Tag: Livros

  • Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Estrevista com Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marilia Kubota

    Os poet­as Lau Siqueira, Vás­sia Sil­veira e Marília Kub­o­ta encon­traram-se no últi­mo dia 24 de out­ubro em Curiti­ba e repetem a dose no próx­i­mo dia 05 de dezem­bro em Flo­ri­anópo­lis e no dia 06 em Joinville, para realizar o lança­men­to de seus livros de poe­sia “Livro Arbítrio” (Casa Verde, 2015), “microp­o­lis” (Lumme Edi­tor, 2014) e “Febre-Terçã” (Off Flip, 2013), os três pub­li­ca­dos por peque­nas edi­toras. Reuni­mos os autores nes­ta entre­vista para um pingue-pongue de ideias sobre poe­sia e a aven­tu­ra das edições inde­pen­dentes e uma reflexão sobre a função social da poesia:

    estrevista-lau-siqueira-vassia-silveira-marilia-kubota-1
    Vás­sia Sil­veira, Lau Siqueira e Marília Kubota

    Por que mes­mo não sendo autor ini­ciante, você edi­tou seu livro por uma peque­na editora?

    Vás­sia Sil­veira: Porque não me atrai essa lóg­i­ca do mer­ca­do das grandes edi­toras. Não ten­ho inter­esse em aper­tar, de for­ma automáti­ca, como crit­i­ca­va Chap­lin em “Tem­pos Mod­er­nos”, os para­fu­sos des­ta máquina. E muito menos ser um deles. O prob­le­ma é que essa lóg­i­ca é tão per­ver­sa que mes­mo algu­mas edi­toras peque­nas acabam sucumbindo a estraté­gias que mostram cer­to despre­zo, desre­speito pelo autor — quan­do, do pon­to de vista da peque­na edi­to­ra, ele não é um nome “vendáv­el”, não faz parte de pan­elas, não tem cacife para con­cor­rer a edi­tais do gov­er­no nem está incluí­do no mun­do das feiras literárias. O que me faz pen­sar que o cam­in­ho está no arte­sanal e na força da cole­tivi­dade, em ini­cia­ti­vas onde o autor é tam­bém um faze­dor de livros. Acho fan­tás­ti­co, por exem­p­lo, o movi­men­to car­tonero na Améri­ca Lati­na! Ele rompe com toda essa lóg­i­ca de mer­ca­do, é cul­tur­al, políti­co, social, filosó­fi­co, poéti­co e de resistência.

    Lau Siqueira: As peque­nas edi­toras são, atual­mente, o prin­ci­pal cam­po de batal­ha da lit­er­atu­ra con­tem­porânea. O mer­ca­do edi­to­r­i­al está por demais con­cen­tra­do e as grandes edi­toras estão transna­cional­izadas. Não se inter­es­sam por lit­er­atu­ra brasileira. Menos ain­da pela lit­er­atu­ra con­tem­porânea. Se limi­tam, no máx­i­mo, à repub­li­cação dos canôni­cos. O que se vê pre­dom­i­nar nas grandes livrarias é uma lit­er­atu­ra estrangeira de baixa qual­i­dade ou mes­mo livros de auto-aju­da. As peque­nas edi­toras vêm cumprindo um papel impor­tan­tís­si­mo na con­dução da lit­er­atu­ra e espe­cial­mente da poe­sia con­tem­porânea. Com rarís­si­mas exceções, a lit­er­atu­ra brasileira con­tem­porânea tem pas­sa­do “muito bem, obri­ga­do” por fora das grandes edi­toras e até mes­mo por fora do mer­ca­do for­mal do livro. Não acho isso ruim. Pois o mer­ca­do do livro é algo extrema­mente per­ver­so, mafioso. Nós não exis­ti­mos para eles e eles não exis­tem para nós. E a vida continua.

    Marília Kub­o­ta: “microp­o­lis” é meu ter­ceiro livro de poe­mas. Escre­vo des­de os 15 anos, mas demor­ei para pub­licar o primeiro de livro poe­mas, “Sel­va de sen­ti­dos”, pro­duzi­do pela artista Jus­sara Salazar, em selo de sua auto­ria, o Água-forte Edições, em 2008; o segun­do foi “Esperan­do as bár­baras”, pub­li­ca­do pela Blanche, de Curiti­ba, em 2012. A Lumme é con­heci­da pela pub­li­cação de boa poe­sia, brasileira e estrangeira. Optei por esta edi­to­ra por causa de seu catál­o­go e qual­i­dade no tra­bal­ho de edição de Fran­cis­co San­tos. Se pudesse, gostaria de ser pub­li­ca­da pela Cosac Naify ou Record, mas sei que atual­mente só pagan­do um agente literário ou fazen­do lob­by se con­segue entrar numa grande editora.

    Você acha que poe­sia não vende, como reza a lenda?

    Vás­sia Sil­veira: Acho que quem lê poe­sia, com­pra poe­sia. Ago­ra é claro, vive­mos em uma sociedade onde o con­sumo está cada vez mais vin­cu­la­do ao mar­ket­ing. E no caso do livro parece que as estraté­gias têm que par­tir tam­bém do autor: o cara (ou a cara) tem que ser bom (ou boa) em mar­ket­ing pes­soal. Isso pra mim é um prob­le­ma, sabe? Porque sou meio bicho do mato e não ten­ho dis­posição para cri­ar um per­son­agem fora da literatura.

    Lau Siqueira: Não vende? Como assim? Baude­laire con­tin­ua venden­do. Fer­nan­do Pes­soa con­tin­ua venden­do. Drum­mond con­tin­ua venden­do. Sem­anal­mente são lançadas dezenas de livros de poe­sia no país inteiro. Alguns com óti­mos índices de ven­da. A pesquisa Retratos da Leitu­ra no Brasil, nos mostra que em algu­mas regiões, como a região do Pajeú (PE), a poe­sia é mais pop­u­lar que livro reli­gioso. Essa história de “poe­sia não vende” é que é uma len­da. É cer­to que ninguém está enrique­cen­do com ven­da de livro, mas diz­er que poe­sia não vende é uma blas­fêmia. Vende sim! O que não há é um úni­co autor venden­do demais. Há um cer­to equi­líbrio. Ain­da não está sendo pos­sív­el excur­sion­ar pela Europa com nos­sos livros, mas já é pos­sív­el via­jar para Curiti­ba e Flo­ri­anópo­lis, por exemplo.

    Marília Kub­o­ta: Lemins­ki uma vez escreveu num ensaio que os poet­as devi­am reju­bi­lar-se porque poe­sia não vende. Não vende porque é um inuten­sílio, não serve a ninguém nem a nada, a não ser para dar praz­er a quem cria e a quem apre­cia. Tem o mes­mo val­or de um bei­jo, o ato sex­u­al, con­tem­plar saguis no Par­que Bar­reir­in­ha ou matar o tra­bal­ho para ir ao cin­e­ma. Hoje, quan­do tudo, até a nos­sa opinião e gos­tos se trans­for­maram em mer­cado­ria para as empre­sas pon­to­com, a poe­sia segue como peça de resistên­cia. O mer­can­til­is­mo ten­ta a todo cus­to com­prar o poeta, espe­cial­mente o ini­ciante, que se deslum­bra com prêmios, para­tex­tos literários e a mídia. Mas a poe­sia resiste, diverte-se à margem do sis­tema, encar­na­da em pal­haços como o per­former Hélio Leite, que poucos críti­cos doutores con­sid­er­ari­am poeta, mas até se tornou per­son­agem de Adélia Pra­do. Glau­co Mat­toso, Ricar­do Cha­cal, Alice Ruiz, Leila Mic­co­l­is, Nicholas Behr, Dou­glas Diegues, Jose Koz­er, Rey­nal­do Jimenez são a evo­cação da graça, seguin­do a máx­i­ma de Oswald de Andrade: a ale­gria é a pro­va dos 9. Se não existe diver­são não é poe­sia. Vender ou não vender não faz parte dos ócios do poeta.

    poeta Marília Kubota
    Marília Kub­o­ta

    Que estraté­gias os poet­as devem usar para dis­tribuir seu livro?

    Vás­sia Sil­veira: Olha, min­ha exper­iên­cia não aju­da a respon­der esta questão. A úni­ca coisa que enten­do de dis­tribuição é o que fiz com o “Febre Terçã”: saí dis­tribuin­do, lit­eral­mente, entre ami­gos e leitores de poesia.

