“Eu gosto de explorar essa imperfeição, porque é assim que as pessoas são de verdade, boas e más, não apenas boas ou apenas más”, diz o escritor americano Teju Cole (1975) em uma entrevista durante a sua passagem pela FLIP de 2012. Cole consegue explorar a imperfeição humana de forma muito rica e analítica em seu romance de estreia Cidade Aberta (Companhia das Letras, 2012, tradução de Rubens Figueiredo), vencedor do Prêmio Pen/Hemingway 2012 e elogiado pela crítica americana.
Nova York é conhecida como uma das capitais mais cosmopolitas do mundo, assim como São Paulo, à primeira vista parece reinar a pluralidade que constrói o meio urbano. Mas muito tem se lido na literatura de língua inglesa a voz dos estrangeiros — por exemplo, Junot Diaz em “A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao” — que hoje figuram grande porcentagem da população, fazendo uma grande diferença numa eleição e outras decisões políticas, por exemplo. Mas ainda demonstram que a pluralidade não é esse sonho todo e que ainda nessas grandes cidades se vive em guetos.
O título do livro pode se relacionar ao termo open city — cidade aberta traduzido ao pé da letra — que foi usado pela primeira vez em 1914 para designar uma cidade que durante uma guerra está desprotegida militarmente e segundo as leis internacionais não pode sofrer ataques. Numa primeira análise, tendo consciência desse significado, a primeira referência é o 11 de setembro americano. Mas o termo também pode ser pensando com o seu sentido mais comum, uma cidade aberta que recebe diariamente milhões pessoas do mundo inteiro que a constituem.
“Mas a atrocidade não tem nada de novo, não para seres humanos, não para animais. A diferença é que em nosso tempo ela é extraordinariamente bem organizada, praticada com currais, trens de carga, livros de contabilidade, cercas de arame farpado, campos de trabalho, gás. E esta última contribuição, a ausência de corpos. (p.74)
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Assim como Baudelaire criou a ideia de flâneur — o homem moderno que flana invisível pelo meio urbano prestando atenção às movimentações, a efemeridade do movimento citadino — em Cidade Aberta o leitor é também um flâneur, junto do imigrante que se constrói conforme se relaciona com esse meio, a terra natal deixada no passado e o sentimento de diferença. O leitor só é apresentado formalmente a Julius, ao nome que o identifica, quando passa a se aprofundar nas suas memórias e sua vida na Nigéria deixada para trás.
O livro é dividido em duas partes e ambas são recursos poéticos para a narrativa pessoal do personagem. A primeira intitulada de A morte é uma perfeição do olho e a segunda Eu procurava a mim mesmo demonstram que mesmo que Julius se disfarce de apenas um passante, um simples observador, engajado, inteligente, procurando localizar cada célula formadora da cidade de Nova Iorque, ele está profundamente ligado na busca de encontrar a si mesmo, buscar suas próprias respostas e definir a sua identidade.
![Francis.190](https://i0.wp.com/www.interrogacao.com.br/wp-content/uploads/2013/02/Francis.190.jpg?resize=190%2C263)
“O passarinho representava a alma da criança, como também acontecia no retrato feito por Goya do malfadado Manuel Osorio Manrique de Zúñiga, de três anos de idade. A criança na pintura de Brewster mirava atenta, com uma expressão serena e etérea, do ano de 1805. Ao contrário de muitas outras crianças pintadas por Brewster, o menino tinha sua audição perfeita. Seria aquele retrato um amuleto contra a morte? Uma em cada três pessoas, naquela época morria antes dos vinte anos de idade. Seria aquilo a expressão de um desejo mágico de que a criança resistisse e se agarrase à vida, assim como se agarrava ao cordão?” (p.52)
A identidade de imigrante, tão penosa de se conquistar mesmo estando em um lugar por uma decisão própria, é clara em Cidade Aberta. Por exemplo, o comportamento dos pássaros é usado em dois momentos pelo personagem, ambos retratam a necessidade de migração, quase que natural mas mesmo assim com seus percalços. O livro trata bastante disso, da transitoriedade das pessoas e espaços a fim de buscar algo, aparentemente tão normal em tempos de efemeridade.
Nova York sempre está se mutando, se adaptando às crises, ataques e mesmo assim ainda guarda de forma orgulhosa suas marcas que contam a história da América como um lugar do futuro. O narrador conduz muitos dos seus passeios afim de em varios momentos tirar a maquiagem da cidade, por mais que ele diga que não trocaria esse lugar, ele também não consegue se desvencilhar da sua primeira identidade, da sua cor e origens.
“Cerca de duzentos anos depois, quando um jovem da região do Forte Orange desceu pelo rio Hudson e se estabeleceu em Manhattan, decidiu escrever seu opus magnum sobre um Leviatã albino. O autor, que no passado tiha sido paroquiano da Igreja da Trindade, intitulou seu livro A baleia; o subtítulo, Moby Dick, só foi acrescentado depois da primeira edição. Essa mesma Igreja da Trindade agora não me recebeu, deixou-me do lado de fora, exposto ao cortante ar marinho sem me oferecer nenhum lugar para rezar. (p.66)
Mas há também alguns pontos negativos em Cidade Aberta. Em alguns momentos a narrativa desperta um certo cansaço por conta das descrições detalhadas e também das posições políticas e críticas, levadas bastante a sério por Julius, que sempre acaba encontrando motivos para criticar o domínio americano. Essas mesmas opiniões acabam por deixar algumas opções do enredo repetitivas e desnecessárias.
Mas por ser também uma uma narrativa em primeira pessoa, mesclada pela intimidade do jovem psiquiatra com sua visão do urbano, Cidade Aberta é bastante atraente ao leitor curioso. Julius consegue questionar a solidão e a vida mesmo quando analisa as pessoas e fatos através do seu olhar clínico, medindo a química e conceitos das situações.
A visão de grandes massa humanas descendo afobadas para câmaras subterrâneas era perpetuamente estranha para mim, e eu tinha a sensação de que a raça humana inteira se precipitava, empurrada por um impulso de morte antinatural, rumo a catacumbas móveis. Na superfície da terra, eu estava com milhares de outros em sua solidão, mas dentro do metrô, de pé entre desconhecidos, empurrando e sendo empurrado em busca de espaço e de uma brecha para respirar, todos nós reconstítuíamos traumas não admitidos, a solidão intensificada. (p.14
(…) o professor Saito disse certa vez: Adoro monstros imaginários, mas fico apavorado com os monstros reais. (p.19)
A principio pode-se pensar que é apenas um estrangeiro vitimizado pela cultura americana, mas ele é bem além disso, é um ser humano e seu fluxo de consciência comprova que Cidade aberta é um livro também sobre solidão.
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