em vida, Valêncio era esquecido. Pela manhã telefonava aos amigos para contar casos que repetiria à noite, quando os encontrasse. Era o início do “Alemão”. A doença não cortou a verve criativa e permaneceu lúcido. A frase derradeira do último livro, “Rremenbranças da menina de rua morta nua e outros livros”, publicado em 2006 é: “Estou morto.” Valêncio, ele mesmo, era seu personagem. Seguiu estritamente o conselho de Roland Barthes que dizia: “trabalhe enquanto houver sol.” A luz da razão permaneceu até o limite da lucidez.
Há alguns anos, Daniel Filho lançou uma biografia intitulada “Antes que me esqueçam”. Atores globais e outras celebridades lançam biografias e livros para não serem esquecidos. O livro, objeto misterioso numa cultura midiática audiovisual, é um amuleto que assegurará a imortalidade dos tementes do Juízo da Eternidade. É fácil prever que, à parte sua necessidade de ser irradiada pelo público, em pouco tempo essas celebridades serão esquecidas.
Na Antiguidade, os reis não podiam ser vistos pelo povo, nas tribos primitivas. Como eram considerados deuses, não podiam tocar o solo impuro, tocado por todos. Eram lhes atribuídos poderes de controlar as forças da natureza e proporcionar boas colheitas na agricultura. Mas seus poderes só se mantinham intactos longe do povo. Assim, criou-se o vínculo entre objetos/entidades sagrados e sua ocultação ou velamento público. Aparentemente, a era da reprodução instantânea inverteu o paradigma. Agora, o que deve ser cultuado têm que ser superexposto.
Um passo para além da necessidade de publicidade, o valor do objeto artístico permanece igual ao de gerações passadas. A memória humana não é preservada nos objetos que seduzem instantaneamente. Mas naqueles em que se percebe o valor do trabalho e da luta pela preservação da humanidade. No caso da literatura, o trabalho com a linguagem e a língua: novas percepções, conexões, saltos criativos. Por isso, escritores como Valêncio Xavier não são esquecidos. O sol brilhou em seu signo astral, até sua luz sumir no horizonte. Esse tímido raio de sol será visto por anos.
Ler poesia é como ler prosa? Ler poesia como se lê prosa é desler? Para ler poesia ler e reler ao relento, desligando o relé do pensamento. Desligar a face, religar o verso. No epicentro da poesia a palavra, a música, a imagem movem terremotos de imaginação. Para uma sociedade centrada na funcionalidade da palavra, que não admite ambiguidade subjetiva, ou a comunicação por excesso, poesia é um desvio que excede a palavra em ritmo e imagem.
Fiquei pensando isto quando li o Poesia é Não(Iluminuras, 2011), de Estrela Leminski. Primeiro li os poemas. Depois, a autobiografia da poeta, nas orelhas do livro. E folheando, vi aqui e ali páginas compostas em nuances de cores e tipos diferentes. Depois li a resenha de Marcos Pascheno Jornal Rascunho. “Faltou Poesia”, avisou o crítico, logo no título. E escreveu um artigo antecipando sua defesa por não criticar a poesia e sim a personalidade de Estrela, filha de um casal de poetas célebres. O modo que o crítico escolheu é um modo de desler poesia, concentrando-se na personalidade do poeta e não em sua poesia, nem sempre contida apenas nos versos.
Estrela joga com o título Poesia é Não, indicando o que a poesia não é. Catarse, objeto útil, notícia, mercadoria, rascunho de gaveta, protesto, influência. A negatividade se lê nos escritos, nas páginas gráficas. Ao deixar de lado o que está escrito e passar a ler o código visual, a leitura é outra.Papel de embrulho, documento oficial, jornal, livro, operária, conta e pagadora de conta, gaveta, panfleto, verbete de dicionário, literatura, signo, as páginas gráficas apontam para o que a poesia não é. O que ela é , então ?
Poesia é ver o verso, o avesso do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue adolescente”, pode ser que a poesia diga, como Estrela, a alegria pelo Não, alegria de quem cresce e conhece os prazeres de viver, prazer da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de adolescer, é amadurecer adolescendo, envelhecer adolescendo, morrer adolescendo. Ser poeta é não desistir da infância para se preocupar em como escrever, escrever bem, escrever para um público, escrever sagrando o já sagrado. Escrever poesia é desescrever, é não saber, não acertar o ritmo, ler livros de poesia e esquecer, saber línguas e confundi-las com a língua da boca. Sem esquecimento, ignorância, erro, a poesia é pobre, por que uma vida perfeita é pobre, ou impossível. Querer que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mundo deve nascer velho.
Juventude nem sempre é vitalidade. Velhice não é sinônimo de decrepitude. O domínio sobre a linguagem, que os críticos esperam dos bons (?) escritores não é sinal de maturidade. É sinal de quem tem medo de criar, de quem se protege por trás da terminologia letrada. O jargão intelectual não interessa para a maioria dos mortais. A maioria silenciosa, ao contrário do que pensam os críticos, ama a poesia — ama ouvir canções populares, por exemplo. A maioria silenciosa ama escrever versos, na adolescência cronológica ou tardia. E a maioria silenciosa se envergonha de amar a poesia, quando o crítico se levanta em nome do cânone literário e prega que é preciso ter vergonha por amar poesia e escrever bobagens que qualquer um escreve quando o coração dispara.
“Atirem o poeta ao mar”, diz um dos versos de Estrela, evocando o pai, que escreveu um livro juvenil (Guerra dentro da gente, Scipione) no qual um poeta, considerado o palhaço da tripulação de uma embarcação é atirado ao mar. A única solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qualquer sociedade. Que fazer com os que amam seus encantamentos? Não se pode atirar os amadores de poesia ao mar, não sobraria mar para todos. Preferível dizer ao crítico não leia seus poemas e condene a personalidade do poeta. Assim apenas um será afogado por suas más palavras.
Mas o poeta é trezentos ou trezentos mil, e seus versos se desdobram entre as palavras de ordem. Apesar das advertências do crítico, os leitores atravessam o texto e seus pretextos e saem atrás de miragens. Para os que amam se divertir, a poesia de Estrela é, sim.
*Marília Kubota, além de colaboradora do interrogAção, escreve no seu blog Micrópolis.
O poeta Lau Siqueira nasceu em Jaguarão (RS), em 21 de março de 1957. Começou a publicar poemas no Jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, nos anos 70. Seu primeiro livro foi O Comício das Veias, publicado em 1993. Seguem O Guardador de Sorrisos (1998), Sem Meias Palavras (2000). Participou das antologias Mário Quintana – 1985, Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil(Landy, 2002) e Agendas da Tribo. Há 20 anos mora em João Pessoa (PB), e há outro par de anos mantém o blogue Poesia Sim
Teu nome é Laureci Siqueira . De onde vem o “ Lau”?
O que é o nosso nome? É o que está na cédula de identidade ou é o nome no qual as pessoas nos reconhecem? Nem sempre essas coisas coincidem. Acho que este é o meu caso. Na minha identidade está escrito Laurecí Siqueira dos Santos. Foi assim que meu pai me batizou. No entanto, nem ele me chamava pelo nome de batismo. Meu apelido de infância era Dido. Até hoje alguns amigos de infância lá de Jaguarão, me chamam assim. O “codinome” Lau foi se empoderando naturalmente da minha existência e da minha inexistência. Tudo porque quando apresentado às pessoas a confusão aparecia logo: Laudecir, Lauremi, Laudeci?… As pessoas simplificavam naturalmente, rapidamente, reduzindo para Lau. Isso aconteceu muito com colegas de trabalho e na escola, principalmente, mas em outros espaços também . Depois veio o primeiro livro e eu pensei que era mais coerente assinar o nome pelo qual eu já estava conhecido entre os amigos. Enfim, se tudo tem uma história, esta minha história é assim. O nome também explica uma poesia que busca se despir das sonoridades desnecessárias. Assim, o meu nome literário é também mínimo e ao mesmo tempo de densa sonoridade.
Você nasceu em Jaguarão , passou a infância, lá, depois morou em Porto Alegre ? Conta um pouco sobre a tua juventude.
É verdade, nasci em Jaguarão, cidade histórica e muito bonita, às margens de um rio (Rio Jaguarão) que corta a fronteira com o Rio Uruguay. A cidade tem uma vida cultural intensa, produzindo uma Feira Binacional do Livro onde farei uma sessão de autógrafos no mês de novembro. Morei lá até os 15 anos e fui para Porto Alegre, de onde voltei no final do serviço militar para ajudar a cuidar do meu pai que estava muito doente. Assim, fiquei novamente em Jaguarão no ano de 1977, até que meu pai morreu no dia 3 de dezembro e em janeiro de 78 voltei para Porto Alegre onde morei novamente até me mudar para a Paraíba, “de mala e cuia”, em 1985. Este é o resumo da ópera.
Por que mudou do Rio Grande para a Paraíba?
Por motivos muito particulares. Eu casei na Paraíba, vivi casado 13 anos e depois divorciei. Mas aí já tinha duas filhas para dar conta dos meus afetos e das minhas responsabilidades de pai apaixonado e fui ficando. Hoje tenho uma neta, também por aqui. Além disso, o povo paraibano é muito especial, muito acolhedor e sempre me senti querido por aqui. Hoje me sinto um sertanejo do pampa ou um pampeano do sertão que mora num dos litorais mais belos do País. Não é difícil largar tudo e vir pra cá. Os encantos são muitos. A capital da Paraíba é a terceira mais antiga do país. É uma das cidades mais verdes do país e ainda não está assim tão caótica. Aqui se convive com passado e futuro numa mesma avenida.
Em Porto Alegre você conheceu Mário Quintana ? Que lembrança tem dele ? Que outros poetas foram importantes para sua formação e informação ?
Mário era uma personalidade das ruas de Porto Alegre. Quem andou pelo centro da capital gaúcha até os anos 80, pelo menos alguma deve ter visto o poeta caminhando pela Rua da Praia, pelas ruas do centro. Ele tinha hábitos regulares. Morava no Hotel Majestic, onde hoje é a Casa de Cultura Mário Quintana. Tomava café sempre no antigo Ryan, gostava de uma salada de frutas no Mercado Central. Eu vi Mário muitas vezes, na Feira do Livro, na antiga Livraria do Globo, na Biblioteca Pública onde até assisti um recital com ele, nos anos 80. Também tive o privilégio de entrevistá-lo, juntamente com a jornalista Joana Belarmino, em janeiro de 1987. Enfim, além disso, podia encontrá-lo nos livros que escreveu e traduziu. A primeira tradução de Proust que li, foi sua. Ele trabalhava no jornal Correio do Povo e quando o jornal fechou, pude vê-lo em uma passeata de jornalistas pelas ruas de Porto Alegre. Acho que foi sim um poeta importante para a minha formação, mas eu admiro muitos poetas. Inclusive me sinto a vontade para dizer que não gosto de tudo que leio nos poetas que admiro. Sinto da mesma forma quanto aos meus contemporâneos. Sou um escritor absolutamente aberto às influências e não me preocupo em ser engolido por algum estilo. Acho que quanto maiores e mais diversificadas as leituras, mais possibilidades temos de construir uma linguagem singular, que não seja a mais pura e bela diluição, a imitação de algum poeta amado. Enfim, os poetas que mais me fascinam são os que caminham no fio da navalha, os que buscam o extremo, a margem do erro… o risco permanente.
E a poesia, quando se tornou importante? Ao contrário de tantos, você não começou escrevendo poesia…
A poesia foi se tornando gradativamente importante pra mim. Na adolescência eu detestava poesia. Aprendi a gostar com os românticos Castro Alves e Fagundes Varela por motivos absolutamente extra-literários. Um pelo discurso agudo contra o sitema de escravismo da monarquia brasileira, outro pela dor de ter perdido um filho. Digamos que não comecei a escrever poesia, mas também não comecei escrevendo gênero algum. Escrever era apenas uma forma de respirar melhor num mundo em que o silêncio gerava o medo e tudo era de uma violência assustadora. Cresci numa área de segurança nacional, em plena ditadura. Acho que isso tudo me ensinou uma forma de ver as coisas. Escrever é um ato único e contínuo. Sinto que desde sempre estive escrevendo o mesmo livro, mesmo já tendo publicado cinco inéditos e um pela Coleção Dulcinéia Catadora que considero, talvez, o mais importante de todos. Procuro sempre fugir dos rótulos e, pra dizer a verdade, algumas vezes questiono até mesmo o fato de ser chamado de poeta. O que é ser poeta? Eu acho que ser poeta é exatamente não ser.
Participou do movimento Arte Postal ? O que era este movimento ?
Como se diz aqui no Nordeste, fui me metendo meio que de “enxerido” e acabei trocando toques com nomes importantes do movimento arte-postal e com artistas da vanguarda visual, como Paulo Brusky, Samaral, Hugo Pontes, Moacy Cirne e Constança Lucas. Pessoas que depois acabei conhecendo pessoalmente (menos Samaral que faleceu prematuramente) e hoje são meus amigos. Conheci muita gente bacana, muita criação na área da Poesia Visual que circulava como se estivesse antecipando o que hoje temos na internet. Eu enviava fanzines que produzia para divulgar minha produção poética, minhas experiências, mesmo antes de sequer pensar em publicar livros. Fazia um original numa folha de ofício e imprimia em aerogramas, encaminhando não apenas para outros militantes da arte postal, mas selecionando aleatoriamente endereços nas velhas listas telefônicas e encaminhando correspondências poéticas, geralmente anônimas. Enfim, no meu caso foi da forma como hoje se envia spam pela internet.
Você trabalhou na secretaria de cultura de João Pessoa ? Que cargo exerceu ? Quais os feitos memoráveis de sua passagem por lá ?
Na verdade, fui o diretor executivo da Fundação Cultural de João Pessoa – FUNJOPE, entre 2007 e 2008. É a Fundação que dirige as políticas de cultura na cidade. Não temos Secretaria Municipal de Cultura aqui. De 2005 a 2006, eu era o diretor adjunto na gestão do ator Luiz Carlos Vasconcelos que fez o médico em Carandiru, Baile Perfumado e outros filmes. Ele se afastou para filmar Pedra do Reino, na Rede Globo e eu assumi. Depois veio o Chico Cesar e agora a Fundação é dirigida por Milton Dornellas, um amigo músico dos bons que foi meu adjunto. Portanto, tivemos teatro, literatura e música na direção da Fundação nos últimos anos. Olha, para falar dos feitos memoráveis, não sei se tenho jeito. Até porque esses feitos não são meus. Vou falar de algumas coisas que considero relevantes, como ter criado o departamento de Literatura na Fundação, coisa que antes não existia; também assinei juntamente com o secretário da Educação da época, Walter Galvão, a criação da primeira biblioteca pública do município de João Pessoa. Na verdade, levamos arte e cultura para praticamente todos os bairros da cidade e destaco aí o projeto Circuito Cultural das Praças que até hoje visa aproveitar os anfiteatros que foram criados pela Prefeitura nas praças públicas para apresentação semanal de grupos da cidade, em todas as áreas, em todas as estéticas. Trabalhamos muito pela preservação da diversidade cultural, pela preservação das tradições da cultura popular, dos bens imateriais, trazendo para a cena expressões que se encontravam marginalizadas, como as Cambindas, o Cavalo Marinho, o Boi de Reis, o Coco de Roda, o Babau, o Coco de Embolada, o tradicional forró pé-de-serra que hoje Chico Cesar busca preservar no Estado, enquanto Secretário de Cultura da Paraíba. Até mesmo o Cordel andava deixado de lado porque a gestão anterior buscava preservar as ações de pão e circo, deixando a cultura na míngua. Nós afirmamos as políticas de cultura dentro da gestão. Pautamos politicamente a cultura na cidade. Dialogamos com a cena contemporânea, apoiando a criação de eventos undergrounds ou populares, ajudamos a consolidar aqui o Festival de Cinema de Língua Portuguesa, o CINEPORT, implementamos oficinas de arte pela cidade inteira, buscamos a qualidade musical para os nossos eventos de verão que hoje referenciam João Pessoa nacionalmente. A cidade tem hoje um dos mais importantes festivais de verão do país, o Estação Nordeste. Na verdade tudo isso foi fruto de um debate coletivo que vinha se formando através dos anos, nos instrumentos da luta dos artistas, como o Musiclube da Paraíba, nas idéias do grupos como Jaguaribe Carne, com Pedro Osmar, Chico Cesar e Paulo Ró, de pensadores e gestores da cultura paraibana como Carlos Aranha e Fernando Abath… Enfim, buscamos preservar a identidade cultural nordestina e dialogar com a contemporaneidade. São essas as idéias que ainda prevalecem por lá. Não são coisas minhas, relevâncias minhas, mas questões coletivas, debatidas e implementadas coletivamente. Portanto, estive dentro de um processo e não fiz nada sozinho. E esse é o que foi o diferencial e que ainda está sendo. Foi uma gestão de companheiros e continua sendo uma gestão de companheiros e companheiras. Como diz Chico Cesar, no meu tempo, eu fui “apenas o ordenador de despesas”. (risos)
Para que ou para quem serve a poesia ?
A poesia não serve para absolutamente nada, ainda bem. Não existe nada mais inútil que a danada da poesia. Para quem serve? Sei lá… acho que serve de pano de fundo aos que curtem jogar amarelinha com psiquiatras que investigam as profundezas do espírito humano.
Um poeta precisa ter grupo, site, blogue, livro , ser dinâmico, ativo, empreendedor ? Precisa ganhar prêmios, receber bolsas de criação literária e coisas tais ?
Um poeta precisa ter consciência do seu ofício que é: trabalhar, trabalhar, trabalhar… Trabalhar para sustentar o cadáver desajeitado que é e trabalhar exaustivamente a palavra, escrevendo ou não. Então ele pode ter grupo, pode ter blog, ser dinâmico, ativo, passivo, maluco, empreendedor, bundão… Ele só não pode achar que já está pronto, que já é uma celebridade por ser razoavelmente conhecido ou elogiado pelos amigos. Um poeta nunca é uma celebridade. Pelo menos, não deve pensar que é. Porque aí ele terá morrido e será apenas uma camisa e uma calça flutuando pelas ruas em busca de algum tipo de imortalidade. O poeta não pode ter medo de arriscar-se. Ser poeta é não ter medo do abismo, ser poeta é correr riscos permanentemente. É não ter medo do ridículo. Ele pode até receber prêmios, bolsas de criação literária, mas acho complicado alguém achar que pode escrever um grande livro apenas porque recebeu uma bolsa de criação literária. Poesia é como diz meu querido poeta Ronald Augusto, “coisa nenhuma” e portando o poeta tem que estar preocupado é com coisa nenhuma mesmo. O poeta precisa viver intensamente a vida (como qualquer pessoa), viver profundamente a palavra e buscar experimentar esse mistério que é a pulsação dos seus movimentos, dos seus significados dentro da invenção poética, dentro das possibilidades de transgressão dos próprios processos.
Você lançou teu livro Poesia sem Pele na Semana Antimanicomial, na Paraíba. Como a loucura pode ser arte na cidade ?
Sim, acho que a poesia não pode ser engajada — embora possa ser temática. No entanto, o poeta pode escolher entre ser um cidadão engajado ou não. Eu estou engajado na Luta Antimanicomial, contra o antigo e criminoso modelo dos choques, das lobotomias… ações que vitimaram pessoas do meu mais profundo afeto. Desde muito novo estou engajado nas questões humanas. Na verdade eu sabia e sei que cuidar do outro é cuidar de si mesmo. E acho que a arte é uma das curas da humanidade. Por isso, a loucura pode ser arte na cidade.
quarta capa
o poeta
é o que busca na palavra
a dimensão do átomo
o silêncio extremo
por detrás de cada fato
o poeta é o etéreo e o ácido
na pele dos valores estáticos
estéticos são seus baralhos
o poeta é o vapor barato e o
lance de dados
o acaso e o atalho
macalé e mallarmé
no mesmo saco
o poeta é um guapo
(de: POESIASEMPELE , Casa Verde, 2011. Pedidos pelo email: poesiasempele@gmail.com)
No dia 17 de março, a escritora Marina Colasanti encontrou com mais de cem crianças, de 5 a 10 anos, na Biblioteca Pública do Paraná em Curitiba. Foi bonito ver a platéia de crianças, falando, rindo, brincando e atenta. Marina, aos 73 anos, consegue falar a língua delas. Não à toa, é autora de mais de 50 livros, muitas histórias de fadas. Outras, crônicas, reportagens, poesia para crianças. Todos parecem ter em comum a ideia de ser histórias para crianças de todas as idades.
Durante o bate-papo, Marina Colasanti vestia um terninho com saia e ficou em pé, mãos cruzadas à frente, para falar com as crianças. Uma postura bonita, despojada, de desarme e encanto. Falou um pouco sobre ela, incluindo a frase do título. E que escritor é profissão de gente sozinha, mas que nunca está só.
Lembro o primeiro livro que li de Marina Colasanti, Nada na Manga. Descobri na Biblioteca Pública, orgulhosa. Desconhecida pra mim, ela já escrevia crônicas para o Jornal do Brasil e trabalhava na Revista Nova. Ainda não sabia que era casada com o poeta Affonso Romano de Sant´anna. Pelas crônicas, conheci as filhas, Alessandra e Fabiana.
Fique feliz em ler as crônicas de Marina. Que falavam sobre a solidão. Eu, aos 15 anos, me identificava com aquela mulher sozinha, casada e com 2 filhas. E me iniciava na arte de ser sozinha.
Até hoje lembro as primeiras leituras. E também fiquei satisfeita em encontrar Marina Colasanti, ao vivo, sem falar uma palavra com ela. Por que ela gosta de escrever e ensina que ser sozinha pode ser divertido. Ler é uma aventura, um encontro com a alma.
Durante anos busquei quem lesse os mesmos livros que eu. Algumas vezes ainda me iludo quando encontro um leitor. Me emociono, quero prolongar a relação. Mas sei que não conseguirei deixar de ser sozinha. Cada um segue seu caminho. Se tiver talento e persistência, publicará um livro para compartilhar suas leituras em público.
O Dalai Lama diz que existem seis milhões de religiões no planeta para seis milhões de almas. Poucas seguirão sozinhas, escritoras ou leitoras. Marina Colasanti sabe o que é a literatura. A felicidade que provoca, e não é preciso sair de seu silêncio. Também sabe que é bom compartilhar a alma. Por isto, talvez, a postura de menina leviana e comportada, diante dum auditório repleto de borboletas coloridas.
Texto publicado também no blog micropolis, da própria autora Marilia Kubota.