    Lau Siqueira: Acho que a prin­ci­pal estraté­gia é a ven­da dire­ta. Faz­er tardes, noites,manhãs de autó­grafo. Olhar no olho do leitor. Usar as redes soci­ais para dis­tribuí-lo nacional e inter­na­cional­mente. Os esque­mas de dis­tribuição nas redes de livraria são char­mosos, mas extrema­mente des­fa­voráveis aos poet­as em todos os sen­ti­dos. Bus­car os lugares alter­na­tivos é a prin­ci­pal estraté­gia. Mon­teiro Loba­to já fazia isso nos anos 30. Escreveu uma car­ta para com­er­ciantes do país inteiro com a seguinte per­gun­ta: “você quer vender, tam­bém, uma coisa chama­da livro?” Com isso abriu mais de 2.000 pos­tos de ven­da para os seus livros, em armazéns, far­má­cias, esta­b­elec­i­men­tos diver­sos espal­ha­dos no Brasil. A cul­tura alter­na­ti­va, aliás, pos­sui um mer­ca­do bem gen­eroso e razoavel­mente democráti­co espal­ha­do pelo Brasil.

    Marília Kub­o­ta: O bacana da poe­sia é encon­trar out­ros poet­as. As estraté­gias vão acon­te­cen­do com os encon­tros. Dois poet­as jun­tos são pólos que atraem ener­gias pos­i­ti­vas e poten­cial­izam a cri­ação do com­bustív­el mais poderoso do plan­e­ta, a ale­gria. O encon­tro entre dois cri­adores gera feli­ci­dade; estraté­gias para dis­tribuir livros surgem das faís­cas de feli­ci­dade: os poet­as podem doar seus livros uns aos out­ros — como fazem com fre­quên­cia — ou con­tratar uma dis­tribuido­ra — o que é pouco prováv­el — ou par­tic­i­par de even­tos para vender seus par­cos exem­plares. O fato é que os livros de poe­sia são mila­grosa­mente dis­tribuí­dos. Uma pesquisa fei­ta na últi­ma FLIP rev­el­ou que os livros mais ven­di­dos foram de poe­sia. Mas a poe­sia sem­pre sobre­viveu fora dos megaeven­tos de mer­ca­do, porque em cada can­to do plan­e­ta há poet­as juve­nis, poet­as madames, poet­as empreende­dores, poet­as eru­di­tos, que se gal­va­nizam à voz dos men­estréis, ou seja, ain­da há neces­si­dade de cul­ti­var algo que não tem util­i­dade para o mercado.

    Qual a sua visão sobre a poe­sia contemporânea?

    Vás­sia Sil­veira: Ten­ho curiosi­dade e descon­fi­ança ao mes­mo tem­po. Curiosi­dade em desco­brir o que de bom está sendo pro­duzi­do e descon­fi­ança com o que o mer­ca­do (e as redes soci­ais) me diz que é bom. Movi­da por ess­es dois sen­ti­men­tos, acabo me refu­gian­do muitas vezes na poe­sia de autores que me acom­pan­ham des­de sem­pre, o que não deixa de ser uma grande ironia…

    Lau Siqueira: Está acon­te­cen­do, ape­sar de tudo. Há uma diver­si­dade imen­sa. Numa quan­ti­dade assus­ta­do­ra. Um bom garim­po nos per­mite encon­trar poet­as impor­tantes como Sér­gio de Cas­tro Pin­to, Antônio Brasileiro, Líria Por­to, Glau­co Mat­toso e muitos out­ros. Existe um panora­ma nacional se con­sol­i­dan­do cada vez mais, entre dilu­idores e sui­ci­das. As pes­soas estão, de for­ma muito saudáv­el, se afa­s­tan­do dos chama­dos “cabeças de rede”. Mas, acho que ain­da é cedo para um olhar mais definidor. Alguém já disse que o cenário atu­al se parece com um liq­uid­i­fi­cador lig­a­do. Ain­da não dá pra medir a qual­i­dade do suco.

    Marília Kub­o­ta: não é difer­ente a poe­sia con­tem­porânea da poe­sia do pas­sa­do. Alguém já disse que as redes soci­ais democ­ra­ti­zaram a imbe­ciliza­ção. Não sabíamos que havia tan­tos poet­as por aí, ago­ra esbar­ramos com eles em todos os lugares. Creio que na ver­dade há poucos poet­as, isto é, poucos de fato se dedicam à pesquisa de lin­guagem, a cri­ar algo novo. No Brasil, depois dos anos 90, temos Paulo Hen­riques Brit­to, Arman­do Fre­itas Fil­ho, a poe­sia demoli­do­ra de Sebastião Nunes, Lucila Nogueira, Deb­o­ra Bren­nand. Entre os mais novos, Car­l­i­to Azeve­do, Clau­dio Daniel, Miche­liny Verun­schk, Jus­sara Salazar e Rodri­go Gar­cia Lopes. Da safra da nova ger­ação (00), a sin­gu­lar­i­dade e insu­lar­i­dade de Nydia Bonet­ti, emb­o­ra ela ten­ha 50 anos. Uma novi­dade é a poe­sia étni­ca, isto é, poet­as negros com con­sciên­cia de sua iden­ti­dade étni­ca, como Edim­il­son de Almei­da Pereira e Nina Rizzi, trazen­do à baila não ape­nas a reivin­di­cação da negri­tude, mas vozes estra­nhas ao dis­cur­so canônico.

    poeta Vássia Silveira
    Vás­sia Silveira

    Como vê a ansiedade dos novos autores em relação a prêmios literários ou indi­cações, a neces­si­dade de ser legit­i­ma­do a qual­quer cus­to, seja nego­cian­do pre­fá­cios com críti­cos ou matérias em jornais?

    Vás­sia Sil­veira: Acho engraça­do e des­o­lador ao mes­mo tem­po. Engraça­do porque parece que isso real­mente tem fun­ciona­do (e daí a descon­fi­ança sobre a qual falei ante­ri­or­mente). E des­o­lador porque essa práti­ca mostra que a lit­er­atu­ra, em alguns casos, está deixan­do de ser um proces­so de reflexão e amadurec­i­men­to do autor com o tex­to. E veja, estou dizen­do isso e me colo­can­do, tam­bém, como uma auto­ra nova. Porque min­ha relação com o tex­to está sem­pre inacaba­da, é um per­cur­so que me sin­to obri­ga­da a faz­er. E que não depende da legit­i­mação do out­ro. Pra ser bem hon­es­ta, toda vez que leio ou ouço alguém se referir a mim como “poeta”, sin­to um calafrio na espin­ha. Porque ten­ho medo do peso e da respon­s­abil­i­dade des­ta palavra. Pre­firo pen­sar que estou no entre-lugar da poesia.

    Lau Siqueira: Per­da de tem­po. Esse tipo de coisa a psi­canálise resolve. Cada poeta é abso­lu­ta­mente respon­sáv­el pela sua poe­sia. A pre­ocu­pação cen­tral do poeta (novo ou vel­ho) deve ser com a met­alur­gia da palavra. Escr­ev­er um poe­ma é uma ativi­dade muito difí­cil. Dividir essa pre­ocu­pação com a neces­si­dade de alpin­is­mo é a negação da própria poe­sia. Os prêmios não rep­re­sen­tam nada. Abso­lu­ta­mente nada. Os pre­fá­cios robus­tos aju­dam na ter­apia, mas não resolvem a cura. Matéria em jor­nal não rep­re­sen­ta nada, porque os jor­nal­is­tas não leem nem o próprio jor­nal que edi­tam, imag­ine livros de poe­sia. A “fama postiça” resolve ape­nas a neces­si­dade de afir­mação social de cer­tos poet­as, jovens de qual­quer idade.

    Marília Kub­o­ta: Vejo com pre­ocu­pação a ansiedade do poeta jovem em ser con­sagra­do ime­di­ata­mente. “Poeta bom é poeta mor­to” é um adá­gio que con­sidero váli­do para man­ter a autocríti­ca em alta. Flo­ra Sussekind escreveu, no ano de 2005, o arti­go “Hagiografias”, em que anal­isa­va a poe­sia de três autores da Poe­sia Mar­gin­al: Caca­so, Ana Cristi­na César e Paulo Lemins­ki, mor­tos e em vias de serem can­on­iza­dos. Dois seri­am sui­ci­das, ape­nas Caca­so mor­re­ria por fatores nat­u­rais, mas emped­ernido críti­co da ditadu­ra mil­i­tar. O que impor­ta hoje para o poeta – ou escritor – é o recon­hec­i­men­to críti­co antes que o autor encon­tre a voz poéti­ca. Para isto, vale tudo, des­de ser empreende­dor mambe­m­be até baju­lar novos edi­tores, críti­cos e out­ros poet­as. Há novos autores que declar­am não ter capaci­dade para comen­tar o tra­bal­ho de seus pares e se colo­cam à frente de sites que emu­lam revis­tas literárias. Para ser poeta é pre­ciso ter lido muito, e de for­ma vari­a­da, ou seja, lou­ca­mente. A leitu­ra fornece o sen­so críti­co para sep­a­rar o joio do tri­go. Ao recon­hecer que não têm sen­so críti­co, tais autores fazem auto­pro­pa­gan­da neg­a­ti­va: não têm leitu­ra sufi­ciente para se auto-avaliar, como poderão ser avali­a­dos por out­ros leitores ? Numa dis­cussão sobre os aten­ta­dos em Paris, lem­brei o final de “A mon­tan­ha mág­i­ca”, de Thomas Mann: “Será que tam­bém da fes­ta uni­ver­sal da morte, da per­ni­ciosa febre que ao nos­so redor infla­ma o céu des­ta noite chu­vosa, sur­girá um dia de amor?” Um autor que escre­va um tex­to como este não pre­cisa ser dis­tin­gui­do com um prêmio. O prêmio é sua lin­guagem ter atingi­do o mais alto nív­el de com­preen­são e beleza sobre a com­plex­i­dade da natureza humana.

    Quais são seus livros de cabe­ceira ? Há um autor que pode ser con­sid­er­a­do uma influên­cia literária?

    Vás­sia Sil­veira: Con­tin­uo me encon­tran­do e me des­en­con­tran­do no “Grande Sertão: Veredas”, no “Livro do Desas­sossego” e em “Água Viva”. E fun­da­men­tal­mente em um livrin­ho pequeno que gan­hei aos 15 anos de meu pai e que inclu­sive dei de pre­sente tam­bém para min­ha fil­ha mais vel­ha: o “Car­tas a um jovem poeta”, do Rilke. Então acho que pos­so diz­er que estes são meus livros de cabe­ceira. Sobre a influên­cia literária, é com­pli­ca­do… Não sei se pos­so apon­tar o nome de um autor ou auto­ra somente. Porque tudo o que me afe­ta pas­sa, de algu­ma maneira, a faz­er parte de min­has angús­tias em relação à escri­ta. O que pos­so diz­er é que min­ha aven­tu­ra como leito­ra foi mar­ca­da a fer­ro e fogo, e ain­da na ado­lescên­cia, por Dos­toievs­ki e pela poe­sia de Manuel Ban­deira, Muri­lo Mendes, Drum­mond… Eu não acharia nada ruim se pudesse escr­ev­er como eles ou como a Clarice, a Ana Cristi­na César, a Hilst.

    Lau Siqueira: Não sei se ten­ho livros de cabe­ceira. Mas, autores de cabe­ceira. Sem­pre leio Antônio Cân­di­do, Ezra Pound, João Alexan­dre Bar­bosa, Joan Brossa, Maiakovs­ki, Fer­nan­do Pes­soa, João Cabral, Augus­to de Cam­pos, Drum­mond e alguns poucos autores. Mis­turo poet­as e teóri­cos, mas ando lendo poucos romances. No entan­to, sou aber­to às influên­cias não ape­nas de poet­as, mas de músi­cos como Jards Macalé, Ita­mar Assunção, Chico Cesar, Zeca Baleiro e out­ros tantos.

    Marília Kub­o­ta: Con­sidero Manuel Ban­deira e Jorge de Lima os poet­as maiores do Brasil. Ten­ho lido tam­bém e apre­ci­a­do a obra de Muri­lo Mendes. Mas Paulo Hen­riques Brit­to e Arman­do Fre­itas Fil­ho são hoje nos­sos poet­as maiores. Me admi­ra quan­tos leitores ain­da se deix­am cati­var por Emi­ly Dick­in­son, auto­ra que cultuei na juven­tude, e Clarice Lispec­tor. Por com­pro­mis­sos profis­sion­ais leio mui­ta lit­er­atu­ra japone­sa, entre estes Banana Yoshi­mo­to e o best sell­er Haru­ki Muraka­mi, mas sei que a lit­er­atu­ra deles é bobagem. Gos­to dos tankas de Takuboku Ishikawa e Akiko Yosano, além dos qua­tro grandes mestres haicais­tas, Bashô, Buson, Issa e Shi­ki e de haicais­tas do Brasil, Nen­puku Sato, Masu­da Goga e Teruko Oda. E adoro a poe­sia pop­u­lar brasileira, a MPB: ouço de Chico Buar­que a Edval­do San­tana, Estrela e Téo Ruiz e os incríveis PoETs, a ban­da dos poet­as Alexan­dre Brito, Ricar­do Sil­vestrim e Ronald Augusto.

    estrevista-lau-siqueira-vassia-silveira-marilia-kubota-4
    Lau Siqueira

    O que faz­er com o cânone literário ? O cânone é uma refer­ên­cia para a obra de vocês ou estão na tur­ma do deixa isto pra lá?

    Vás­sia Sil­veira: A ideia de cânone me inco­mo­da quan­do pen­so que há, por trás dela, uma relação históri­ca de poder que pas­sa não só pela acad­e­mia e por aqui­lo que ela legit­i­ma como “alta lit­er­atu­ra”, mas tam­bém pelo olhar do oci­dente em relação ao ori­ente; ou da Europa em relação à África, Ásia e Améri­ca Lati­na. Por isso pre­firo pen­sar no que não faz­er com o cânone: ter uma pos­tu­ra ingênua frente a ele. Isso não sig­nifi­ca, de for­ma algu­ma, ignorá-lo (ou ignorá-los, já que o cânone é diver­so e mutáv­el). Porque seria mui­ta estu­pid­ez min­ha “deixar para lá” autores como Dos­toievs­ki, Tol­stói, Shake­speare, Goethe, Kaf­ka, Virgí­nia Woolf, Home­ro, Cer­vantes, Borges, Pound e Mal­lar­mé para falar de alguns estrangeiros que li e sin­to a neces­si­dade de rel­er; ou de Macha­do de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispec­tor, Gra­cil­iano Ramos, Oswald de Andrade, Harol­do de Cam­pos, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Muri­lo Mendes, Manuel Ban­deira. Enfim… Acho que é impor­tante lê-los com fome sufi­ciente para saber que há out­ras leituras inqui­etantes e não can­on­izadas. É pre­ciso desco­bri-las também.

    Lau Siqueira: Geral­mente isso tem mais a ver com políti­ca literária que com poe­sia. Eu vejo isso de for­ma muito lib­ertária. Não é assun­to que deva pre­ocu­par um poeta. Que os gen­erais da cena que deci­dam quem deve viv­er ou mor­rer. Não me inter­es­sa. Não per­co meu tem­po escol­hen­do fita métri­ca para saber quem é maior ou menor. Quan­do gos­to de um autor, não inter­es­sas se é con­sid­er­a­do canôni­co ou não.

    Marília Kub­o­ta: Ulti­ma­mente leio poucos autores canôni­cos. Gostaria de ler mais Shake­speare e lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa e france­sa. Mas ten­ho descober­to os autores de lín­gua por­tugue­sa, de Por­tu­gal e ex-colô­nias: Sara­m­a­go, Gonça­lo Tavares, Sophia de Mel­lo Breyn­er Andresen, Hel­ber­to Helder, Adília Lopes. Por isto me vêm a ideia de ler mais Camões, ape­sar de que quase todo bom autor em lín­gua por­tugue­sa difi­cil­mente deixará de sofr­er a influên­cia do autor de Os Lusíadas. Emb­o­ra não seja con­sid­er­a­do no cânone oci­den­tal, um pro­je­to meu é ler o Heike mono­gatari, clás­si­co que mar­ca a ascen­são do shogu­na­to no Japão.

    Como fica a questão da solidão cria­ti­va hoje, quan­do vive­mos numa sociedade hiperconectada?

    Vás­sia Sil­veira: A min­ha vai muito bem, obri­ga­da. Primeiro porque gos­to e pre­ciso da solidão. E segun­do porque sou lou­ca o bas­tante para me man­ter conec­ta­da com a min­ha própria vida, o que já rende matéria sufi­ciente para me tirar o sono, a fome e muitas vezes o riso. E quan­do falo da min­ha própria vida não estou me referindo às mis­érias cotid­i­anas da Vás­sia enquan­to mãe, mul­her, fil­ha. Mas das angús­tias da Vás­sia enquan­to ser, estar e ver o mun­do. Isso sig­nifi­ca, por exem­p­lo, que você não vai me encon­trar, na rua ou no ônibus, com os olhos pre­ga­dos a uma tela, porque ten­ho o pés­si­mo hábito de obser­var as pais­agens, as pes­soas, aque­la “vida besta” que fala­va Drum­mond. Então, para mim, a hiper­conec­tivi­dade é uma grande farsa, uma distração.

    Lau Siqueira: A solidão, hoje, é cole­ti­va. Exerci­ta­mos nos­sa solidão nas redes soci­ais sem nen­hum pudor. Meu últi­mo livro, o Livro arbítrio, foi inte­gral­mente escrito no Face­book. É fru­to de uma solidão com­par­til­ha­da, cur­ti­da e comen­ta­da. Esta­mos viven­do no sécu­lo XXI e não no sécu­lo XIX. Na solidão do sécu­lo XIX não tin­ha Wi-fi.

    Marília Kub­o­ta: Ten­ho neces­si­dade de solidão para cri­ar. Quan­do estou em casa, em Curiti­ba, pas­so quase a maior parte do tem­po a sós, lendo ou escreven­do. Através da inter­net con­si­go con­ver­sar com par­ceiros para pro­duzir pro­je­tos ou even­tos literários. Por força de com­pro­mis­sos profis­sion­ais e famil­iares, ten­ho menos momen­tos de solidão do que gostaria. Muitos falam que o autor deve se iso­lar para escr­ev­er – ir para a pra­ia, fora de tem­po­ra­da, ou a algum lugar dis­tante. Gostaria de poder faz­er isto, mas é quase impos­sív­el. Se eu fos­se para um paraí­so ecológi­co ou uma aldeia, duvi­do que ficas­se desconectada.

    Vocês moram em cidades peque­nas. Acham que não é necessário morar no eixo Rio-São Paulo para pro­je­tar suas obras?

    Vás­sia Sil­veira: Bem, acho que temos exem­p­los recentes provan­do que não…

    Lau Siqueira: No eixo-Rio/Sam­pa pre­dom­i­nam as per­ife­rias, onde a sobre­vivên­cia se assemel­ha às peque­nas cidades onde moramos. O país foi con­stru­in­do novas refer­ên­cias, sem que se faça necessário bus­car um “cen­tro de pro­jeção”. No mais, pra que pro­jeção? Vamos viven­do o que nos cabe.

    Marília Kub­o­ta: Com a sociedade con­ste­la­da cri­a­da pela conexão por satélite, não parece mais necessário morar em metrópoles, como Rio e São Paulo. Mas o eixo cul­tur­al con­tin­ua sendo as duas cidades, no Brasil. Se você é artista, não pode deixar de mostrar seu tra­bal­ho no Rio e em São Paulo para se pro­je­tar nacional­mente. Mas não é pre­ciso mais morar e tra­bal­har nes­tas cidades.

    A questão social em poe­sia é ultra­pas­sa­da ? Poe­sia enga­ja­da é sem­pre pan­fletária? Como vê a apoli­ti­za­ção de parte dos poet­as con­tem­porâ­neos, que optam por um ativis­mo sele­ti­vo — em relação a questões étni­cas ou de gênero, ou à ecolo­gia, por exem­p­lo, deixan­do de se posi­cionar sobre grandes questões da humanidade, como as guer­ras e a políti­ca nacional e internacional?

    Vás­sia Sil­veira: Não acho que seja ultra­pas­sa­da e tam­bém não gos­to de rotu­lar como “pan­fletária” a poe­sia enga­ja­da. Sin­to inve­ja dos autores que con­seguiram ou con­seguem levar para a poe­sia, e de for­ma clara, as grandes questões de seu tem­po. Ten­ho con­sciên­cia de que não con­si­go faz­er isso, pelo menos não ain­da. Sou lenta, demoro a proces­sar aqui­lo que me impacta, o que faz com que eu facil­mente seja encaix­a­da nesse per­fil que você traçou e criti­cou na últi­ma per­gun­ta. Acho mais fácil, por exem­p­lo, me posi­cionar de for­ma inci­si­va em relação a questões étni­cas e/ou de gênero porque tive mais tem­po para digerir a vio­lên­cia embu­ti­da nelas. E não por ser apolíti­ca, muito menos por não me inter­es­sarem as guer­ras civis, o dra­ma dos refu­gia­dos, o fun­da­men­tal­is­mo, o ódio ao PT, as manobras da políti­ca inter­na­cional e seus des­do­bra­men­tos na Améri­ca Lati­na, na África ou na Ásia. Essas são questões que me afligem e sobre as quais procuro refle­tir e me posi­cionar em out­ras instân­cias. Ago­ra veja, estou falan­do de min­ha exper­iên­cia. Não pos­so respon­der pelo silên­cio dos outros.

    Lau Siqueira: A poe­sia tran­si­ta livre­mente pelo tem­po. Em qual­quer tem­po. As temáti­cas escol­hi­das não alter­am o pro­du­to final do poe­ma. Nen­hu­ma questão social ou políti­ca é ultra­pas­sa­da. Na ver­dade são questões desafi­ado­ras para a usi­na cria­ti­va de cada um. Cada qual sabe por onde cam­in­ha, mas existe até mes­mo um cer­to pre­con­ceito quan­to às escol­has temáti­cas desse tipo, o que eu acho uma bobagem. A matéria da poe­sia é a palavra. O resto é cenário.

    Marília Kub­o­ta: A sociedade con­ste­la­da facil­i­tou a seg­men­tação e for­t­ale­ceu a iden­ti­dade cole­ti­va. Stu­art Hall fala sobre as iden­ti­dades móveis, em que o indi­ví­duo aban­dona a iden­ti­dade com a nação e o ter­ritório, bus­can­do out­ro tipo de sub­je­tivi­dade, nômade. Durante muito tem­po me iden­ti­fiquei como nipo-brasileira até perce­ber que a hif­eniza­ção não faz sen­ti­do: sou brasileira. Mas a aceitação de um biótipo difer­ente do europeu ain­da está em proces­so na sociedade brasileira. A luta das mino­rias soci­ais, dos imi­grantes, das fem­i­nistas, dos negros, dos homos­sex­u­ais, emb­o­ra pareça assim­i­la­da, ain­da está em processo.

    Acho impor­tante dis­cu­tir estas questões, porque em tem­pos de recrude­sci­men­to políti­co, tais mino­rias são as primeiras a serem social­mente rechaçadas. Creio que o poeta jamais abstém-se de ter uma posição políti­ca. Eu me recu­sei a faz­er parte de duas antolo­gias patroci­nadas pelo gov­er­no do Esta­do do Paraná. Uma de con­tos, orga­ni­za­da pelo escritor Luiz Ruf­fat­to, e out­ra de poe­sia, orga­ni­za­da por Ademir Demarchi. Foi numa época em que o gov­er­no fechou vários espaços cul­tur­ais em Curiti­ba, can­celou ver­bas para pro­je­tos cul­tur­ais no esta­do e apro­pri­ou-se dos dire­itos autorais dos colab­o­radores do JORNAL NICOLAU, para faz­er uma edição fac-sim­i­lar, que até hoje está à ven­da. O NICOLAU, cri­a­do por uma equipe coman­da­da pelo artista grá­fi­co Luis Antônio Guin­s­ki e pelo poeta Wil­son Bueno fez história na cul­tura do Paraná e do Brasil. A recusa foi um protesto con­tra os des­man­dos deste gov­er­no, que cul­mi­nou no episó­dio de 29 de abril, o Mas­sacre do Cen­tro Cívi­co. Na época em que come­cei a denun­ciar os abu­sos do gov­er­no do Paraná nas redes soci­ais, muitos me adver­ti­ram para ficar cal­a­da. Nun­ca con­segui ficar cal­a­da, por isto jamais rece­bi indi­cações para par­tic­i­par de even­tos literários, mas os cole­gas mais dóceis rece­ber­am. Declinei de par­tic­i­par da antolo­gia “O ver­so da vio­lên­cia”, pub­li­ca­do pela Edi­to­ra Patuá. Emb­o­ra tra­ga reg­istros impor­tantes, feitos pelos fotó­grafos Lina Faria e Bruno Cov­el­lo, me pare­ceu que a pub­li­cação da antolo­gia não faria difer­ença na oposição a este gov­er­no arbi­trário, no qual muitos se aproveitam para pro­mover inter­ess­es pes­soais através da máquina pública.

  • O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    O valor da humanidade em Antonio Skármeta

    Cena do filme 'O Carteiro e o poeta'
    Cena do filme ‘O Carteiro e o poeta’

    Em relação aos que viram o filme ‘O carteiro e o poeta’, poucos terão lido ‘Ardi­ente pacien­cia’ escrito pelo chileno Anto­nio Skármeta em 1985, e adap­ta­do para o cin­e­ma em 1994. Mas muitos lem­brarão o per­son­agem Mario Rup­po­lo, o carteiro que que­ria apren­der a escr­ev­er poe­mas com Pablo Neru­da, a quem entre­ga­va car­tas em Isla Negra, onde o poeta se exilou por razões políti­cas. Quan­do Neru­da vai emb­o­ra, Mario se casa e pas­sa a ter uma pro­fun­da con­sciên­cia social. Com saudades do poeta, gra­va os sons do mar e a bati­da do coração do fil­ho no ven­tre da esposa grávi­da e os envia ao céle­bre interlocutor.

    Em várias entre­vis­tas, Skármeta con­ta um episó­dio saboroso sobre o per­son­agem. Logo depois de rece­ber indi­cações ao Oscar, frus­trou uma jor­nal­ista de uma grande rede de tevê amer­i­cana, que o procurou para que a lev­asse até o ami­go de Neru­da. O escritor rev­el­ou que o carteiro era fru­to de sua imaginação.

    Pablo Neruda, Antonio Skármeta e Juan Rulfo (Foto: Sara Facio)
    Pablo Neru­da, Anto­nio Skármeta e Juan Rul­fo (Foto: Sara Facio)

    O chileno foi grande ami­go de Pablo Neru­da. Mas a faís­ca para a cri­ação de Mario pode ter sido dis­para­da num encon­tro com o escritor argenti­no Julio Cortázar, em Manágua. Ambos estavam lá para cel­e­brar a vitória dos san­din­istas, con­vo­ca­dos por Ernesto Car­de­nal. Apare­ceu  um carteiro, com um telegra­ma para Cortázar. Skármeta indi­cou o escritor, ao lado de um poste. O escritor mex­i­cano Augus­to Mon­ter­roso per­gun­tou: “Quem é o poste e quem é Julio?

    A poe­sia tem sido a peça de resistên­cia, ao lon­go da obra de Skármeta. O liris­mo é um recur­so literário estratégi­co, usa­do para tratar questões espin­hosas, como a repressão políti­ca e o exílio. Assim é de ‘Ardente Paciên­cia’, ‘Não foi nada’ (No pasó nada, 1980) e ‘A insur­reição’ (La insur­ren­ción, 1985), os três pub­li­ca­dos no Brasil, a ‘Los dias de arco Iris’, (2011). As nov­e­las relatam parte da história recente do Chile, des­de o golpe de Augus­to Pinochet, que der­rubou o social­ista Sal­vador Allende, em 1973, ao proces­so de rede­moc­ra­ti­za­ção, em 1990. O escritor se vale de per­son­agens secundários, em ger­al jovens ou nasci­dos nas camadas pop­u­lares, para relatar dra­mas vivi­dos por pro­tag­o­nistas em protestos con­tra regimes de exceção.

    A obra de Skármeta cruza-se com a sua biografia. O escritor estu­dou Filosofia na Uni­ver­si­dade do Chile, ori­en­ta­do pelo filó­so­fo alemão Fran­cis­co Sol­er Gri­ma, dis­cípu­lo de Julián Marías e José Orte­ga y Gas­set. Ain­da na uni­ver­si­dade, atu­ou como dire­tor de teatro e mon­tou obras de Calderón de la Bar­ca, Gar­cía Lor­ca, William Saroy­an e Edward Albee. Gan­hou con­cur­sos literários nos jor­nais La Nación e El Sur. Traduz­iu Her­mann Melville, Jack Ker­ouac, Scott Fitzger­ald e Nor­man Mail­er.

    Antonio Skármeta
    Anto­nio Skármeta

    Em 1969, rece­beu o Prêmio ‘Casa de las Améri­c­as’ por ‘Desnudo en el teja­do’. Já havia pro­duzi­do um filme sobre o Movi­men­to de ação pop­u­lar e Unitária (MAPU), do qual era mem­bro. Incor­porou, mais tarde, a história à nov­ela ‘La insur­rec­ción’. Com o golpe mil­i­tar no Chile, exilou-se em Berlim, onde se dedi­cou ao cin­e­ma. Aí escreveu ‘O carteiro e o poeta’, primeiro para a rádio alemã e depois para o mun­do. Em 1989, voltou ao Chile, depois de 16 anos. Criou um pro­gra­ma de tele­visão chama­do ‘O show dos livros’.

    valor-humanidade-antonio-skarmeta-5Em 1994, estre­ou no cin­e­ma a segun­da ver­são de ‘O Carteiro e O Poeta’, com o títu­lo ‘El cartero de Neru­da’. O filme, dirigi­do por Michael Rad­ford e estre­la­do por Mas­si­mo Troisi, teve cin­co indi­cações ao Oscar. A par­tir daí, Skármeta pas­sou a ser recon­heci­do mundial­mente e rece­beu vários prêmios literários por suas obras: ‘Prêmio Inter­na­cional de Lit­er­atu­ra Bocac­cio’ (1996), por ‘No pasó nada’, ‘Pre­mio Alta­zor’ (1999), por ‘La boda del poeta’, e o ‘Grin­zane Cavour’, em 2003. Em 2006, rece­beu o ‘Pre­mio Inter­nazionale Ennio Fla­iano’ pelo “val­or cul­tur­al e artís­ti­co de sua obra”, em par­tic­u­lar pelo romance ‘El baile de la Vic­to­ria’.

    Se a maior parte dos escritores con­tem­porâ­neos se ren­dem à sedução neolib­er­al, pul­ver­izan­do sua obra no entreten­i­men­to para camadas médias, Skármeta resiste, fundin­do ficção e memória históri­ca. Utópi­co, o escritor crê na função social da arte: ’em momen­tos árdu­os da vida de um país, cel­e­brar a imag­i­nação do artista, que com­bi­na­da com a força da gente ati­va, pode pro­duzir mudanças lib­ertárias na sociedade’, afir­ma em entre­vista em 2011, pub­li­ca­da em seu site oficial.

    Além de ‘O carteiro e o poeta’, muitas nov­e­las suas foram adap­tadas para out­ras lin­gua­gens artís­ti­cas. ‘Ardi­ente Pacien­cia’ virou filme e ópera, can­ta­da por Plá­ci­do Domin­go, em Los Ange­les e um musi­cal inter­pre­ta­do pela Orques­tra Sin­fôni­ca de Lon­dres. ‘El plebisc­i­to’, orig­i­nal­mente tex­to para o teatro, com mon­tagem frustra­da em 2008, foi remon­ta­do na nov­ela ‘Los dias del arco iris’. A nar­ra­ti­va ‘Un padre de pelic­u­la’, que tem à frente um jovem que sente a fal­ta de seu pai, um francês que voltou a seu país, começa a ser fil­ma­do em 2015, pelo dire­tor e ator brasileiro Sel­ton Mel­lo.

    Sipho Sepamla e Antonio Skarmeta (1981)
    Sipho Sep­am­la e Anto­nio Skarmeta (1981)

    Uma car­ac­terís­ti­ca de suas obras são os per­son­agens de ape­lo pop­u­lar: pes­soas humildes, jovens tími­dos e tristes, pros­ti­tu­tas. Ess­es per­son­agens sofrem uma bru­tal trans­for­mação em suas vidas ao entrar em con­ta­to com o mun­do da alta cul­tura. A fricção entre a espon­tanei­dade da cul­tura pop­u­lar e as pro­fun­di­dade do con­hec­i­men­to eru­di­to aca­ba crian­do fig­uras trans­bor­dantes de humanidade, palpáveis como as que encon­tramos no cotidiano.

    Cri­ar ess­es tipos parece ter sido uma lição que Skármeta apren­deu do teatro e do cin­e­ma, para atrair o leitor médio. Graças à for­mação int­elec­tu­al e políti­ca, o escritor agra­da tam­bém o leitor exi­gente, ambi­en­tan­do sua ficção em con­tex­to históri­co. O encon­tro entre per­son­agens da baixa e da alta cul­tura põe em movi­men­to a ideia de que a lit­er­atu­ra pode trans­for­mar a real­i­dade através da edu­cação. Edu­car, nesse caso, é levar o leitor à con­sciên­cia social e à descober­ta da poe­sia, através da iden­ti­fi­cação com os per­son­agens mais ingênuos.

  • Olhar por trás de estantes

    Olhar por trás de estantes

    Biblioteca de Leminski, fotografada sem produção prévia. Foto : Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira).
    Bib­liote­ca de Lemins­ki, fotografa­da sem pro­dução prévia.
    Foto : Car­los Rober­to Zanel­lo de Aguiar (Macax­eira).

    Des­de ado­les­cente fre­quen­to bib­liote­cas públi­cas. Quan­do cri­ança, não. Nas esco­las em que estudei, em Paranaguá, não havia bib­liote­cas. Uma vez, uma pro­fes­so­ra inven­tou uma bib­liote­ca ambu­lante. Cada aluno dev­e­ria levar um livro. Não fun­cio­nou. Ninguém lev­ou livros. Quan­do mudei para Curiti­ba, pas­sa­va um tem­pão passe­an­do pelos corre­dores da Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Min­has estantes preferi­das eram as de lit­er­atu­ra brasileira e poe­sia. Tam­bém pas­sei quase cem anos de solidão e areia diante da lit­er­atu­ra em lín­gua espan­ho­la, quan­do desco­bri Gabriel Gar­cia Márquez e Jorge Luis Borges.

    Uma bib­liote­ca que sem­pre me fas­ci­nou foi a da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, quan­do ain­da não era alu­na. A diver­si­dade de títu­los, e em lín­guas difer­entes impres­sion­a­va. Lem­bro do encan­to por um livro de Luís da Câmara Cas­cu­do sobre lendas brasileiras. Quan­do me tornei alu­na, pude emprestar um livro de poe­mas de Manuel Ban­deira traduzi­dos para o francês. Mais tarde, na pós-grad­u­ação, li livros sobre lit­er­atu­ra japonesa.

    Out­ra bib­liote­ca que gostei de con­hecer foi a do Insti­tu­to Goethe. Fre­quentei pouco, mas quan­do a con­heci, era uma novi­dade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, vis­itei bib­liote­cas que tam­bém tin­ham seções mul­ti­mí­dia. E nas quais pas­sa­va horas lendo revis­tas sobre todo o tipo de assunto.

    Nesse ano con­heci a bib­liote­ca do Insti­tu­to de Estad­ual de Edu­cação Eras­mo Pilot­to, esco­la na qual Hele­na Kolody foi pro­fes­so­ra. Uma ami­ga, a poeta Jane Sprenger Bod­nar, tra­bal­ha lá. O acer­vo, emb­o­ra seja uma bib­liote­ca esco­lar, é diver­si­fi­ca­do. Além de lit­er­atu­ra e edu­cação, há livros sobre cul­tura pop­u­lar. Pena que pre­cise de refor­mas e não rece­ba atenção do gov­er­no do estado.

    Biblioteca Pública do Paraná (Foto: Yasmin Taketani)
    Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná (Foto: Yas­min Taketani)

    Ape­sar de ter sido reestru­tu­ra­da, espe­cial­mente na área de comu­ni­cação visu­al, hoje ten­ho medo de voltar à Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Lit­er­atu­ra que me inter­es­savam. Há poucos títu­los novos. Con­fes­so que ler os autores da lit­er­atu­ra con­tem­porânea, cel­e­bra­dos em even­tos pro­movi­dos pela própria BPP me atemoriza.

    Não con­si­go mais exercer o rit­u­al juve­nil, de aven­tu­rar entre as estantes para desco­brir um livro estran­ho. Falan­do em estran­heza, tem­pos atrás havia leitores bizarros entre os fre­quen­ta­dores da BPP. Escritores, artis­tas, design­ers, jor­nal­is­tas? Não: sem-teto ou desem­pre­ga­dos, enfur­na­dos nas salas de leitu­ra. A neolib­er­al­iza­ção do lugar expul­sou os bizarros, que devem ter volta­do para o seu lugar: as ruas.

    Cer­ta vez, num pro­gra­ma de tevê, vi a bib­liote­ca da pro­fes­so­ra de lit­er­atu­ra Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em des­or­dem e as estantes roí­das por cupins. Des­or­dem igual às das bib­liote­cas do poeta Paulo Lemins­ki e do ilustrador Clau­dio Seto. Nem tudo está con­forme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que impor­ta é ali­men­tar os ratos de bib­liote­ca. Em tem­po de bien­ais e grandes even­tos de lit­er­atu­ra, bib­liote­cas cheias de poeira são um refú­gio con­tra os que cobrem a história com verniz.

  • Um homem que escreve jamais está só

    Um homem que escreve jamais está só

    Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e Jamil Snege
    Valên­cio Xavier, Manoel Car­los Karam e Jamil Snege

    Quem escreve con­to ou poe­sia pre­de­ter­mi­na que não terá públi­co em mas­sa. Con­to e poe­sia são gêneros des­ti­na­dos a um públi­co fora do alvo do mer­ca­do edi­to­r­i­al. Uma ex-jor­nal­ista que tra­bal­ha no mer­ca­do adverte: se quis­er entrar, o can­dida­to a escritor tem que escr­ev­er romance. Autores pub­li­ca­dos por grandes edi­toras são romancis­tas. Exceção, os con­sagra­dos ao lon­go do tem­po. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.

    Valên­cio Xavier, Jamil Snege, Manoel Car­los Karam, Wil­son Bueno talvez sejam daque­le tipo de autores que jamais atin­jam o grande públi­co. O “grande públi­co”, essa enti­dade fan­tás­ti­ca que lê “50 tons de cin­za”, “O diário de um mago”, “Har­ry Pot­ter” e é visa­do pelo mer­ca­do, nem sem­pre se inter­es­sa por boa lit­er­atu­ra. Assim, se pri­va de ler, além dos já cita­dos, Nel­son de Oliveira, Luiz Ruffa­to, Ricar­do Lísias e J.M. Coet­zee. E, claro, nem quer saber de poe­sia. A não ser que o poeta se torne um fenô­meno com­er­cial, como Paulo Lemins­ki. O grande públi­co seguirá igno­ran­do as obras de Alice Ruiz, Paulo Hen­riques Brit­to, Adília Lopes, Miche­liny Verun­schk. Lerá, quan­do muito, Manoel de Bar­ros.

    Wilson Bueno, Nelson de Oliveira e Luiz Ruffato
    Wil­son Bueno, Nel­son de Oliveira e Luiz Ruffato

    Recon­heci­do pela críti­ca, Valên­cio mor­reu “esque­ci­do” . Tão esque­ci­do que nem sabia mais diz­er seu nome. Em vida, Valên­cio era esque­ci­do. Pela man­hã tele­fon­a­va aos ami­gos para con­tar casos que repe­tiria à noite, quan­do os encon­trasse. Era o iní­cio do “Alemão”. A doença não cor­tou a verve cria­ti­va e per­maneceu lúci­do. A frase der­radeira do últi­mo livro, “Rre­men­branças da meni­na de rua mor­ta nua e out­ros livros”, pub­li­ca­do em 2006 é: “Estou mor­to.” Valên­cio, ele mes­mo, era seu per­son­agem. Seguiu estri­ta­mente o con­sel­ho de Roland Barthes que dizia: “tra­bal­he enquan­to hou­ver sol.” A luz da razão per­maneceu até o lim­ite da lucidez.

    Há alguns anos, Daniel Fil­ho lançou uma biografia inti­t­u­la­da “Antes que me esqueçam”. Atores globais e out­ras cele­bri­dades lançam biografias e livros para não serem esque­ci­dos. O livro, obje­to mis­te­rioso numa cul­tura midiáti­ca audio­vi­su­al, é um amule­to que asse­gu­rará a imor­tal­i­dade dos tementes do Juí­zo da Eternidade. É fácil pre­v­er que, à parte sua neces­si­dade de ser irra­di­a­da pelo públi­co, em pouco tem­po essas cele­bri­dades serão esquecidas.

    Ricardo Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee
    Ricar­do Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee

    Na Antigu­idade, os reis não podi­am ser vis­tos pelo povo, nas tri­bos prim­i­ti­vas. Como eram con­sid­er­a­dos deuses, não podi­am tocar o solo impuro, toca­do por todos. Eram lhes atribuí­dos poderes de con­tro­lar as forças da natureza e pro­por­cionar boas col­heitas na agri­cul­tura. Mas seus poderes só se man­tinham intac­tos longe do povo. Assim, criou-se o vín­cu­lo entre objetos/entidades sagra­dos e sua ocul­tação ou vela­men­to públi­co. Aparente­mente, a era da repro­dução instan­tânea inver­teu o par­a­dig­ma. Ago­ra, o que deve ser cul­tua­do têm que ser superexposto.

    Michelliny Verunschk, Paulo Henriques Brito e Adília Lopes
    Michelliny Verun­schk, Paulo Hen­riques Brito e Adília Lopes

    Um pas­so para além da neces­si­dade de pub­li­ci­dade, o val­or do obje­to artís­ti­co per­manece igual ao de ger­ações pas­sadas. A memória humana não é preser­va­da nos obje­tos que seduzem instan­ta­nea­mente. Mas naque­les em que se percebe o val­or do tra­bal­ho e da luta pela preser­vação da humanidade. No caso da lit­er­atu­ra, o tra­bal­ho com a lin­guagem e a lín­gua: novas per­cepções, conexões, saltos cria­tivos. Por isso, escritores como Valên­cio Xavier não são esque­ci­dos. O sol bril­hou em seu sig­no astral, até sua luz sumir no hor­i­zonte. Esse tími­do raio de sol será vis­to por anos.

  • O LOTR Project, de Emil Johansson

    O LOTR Project, de Emil Johansson

    Capas dos livros da Edi­to­ra Mar­tins Fontes

    Emil Johans­son era uma cri­ança que gosta­va muito de ler e foi bas­tante incen­ti­va­do pela sua mãe para isso. Um dia, ela fez questão de falar para o fil­ho que talvez O Sen­hor dos Anéis (Edi­to­ra Mar­tins Fontes) fos­se muito difí­cil para ele ler. E adi­v­in­ha o que acon­te­ceu? Ele leu os livros e adorou! E não parou por aí, foi ler O Sil­mar­il­lion (Edi­to­ra Mar­tins Fontes) tam­bém para saber mais sobre a Ter­ra Média. Sem se dar con­ta, começou a mon­tar peque­nas árvores genealóg­i­cas dos per­son­agens para con­seguir enten­der mel­hor as histórias desse mun­do fan­tás­ti­co, prin­ci­pal­mente porque Tolkien cri­a­va muitos per­son­agens e eles tin­ham nomes extrema­mente incomuns.

    De pequenos ras­cun­hos foi para papéis gigantes e essa tare­fa virou uma obsessão. Decid­iu que para não ficar muito con­fu­so e poder orga­ni­zar mel­hor tudo, iria mon­tar uma planil­ha no Excel com esse desen­ho. Depois de pronta, que­ria com­par­til­há-la e a envi­ou para um site pub­licar, mas ela foi rejeita­da pois havia muitos furos e erros, mas provavel­mente tam­bém porque era feia demais. Total­mente dev­as­ta­do por essa respos­ta, Emil desis­tiu de con­tin­uar com o pro­je­to. Só reto­mou nova­mente com a ideia durante a uni­ver­si­dade, após con­tar esse seu seg­re­do obscuro para um ami­go que o incen­tivou a ele mes­mo divul­gar na inter­net esse pro­je­to. E assim, não só voltou a ali­men­tar nova­mente essa paixão como tam­bém achou um óti­mo meio para poder fugir dos estu­dos, algo que alme­ja­va muito.

    LOTR Project - planilha
    Planil­ha em Excel cri­a­da por Emil

    Emil ini­cial­mente procurou um soft­ware que o aju­dasse a cri­ar a árvore genealóg­i­ca para pub­licar na web, mas não encon­trou nada que pudesse faz­er aqui­lo que que­ria, então sim­ples­mente decid­iu que ele iria cri­ar um pro­gra­ma para isso. Mas ele não tin­ha qual­quer con­hec­i­men­to em pro­gra­mação e esta­va cur­san­do Engen­haria Quími­ca na Chalmers Uni­ver­si­ty of Tech­nol­o­gy na Suíça, área que provavel­mente não iria o aju­dar muito com isso. Mas ele era um usuário assí­duo do Google e isso foi o sufi­ciente para que apren­desse todos os códi­gos necessários para con­stru­ir sua ideia. Para que ficas­se mais fácil de atu­alizar as infor­mações, ele criou um ban­co de dados com todos os nomes dos per­son­agens e as suas relações. O pro­je­to final­mente entrou no ar em janeiro de 2012 sob o nome LOTR Project (LOTR é a sigla para Lord of the Rings), que traduzi­do lit­eral­mente ficaria Pro­je­to SDA.

    Árvore Genealógica no site com informações sobre cada personagem
    Árvore Genealóg­i­ca no site com infor­mações sobre cada personagem

    O site logo fez bas­tante suces­so não só entre os fãs da Ter­ra Média, mas tam­bém da mídia, onde foram pub­li­cadas matérias em vários jor­nais grandes como Wired, Time Mag­a­zine, The Guardian e Huff­in­g­ton Post, onde o últi­mo deles inclu­sive o chamou de “King Geek” (algo como o rei dos nerds). Além dis­so, ele tam­bém rece­beu e‑mails de pro­fes­sores que que­ri­am usar a árvore genealóg­i­ca nas aulas e tam­bém um curioso pedi­do de um hotel que que­ria colocá-la em sua parede. Tudo isso foram mais do que bons incen­tivos para ele con­tin­uar investin­do no projeto.

    A par­tir daí o LOTR Project tam­bém pas­sou a ter, com a aju­da de colab­o­radores, vários out­ros tipos de infor­mações inter­es­santes, como um mapa inter­a­ti­vo, dois aplica­tivos para Android, uma coletânea de info­grá­fi­cos e várias out­ras coisas legais. Se você quis­er, há uma pági­na com a lista de todos os pro­je­tos den­tro do site, um ver­dadeiro tesouro para os fãs e tam­bém para design­ers e até pro­gra­madores web que queiram ver coisas mais difer­entes feitas para a inter­net. Aos poucos Emil está inserindo no ban­co de dados infor­mações como data de nasci­men­to e morte dos per­son­agens. No futuro gostaria de que os vis­i­tantes pudessem ter total con­t­role de como a árvore é exibi­da e tam­bém con­seguir desco­brir novas estatís­ti­cas inter­es­santes sobre a pop­u­lação deste mun­do. Recen­te­mente ele adi­cio­nou dados do O Hob­bit (Edi­to­ra Mar­tins Fontes), inclu­sive com algu­mas infor­mações e info­grá­fi­cos inter­es­santes sobre o filme O Hob­bit — Uma Jor­na­da Ines­per­a­da (2012), que foi dirigi­do por Peter Jack­son, que tam­bém adap­tou a trilo­gia original.

    Evolução da avaliação e do número de votos do filme O Hobbit no IMDB
    Evolução da avali­ação e do número de votos do filme O Hob­bit no IMDB

    Um dia, ele teve a ideia de que seria legal cri­ar uma lin­ha do tem­po e colocá-la ao lado de um mapa, para que fos­se pos­sív­el ver de uma maneira inter­a­ti­va em qual local acon­te­ceu cada um dos even­tos que estavam na lin­ha do tem­po. Ini­cial­mente não achou que fos­se faz­er muito suces­so, mas para sua sur­pre­sa aparente­mente aqui­lo era algo novo, chama­do de geospa­tial time­line (algo como: lin­ha do tem­po geoe­s­pa­cial), e teve um retorno imen­so dos vis­i­tantes. Não só por con­ta de que essa fun­cional­i­dade era muito legal, mas tam­bém porque muitos web design­ers que­ri­am saber como ele havia feito aqui­lo! Out­ras pes­soas tam­bém começaram a sug­erir que ele dev­e­ria explo­rar mais essa ideia. Então Emil criou um ras­cun­ho uti­lizan­do o mes­mo sis­tema como base, só que com um mapa mún­di e alguns even­tos da Segun­da Guer­ra Mundi­al e mostrou essa ideia no final da sua apre­sen­tação no TEDxGöte­borg em out­ubro de 2012.

    "geospatial timeline" do livro com o mapa na direito mostrando onde ocorreu o evento selecinado a esquerda
    “geospa­tial time­line” com o mapa na dire­i­ta mostran­do onde ocor­reu o even­to sele­ciona­do à esquerda

    Em um even­to tão grande como foi a Segun­da Guer­ra Mundi­al, provavel­mente há muitos padrões e fatos que pode­ri­am ser apren­di­dos, mas são jus­ta­mente per­di­dos por causa dessa avalanche de dados que temos sobre ela. Uma apli­cação deste tipo pode­ria não só tornar as infor­mações sobre vários acon­tec­i­men­tos, globais ou locais, mais acessíveis para pes­soas comuns que gostari­am de apren­der mais, mas tam­bém aju­dar a desco­brir lig­ações talvez nun­ca imag­i­nadas antes. Pense só nas mil­hares de pos­si­bil­i­dades que um pro­je­to assim pode­ria cri­ar. Tudo isso porque alguém decid­iu seguir uma paixão por um mun­do fic­cional onde vivem hob­bits, elfos e out­ras criat­uras mágicas.

    Rascunho da "geospatial timeline" com dados da Segunda Guerra Mundial
    Ras­cun­ho da “geospa­tial time­line” com dados da Segun­da Guer­ra Mundial

    Evil con­ta que este pro­je­to foi, usan­do um ter­mo da área dele, um catal­isador de cria­tivi­dade, que fez sur­gir várias coisas que ele nem mes­mo sabia que exis­tia e de cer­ta maneira o fez achar a feli­ci­dade, pois ele ado­ra cri­ar. Vive­mos em uma cul­tura onde é muito incen­ti­va­do que você faça coisas que ten­ham um impacto na sua car­reira, tudo deve estar volta­do a isso. O LOTR Project não tem impacto dire­to na car­reira dele e ele enco­ra­ja as pes­soas a jus­ta­mente faz­erem algo só porque é diver­tido, porque há paixão naquilo.

    Emil Johansson
    Emil Johans­son

    Esse pen­sa­men­to é muito pare­ci­do com a ideia da trans­dis­ci­pli­nar­i­dade, que visa a unidade do con­hec­i­men­to em oposição a atu­al divisão carte­siana do mes­mo em várias áreas difer­entes. Por que um engen­heiro quími­co não pode­ria tam­bém ser pro­gra­mador, web design­er e fotó­grafo ao mes­mo tem­po? Bem, Emil Johans­son é isso tudo! Toda essa paixão dele, me lem­bra uma frase do Rober­to Freire que gos­to muito, que resume muito bem isso: “sem tesão não há solução”. Então, o que você está fazen­do como pro­je­to para­le­lo a sua profis­são ou estu­do acadêmico?

  • A Origem dos Guardiões | Crítica

    A Origem dos Guardiões | Crítica

    Na época de fim de ano sem­pre começam a pipocar no cin­e­ma filmes infan­tis com temas natal­i­nos, focan­do-se prin­ci­pal­mente na figu­ra do Papai Noel e suas aven­turas para entre­gar os pre­sentes e traz­er ale­gria para as cri­anças. No últi­mo Natal, a Dream­Works decid­iu faz­er algo um pouco difer­ente do usu­al e lançou a ani­mação A Origem dos Guardiões (Rise of the Guardians, EUA, 2012), dirigi­do pelo estre­ante Peter Ram­sey, onde não só temos o bom vel­hin­ho todo tat­u­a­do e com um sotaque rus­so, mas tam­bém todo um grupo de out­ros per­son­agens lendários como a Fada do Dentes, o Coel­ho da Pás­coa, Sand­man, Jack Frost e o Bicho-Papão.

    Aqui no Brasil algu­mas pes­soas já devem ter ouvi­do falar de Sand­man através do seu nome pop­u­lar de João Pes­tana ou, para quem curte quadrin­hos, da série homôn­i­ma do autor Neil Gaiman. Mas o grande descon­heci­do, que aliás é o per­son­agem prin­ci­pal do filme, é Jack Frost, a per­son­ifi­cação e o espíri­to do frio e do inver­no, respon­sáv­el pela neve e por aque­les cristais de gelo em vidros. Bem, acho que não pre­cisa explicar o porque dele não ser con­heci­do por aqui. Todos ess­es per­son­agens foram basea­d­os na ver­são amer­i­cana das lendas, haven­do uma peque­na hom­e­nagem à len­da espan­ho­la do Ratonci­to Pérez (ou Tooth Mouse), onde um dos guardiões atra­pal­ha sem quer­er o tra­bal­ho do pequeno rat­in­ho, que é muito pare­ci­do com a Fada do Dentes.

    A história da ani­mação gira em torno dos qua­tro Guardiões (Papai Noel, Fada do Dentes, Coel­ho da Pás­coa e Sand­man) que pre­cisam com­bat­er um vel­ho inimi­go, o Bicho-Papão, que dese­ja nova­mente ‘con­tro­lar o mun­do’ através do medo, e para isso irão pre­cis­ar se reunir e pedir a aju­da do Jack, um per­son­agem que só se inter­es­sa em brin­car e se diver­tir. Adi­cione ago­ra algu­mas armas, como espadas, bumerangues e ovos explo­sivos, óti­mas cenas de ação com lutas espetac­u­lares cheias de poderes mági­cos. O esti­lo lem­brou algum filme lança­do recen­te­mente? Pode­ria brin­car-se que A Origem dos Guardiões é prati­ca­mente um Os Vin­gadores Júnior ou até, porque não, um X‑Men Kids, onde ess­es per­son­agens seri­am os primeiros super-heróis que uma cri­ança tem contato.

    Deixan­do de lado toda essa visão inusi­ta­da de guer­reiros cuja mis­são é pro­te­ger as cri­anças, o filme pos­sui uma qual­i­dade téni­ca incrív­el, a Dream­Works já havia mostra­do isso no óti­mo Como Treinar o Seu Dragão, e tam­bém traz algu­mas respostas inter­es­santes a per­gun­tas como: quem (real­mente) pro­duz os pre­sentes do Papai Noel? Por que a fada dos dentes cole­ta os dentes? Como os ovos de pás­coa são feitos?

    A Origem dos Guardiões é uma óti­ma sur­pre­sa não só pela ren­o­vação dos já tão bati­dos per­son­agens infan­tis, mas como tam­bém um lem­brete para que a chama da imag­i­nação das cri­anças não seja apa­ga­da, prin­ci­pal­mente nos adul­tos. O filme foi basea­do na série de livros The Guardians of Child­hood do autor amer­i­cano William Joyce, e foi pro­duzi­da por Guiller­mo del Toro (Hell­boy, O Labir­in­to do Fauno, …), que deu uma entre­vista bem inter­es­sante sobre o filme no site do G1.

    Ah, não con­fun­da o filme com A Len­da dos Guardiões, out­ra óti­ma ani­mação dirigi­da por Zack Sny­der (Watch­men e 300), sobre a história da jovem coru­ja Sorem que é fasci­na­da pelas histórias sobre os Guardiões de Ga’Hoole e aca­ba embar­can­do em uma aven­tu­ra para sal­var o seu povo, em um enre­do bas­tante adul­to com épi­cas batalhas.

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=8yY2It-Oh0U

  • Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    ¨Real­mente os cul­tos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. Esse não foi um erro do escritor. Foi um erro da humanidade¨ (p.30)

    Impos­sív­el não se sen­tir ten­ta­do pela capa da edição brasileira de Fes­ta no Cov­il (Com­pan­hia das Letras, 2012) — inspi­rada­mente desen­ha­da pela artista Elisa v. Randow — o romance de estreia de Juan Pablo Vil­lalo­bos. Fazen­do uso da sim­bolo­gia da clás­si­ca fes­ta de Dia de Muer­tos mex­i­cana, a capa é um incrív­el con­vite para que você escute um meni­no solitário con­tar algu­mas peripécias.

    Tochtli — coel­ho, na lín­gua aste­ca — é uma cri­ança comum, ou pode­ria ser, que como qual­quer out­ra dese­ja muito um pre­sente. Segun­do ele próprio mora numa man­são no Méx­i­co, tem uma vida ente­di­ante, pos­sui uma vas­ta coleção de chapéus e son­ha em ter um casal de hipopó­ta­mos anões da Libéria. Um dese­jo nada con­ven­cional e que nos diz muito sobre o per­son­agem que nar­ra o romance do mex­i­cano Juan Pablo Vil­lalo­bos.

    Fes­ta no Cov­il tra­ta de for­ma muito sen­sív­el, ao pas­so que te faz res­pi­rar a cada novo pará­grafo, a vida solitária de uma cri­ança em pleno cenário do nar­cotrá­fi­co mex­i­cano. O pai, um reno­ma­do profis­sion­al do ramo, pro­tege o fil­ho numa espé­cie de for­t­aleza e é escon­di­do do resto do mun­do que o garo­to rela­ta pecu­liari­dades do seu cotid­i­ano, como o número de pes­soas que con­hece e como é a sua roti­na diária, tudo do seu pon­to de vista infan­til, inteligente e com dos­es de ironia.

    Parece que o país Libéria é um país nefas­to. O Méx­i­co tam­bém é um país nefas­to. É um país tão nefas­to que você não pode con­seguir um hipopó­ta­mo anão da Libéria. O nome dis­so na ver­dade é ser do ter­ceiro mun­do.” (p.20)

    O nar­cotrá­fi­co, talvez a ativi­dade mais ren­táv­el na lati­noaméri­ca, é um plano de fun­do um tan­to quan­to fos­co em Fes­ta no Cov­il pois, difer­ente de uma visão real­ista, esse mun­do se apre­sen­ta cheio de metá­foras e por­tas fechadas, vis­tas pelos olhos de uma cri­ança. A mar­gin­al­iza­ção da sociedade mex­i­cana foge da figu­ra do imi­grante e tra­ta mais de per­to os atu­ais prob­le­mas do país no com­bate da máfia das dro­gas. Na ver­dade, qual­quer país abaixo da fron­teira dos Esta­dos Unidos pode­ria ser o cenário da vida de Tochtli e talvez um dos pon­tos mais fortes do livro seja essa sen­sação de con­hec­i­men­to de causa que temos ao ver uma cri­ança encar­an­do a real­i­dade de for­ma tão ingênua.

    Mas Vil­lal­lo­bos não faz um rela­to comum e muito menos pro­duz uma nar­co­l­it­er­atu­ra fun­da­da em real­is­mos. Ele usa a voz de Tochtli para cri­ar um apego entre o leitor e o per­son­agem e assim cri­ar um enre­do que beira à suavi­dade de histórias infan­tis. Em muitos momen­tos nos vemos olhan­do assus­ta­dos para o garo­to da ficção, todo o dis­cur­so do pequeno Tochtli é mar­ca­da por suas sen­síveis pecu­liari­dades. As vezes ele é mima­do, não quer mais brin­car e em out­ros momen­tos ele demon­stra uma maturi­dade, con­sum­i­da por fras­es pre­co­ces, que nos leva a ques­tionar a solidão infantil.

    Há ape­nas um flerte com a real­i­dade vista por ess­es olhos inocentes. Se out­ro­ra a lit­er­atu­ra fazia uso das metá­foras fan­tás­ti­cas para con­tar um fato real, em Fes­ta no Cov­il são os olhos infan­tis que inter­pre­tam a vida com inocên­cia e em algu­mas situ­ações com a frieza da ver­dade. Tochtli é solitário, tem aulas par­tic­u­lares em casa e con­vive o tem­po todo com adul­tos, por­tan­to é inevitáv­el que em sua voz saiam definições pre­co­ces. Não se sabe ao cer­to se o garo­to é somente mima­do, víti­ma de um pai ausente e mãe que mor­reu, ou pro­fun­da­mente inspi­ra­do pelas pes­soas mis­te­riosas que con­vivem com ele e vivem ensi­nan­do algo.

    O pres­i­dente John Kennedy esta­va fazen­do um pas­seio num car­ro sem teto e ati­raram na cabeça dele. