Author: Marilia Kubota

  • Canta tua aldeia | Crônica

    Canta tua aldeia | Crônica

    Em Paranaguá, min­ha cidade natal, ain­da não há ciclis­tas, cli­cloa­t­ivis­tas, nem bikeiros. Há pes­soas que usam a bici­cle­ta como meio de trans­porte. É uma sen­sação con­fortáv­el estar na min­ha cidade natal com músi­cos na praça e bici­cle­tas. Em vez de ouvir “The Wall”, eu pen­so em “Cin­e­ma Par­adiso”. Em breve esta aldeia será igual a todas as out­ras, com a insta­lação de dois shop­ping cen­ters — todos os que ain­da andam de bici­cle­ta terão seu car­ro. Há tem­pos li que o fotó­grafo Pedro Mar­tinel­li foi morar na Amazô­nia para reg­is­trar os últi­mos momen­tos da flo­res­ta em pé. Tam­bém quero acom­pan­har esse momen­to de trans­for­mação em que a min­ha peque­na cidade vai ser se tornar igual a out­ra qualquer.

    Empresários indo trabalhar de bicicleta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan - Bridgepix)
    Empresários indo tra­bal­har de bici­cle­ta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan — Bridgepix)

    Na Ale­man­ha, na Holan­da e na Bél­gi­ca, na Chi­na e no Japão, país­es em que a bici­cle­ta não é meio de mobil­i­dade alter­na­ti­va, mas pref­er­en­cial, as pes­soas lev­am tudo sobre duas rodas. Os japone­ses, mais ele­gantes: exec­u­tivos ped­alam de ter­no e gra­va­ta e hábeis, empun­ham o guar­da-chu­va numa das mãos e com a out­ra agar­ram o pun­ho do guidão; sen­ho­ras alin­hadas na últi­ma moda des­fil­am com graça. Os chi­ne­ses já se pare­cem mais com os caiçaras, lev­am a mul­her e o fil­ho e a mudança de casa sobre a bike.

    No filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid”, Paul New­man tem uma famosa cena de bici­cle­ta com Kather­ine Ross. Lá, expli­ca que para os chi­ne­ses, quan­do uma mul­her e um homem andam jun­tos numa bici­cle­ta estão namorando.

    31Dada a pro­fusão de bici­cle­tas na cidade, meu avô, Kingo Kub­o­ta, ao insta­lar-se na cidade, teve visão de negó­cios. Abriu a Bici­cle­taria San­ta Cecília, hom­e­nage­an­do a cidade que morou ante­ri­or­mente, no norte do Paraná: San­ta Cecília do Pavão. Como todo bom japonês, meu avô cul­tua­va rit­u­ais e ado­ra­va hom­e­na­gens. Meu nome, por exem­p­lo, é uma hom­e­nagem a out­ra cidade em que morou, no inte­ri­or de São Paulo: Marília.

    Cena do filme "Butch Cassidy and Sundance Kid" (1969)
    Cena do filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid” (1969)

    Fui uma cri­ança cujo pai era dono de uma bici­cle­taria. Meus cole­gas de esco­la achavam que eu era a cri­ança mais sor­tu­da do mun­do. Era o tem­po em que nos­so son­ho con­sum­ista era gan­har uma Caloi, graças à pro­pa­gan­da tele­vi­si­va: “Eu quero a min­ha Caloi”, anun­ci­avam em todas as telas. Apren­di a andar de bici­cle­ta com rod­in­has e depois, sem rod­in­has, cain­do algu­mas vezes. Cer­ta vez, min­ha esco­la pro­moveu um pas­seio de bici­cle­ta e não fui. Todos me olharam espantados.

    Além de vender bici­cle­tas que ele mes­mo mon­ta­va, com a car­caça de bici­cle­tas usadas, meu pai tam­bém tin­ha uma ofic­i­na. Os pri­mos de meu pai e meus dois irmãos tra­bal­haram na ofic­i­na. Um dia meu irmão mais vel­ho foi para a esco­la com a mão suja de graxa. A pro­fes­so­ra per­gun­tou o que era aqui­lo. Ele ficou com ver­gonha e nun­ca mais quis voltar pra escola.

    Meu pai, Satoru Kubota e minha mãe, Tijiro, ao lado de minha tia Tereza, o trio em frente à Bicicletaria Central. (Foto: Kingo Kubota)
    Meu pai, Satoru Kub­o­ta e min­ha mãe, Tijiro, ao lado de min­ha tia Tereza, o trio em frente à Bici­cle­taria Cen­tral. (Foto: Kingo Kubota)

    Depois de anos, meu pai decid­iu ampli­ar o negó­cio de duas rodas para qua­tro. E pas­sou a vender peças de automóveis. Os pri­mos já não tra­bal­havam com ele, meu avô havia par­tido, e o irmão enver­gonhado não suja­va a mão com graxa. No ano de 1995, meus pais foram ao Japão pela primeira vez e viram de per­to como o japonês se movia nas grandes cidades com bici­cle­tas. Aban­don­avam suas bici­cle­tas no esta­ciona­men­to e pegavam out­ras, como guar­da-chu­vas. Já não se comovi­am com as magrelas.

    Des­de que o cicloa­t­ivis­mo começou a gan­har força em Curiti­ba e nas grandes metrópoles, impul­sion­a­do pelo exem­p­lo das cidades europeias, pas­sei a ver a bici­cle­ta com os olhos de out­ros. Não era mais o gan­ha-pão de min­ha família, que pagou meus estu­dos. A bici­cle­ta ago­ra é trans­porte alter­na­ti­vo na mobil­i­dade urbana.

    Em Paranaguá as magre­las con­tin­u­am em sua condição provin­ciana. Indo e vin­do, levan­do o mun­do sobre duas rodas. Pen­so que voltei numa hora boa para reci­clar meus con­ceitos sobre a min­ha aldeia.

  • Olhai para o céu | Crônica

    Olhai para o céu | Crônica

    Imagem do telescópio Hubble, da NASA
    Imagem do telescó­pio Hub­ble, da NASA

    Nestes dias de super­lua e pôr-de-sol alaran­ja­do todos olham para o céu. Diante de fenô­menos astronômi­cos e geofísi­cos extra­ordinários volta­mos a ser mul­heres e home­ns pale­olíti­cos, embas­ba­ca­dos pelo poder das forças nat­u­rais, Pas­samos a girar em torno de satélites, astros e estre­las do zodía­co. Não como sim­ples con­sulentes de horós­co­pos, mas como seres deslum­bra­dos sob o cos­mo desconcertante.

    Não por aca­so há uma cor­re­spondên­cia entre os sig­nos celestes e os sig­nos lin­guís­ti­cos. “As estre­las no céu lem­bram as letras no papel”, can­tou o poeta. Nos primór­dios, a lua e as estre­las eram fonte de inspi­ração para os aedos. Can­ta­va-se para uma noite român­ti­ca, que ocul­ta­va em seu man­to negro galáx­i­as a serem descober­tas por cien­tis­tas e astrônomos, sécu­los adi­ante. Munidos de lune­tas e telescó­pios potentes, os cien­tis­tas desmisti­ficaram a abóba­da celeste. Ape­sar de hoje saber­mos que as estre­las que vemos no céu são cor­pos moven­do-se a anos-luz da Ter­ra, o encan­to não se diluiu.

    Falan­do em roman­tismo, emb­o­ra para a maio­r­ia dos oci­den­tais esta face não seja a mais visív­el, o japonês tem sua porção sen­ti­men­tal­ista bem acen­tu­a­da. Evo­can­do o mote “olhar para o céu”, lem­bro uma canção que fez suces­so nos anos 60: Ue wo muite aruk­ou. Na voz de Kyu Sakamo­to, a canção japone­sa, cuja tradução do títu­lo é Ande olhan­do para o céu, cru­zou os mares e ecoou nas Améri­c­as, reba­ti­za­da nos Esta­dos Unidos como Sukiya­ki.

    A letra aparente­mente abor­da um fra­cas­so amoroso e inci­ta o amante rejeita­do a seguir em frente, de cabeça ergui­da. A canção, que em 1963 atingiu o topo das paradas de suces­so amer­i­canas, tornou-se um hino para os japone­ses. Não se tra­ta de uma sim­ples canção român­ti­ca. Seu autor, Rokusuke Ei, escreveu a letra enquan­to ia para casa, voltan­do de protesto estu­dantes japone­ses con­tra a pre­sença mil­i­tar dos amer­i­canos no Japão. Des­de a der­ro­ta na 2a. Guer­ra Mundi­al, o Japão se tornou uma nação ocu­pa­da e até hoje a ilha de Oki­nawa man­tém uma base mil­i­tar amer­i­cana, tor­nan­do-se um pon­to estratégi­co dos EUA no mapa geopolíti­co da Ásia. Vários can­tores do mun­do todo gravaram a canção, inclu­sive brasileiros. Há uma ver­são da canção em que Daniela Mer­cury a can­ta, em japonês, com sotaque e rit­mos brasileiros. Para lev­an­tar os âni­mos dos japone­ses desabri­ga­dos pelo tsunâ­mi de 2011, vários músi­cos japone­ses gravaram a canção, com arran­jos que vão do pop ao jazz.

    Isto eu escrevi porque hoje faz 6 meses com­ple­tos de luto pela morte de meu com­pan­heiro. Durante 6 meses a ale­gria muitas vezes bateu à min­ha por­ta e eu a ignor­ei. Hoje à noite, olhan­do para céu, perce­bi que não pos­so mais deixar a por­ta tran­ca­da. Não pos­so chorar pelo ama­do que se foi pelo restante da vida. Ten­ho ami­gos que se enlu­taram e até hoje con­tin­u­am choran­do suas per­das. Mas não con­si­go mais resi­s­tir ao clam­or do céu.

    O céu que se alaran­jou na últi­ma sem­ana de out­ubro é a con­fir­mação de uma nova pri­mav­era. Pri­mav­era que per­gun­ta, em sus­sur­ro: “você perdeu seu com­pan­heiro e tem 51 anos. E ago­ra?” Ago­ra só pos­so con­tin­uar ouvin­do Ue wo muite aruk­ou e andar olhan­do para o céu.

  • Distrações Ambulantes | Crônica

    Distrações Ambulantes | Crônica

    Quan­do come­cei a tra­bal­har em jor­nal, min­ha primeira incum­bên­cia como estag­iária foi faz­er a pági­na de óbitos. Eu detes­ta­va aqui­lo. Que­ria escr­ev­er críti­cas de livros e de filmes e ser céle­bre. Mas nem um estag­iário é con­trata­do para escr­ev­er críti­cas de livros e filmes. Para não ter que ape­nas dig­i­tar a pági­na com o nome dos mor­tos do dia, inven­ta­va nomes estapafúr­dios como Epaminon­das Pan­ta­gru­el e metia no meio da lista. Se alguém perce­beu a peque­na traquinagem, nun­ca fiquei sabendo.

    A primeira reportagem que fiz na vida foi sobre irreg­u­lar­i­dades de esta­ciona­men­tos pri­va­dos na cidade. Eu não lia jor­nais locais, só revis­tas sem­anais e as pági­nas de cul­tura, além de 4 ou 5 livros de ficção por sem­ana. Não sabia como fun­ciona­va a admin­is­tração públi­ca, nem os negó­cios. Tra­bal­hei durante muito tem­po na edi­to­ria “Ger­al”, como se chamavam os cader­nos que trazi­am notí­cias e reporta­gens sobre a cidade. Entre­vis­tei muito bura­co de rua. Hoje nem sei como escrevi essas matérias. Além de tími­da (não sabia faz­er per­gun­tas), não sabia escr­ev­er matérias para a edi­to­ria de notí­cias locais. Algu­mas devem ter sido estapafúr­dias, e pos­so ter meti­do um poe­ma ou citação literária no meio.

    Até hoje não sei como con­segui ser aprova­da em todos os cur­sos vestibu­lares para os quais prestei con­cur­so. No cur­so de jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Estad­ual de Lon­d­ri­na, nos cur­sos de Letras da Pon­tí­fice Uni­ver­si­dade Católi­ca do Paraná e da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná e no cur­so de Jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná. Se tivesse juí­zo, teria mora­do 4 anos em Lon­d­ri­na. Um dos pro­fes­sores do cur­so dizia que o jor­nal­is­mo era arte, como a arquite­tu­ra. E que teve uma alu­na que não con­seguia orga­ni­zar as ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Me iden­ti­fiquei ime­di­ata­mente. Nun­ca con­segui orga­ni­zar ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Não sei como fiz entre­vis­tas e escrevi reporta­gens durante 25 anos de profissão.

    Revi­sores e edi­tores sem­pre sofr­eram comi­go. Na ver­dade, jamais publiquei poe­mas meus nos jor­nais em que tra­bal­hei. Tam­bém não escrevia tex­tos poéti­cos em reporta­gens jor­nalís­ti­cas, emb­o­ra algu­mas notí­cias — pela min­ha fal­ta de con­ta­to com a real­i­dade conc­re­ta — fos­sem estapafúrdias.

    Com o tem­po, apren­di a não levar tudo tão a sério. Mas ain­da é difí­cil ser sim­páti­ca e agradáv­el o tem­po todo. Em grupo, gos­to de ficar em silên­cio, mais obser­van­do do que falan­do. Soz­in­ha, gos­to de cur­tir melan­co­l­ia e ler sobre tipos esquisi­tos. Se um poe­ma, crôni­ca ou nov­ela tra­ta da vida de um tipo esquisi­to, me apaixono, como os bizarros de J.D. Salinger ou os solitários de Dostoievski.

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    Hoje em dia pre­firo seguir o cam­in­ho con­trário ao dos que se apres­sam para chegar a algum lugar. Ando em ruas solitárias e des­cubro que alguns con­sen­sos podem ser rompi­dos. Andan­do a pé, con­ver­so com moradores de rua e muitos pare­cem não ser perigosos. Pelo con­trário, têm medo de rece­ber um não. Não devia con­ver­sar com descon­heci­dos. Isso acon­tece por aci­dente. Alguém pede din­heiro e eu digo que não ten­ho, mas dou um sor­riso. Daí o mar­gin­al perde o medo e começa a conversar.

    Algu­mas pes­soas me acham insu­portáv­el por esque­cer tudo. Des­de acon­tec­i­men­tos a nomes de pes­soas. Esque­cia o chu­veiro lig­a­do ou a chave na por­ta de casa. Cheguei a esque­cer de pegar doc­u­men­tos para ir via­jar, as pas­sagens de avião ou as malas. Min­ha dis­tração chega a tal pon­to que acabo esque­cen­do mui­ta gente. Nesse caso, cor­roboro o dita­do “há males que vêm para bem”. Esque­cer se tor­na uma dádi­va quan­do é pre­ciso apa­gar ofen­sas e ressen­ti­men­tos da alma. Já dizia o inesquecív­el Mário Quin­tana; “ten­ta esque­cer-me… Ser lem­bra­do é como evocar/Um fan­tas­ma”. Assim é…

  • Mukashi Mukashi* | Crônica

    Mukashi Mukashi* | Crônica

    Masa Sato e todos os netos, Sorocaba, anos 40
    Masa Sato e todos os netos, Soro­ca­ba, anos 40

    Seu nome, Miya, dev­e­ria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japone­sas nasci­das no cam­po usarem o ideogra­ma KO [子]. O uso era per­mi­ti­do ape­nas às mul­heres de origem nobre. O ideogra­ma miya [宮] sig­nifi­ca tem­p­lo xin­toís­ta, príncipe ou prince­sa da família impe­r­i­al. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometi­da a um noi­vo que não gosta­va, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deser­dou. Miya tin­ha um irmão mais vel­ho, Sada­ji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kame­ki. Muito jovem, min­ha avó se inter­es­sou por lit­er­atu­ra. Em sua cidade, que fica na provín­cia de Saga, região sul, per­to de Nagasa­ki, só havia bib­liote­cas na igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Ela se con­ver­teu, só para fre­quen­tar a bib­liote­ca e ler a obra do escritor francês Vic­tor Hugo. Sada­ji e Kame­ki vier­am para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a tra­bal­har no cafezal da família Shi­nobu, na Colô­nia Nipolân­dia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vier­am Miya e Tome.

    Museu de Etnografia de Paranaguá (Foto:  Kingo Kubota)
    Museu de Etno­grafia de Paranaguá (Foto: Kingo Kubota)

    Kun­yo Tiba, meu avô, mar­in­heiro, tam­bém veio para o Brasil, com a mis­são de bus­car a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aven­tu­rar no “País dos fru­tos doura­dos”, como era chama­do pela Imi­gração Japone­sa. Veio como agre­ga­da da família Shi­nobu, um expe­di­ente comum na época. Famílias eram com­postas por mem­bros de difer­entes ori­gens, for­jan­do doc­u­men­tos. Miyoko mora­va na “casa grande”, com a família arti­fi­cial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anex­a­do a Manchúria e começaram os con­fli­tos com a Chi­na. No cafezal, con­heceu Miya e casou com ela.

    No Brasil, Miya con­tin­u­ou fre­quen­tan­do a igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Prat­i­ca­va a arte do tan­ka — uma das for­mas poéti­cas japone­sas. Kuniyo toca­va shakuhachi — a flau­ta de bam­bu japone­sa. Como ele era era mar­in­heiro, poucos ofí­cios restavam em ter­ra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro moran­do na colô­nia japone­sa de Birigui. Decid­iu fab­ricar carvão veg­e­tal e mudou para Tapi­raí, no Sul paulista, que veio a se tornar um impor­tante cen­tro de pro­dução da matéria-pri­ma. A mul­her e os três fil­hos o aju­davam a queimar carvão. Por causa do ofí­cio do patri­ar­ca, a família morou em diver­sos pon­tos da cidade. Kame­ki, o caçu­la Tiba, ficou doente e foi se tratar em Cam­pos de Jordão. Cura­do, decid­iu faz­er um cur­so de far­ma­cêu­ti­co, em São Paulo. Quan­do se for­mou, os irmãos mon­taram uma peque­na far­má­cia no cen­tro de Tapi­raí. Kuniyo decid­iu mon­tar um bar, viz­in­ho à farmácia.

    Família Tiba, Sorocaba, anos 40.
    Família Tiba, Soro­ca­ba, anos 40.

    Meu tio mais vel­ho começou car­reira mil­i­tar e pôde com­prar um sobra­do para os pais, no bair­ro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em mea­d­os dos anos 60. Toda vez que íamos vis­itá-lo, Kuniyo fazia algo­dão-doce para nós. Ele ven­dia o doce nas ruas de São Paulo. Cri­ança, não sabia como o açú­car col­ori­do se trans­for­ma­va em nuvem de algo­dão. A casa de meus avós era meio mág­i­ca. Na coz­in­ha havia um grande telescó­pio. Um dos tios havia entra­do para a Aeronáu­ti­ca e tin­ha mania por ape­tre­chos de avi­ação e aeronáutica.

    Meu avô mor­reu em 1974, de câncer no intesti­no. Na época era uma doença dev­as­ta­do­ra. A família cuidou dele por meses. Depois que o mari­do mor­reu, Miya vin­ha pas­sar férias com min­ha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que fala­va. Sin­to pena de não ter estu­da­do a lín­gua japone­sa quan­do cri­ança. Só desco­bri o que era shakuhachi e tan­ka com quase 40 anos. Zan­nen.**

    * Em japonês: anti­go, anti­go. Em ger­al, as histórias de tradição oral japone­sas começam com “Mukashi, mukashi…”
    **Em japonês: Que pena !

  • A persistência da infância | Crônica

    A persistência da infância | Crônica

    No livrin­ho “Infân­cia”, o escritor J. Coet­zee con­ta que ele e seus irmãos se escon­di­am quan­do os par­entes do lado mater­no chegavam para vis­itá-los. Ele descreve a hipocrisia das gen­tilezas soci­ais e a ten­ta­ti­va da mãe em ensi­nar “bons mod­os” aos fil­hos. Fora do ambi­ente domés­ti­co, denun­cia o apartheid da África do Sul, dan­do como exem­p­lo sua exper­iên­cia esco­lar. Cri­anças não europeias, ou seus fil­hos, eram espan­cadas pelas europeias. Coet­zee con­tou numa palestra em Curiti­ba que seus livros pas­saram pelo cri­vo da cen­sura ofi­cial, mas foram lib­er­a­dos sob a ale­gação de que a lin­guagem eru­di­ta só seria enten­di­da pela elite letrada.

    O escritor moçam­bi­cano Mia Couto diz que a mãe pas­sa­va apuros com o pai, poeta, que não con­seguia aju­dar em nen­hum tra­bal­ho da vida domés­ti­ca. E ela reza­va para que não sur­gisse na família mais poet­as. Uma vez, man­dou o fil­ho à padaria, a algu­mas quadras de casa. No cam­in­ho, Mia se dis­traiu seguin­do uma bor­bo­le­ta e esque­ceu o que ia faz­er. Sen­ta­do na calça­da, pas­sou horas ven­do formi­gas. Em sua casa, uma con­fusão: o pai havia pas­sa­do mal. O meni­no ficou na rua até que, tarde da noite, quan­do lem­braram dele o foram bus­car. Encon­traram-no ain­da a obser­var o formigueiro.

    ( Desenho por: Gervasio Troche )
    ( Desen­ho por: Ger­va­sio Troche )

    Essas duas histórias me vier­am à cabeça, quan­do volta­va da con­sul­ta à min­ha médi­ca home­opa­ta. De repente, o ônibus parou. Lá atrás uma pas­sageira gri­tou: “o que acon­te­ceu?” Um bar­bu­do com camisa do Atléti­co respon­deu: “Quer saber o que acon­te­ceu? Quer mes­mo saber ? Veja aqui, já te mostro.” Remexeu na mochi­la e por alguns segun­dos, os pas­sageiros ficaram apreen­sivos. Como o sujeito demor­ou remex­en­do na mochi­la, um out­ro pas­sageiro, a seu lado, gri­tou “Vai demor­ar pra dar o tiro?” O ner­vos­in­ho acabou sacan­do da mochi­la uma bar­ra de banana-pas­sa. “Olha aqui a banana de dina­mite”, brin­cou, cain­do na gargalhada.

    Uma pas­sageira mudou de lugar, per­gun­tan­do por que o ônibus havia para­do. “Não sei”, respon­di. Ouvi o motorista ao celu­lar: uma car­reta blo­quea­va o trân­si­to. As cobrado­ras desce­r­am do ônibus e con­vi­daram o torce­dor do Atléti­co a aju­dar. “Sair daqui só na con­tramão”, disse o motorista. As cobrado­ras e o pas­sageiro blo­quear­am os car­ros, como se fos­sem guardas. Os três pare­ci­am cri­anças trav­es­sas brin­can­do de guardas de trân­si­to. Apoiamos o trio para poder con­tin­uar seguin­do viagem.

    As moças, coradas, e o torce­dor do Atléti­co retornaram. Alguém gri­tou que mais um pas­sageiro havia desci­do. Tin­ha que parar o ônibus pra ele reem­bar­car. Quan­do o ônibus voltou a nave­g­ar, me sen­ti estran­ha. Da janelin­ha do cole­ti­vo avis­tei uma mãe e uma fil­ha rindo uma com a out­ra, numa luta de saco­las de supermercado.

    Nos últi­mos tem­pos pen­so se é necessário preser­var a infân­cia em nós. Se, adul­tos, não cor­re­mos o risco de nos infan­tilizar. Para mim, ler ou escr­ev­er poe­sia é uma for­ma de cul­ti­var o lado cri­ança. Quan­to mais envel­he­ce­mos, a cri­ança se tor­na solitária. Algu­mas se sufo­cam comen­do choco­lates, indo à Dis­neylân­dia, ou pro­ferindo dis­cur­sos sobre caixotes de madeira. Out­ras, desen­ham histórias em quadrin­hos, recitam versin­hos, can­tam e tocam vio­lão. As que nun­ca mor­rem são as bufonas, como o torce­dor do Atléti­co. Que sabem que tudo na vida é pas­sageiro, menos quem con­duz a graça.

  • Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    Ferreira Gullar e Paulo Leminski, dois rivais em exílio | Ensaio

    poema-sujo-ferreira-gullar-livro-capaCatarse (do grego: kathar­sis) é o proces­so de depu­ração dos sen­ti­men­tos, purifi­cação ou pur­gação do espíri­to sen­sív­el. No teatro grego, o herói dramáti­co pre­cisa sofr­er para purificar o espíri­to. Em psi­canálise, é a lib­er­tação de um trau­ma. A gênese da mais famosa obra dos últi­mos 40 anos da poe­sia brasileira, o Poe­ma sujo, é catár­ti­ca, segun­do seu autor, Fer­reira Gullar.

    Gullar esta­va no exílio, em Buenos Aires, em 1975, quan­do escreveu o poe­ma. Depois de pas­sar anos moran­do em diver­sas cidades do mun­do (Moscou, San­ti­a­go do Chile e Lima), viu ditaduras mil­itares se insta­larem nos país­es sul-amer­i­canos. Com o fra­cas­so da utopia comu­nista no Brasil, depois de um tem­po na Rús­sia, emi­grou para o Chile e assis­tiu à que­da de Allende. Mudou para a Argenti­na em 1974 e reviveu o pesade­lo de ver os ami­gos ao redor serem pre­sos ou fugir. Saben­do que os agentes da repressão brasileiros fechavam o cer­co no país viz­in­ho, decid­iu escr­ev­er um poe­ma que fos­se um teste­munho final.

    O Poe­ma sujo, escrito em cin­co meses, em esta­do de transe ver­tig­i­noso, foi aca­len­ta­do por anos. Tem como fio con­du­tor a ideia de res­gatar memórias de sua cidade natal, São Luís do Maran­hão. As condições de penúria no exílio e a eminên­cia de calar-se para sem­pre o forçaram a ultra­pas­sar o tom memo­ri­alís­ti­co. O Poe­ma sujo dá voz ao deses­pero do poeta. Deses­pero que, para­doxal­mente, englo­ba grande esper­ança, por situ­ar-se na infân­cia, como demon­stra seu tre­cho mais con­heci­do, trans­for­ma­do na letra da canção O tren­z­in­ho caipi­ra, a toca­ta da Bachi­ana no. 2, de Vil­la-Lobos:

    Lá vai o trem com o menino
    Lá vai a vida a rodar
    Lá vai ciran­da e destino
    Cidade e noite a girar
    Lá vai o trem sem destino
    Pro dia novo encontrar
    Cor­ren­do vai pela terra
    Vai pela serra
    Vai pelo mar
    Can­tan­do pela ser­ra o luar
    Cor­ren­do entre as estre­las a voar
    No ar, no ar…

    A evo­cação da memória da infân­cia em rede­moin­ho é o pon­to de par­ti­da para com­por um poe­ma em vários tons, com momen­tos de inten­si­dade e de banal­i­dade, como cita o poeta, con­struí­dos por frag­men­tos de lem­branças “das pes­soas às coisas, das plan­tas aos bichos, tudo, água, lama, noite estre­la­da, fome, esper­ma, son­ho, humil­hações, tudo era gora matéria poéti­ca”. Antítese entre o claro do pre­sente e o tur­vo da infân­cia, mais que res­gate, é a recom­posição do pas­sa­do no presente.

    A memória da infân­cia é um reg­istro infiel, sujo, recom­pos­ta por destroços: tel­has encar­di­das, gar­fos e facas que se que­braram, e se perder­am nas fal­has do assoal­ho para con­viv­er com baratas e ratos no quin­tal esque­ci­dos entre os pés de erva cidreira. Des­or­dem que é ordem “per­feita­mente fora do rig­or cronológi­co”, do labir­in­to do tem­po inte­ri­or. A casa per­di­da no tem­po, com tal­heres enfer­ru­ja­dos, facas cegas, cadeiras furadas, mesas gas­tas, armários obso­le­tos raste­jam “pelos túneis das noites clan­des­ti­nas” esperan­do “que o dia ven­ha”. A infân­cia é o úni­co refú­gio para quem perdeu tudo. O cor­po, a úni­ca casa, o úni­co ter­ritório, a pos­si­bil­i­dade de êxtase quan­do já não se per­tence a lugar nenhum.

    A iden­ti­dade são-luisense se con­cretiza no cor­po do poeta, o pas­sa­do se esmiúça, como cita Alcides Vil­laça: o “sujo do poe­ma ref­ere-se tan­to ao impuro quan­to pela com­posição das difer­enças, pelas águas revolvi­das, pelo esti­lo que vai da mão sol­ta no papel à cadên­cia rig­orosa de uma avali­ação […] Mas sujo tam­bém porque par­tic­i­pa de uma história não ofi­cial, sec­re­ta, que soma a con­sciên­cia abafa­da e o cor­po pri­sioneiro de von­tades cal­adas.” Sujo porque a vida é suja: toda matéria se perde, apo­drece lentamente.

    A canção de exílio dos anos de chum­bo é Sabiá, de Chico Buar­que e Tom Jobim, com­pos­ta em 1968 para um fes­ti­val. A canção traz refer­ên­cias claras ao “dia que virá”, dia em que os exi­la­dos retornar­i­am à pátria. Gullar ante­ci­pa a pátria destruí­da, memória dev­as­ta­da e ilu­mi­na­da ape­nas pelo facho das lem­branças da cidade de infân­cia. Os obje­tos da casa pri­mor­dial gas­taram-se no tem­po e por isso sua lem­brança é de sujeira, ou algo que foi sujo.

    O teste­munho do poeta é mais uma canção do exílio, que se desvia do nacional­is­mo insu­fla­do por Gonçalves Dias. A canção de Gullar é tan­to mais comovente quan­to bus­ca negar qual­quer resquí­cio român­ti­co ou pan­fletário. Em nem um momen­to rev­ela tex­tual­mente a dor pela per­da dos ami­gos, o esface­la­men­to famil­iar e a melan­co­l­ia da desterritorialização.

    Depois de con­cluir o poe­ma, Gullar o leu a Viní­cius de Morais, que lev­ou uma gravação da leitu­ra para o Brasil. Gru­pos se for­mavam para ouvir a voz do poeta exi­la­do. O edi­tor Ênio Sil­veira pediu cópia para pub­licá-lo. Com a pub­li­cação, ami­gos, jor­nal­is­tas e escritores cla­ma­ram ao gov­er­no mil­i­tar o fim do exílio de Gullar. O gov­er­no não aten­deu. O poeta, porém cansa­do, resolveu voltar por con­ta própria. Quan­do chegou, foi lev­a­do ao DOI-Codi e inter­ro­ga­do, acarea­do e ameaça­do. Mas graças ao poe­ma, pôde ficar no Brasil.

    A catarse do ago­ra con­tra o futuro marginal

    A repub­li­cação do Poe­ma sujo, em 2013, pela José Olym­pio, o cel­e­bra como mar­co na luta con­tra a repressão mil­i­tar. Mas antes de se tor­na per­sona non gra­ta no país, Gullar já guer­rea­va, e muito, mas por razões estéti­cas, con­tra out­ros adver­sários. Con­trapôs-se ao movi­men­to de van­guar­da da poe­sia conc­re­ta, com­pos­ta pelos irmãos Augus­to e Harol­do de Cam­pos e Décio Pig­natari, defend­en­do o nacional­is­mo da arte brasileira e crian­do a poe­sia neo­conc­re­ta. A prin­ci­pal críti­ca de Gullar aos con­cre­tos era de que com­par­a­vam a poe­sia à matemáti­ca e pre­tendi­am atu­ar em todos os cam­pos, jor­nais, pub­li­ci­dade, da músi­ca (canção pop­u­lar), tevê, rádio, cinema.

    Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a Tríade Concretista.
    Augus­to de Cam­pos, Décio Pig­natari e Harol­do de Cam­pos, a Tríade Concretista.

    Provo­cador, polêmi­co, jamais pací­fi­co, o poeta Paulo Lemins­ki é herdeiro de uma tradição poéti­ca de van­guar­da (ou tradição de rup­tura, como quer Octávio Paz) que no Brasil ren­deu movi­men­tos como o Mod­ernismo, a Poe­sia Conc­re­ta e o Trop­i­cal­is­mo. Por causa do tem­po históri­co de sua eclosão (anos 70 e 80), por vezes é erronea­mente situ­a­do den­tro da Poe­sia Mar­gin­al, movi­men­to ao qual nun­ca se fil­iou (não gos­to da poe­sia de Caca­so, um dos líderes da poe­sia mar­gin­al car­i­o­ca dos 70/80, afir­mou, em entre­vista ao jor­nal­ista Aramis Mil­larch, em 1986) e con­tra o qual escreveu uma série de ensaios no livro “Anseios Críp­ti­cos” (1986).

    Lemins­ki her­dou a briga com os neo­con­cre­tos. Ape­sar de propa­gar a teo­ria da arte como  inuten­sílio, nun­ca fez ape­nas arte pela arte. É o que se com­pro­va na canção Ver­du­ra, veta­da pela cen­sura em 1978.

    De repente
    me lem­bro do verde
    da cor verde
    a mais verde que existe
    a cor mais alegre
    a cor mais triste
    o verde que vestes
    o verde que vestiste
    o dia em que te vi
    o dia em que me viste
    De repente
    ven­di meus filhos
    a uma família americana
    eles têm carro
    eles têm grana
    eles têm casa
    a gra­ma é bacana
    só assim eles podem voltar
    e pegar um sol em Copacabana

    O poeta Fab­rí­cio Mar­ques asso­cia o ver­so de repente me lem­bro do verde ao Trop­i­cal­is­mo, conectan­do o verde cita­do com uma das cores-sím­bo­lo do Brasil:

    todas as suas nuances e con­tradições (a cor mais alegre/ a cor mais triste). Desse modo, o poe­ma atinge um tom quase lisér­gi­co, no qual ressaltam ecos do trop­i­cal­is­mo: super­ba­cana, de Cae­tano Veloso, e ai de ti, Copaca­bana, de Torqua­to. Ocorre então uma inver­são paródi­ca do nacional­is­mo, prin­ci­pal­mente na segun­da estrofe, que fun­ciona como uma espé­cie de críti­ca políti­ca avant la let­tre à emi­gração de brasileiros em bus­ca de mel­hores condições de vida, numa pro­gressão desen­f­rea­da, prin­ci­pal­mente para os Esta­dos Unidos, nos anos que se seguiram à primeira pub­li­cação do tex­to em livro (1981).

    A asso­ci­ação com o verde trop­i­cal­ista não é a úni­ca pos­sív­el. A cor verde e triste é a ”grana” que seduz a família a vender o fil­ho para os amer­i­canos. O verde triste trans­for­ma tudo em mer­cado­ria, até as relações afe­ti­vas. Triste ain­da o verde do uni­forme dos mil­itares, cujos cen­sores enten­der­am a iro­nia. A canção só pas­sou pelo cri­vo em 1981, quan­do foi grava­da por Cae­tano Veloso. Mas a refer­ên­cia aos poe­mas trop­i­cal­is­tas é inex­a­ta. Em vez de Super­ba­cana e Ai de mim, Copaca­bana, a asso­ci­ação mais ine­bri­ante pode­ria ser Quan­do o san­to guer­reiro entre­ga as pon­tas, de Torqua­to Neto:

    nada de mais:
    o muro pin­ta­do de verde
    e ninguém que pre­cise dizer-me
    que esse verde que não quero verde
    lírico
    mais planos e mais planos
    se desfaz:
    nada demais
    aqui de den­tro eu pego e furo a fogo
    e luz
    (é movimento)
    vos­so sis­tema pro­te­tor de incêndios
    e pin­to a tela o muro diferente
    porque uso como quero min­ha lentes
    e fil­mo o verde,
    que eu não temo o verde,
    de out­ra cor:
    diari­a­mente encaro bem de perto
    e escar­ro sobre o muro:
    nada demais

    Lemins­ki deg­lute antropofagi­ca­mente o Bis­po Sardinha, como que­ria Oswald, can­tan­do, com dó de peito o momen­to históri­co do iní­cio da diás­po­ra glob­al. O sen­ti­men­to de dor (por ver seu igual par­tir e se par­tir) não fratu­ra o poeta, que final­iza: só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copaca­bana, com a con­sciên­cia de que a Ale­gria é a Pro­va dos Nove, como can­ta­va Oswald, ou seja, a úni­ca for­ma de resistên­cia a um regime desigual que estim­ula­va o despa­tri­a­men­to só pode­ria ser a iro­nia, trazen­do a capa de um fal­so con­formis­mo. Desse modo, mes­mo nun­ca ten­do se desli­ga­do de sua ter­ra natal, Lemisn­ki par­tic­i­pa dass ago­nias da vida nacional em seu insilio1.

    O críti­co Sil­viano San­ti­a­go esclarece que o bor­dão antropofági­co vin­cu­la-se com a catarse do ago­ra: “o ressurg­i­men­to de um cor­po que não estaria mais com­pro­meti­do com a éti­ca protes­tante do tra­bal­ho, um cor­po que recusa, inclu­sive, […] a col­o­niza­ção do futuro. Esse cor­po, então, estaria fin­can­do mais e mais o pé no ago­ra: nesse sen­ti­do, um cor­po que é fruição.” Esta ideia estaria lig­a­da à emergên­cia das mino­rias sex­u­ais nos anos 70: “De cer­ta for­ma, na nos­sa sociedade oci­den­tal, em par­tic­u­lar, o praz­er esteve muito vin­cu­la­do a uma cer­ta nor­mal­iza­ção de con­du­ta sex­u­al, e quan­do essa con­du­ta não era nor­mal­iza­da as pes­soas se sen­ti­am enorme­mente infelizes.”

    Paulo Leminski
    Paulo Lemins­ki

    O críti­co fala de um cor­po não reprim­i­do, de pura ale­gria, em con­trapon­to com a tradição críti­ca que colo­ca o pre­sente como esta­do de martírio. O sofri­men­to cul­tua­do pelos gru­pos políti­cos de esquer­da no Brasil tin­ha como pro­je­to de redenção a pos­si­bil­i­dade de uma utopia social. San­ti­a­go se posi­ciona con­tra este esta­do de pobreza: “Inver­tendo os ter­mos, dizen­do que o pre­sente pode ser vivi­do, pode ser vivi­do ale­gre­mente, sem as amar­ras da repressão, estaríamos descondi­cio­nan­do a pos­si­bil­i­dade de um pen­sa­men­to dito utópi­co.” Nos ver­sos de Leminski:

    praz­er
    da pura percepção
    os sentidos
    sejam a crítica
    da razão
    (Dis­traí­dos Vencer­e­mos, 1987)

    Esta ide­olo­gia está em coal­izão com a microp­olíti­ca do dese­jo de Felix Guat­tari e o com­por­ta­men­to aqui-ago­ra do movi­men­to hip­pie dos anos 70, que vul­gar­iza con­ceitos de filosofias ori­en­tais, como o hin­duís­mo e o zen-bud­is­mo. Os hip­pies trazem a ideia do praz­er na real­i­dade do pre­sente, em que a utopia não se adia, em que o esta­do par­adis­ía­co é vivi­do todos os dias. A poe­sia de Lemins­ki con­strói a catarse do ago­ra con­tra a repressão do pre­sente – no con­tex­to históri­co, a saí­da da ditadu­ra mil­i­tar para a ditadu­ra da econo­mia glob­al. Con­tra um sis­tema no qual a poe­sia é ape­nas o dese­jo, os artefatos de Lemins­ki tor­nam-se instru­men­to críti­co que cor­roem con­ceitos e faz­eres mumi­fi­ca­dos, como na genial inver­são dis­traí­dos vencer­e­mos do títu­lo de livro pub­li­ca­do em 1987, que car­naval­iza o bor­dão Unidos, vencer­e­mos.

    Um dos recur­sos usa­dos pelos poet­as para com­bat­er o regime repres­sor foi o humor. San­ti­a­go difer­en­cia dois proces­sos usa­dos nos movi­men­tos de poe­sia de protesto. O primeiro, a paró­dia, é um recur­so val­oriza­do como instru­men­to poten­cial de irrisão con­tra o poder insti­tuí­do, uma rup­tura. O segun­do, o pas­tiche, é uma der­risão que enfraque­ce o poder da críti­ca: A paró­dia sig­nifi­ca uma rup­tura, um escárnio com relação àquela estéti­ca que é dada como neg­a­ti­va. O pas­tiche não rechaça o pas­sa­do, num gesto de escárnio, de despre­zo, de iro­nia, escreve Santiago.

    A paró­dia tem o mes­mo grau de irrisão do insti­tuí­do pelo mote Tupy or Not Tupy, inscrito no Man­i­festo Antropofági­co de Oswald, em 1922. A lição mod­ernista foi incor­po­ra­da por Lemins­ki, que des­de sua aparição públi­ca nos jor­nais em Curiti­ba, achin­cal­ha o cul­to ao con­to e a figu­ra mon­u­men­tal­iza­da de Dal­ton Tre­visan, nos anos 70 e 80. Neste momen­to, seu embate não é con­tra as ino­vações de Dal­ton (a lin­guagem sin­téti­ca, a opção pela “cor local”, ado­tadas por Lemins­ki) e sim con­tra a insti­tu­cional­iza­ção de Dalton.

    Ferreira Gullar.
    Fer­reira Gullar

    A dor tão ele­va­da que é capaz de faz­er rir, evo­ca­da por Alice Ruiz no pre­fá­cio do livro La Vie en Close foi a táti­ca de uma guer­ril­ha que tem no riso, no chiste, no witz, na descon­strução de clichês e no aproveita­men­to de palavras de ordem seu núcleo. Este tipo de guer­ril­ha cul­tur­al seria her­ança do Trop­i­cal­is­mo. Para Ana Cristi­na César, a Trop­icália é a expressão de uma crise, uma opção estéti­ca que inclui um pro­je­to de vida, em que o com­por­ta­men­to pas­sa a ser ele­men­to críti­co, sub­ver­tendo a ordem mes­ma do cotid­i­ano. A ideia de enfrentar o sufo­co políti­co com as armas do cotid­i­ano foi legit­i­ma­da em Leminski.

    Dois adver­sários no cam­po da estéti­ca da poe­sia lutam con­tra um inimi­go comum. E fil­iam-se à tradição literária brasileira inserindo mais uma paró­dia da Canção do Exílio, descon­stru­in­do o nacional­is­mo orig­i­nal. Enquan­to a nação desa­parece, a infân­cia tor­na-se ter­ritório míti­co e o cor­po, o úni­co sacra­men­to, para Gullar. Já Lemins­ki percebe que até a infân­cia será ven­di­da, restando, para a poe­sia, sua úni­ca arma de luta: o praz­er de provo­car sentidos.

    Insílio: De acor­do com Paul Ilie, inner exilie são os que vivem o exílio em seu próprio país. O con­ceito nasce basea­do em sociedades autoritárias. Os insi­la­dos ficam pre­sos no país sofren­do os des­man­dos do regime. Ilie dis­cute o inner exilie da sociedade espan­ho­la sob o regime fran­quista, não exi­ladas de acor­do com o mod­e­lo clás­si­co, mas tiver­am a liber­dade restri­ta, sofren­do com a negação, dom­i­nação, anu­lação, intolerância.

    BIBLIOGRAFIA

    Livros

    • GULLAR, Fer­reira
      • Inda­gações de hoje. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 1989.
      • Poe­ma sujo. Rio de Janeiro: José Olym­pio Edi­to­ra, 2013.
    • LEMINSKI, Paulo
      •  Capri­chos e Relax­os. São Paulo: Brasiliense, 1983.
      • Dis­traí­dos Vencer­e­mos. São Paulo: Brasiliense, 1987. (5ª edição 1995).
      • Anseios Críp­ti­cos, Curiti­ba: Cri­ar Edições, 1985.
      • Um Escritor na Bib­liote­ca, Curiti­ba: Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná, 1985.
      • La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1991.
      • Poe­sia, paixão da lin­guagem. In: Novaes, Adau­to (Org.) Os sen­ti­dos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
      • Uma car­ta uma brasa através – car­tas a Régis Bon­vi­ci­no. 1976–1981 São Paulo: Ilu­min­uras, 1992.
    • SANTIAGO, Sil­viano
      • Nas Mal­has da Letra. São Paulo: Com­pan­hia das Letras, 1989.

    Doc­u­men­tos eletrônicos

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.

  • Eu confesso, sou poeta | Crônica

    Eu confesso, sou poeta | Crônica

    eu-confesso-sou-poeta-cronica
    Cerâmi­ca de Marce­lo Tokai

    Chegar em qual­quer lugar, mes­mo um ambi­ente prepara­do para rece­ber poe­sia é um desafio. Ten­ho que des­faz­er expec­ta­ti­vas. A primeira, em relação à etnia japone­sa. Vou logo dizen­do: não escre­vo haicai. Depois, explicar que sou poeta, não poet­i­sa. “Poeta, porque em poet­i­sa todo mun­do pisa”, como diz Leila Mic­co­l­is.

    Óbvio: “japone­sa” escreve haicai. Aí é que está: não sou japone­sa. Nasci no Brasil, nun­ca fui ao Japão. Meus qua­tro avós nasce­r­am no Japão. Por isso, sou san­sei: a ter­ceira ger­ação de imi­grantes japone­ses no Brasil. Até há um tem­po atrás teria paciên­cia para explicar o que é um nikkei. Palavra japone­sa que des­igna o descen­dente de japone­ses nasci­do fora do Japão. No Brasil, nipo-brasileiros. Nos EUA, nipo-amer­i­canos. No Peru, nipo-peru­anos. Netos de imi­grantes japone­ses são nativos do país que rece­beu seus avós.

    Mas ascendên­cia japone­sa “forçou a bar­ra” para que eu ori­en­tasse ofic­i­nas sobre haicai. Aí, pas­sei a estu­dar o tema e a escr­ev­er mais haicai. Não sou hai­jin — haicaís­ta prat­i­cante. Meus poe­mas ain­da não tem hai­mi — o sabor, aqui­lo que os mestres — Mat­suo Bashô, Kobayashi Issa, Yosa Buson e out­ros — diziam ser a essên­cia do poema.

    Teruko Oda, Masuda Goga e Nempuku Sato
    Teruko Oda, Masu­da Goga e Nem­puku Sato

    Nun­ca fiz parte de grêmios literários que prati­cam haicai. Con­heço Teruko Oda, sobrin­ha de Masu­da Goga, fun­dador do primeiro grêmio de haicai do Brasil, o Ipê. Goga apren­deu com Nem­puku Sato, o maior propa­gador do haiku o haicai tradi­cional japonês. Em 2008, para divul­gar o haiku no Brasil, pro­movi, pelo Nikkei Curiti­ba, o Con­cur­so Nacional de Haicai Nem­puku Sato, em parce­ria com a Sec­re­taria da Cul­tura do Paraná.

    Admiro poet­as que, com liber­dade de espíri­to trans­puser­am o haicai para o Brasil: Hele­na Kolody, Mil­lôr Fer­nan­des, Paulo Lemins­ki e Alice Ruiz. Admiro menos Guil­herme de Almei­da e descon­heço Afrânio Peixo­to e Fan­ny Dupré, cita­dos em estu­dos sobre a história do haicai no Brasil.

    A jor­nal­ista e poeta Karen Debertólis, em entre­vista para o pro­gra­ma de rádio “Con­tra­ca­pa”, disse que meus poe­mas pare­cem encadea­men­tos de haicais. Espé­cie de ren­ga, que é mes­mo um encadea­men­to de poe­mas. Mes­mo com essa pista, me sen­tia aliení­ge­na na poe­sia japonesa.

    eu-confesso-sou-poeta-cronica-livro-bichoNos anos 90, fiz cur­so de vídeo e a pro­fes­so­ra, doc­u­men­tarista de São Paulo, disse algo curioso: que eu, ten­do raízes japone­sas não pre­cisa­va escr­ev­er haicai ou can­tar em karaokê. Podia escr­ev­er letras de bal­adas e ser fã de jazz. Gostei do que ela disse. Me enco­ra­jou a escr­ev­er poe­sia em com­posições ready-made, como diz o críti­co Mar­tin Palá­cio Gam­boa, na antolo­gia argenti­na “Bicho de Siete Cabezas”, para a qual tive a hon­ra de ser sele­ciona­da e foi lança­da no começo desse ano, em Buenos Aires.

    O que não sabia e fui apren­der estu­dan­do, é que na poe­sia japone­sa é comum a com­posição de tex­tos em frag­men­tos, seja em diários (nik­ki), “ensaios” (zui­hit­su) ou poe­sia (haiku, tan­ka e out­ras for­mas). Um ami­go, de tan­to de ler meus poe­mas no Face­book, pôs na cabeça que ia pesquis­ar poe­sia con­tem­porânea de Curiti­ba. E disse que encon­trou a palavra sol em muitos de meus poemas.

    Perce­bi que, de modo trôpego e sem forçar a bar­ra do enraiza­men­to, estou voltan­do para um lugar que nun­ca pareço ter saí­do. E assim retorno, caiçara japone­sa, a uma onda fei­ta de lágri­mas. No Brasil a expressão é pie­gas, mas em japonês já foi usa­da em poe­ma, só por causa do tro­cadil­ho: onda é nami, e lágri­mas, nami­da. Não existe nada mais con­fortáv­el do que voltar pra casa, mes­mo que a casa seja a toda hora sacu­d­i­da por tsunamis e ressacas.

  • Timidez pra que te quero | Crônica

    Timidez pra que te quero | Crônica

    Campo de Trigo com Corvos (1890), de Vincent van Gogh
    Cam­po de Tri­go com Cor­vos (1890), de Vin­cent van Gogh

    Eu sou assim
    Quem quis­er gostar de mim eu sou assim
    Eu sou assim
    Quem quis­er gostar de mim eu sou assim
    Meu mun­do é hoje
    Não existe aman­hã pra mim
    E sou assim
    Assim mor­rerei um dia
    Não levarei arrependimentos
    Nem o peso da hipocrisia
    Ten­ho pena daqueles
    Que se agacham até o chão
    Enganan­do a si mesmos
    Com din­heiro, posição
    Nun­ca tomei parte
    Desse enorme batalhão
    Pois sei que além de flores
    Nada mais vai no caixão
    Meu mun­do é hoje.
    (Wil­son Batista)

    Des­de cri­ança fui tími­da. A primeira vez que escutei min­ha voz em públi­co lev­ei um sus­to. Pen­sei: Que voz de pato! Feia, gras­na­va. Fala­va baixo para ninguém ouvir. Isso fez com que me ouvis­sem cada vez menos. Sofria de “fal­ta de ini­cia­ti­va”, como acusavam os boletins esco­lares. Tira­va dez em tudo, menos nesse item.

    timidez-pra-que-te-quero-cronica-fazer-amigosEm um mun­do que não pára de falar, o tími­do é doente. Pen­sei assim por 20 anos de vida. Desisti da esco­la, aos 15 anos, porque não con­seguia faz­er palestras. Fiz ter­apia para tratar a “fobia social”. Não me curei. Voltei a estu­dar aos 18, fiz cur­so de Comu­ni­cação Social. E con­tin­uei tímida.

    Me apoiei na escri­ta para suprir o déficit. Primeiro veio a leitu­ra, refú­gio con­tra a hor­da de falantes. Como não sabia abrir a boca, abria um livro para “con­ver­sar”. Assim apren­di a dialog­ar com vozes dis­tantes no tem­po e no espaço, e com meus botões. Pen­sei que me tornar­ia uma escrito­ra, pub­li­ca­da e con­heci­da. A timidez impediu de divul­gar meus escritos, criva­dos pela autocrítica.

    Quan­do come­cei a tra­bal­har, estran­han­do a “fal­ta de ini­cia­ti­va”, cole­gas e ami­gos recomen­davam que fizesse teatro. Nun­ca me entu­si­as­mei, nem para desinibir. Hoje há atores nipo-brasileiros que ofer­e­cem óti­mos cur­sos, basea­d­os em téc­ni­cas teatrais, para aju­dar os tími­dos a se soltarem.

    Para faz­er a defe­sa de meu mestra­do, tomei aulas de impostação de voz com um ami­go. Mas o que me aju­dou a falar em públi­co foi ir a even­tos onde pre­cisa­va falar sobre o anda­men­to da pesquisa. Essas comu­ni­cações cien­tí­fi­cas, como se diz no jargão, duravam dez min­u­tos. Depois de falar meia dúzia de vezes para estu­dantes e pro­fes­sores que talvez não enten­dessem patavina do que eu fala­va, come­cei a ficar menos ansiosa.

    Carl Gustav Jung na Suiça (Foto: absolut Medien)
    Carl Gus­tav Jung na Suiça (Foto: abso­lut Medien)

    Há cer­ca de dois anos, ain­da pen­san­do o quan­to me cus­ta­va abrir a boca em públi­co, fiz o tal cur­so de teatro. Foi um desas­tre. O prob­le­ma não era só falar. Eu não tin­ha inteligên­cia cor­po­ral como os estu­dantes de artes cêni­cas. O meu azar é que era um cur­so volta­do para atores e não para lei­gos. Mas, para não diz­er que não falei de flo­res, nesse ano, no Dia da Mul­her, atuei no pal­co, pela primeira vez na vida, para falar meus poe­mas e de out­ras autoras. Perce­bi que ser tími­do pode não ser um prob­le­ma, mas um esti­lo de personalidade.

    Por causa daqui­lo que acha­va ser um obstácu­lo ao desen­volvi­men­to social em min­ha vida, come­cei a estu­dar sobre a timidez. Desco­bri que o psicól­o­go Carl Gus­tav Jung clas­si­fi­ca os tipos de per­son­al­i­dade em extro­ver­tidos e intro­ver­tidos. Se timidez é con­sid­er­a­da doença, pelo menos de fal­ta de socia­bil­i­dade, a intro­ver­são pode ser um modo como se com­por­ta metade da humanidade.

    timidez-pra-que-te-quero-cronica-poder-quietosÉ o que diz Susan Cain, auto­ra do best-sell­er “O poder dos qui­etos”. Li um e‑book em que ela abom­i­na tipos vende­dores como Dalie Carnegie, autor do best-sell­er “Como faz­er ami­gos e influ­en­ciar pes­soas”. Susan crit­i­ca o rea­cionar­is­mo de Carnegie, que nos anos 60, ensi­na­va que para ter suces­so era pre­ciso sor­rir, falar e ter pen­sa­men­tos pos­i­tivos o tem­po todo. E fin­gir que igno­ra­va os hor­rores da guer­ra do Viet­nã, sor­rindo. Quan­do cru­zo com pes­soas que pare­cem ter lido esse livro, ou incor­po­ra­do suas ideias, ten­ho von­tade de fugir. Em ger­al, acabo ten­do exper­iên­cias desagradáveis com quem não para de falar bobagens ten­tan­do ser simpático.

    Depois de tan­to tem­po, aceito a timidez. Gos­to de ficar soz­in­ha, lendo e escreven­do. Os tími­dos, ou intro­ver­tidos, são mais inde­pen­dentes e têm mel­hor desem­pen­ho tra­bal­han­do soz­in­hos. Desco­bri, lendo o livro de Susan, que depois de pas­sar algum tem­po com out­ras pes­soas, tra­bal­han­do ou em even­tos soci­ais, os tími­dos pre­cisam “recar­regar as bate­rias”. Ou seja, ficar um tem­po a sós.

    Não pre­ciso mais expor num diário públi­co tudo que acon­tece comi­go por me sen­tir só. Ten­ho um com­pan­heiro, uma família, bons ami­gos e uma rede de tra­bal­ho e con­tatos. Fiz as pazes com a garot­in­ha enver­gonha­da que baix­a­va a cabeça diante do piano da sala de pro­fes­sores para posar numa foto esco­lar. Ain­da bem. Não aguen­ta­va mais deixá-la de lado. Com o tem­po, vi que é até bom cul­ti­var a ver­gonha numa cul­tura em que os mais sem-ver­gonha acabam pas­san­do por cima de tudo e de todos.

  • Querido Nikki

    Querido Nikki

    (Foto: Mai Fujimoto)
    (Foto: Mai Fujimoto)

    Havia o diário, onde eu podia escr­ev­er min­has ver­dades, min­has inqui­etações, min­has aflições pes­soais, min­has con­fis­sões, meus amores, e havia poe­sia, que era uma out­ra coisa, e que eu não enten­dia dire­ito o que era. Até que começaram a se aprox­i­mar os dois, enten­deu? As duas coisas começaram a se aprox­i­mar. Perce­bi que no ato de escr­ev­er a intim­i­dade ia se perder mesmo.

    (Ana Cristi­na César, Escritos no Rio, Brasiliense, 1993, p. 206)

    “O livro do travesseiro”, de Sei Shônagon
    “O livro do trav­es­seiro”, de Sei Shônagon

    No Japão as cri­anças são estim­u­ladas a escr­ev­er diários. Lá, o nik­ki não é só um reg­istro pes­soal. É con­sid­er­a­do gênero literário. Obras clás­si­cas, como “O livro do trav­es­seiro” (Maku­ra no Sôchi), de Sei Shô­nagon e “Con­tos de Gen­ji” (Gen­ji mono­gatari) podem ser clas­si­fi­ca­dos como diários ou mis­celâneas do gênero, já que a cat­e­go­riza­ção literária é flu­i­da no país de Mat­suo Bashô. Aliás, o poeta tem um céle­bre diário de viagem, “Sendas do Oku(Oku no Hosomichi). A palavra japone­sa oku, grosso modo, pode ser traduzi­da como “pro­fun­dezas”, o inte­ri­or mais pro­fun­do. No caso de Bashô, sig­nifi­ca­va a viagem que empreen­deu por todas as provín­cias japone­sas, chegan­do às aldeias mais remo­tas, no sécu­lo XVII.

    No oci­dente, ao con­trário do Ori­ente, o diário é con­sid­er­a­do rela­to pes­soal. Nos anos 50, era comum mul­heres, donas-de-casa e mães de família man­terem diários. Uma diarista famosa, a poeta Ana Cristi­na César, expli­ca o moti­vo: o diário é um inter­locu­tor. Ana C. perce­bia a difer­ença entre o diário pes­soal e o diário literário, mais aprox­i­ma­do da lit­er­atu­ra japonesa.

    "A teus pés", de Ana Cristina César
    “A teus pés”, de Ana Cristi­na César

    No Japão, o diário literário con­tém poe­mas e desen­hos, é um hai­bun, como o de Bashô. O diário de Ana C., pub­li­ca­do em “A teus pés”, difere do diário da escrito­ra neoze­landesa Kather­ine Mans­field, por exem­p­lo. Ana C. capricha na lin­guagem poéti­ca, enquad­ran­do a sua intim­i­dade sob o molde literário. O diário de Mans­field é o tipo de doc­u­men­to apre­ci­a­do pela críti­ca genéti­ca, que exam­i­na doc­u­men­tos pes­soais do escritor. A poe­sia de Bashô ou de Ana C., emb­o­ra pertençam à escri­ta da intim­i­dade, cat­e­go­rizadas como diários, são lit­er­atu­ra. O que difere um e out­ro é a lin­guagem que se emprega.

    No plano pes­soal, diário não é só para ficar baten­do-papo con­si­go, num exer­cí­cio exac­er­ba­do de auto-nar­ci­sis­mo. Fun­ciona como arqui­vo, para orga­ni­zar a memória. Para uma ger­ação de mul­heres edu­cadas para serem donas-de-casa ou servirem à família, os diários fun­cionavam como válvu­la de escape. Não bas­ta­va o con­fes­sionário da igre­ja para expi­ar as cul­pas. Essa ger­ação não havia sido intro­duzi­da ao dis­cur­so da psi­canálise e da psi­colo­gia. O diário era a saí­da para preser­var a sanidade mental.

    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angélica Freitas
    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angéli­ca Freitas

    Nos anos 90, os blogs se tornaram moda no Brasil. Blog é tam­bém uma espé­cie de diário. Lançaram mais de um escritor à cele­bri­dade: Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck, Marceli­no Freire, Andréa Del Fuego, Daniel Galera, Angéli­ca Fre­itas, todos tin­ham seus blogs, e reg­is­travam entradas diárias. Com Roland Barthes dec­re­tan­do a morte do autor, tornar-se autor já não era priv­ilé­gio de uma elite de pre­des­ti­na­dos. Os soft­wares que facil­i­tavam a pub­li­cação de diários eletrôni­cos aju­daram. Depois vier­am as redes soci­ais, e os blogs se tornaram ultrapassados.

    Fabrício Carpinejar, Clarah Averbuck e Marcelino Freire
    Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck e Marceli­no Freire

    Mes­mo depois da explosão das redes soci­ais, con­tin­uei a escr­ev­er em meu blog. Hoje ele já não é mais um con­fes­sionário vir­tu­al. Ain­da man­ten­ho o reg­istro da intim­i­dade, mas bus­co uma lin­guagem mais literária, próx­i­ma do nik­ki. O blog não bus­ca auto­ex­posição aleatória. E tam­bém quer preser­var o esta­do de solidão. Esta­b­ele­cer uma comu­ni­cação. Isso é lit­er­atu­ra: o meu caminho.

  • Quem quer criar desordem?

    Quem quer criar desordem?

    Leonilson (por Leonilson)
    (Desen­ho por Leonilson)

    Uma vez uma ami­ga veio em casa e comen­tou: “As pes­soas dizem: não ligue para a bagunça. Mas todo mun­do tem a casa bagunça­da.” Era uma obser­vação sobre a des­or­dem per­ma­nente de min­ha casa. Livros por todos os lados, blo­cos de ano­tação, cader­nos, cópias de xerox, uma casa em que o papel pre­dom­i­na e causa des­or­dem. Gostei do comen­tário da ami­ga. Depois dis­so, pas­sei a não me impor­tar que as vis­i­tas vis­sem a casa em caos.

    Fico com medo de entrar em casas limpas e orga­ni­zadas demais. Medo de pis­ar no chão limpo e bril­hante. Medo de sen­tar no sofá limpo e bril­hante. Uma ami­ga tem uma casa tão limpa e orga­ni­za­da que ten­ho medo de sen­tar no sofá e mor­rer. Lem­bro o sofá de Julio Cortázar, com uma estre­lin­ha pon­ti­agu­da, no qual as cri­anças con­vi­davam as vel­hin­has chatas a sentarem para morrer.

    Na casa da min­ha avó havia uma geladeira que só fecha­va com bar­bante. Ela aproveita­va o jor­nal que meus tios liam para for­rar o chão onde caía gor­du­ra do fogão. Quan­do cri­ança, eu não acha­va sua casa uma bagunça. Não sabia que orga­ni­zar o espaço é fun­da­men­tal para a vida ter um pru­mo, como ensi­nam os admin­istradores de tem­po. Na casa da avó tín­hamos liber­dade máx­i­ma para não nos pre­ocu­par­mos em não sujar e não bagunçar nada. Era o lugar em que bom­bons e piz­zas sur­giam de for­ma mágica.

    Na casa de Hélio Leites há obje­tos inúteis por todos os lados. Latas de sardinha, botas, sap­atos, livros, pedaços de papel, embal­a­gens de leite. Tudo que ele usa em suas cola­gens. Entre várias asso­ci­ações estapafúr­dias que criou, Hélio fez parte do clube de Arte Postal, e “guar­da” os cartões entre para­fu­sos, por­cas, potes de iogurte, chaves. Desco­bri, entre seus papéis, o bole­tim Hitlelíri­co, com paró­dias inspi­radas no Grande Dita­dor. E tam­bém arti­gos, goza­ções homéri­c­as, pub­li­ca­dos no jor­nal “O Esta­do do Paraná”.

    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)
    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)

    Na chá­cara de Hil­da Hilst, em Camp­inas, os cachor­ros dormi­am em cima de sua cama. O jardim era seco e ela bebia nos fins de tarde. Tive emoções difusas nos dois dias em que estive lá. Ouvi histórias sobre abor­tos, a mágoa por ter sido “esque­ci­da” pelos críti­cos, menos Léo Gilson Ribeiro. A visi­ta se deu antes que Fer­nan­da Mon­tene­gro ence­nasse “A obsce­na sen­hor D.” e Hil­da tivesse a sua obra repub­li­ca­da pela Edi­to­ra Globo. Ela fica­va na sala, beben­do com os ami­gos. Mas quan­do estive em sua casa, ficou impres­sion­a­da com o meu silên­cio e veio descas­car batatas comi­go, na coz­in­ha. E con­fi­den­ciou: “ten­ho pena dos poet­as, são tão sozinhos.”

    Hilda Hilst
    Hil­da Hilst

    Na sala de min­ha ter­apeu­ta há livros espal­ha­dos numa mesa que ela nun­ca arru­ma. Muitas vezes pen­sei porque uma pes­soa respon­sáv­el por aju­dar a orga­ni­zar o caos inte­ri­or de out­ros man­tém uma mesa de tra­bal­ho em des­or­dem. Na últi­ma vez em que estive com ela, desco­bri. É pre­ciso aceitar a des­or­dem inte­ri­or. Não sabe­mos de tudo, não vemos tudo. O que está em aparente des­or­dem, pode estar afi­na­do na ordem de um sis­tema — famil­iar, comu­nitário, social, galáctico.

    Durante anos me pre­ocu­pei por não ser orga­ni­za­da, nem pro­du­ti­va, efi­ciente e útil. Ler, escr­ev­er, con­ver­sar, dis­cu­tir são uma enorme per­da de tem­po. Hoje sei que isso é ape­nas um pon­to de vista. É pre­ciso perder tem­po, deixar-se des­or­ga­ni­zar-se. Quan­do se entende o que é ter equi­líbrio, a orga­ni­za­ção vai acon­te­cen­do sem perceber.

  • Olhar por trás de estantes

    Olhar por trás de estantes

    Biblioteca de Leminski, fotografada sem produção prévia. Foto : Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira).
    Bib­liote­ca de Lemins­ki, fotografa­da sem pro­dução prévia.
    Foto : Car­los Rober­to Zanel­lo de Aguiar (Macax­eira).

    Des­de ado­les­cente fre­quen­to bib­liote­cas públi­cas. Quan­do cri­ança, não. Nas esco­las em que estudei, em Paranaguá, não havia bib­liote­cas. Uma vez, uma pro­fes­so­ra inven­tou uma bib­liote­ca ambu­lante. Cada aluno dev­e­ria levar um livro. Não fun­cio­nou. Ninguém lev­ou livros. Quan­do mudei para Curiti­ba, pas­sa­va um tem­pão passe­an­do pelos corre­dores da Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Min­has estantes preferi­das eram as de lit­er­atu­ra brasileira e poe­sia. Tam­bém pas­sei quase cem anos de solidão e areia diante da lit­er­atu­ra em lín­gua espan­ho­la, quan­do desco­bri Gabriel Gar­cia Márquez e Jorge Luis Borges.

    Uma bib­liote­ca que sem­pre me fas­ci­nou foi a da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, quan­do ain­da não era alu­na. A diver­si­dade de títu­los, e em lín­guas difer­entes impres­sion­a­va. Lem­bro do encan­to por um livro de Luís da Câmara Cas­cu­do sobre lendas brasileiras. Quan­do me tornei alu­na, pude emprestar um livro de poe­mas de Manuel Ban­deira traduzi­dos para o francês. Mais tarde, na pós-grad­u­ação, li livros sobre lit­er­atu­ra japonesa.

    Out­ra bib­liote­ca que gostei de con­hecer foi a do Insti­tu­to Goethe. Fre­quentei pouco, mas quan­do a con­heci, era uma novi­dade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, vis­itei bib­liote­cas que tam­bém tin­ham seções mul­ti­mí­dia. E nas quais pas­sa­va horas lendo revis­tas sobre todo o tipo de assunto.

    Nesse ano con­heci a bib­liote­ca do Insti­tu­to de Estad­ual de Edu­cação Eras­mo Pilot­to, esco­la na qual Hele­na Kolody foi pro­fes­so­ra. Uma ami­ga, a poeta Jane Sprenger Bod­nar, tra­bal­ha lá. O acer­vo, emb­o­ra seja uma bib­liote­ca esco­lar, é diver­si­fi­ca­do. Além de lit­er­atu­ra e edu­cação, há livros sobre cul­tura pop­u­lar. Pena que pre­cise de refor­mas e não rece­ba atenção do gov­er­no do estado.

    Biblioteca Pública do Paraná (Foto: Yasmin Taketani)
    Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná (Foto: Yas­min Taketani)

    Ape­sar de ter sido reestru­tu­ra­da, espe­cial­mente na área de comu­ni­cação visu­al, hoje ten­ho medo de voltar à Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Lit­er­atu­ra que me inter­es­savam. Há poucos títu­los novos. Con­fes­so que ler os autores da lit­er­atu­ra con­tem­porânea, cel­e­bra­dos em even­tos pro­movi­dos pela própria BPP me atemoriza.

    Não con­si­go mais exercer o rit­u­al juve­nil, de aven­tu­rar entre as estantes para desco­brir um livro estran­ho. Falan­do em estran­heza, tem­pos atrás havia leitores bizarros entre os fre­quen­ta­dores da BPP. Escritores, artis­tas, design­ers, jor­nal­is­tas? Não: sem-teto ou desem­pre­ga­dos, enfur­na­dos nas salas de leitu­ra. A neolib­er­al­iza­ção do lugar expul­sou os bizarros, que devem ter volta­do para o seu lugar: as ruas.

    Cer­ta vez, num pro­gra­ma de tevê, vi a bib­liote­ca da pro­fes­so­ra de lit­er­atu­ra Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em des­or­dem e as estantes roí­das por cupins. Des­or­dem igual às das bib­liote­cas do poeta Paulo Lemins­ki e do ilustrador Clau­dio Seto. Nem tudo está con­forme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que impor­ta é ali­men­tar os ratos de bib­liote­ca. Em tem­po de bien­ais e grandes even­tos de lit­er­atu­ra, bib­liote­cas cheias de poeira são um refú­gio con­tra os que cobrem a história com verniz.

  • Um homem que escreve jamais está só

    Um homem que escreve jamais está só

    Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e Jamil Snege
    Valên­cio Xavier, Manoel Car­los Karam e Jamil Snege

    Quem escreve con­to ou poe­sia pre­de­ter­mi­na que não terá públi­co em mas­sa. Con­to e poe­sia são gêneros des­ti­na­dos a um públi­co fora do alvo do mer­ca­do edi­to­r­i­al. Uma ex-jor­nal­ista que tra­bal­ha no mer­ca­do adverte: se quis­er entrar, o can­dida­to a escritor tem que escr­ev­er romance. Autores pub­li­ca­dos por grandes edi­toras são romancis­tas. Exceção, os con­sagra­dos ao lon­go do tem­po. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.

    Valên­cio Xavier, Jamil Snege, Manoel Car­los Karam, Wil­son Bueno talvez sejam daque­le tipo de autores que jamais atin­jam o grande públi­co. O “grande públi­co”, essa enti­dade fan­tás­ti­ca que lê “50 tons de cin­za”, “O diário de um mago”, “Har­ry Pot­ter” e é visa­do pelo mer­ca­do, nem sem­pre se inter­es­sa por boa lit­er­atu­ra. Assim, se pri­va de ler, além dos já cita­dos, Nel­son de Oliveira, Luiz Ruffa­to, Ricar­do Lísias e J.M. Coet­zee. E, claro, nem quer saber de poe­sia. A não ser que o poeta se torne um fenô­meno com­er­cial, como Paulo Lemins­ki. O grande públi­co seguirá igno­ran­do as obras de Alice Ruiz, Paulo Hen­riques Brit­to, Adília Lopes, Miche­liny Verun­schk. Lerá, quan­do muito, Manoel de Bar­ros.

    Wilson Bueno, Nelson de Oliveira e Luiz Ruffato
    Wil­son Bueno, Nel­son de Oliveira e Luiz Ruffato

    Recon­heci­do pela críti­ca, Valên­cio mor­reu “esque­ci­do” . Tão esque­ci­do que nem sabia mais diz­er seu nome. Em vida, Valên­cio era esque­ci­do. Pela man­hã tele­fon­a­va aos ami­gos para con­tar casos que repe­tiria à noite, quan­do os encon­trasse. Era o iní­cio do “Alemão”. A doença não cor­tou a verve cria­ti­va e per­maneceu lúci­do. A frase der­radeira do últi­mo livro, “Rre­men­branças da meni­na de rua mor­ta nua e out­ros livros”, pub­li­ca­do em 2006 é: “Estou mor­to.” Valên­cio, ele mes­mo, era seu per­son­agem. Seguiu estri­ta­mente o con­sel­ho de Roland Barthes que dizia: “tra­bal­he enquan­to hou­ver sol.” A luz da razão per­maneceu até o lim­ite da lucidez.

    Há alguns anos, Daniel Fil­ho lançou uma biografia inti­t­u­la­da “Antes que me esqueçam”. Atores globais e out­ras cele­bri­dades lançam biografias e livros para não serem esque­ci­dos. O livro, obje­to mis­te­rioso numa cul­tura midiáti­ca audio­vi­su­al, é um amule­to que asse­gu­rará a imor­tal­i­dade dos tementes do Juí­zo da Eternidade. É fácil pre­v­er que, à parte sua neces­si­dade de ser irra­di­a­da pelo públi­co, em pouco tem­po essas cele­bri­dades serão esquecidas.

    Ricardo Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee
    Ricar­do Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee

    Na Antigu­idade, os reis não podi­am ser vis­tos pelo povo, nas tri­bos prim­i­ti­vas. Como eram con­sid­er­a­dos deuses, não podi­am tocar o solo impuro, toca­do por todos. Eram lhes atribuí­dos poderes de con­tro­lar as forças da natureza e pro­por­cionar boas col­heitas na agri­cul­tura. Mas seus poderes só se man­tinham intac­tos longe do povo. Assim, criou-se o vín­cu­lo entre objetos/entidades sagra­dos e sua ocul­tação ou vela­men­to públi­co. Aparente­mente, a era da repro­dução instan­tânea inver­teu o par­a­dig­ma. Ago­ra, o que deve ser cul­tua­do têm que ser superexposto.

    Michelliny Verunschk, Paulo Henriques Brito e Adília Lopes
    Michelliny Verun­schk, Paulo Hen­riques Brito e Adília Lopes

    Um pas­so para além da neces­si­dade de pub­li­ci­dade, o val­or do obje­to artís­ti­co per­manece igual ao de ger­ações pas­sadas. A memória humana não é preser­va­da nos obje­tos que seduzem instan­ta­nea­mente. Mas naque­les em que se percebe o val­or do tra­bal­ho e da luta pela preser­vação da humanidade. No caso da lit­er­atu­ra, o tra­bal­ho com a lin­guagem e a lín­gua: novas per­cepções, conexões, saltos cria­tivos. Por isso, escritores como Valên­cio Xavier não são esque­ci­dos. O sol bril­hou em seu sig­no astral, até sua luz sumir no hor­i­zonte. Esse tími­do raio de sol será vis­to por anos.

  • Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Livro: Poesia é Não — Estrela Leminski

    Ler poe­sia é como ler prosa? Ler poe­sia como se lê prosa é desler? Para ler poe­sia ler e rel­er ao relen­to, desli­gan­do o relé do pen­sa­men­to. Desli­gar a face, reli­gar o ver­so. No epi­cen­tro da poe­sia a palavra, a músi­ca, a imagem movem ter­re­mo­tos de imag­i­nação. Para uma sociedade cen­tra­da na fun­cional­i­dade da palavra, que não admite ambigu­idade sub­je­ti­va, ou a comu­ni­cação por exces­so, poe­sia é um desvio que excede a palavra em rit­mo e imagem.

    Fiquei pen­san­do isto quan­do li o Poe­sia é Não (Ilu­min­uras, 2011), de Estrela Lemins­ki. Primeiro li os poe­mas. Depois, a auto­bi­ografia da poeta, nas orel­has do livro. E fol­he­an­do, vi aqui e ali pági­nas com­postas em nuances de cores e tipos difer­entes. Depois li a resen­ha de Mar­cos Pasche no Jor­nal Ras­cun­ho. “Fal­tou Poe­sia”, avi­sou o críti­co, logo no títu­lo. E escreveu um arti­go ante­ci­pan­do sua defe­sa por não criticar a poe­sia e sim a per­son­al­i­dade de Estrela, fil­ha de um casal de poet­as céle­bres. O modo que o críti­co escol­heu é um modo de desler poe­sia, con­cen­tran­do-se na per­son­al­i­dade do poeta e não em sua poe­sia, nem sem­pre con­ti­da ape­nas nos versos.

    Estrela joga com o títu­lo Poe­sia é Não, indi­can­do o que a poe­sia não é. Catarse, obje­to útil, notí­cia, mer­cado­ria, ras­cun­ho de gave­ta, protesto, influên­cia. A neg­a­tivi­dade se lê nos escritos, nas pági­nas grá­fi­cas. Ao deixar de lado o que está escrito e pas­sar a ler o códi­go visu­al, a leitu­ra é outra.Papel de embrul­ho, doc­u­men­to ofi­cial, jor­nal, livro, operária, con­ta e pagado­ra de con­ta, gave­ta, pan­fle­to, ver­bete de dicionário, lit­er­atu­ra, sig­no, as pági­nas grá­fi­cas apon­tam para o que a poe­sia não é. O que ela é , então ?

    Poe­sia é ver o ver­so, o aves­so do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue ado­les­cente”, pode ser que a poe­sia diga, como Estrela, a ale­gria pelo Não, ale­gria de quem cresce e con­hece os praz­eres de viv­er, praz­er da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de ado­lescer, é amadure­cer ado­lescen­do, envel­he­cer ado­lescen­do, mor­rer ado­lescen­do. Ser poeta é não desi­s­tir da infân­cia para se pre­ocu­par em como escr­ev­er, escr­ev­er bem, escr­ev­er para um públi­co, escr­ev­er sagran­do o já sagra­do. Escr­ev­er poe­sia é desescr­ev­er, é não saber, não acer­tar o rit­mo, ler livros de poe­sia e esque­cer, saber lín­guas e con­fun­di-las com a lín­gua da boca. Sem esquec­i­men­to, ignorân­cia, erro, a poe­sia é pobre, por que uma vida per­fei­ta é pobre, ou impos­sív­el. Quer­er que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mun­do deve nascer velho.

    Juven­tude nem sem­pre é vital­i­dade. Vel­hice não é sinôn­i­mo de decrepi­tude. O domínio sobre a lin­guagem, que os críti­cos esper­am dos bons (?) escritores não é sinal de maturi­dade. É sinal de quem tem medo de cri­ar, de quem se pro­tege por trás da ter­mi­nolo­gia letra­da. O jargão int­elec­tu­al não inter­es­sa para a maio­r­ia dos mor­tais. A maio­r­ia silen­ciosa, ao con­trário do que pen­sam os críti­cos, ama a poe­sia — ama ouvir canções pop­u­lares, por exem­p­lo. A maio­r­ia silen­ciosa ama escr­ev­er ver­sos, na ado­lescên­cia cronológ­i­ca ou tar­dia. E a maio­r­ia silen­ciosa se enver­gonha de amar a poe­sia, quan­do o críti­co se lev­an­ta em nome do cânone literário e pre­ga que é pre­ciso ter ver­gonha por amar poe­sia e escr­ev­er bobagens que qual­quer um escreve quan­do o coração dispara.

    Atirem o poeta ao mar”, diz um dos ver­sos de Estrela, evo­can­do o pai, que escreveu um livro juve­nil (Guer­ra den­tro da gente, Sci­p­i­one) no qual um poeta, con­sid­er­a­do o pal­haço da trip­u­lação de uma embar­cação é ati­ra­do ao mar. A úni­ca solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qual­quer sociedade. Que faz­er com os que amam seus encan­ta­men­tos? Não se pode ati­rar os amadores de poe­sia ao mar, não sobraria mar para todos. Prefer­ív­el diz­er ao críti­co não leia seus poe­mas e con­dene a per­son­al­i­dade do poeta. Assim ape­nas um será afo­ga­do por suas más palavras.

    Mas o poeta é trezen­tos ou trezen­tos mil, e seus ver­sos se des­do­bram entre as palavras de ordem. Ape­sar das advertên­cias do críti­co, os leitores atrav­es­sam o tex­to e seus pre­tex­tos e saem atrás de mira­gens. Para os que amam se diver­tir, a poe­sia de Estrela é, sim. 

    *Marília Kub­o­ta, além de colab­o­rado­ra do inter­ro­gAção, escreve no seu blog Micrópo­lis.

  • Entrevista Lau Siqueira: Poesia a vida inteira

    Entrevista Lau Siqueira: Poesia a vida inteira

    O poeta Lau Siqueira nasceu em Jaguarão (RS), em 21 de março de 1957. Começou a pub­licar poe­mas no Jor­nal Cor­reio do Povo, de Por­to Ale­gre, nos anos 70. Seu primeiro livro foi O Comí­cio das Veias, pub­li­ca­do em 1993. Seguem O Guardador de Sor­risos (1998), Sem Meias Palavras (2000). Par­ticipou das antolo­gias Mário Quin­tana – 1985, Na Vira­da do Sécu­lo — Poe­sia de Invenção no Brasil (Landy, 2002) e Agen­das da Tri­bo. Há 20 anos mora em João Pes­soa (PB), e há out­ro par de anos man­tém o blogue Poe­sia Sim

    Lau Siqueira tam­bém esteve em Curiti­ba lançan­do o livro Poe­sia Sem Pele.

    Teu nome é Lau­re­ci Siqueira . De onde vem o “ Lau”?

    O que é o nos­so nome? É o que está na cédu­la de iden­ti­dade ou é o nome no qual as pes­soas nos recon­hecem? Nem sem­pre essas coisas coin­ci­dem. Acho que este é o meu caso. Na min­ha iden­ti­dade está escrito Lau­recí Siqueira dos San­tos. Foi assim que meu pai me bati­zou. No entan­to, nem ele me chama­va pelo nome de batismo. Meu apeli­do de infân­cia era Dido. Até hoje alguns ami­gos de infân­cia lá de Jaguarão, me chamam assim. O “codi­nome” Lau foi se empoderan­do nat­u­ral­mente da min­ha existên­cia e da min­ha inex­istên­cia. Tudo porque quan­do apre­sen­ta­do às pes­soas a con­fusão apare­cia logo: Laude­cir, Lau­re­mi, Laude­ci?… As pes­soas sim­pli­fi­cavam nat­u­ral­mente, rap­i­da­mente, reduzin­do para Lau. Isso acon­te­ceu muito com cole­gas de tra­bal­ho e na esco­la, prin­ci­pal­mente, mas em out­ros espaços tam­bém . Depois veio o primeiro livro e eu pen­sei que era mais coer­ente assi­nar o nome pelo qual eu já esta­va con­heci­do entre os ami­gos. Enfim, se tudo tem uma história, esta min­ha história é assim. O nome tam­bém expli­ca uma poe­sia que bus­ca se despir das sonori­dades desnecessárias. Assim, o meu nome literário é tam­bém mín­i­mo e ao mes­mo tem­po de den­sa sonoridade.

    Você nasceu em Jaguarão , pas­sou a infân­cia, lá, depois morou em Por­to Ale­gre ? Con­ta um pouco sobre a tua juventude.

    É ver­dade, nasci em Jaguarão, cidade históri­ca e muito boni­ta, às mar­gens de um rio (Rio Jaguarão) que cor­ta a fron­teira com o Rio Uruguay. A cidade tem uma vida cul­tur­al inten­sa, pro­duzin­do uma Feira Bina­cional do Livro onde farei uma sessão de autó­grafos no mês de novem­bro. Mor­ei lá até os 15 anos e fui para Por­to Ale­gre, de onde voltei no final do serviço mil­i­tar para aju­dar a cuidar do meu pai que esta­va muito doente. Assim, fiquei nova­mente em Jaguarão no ano de 1977, até que meu pai mor­reu no dia 3 de dezem­bro e em janeiro de 78 voltei para Por­to Ale­gre onde mor­ei nova­mente até me mudar para a Paraí­ba, “de mala e cuia”, em 1985. Este é o resumo da ópera.

    Por que mudou do Rio Grande para a Paraíba?

    Por motivos muito par­tic­u­lares. Eu casei na Paraí­ba, vivi casa­do 13 anos e depois divor­ciei. Mas aí já tin­ha duas fil­has para dar con­ta dos meus afe­tos e das min­has respon­s­abil­i­dades de pai apaixon­a­do e fui fican­do. Hoje ten­ho uma neta, tam­bém por aqui. Além dis­so, o povo paraibano é muito espe­cial, muito acol­he­dor e sem­pre me sen­ti queri­do por aqui. Hoje me sin­to um ser­tane­jo do pam­pa ou um pam­peano do sertão que mora num dos litorais mais belos do País. Não é difí­cil largar tudo e vir pra cá. Os encan­tos são muitos. A cap­i­tal da Paraí­ba é a ter­ceira mais anti­ga do país. É uma das cidades mais verdes do país e ain­da não está assim tão caóti­ca. Aqui se con­vive com pas­sa­do e futuro numa mes­ma avenida. 

    Em Por­to Ale­gre você con­heceu Mário Quin­tana ? Que lem­brança tem dele ? Que out­ros poet­as foram impor­tantes para sua for­mação e informação ?

    Mário era uma per­son­al­i­dade das ruas de Por­to Ale­gre. Quem andou pelo cen­tro da cap­i­tal gaúcha até os anos 80, pelo menos algu­ma deve ter vis­to o poeta cam­in­han­do pela Rua da Pra­ia, pelas ruas do cen­tro. Ele tin­ha hábitos reg­u­lares. Mora­va no Hotel Majes­tic, onde hoje é a Casa de Cul­tura Mário Quin­tana. Toma­va café sem­pre no anti­go Ryan, gosta­va de uma sal­a­da de fru­tas no Mer­ca­do Cen­tral. Eu vi Mário muitas vezes, na Feira do Livro, na anti­ga Livraria do Globo, na Bib­liote­ca Públi­ca onde até assisti um recital com ele, nos anos 80. Tam­bém tive o priv­ilé­gio de entre­vistá-lo, jun­ta­mente com a jor­nal­ista Joana Belarmi­no, em janeiro de 1987. Enfim, além dis­so, podia encon­trá-lo nos livros que escreveu e traduz­iu. A primeira tradução de Proust que li, foi sua. Ele tra­bal­ha­va no jor­nal Cor­reio do Povo e quan­do o jor­nal fechou, pude vê-lo em uma passea­ta de jor­nal­is­tas pelas ruas de Por­to Ale­gre. Acho que foi sim um poeta impor­tante para a min­ha for­mação, mas eu admiro muitos poet­as. Inclu­sive me sin­to a von­tade para diz­er que não gos­to de tudo que leio nos poet­as que admiro. Sin­to da mes­ma for­ma quan­to aos meus con­tem­porâ­neos. Sou um escritor abso­lu­ta­mente aber­to às influên­cias e não me pre­ocupo em ser engoli­do por algum esti­lo. Acho que quan­to maiores e mais diver­si­fi­cadas as leituras, mais pos­si­bil­i­dades temos de con­stru­ir uma lin­guagem sin­gu­lar, que não seja a mais pura e bela diluição, a imi­tação de algum poeta ama­do. Enfim, os poet­as que mais me fasci­nam são os que cam­in­ham no fio da naval­ha, os que bus­cam o extremo, a margem do erro… o risco permanente.

    E a poe­sia, quan­do se tornou impor­tante? Ao con­trário de tan­tos, você não começou escreven­do poesia…

    A poe­sia foi se tor­nan­do grada­ti­va­mente impor­tante pra mim. Na ado­lescên­cia eu detes­ta­va poe­sia. Apren­di a gostar com os român­ti­cos Cas­tro Alves e Fagun­des Varela por motivos abso­lu­ta­mente extra-literários. Um pelo dis­cur­so agu­do con­tra o sitema de escrav­is­mo da monar­quia brasileira, out­ro pela dor de ter per­di­do um fil­ho. Dig­amos que não come­cei a escr­ev­er poe­sia, mas tam­bém não come­cei escreven­do gênero algum. Escr­ev­er era ape­nas uma for­ma de res­pi­rar mel­hor num mun­do em que o silên­cio ger­a­va o medo e tudo era de uma vio­lên­cia assus­ta­do­ra. Cresci numa área de segu­rança nacional, em ple­na ditadu­ra. Acho que isso tudo me ensi­nou uma for­ma de ver as coisas. Escr­ev­er é um ato úni­co e con­tín­uo. Sin­to que des­de sem­pre estive escreven­do o mes­mo livro, mes­mo já ten­do pub­li­ca­do cin­co inédi­tos e um pela Coleção Dul­cinéia Cata­do­ra que con­sidero, talvez, o mais impor­tante de todos. Procuro sem­pre fugir dos rótu­los e, pra diz­er a ver­dade, algu­mas vezes ques­tiono até mes­mo o fato de ser chama­do de poeta. O que é ser poeta? Eu acho que ser poeta é exata­mente não ser.

    Par­ticipou do movi­men­to Arte Postal ? O que era este movimento ?

    Como se diz aqui no Nordeste, fui me metendo meio que de “enx­eri­do” e acabei tro­can­do toques com nomes impor­tantes do movi­men­to arte-postal e com artis­tas da van­guar­da visu­al, como Paulo Brusky, Sama­r­al, Hugo Pontes, Moa­cy Cirne e Con­stança Lucas. Pes­soas que depois acabei con­hecen­do pes­soal­mente (menos Sama­r­al que fale­ceu pre­mat­u­ra­mente) e hoje são meus ami­gos. Con­heci mui­ta gente bacana, mui­ta cri­ação na área da Poe­sia Visu­al que cir­cula­va como se estivesse ante­ci­pan­do o que hoje temos na inter­net. Eu envi­a­va fanzines que pro­duzia para divul­gar min­ha pro­dução poéti­ca, min­has exper­iên­cias, mes­mo antes de sequer pen­sar em pub­licar livros. Fazia um orig­i­nal numa fol­ha de ofí­cio e imprim­ia em aero­gra­mas, encam­in­han­do não ape­nas para out­ros mil­i­tantes da arte postal, mas sele­cio­nan­do aleato­ri­a­mente endereços nas vel­has lis­tas tele­fôni­cas e encam­in­han­do cor­re­spondên­cias poéti­cas, geral­mente anôn­i­mas. Enfim, no meu caso foi da for­ma como hoje se envia spam pela internet.

    Você tra­bal­hou na sec­re­taria de cul­tura de João Pes­soa ? Que car­go exerceu ? Quais os feitos mem­o­ráveis de sua pas­sagem por lá ?

    Na ver­dade, fui o dire­tor exec­u­ti­vo da Fun­dação Cul­tur­al de João Pes­soa – FUNJOPE, entre 2007 e 2008. É a Fun­dação que dirige as políti­cas de cul­tura na cidade. Não temos Sec­re­taria Munic­i­pal de Cul­tura aqui. De 2005 a 2006, eu era o dire­tor adjun­to na gestão do ator Luiz Car­los Vas­con­ce­los que fez o médi­co em Carandiru, Baile Per­fuma­do e out­ros filmes. Ele se afas­tou para fil­mar Pedra do Reino, na Rede Globo e eu assu­mi. Depois veio o Chico Cesar e ago­ra a Fun­dação é dirigi­da por Mil­ton Dor­nel­las, um ami­go músi­co dos bons que foi meu adjun­to. Por­tan­to, tive­mos teatro, lit­er­atu­ra e músi­ca na direção da Fun­dação nos últi­mos anos. Olha, para falar dos feitos mem­o­ráveis, não sei se ten­ho jeito. Até porque ess­es feitos não são meus. Vou falar de algu­mas coisas que con­sidero rel­e­vantes, como ter cri­a­do o depar­ta­men­to de Lit­er­atu­ra na Fun­dação, coisa que antes não exis­tia; tam­bém assinei jun­ta­mente com o secretário da Edu­cação da época, Wal­ter Galvão, a cri­ação da primeira bib­liote­ca públi­ca do municí­pio de João Pes­soa. Na ver­dade, lev­a­mos arte e cul­tura para prati­ca­mente todos os bair­ros da cidade e desta­co aí o pro­je­to Cir­cuito Cul­tur­al das Praças que até hoje visa aproveitar os anfiteatros que foram cri­a­dos pela Prefeitu­ra nas praças públi­cas para apre­sen­tação sem­anal de gru­pos da cidade, em todas as áreas, em todas as estéti­cas. Tra­bal­hamos muito pela preser­vação da diver­si­dade cul­tur­al, pela preser­vação das tradições da cul­tura pop­u­lar, dos bens ima­te­ri­ais, trazen­do para a cena expressões que se encon­travam mar­gin­al­izadas, como as Cam­bindas, o Cav­a­lo Mar­in­ho, o Boi de Reis, o Coco de Roda, o Babau, o Coco de Embo­la­da, o tradi­cional for­ró pé-de-ser­ra que hoje Chico Cesar bus­ca preser­var no Esta­do, enquan­to Secretário de Cul­tura da Paraí­ba. Até mes­mo o Cordel anda­va deix­a­do de lado porque a gestão ante­ri­or bus­ca­va preser­var as ações de pão e cir­co, deixan­do a cul­tura na mín­gua. Nós afir­mamos as políti­cas de cul­tura den­tro da gestão. Pau­ta­mos politi­ca­mente a cul­tura na cidade. Dialog­amos com a cena con­tem­porânea, apoian­do a cri­ação de even­tos under­grounds ou pop­u­lares, aju­damos a con­sol­i­dar aqui o Fes­ti­val de Cin­e­ma de Lín­gua Por­tugue­sa, o CINEPORT, imple­men­ta­mos ofic­i­nas de arte pela cidade inteira, bus­camos a qual­i­dade musi­cal para os nos­sos even­tos de verão que hoje ref­er­en­ci­am João Pes­soa nacional­mente. A cidade tem hoje um dos mais impor­tantes fes­ti­vais de verão do país, o Estação Nordeste. Na ver­dade tudo isso foi fru­to de um debate cole­ti­vo que vin­ha se for­man­do através dos anos, nos instru­men­tos da luta dos artis­tas, como o Musi­clube da Paraí­ba, nas idéias do gru­pos como Jaguaribe Carne, com Pedro Osmar, Chico Cesar e Paulo Ró, de pen­sadores e gestores da cul­tura paraibana como Car­los Aran­ha e Fer­nan­do Abath… Enfim, bus­camos preser­var a iden­ti­dade cul­tur­al nordes­ti­na e dialog­ar com a con­tem­po­ranei­dade. São essas as idéias que ain­da prevale­cem por lá. Não são coisas min­has, relevân­cias min­has, mas questões cole­ti­vas, debati­das e imple­men­tadas cole­ti­va­mente. Por­tan­to, estive den­tro de um proces­so e não fiz nada soz­in­ho. E esse é o que foi o difer­en­cial e que ain­da está sendo. Foi uma gestão de com­pan­heiros e con­tin­ua sendo uma gestão de com­pan­heiros e com­pan­heiras. Como diz Chico Cesar, no meu tem­po, eu fui “ape­nas o orde­nador de despe­sas”. (risos)

    Para que ou para quem serve a poesia ?

    A poe­sia não serve para abso­lu­ta­mente nada, ain­da bem. Não existe nada mais inútil que a dana­da da poe­sia. Para quem serve? Sei lá… acho que serve de pano de fun­do aos que curtem jog­ar amare­lin­ha com psiquia­tras que inves­tigam as pro­fun­dezas do espíri­to humano.

    Um poeta pre­cisa ter grupo, site, blogue, livro , ser dinâmi­co, ati­vo, empreende­dor ? Pre­cisa gan­har prêmios, rece­ber bol­sas de cri­ação literária e coisas tais ?

    Um poeta pre­cisa ter con­sciên­cia do seu ofí­cio que é: tra­bal­har, tra­bal­har, tra­bal­har… Tra­bal­har para sus­ten­tar o cadáver desajeita­do que é e tra­bal­har exaus­ti­va­mente a palavra, escreven­do ou não. Então ele pode ter grupo, pode ter blog, ser dinâmi­co, ati­vo, pas­si­vo, malu­co, empreende­dor, bundão… Ele só não pode achar que já está pron­to, que já é uma cele­bri­dade por ser razoavel­mente con­heci­do ou elo­gia­do pelos ami­gos. Um poeta nun­ca é uma cele­bri­dade. Pelo menos, não deve pen­sar que é. Porque aí ele terá mor­ri­do e será ape­nas uma camisa e uma calça flu­tuan­do pelas ruas em bus­ca de algum tipo de imor­tal­i­dade. O poeta não pode ter medo de arriscar-se. Ser poeta é não ter medo do abis­mo, ser poeta é cor­rer riscos per­ma­nen­te­mente. É não ter medo do ridícu­lo. Ele pode até rece­ber prêmios, bol­sas de cri­ação literária, mas acho com­pli­ca­do alguém achar que pode escr­ev­er um grande livro ape­nas porque rece­beu uma bol­sa de cri­ação literária. Poe­sia é como diz meu queri­do poeta Ronald Augus­to, “coisa nen­hu­ma” e por­tan­do o poeta tem que estar pre­ocu­pa­do é com coisa nen­hu­ma mes­mo. O poeta pre­cisa viv­er inten­sa­mente a vida (como qual­quer pes­soa), viv­er pro­fun­da­mente a palavra e bus­car exper­i­men­tar esse mis­tério que é a pul­sação dos seus movi­men­tos, dos seus sig­nifi­ca­dos den­tro da invenção poéti­ca, den­tro das pos­si­bil­i­dades de trans­gressão dos próprios processos.

    Você lançou teu livro Poe­sia sem Pele na Sem­ana Anti­man­i­co­mi­al, na Paraí­ba. Como a lou­cu­ra pode ser arte na cidade ?

    Sim, acho que a poe­sia não pode ser enga­ja­da — emb­o­ra pos­sa ser temáti­ca. No entan­to, o poeta pode escol­her entre ser um cidadão enga­ja­do ou não. Eu estou enga­ja­do na Luta Anti­man­i­co­mi­al, con­tra o anti­go e crim­i­noso mod­e­lo dos choques, das lobot­o­mias… ações que viti­maram pes­soas do meu mais pro­fun­do afe­to. Des­de muito novo estou enga­ja­do nas questões humanas. Na ver­dade eu sabia e sei que cuidar do out­ro é cuidar de si mes­mo. E acho que a arte é uma das curas da humanidade. Por isso, a lou­cu­ra pode ser arte na cidade.

    quar­ta capa

    o poeta

    é o que bus­ca na palavra

    a dimen­são do átomo

    o silên­cio extremo

    por detrás de cada fato

    o poeta é o etéreo e o ácido

    na pele dos val­ores estáticos

    estéti­cos são seus baralhos

    o poeta é o vapor bara­to e o

    lance de dados

    o aca­so e o atalho

    macalé e mallarmé

    no mes­mo saco

    o poeta é um guapo

    (de: POESIA SEM PELE , Casa Verde, 2011. Pedi­dos pelo email: poesiasempele@gmail.com)

  • “Escrever é ficar sozinha” — A escritora Marina Colasanti em Curitiba

    Escrever é ficar sozinha” — A escritora Marina Colasanti em Curitiba

    nada na mangaNo dia 17 de março, a escrito­ra Mari­na Colas­an­ti encon­trou com mais de cem cri­anças, de 5 a 10 anos, na Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná em Curiti­ba. Foi boni­to ver a platéia de cri­anças, falan­do, rindo, brin­can­do e aten­ta. Mari­na, aos 73 anos, con­segue falar a lín­gua delas. Não à toa, é auto­ra de mais de 50 livros, muitas histórias de fadas. Out­ras, crôni­cas, reporta­gens, poe­sia para cri­anças. Todos pare­cem ter em comum a ideia de ser histórias para cri­anças de todas as idades.

    Durante o bate-papo, Mari­na Colas­an­ti ves­tia um tern­in­ho com saia e ficou em pé, mãos cruzadas à frente, para falar com as cri­anças. Uma pos­tu­ra boni­ta, despo­ja­da, de desarme e encan­to. Falou um pouco sobre ela, incluin­do a frase do títu­lo. E que escritor é profis­são de gente soz­in­ha, mas que nun­ca está só.

    Lem­bro o primeiro livro que li de Mari­na Colas­an­ti, Nada na Man­ga. Desco­bri na Bib­liote­ca Públi­ca, orgul­hosa. Descon­heci­da pra mim, ela já escrevia crôni­cas para o Jor­nal do Brasil e tra­bal­ha­va na Revista Nova. Ain­da não sabia que era casa­da com o poeta Affon­so Romano de Sant´anna. Pelas crôni­cas, con­heci as fil­has, Alessan­dra e Fabiana.

    Fique feliz em ler as crôni­cas de Mari­na. Que falavam sobre a solidão. Eu, aos 15 anos, me iden­ti­fi­ca­va com aque­la mul­her soz­in­ha, casa­da e com 2 fil­has. E me ini­ci­a­va na arte de ser sozinha.

    Até hoje lem­bro as primeiras leituras. E tam­bém fiquei sat­is­fei­ta em encon­trar Mari­na Colas­an­ti, ao vivo, sem falar uma palavra com ela. Por que ela gos­ta de escr­ev­er e ensi­na que ser soz­in­ha pode ser diver­tido. Ler é uma aven­tu­ra, um encon­tro com a alma.

    Durante anos busquei quem lesse os mes­mos livros que eu. Algu­mas vezes ain­da me ilu­do quan­do encon­tro um leitor. Me emo­ciono, quero pro­lon­gar a relação. Mas sei que não con­seguirei deixar de ser soz­in­ha. Cada um segue seu cam­in­ho. Se tiv­er tal­en­to e per­sistên­cia, pub­li­cará um livro para com­par­til­har suas leituras em público.

    O Dalai Lama diz que exis­tem seis mil­hões de religiões no plan­e­ta para seis mil­hões de almas. Pou­cas seguirão soz­in­has, escritoras ou leitoras. Mari­na Colas­an­ti sabe o que é a lit­er­atu­ra. A feli­ci­dade que provo­ca, e não é pre­ciso sair de seu silên­cio. Tam­bém sabe que é bom com­par­til­har a alma. Por isto, talvez, a pos­tu­ra de meni­na leviana e com­por­ta­da, diante dum auditório reple­to de bor­bo­le­tas coloridas.

    Tex­to pub­li­ca­do tam­bém no blog microp­o­lis, da própria auto­ra Mar­il­ia Kub­o­ta.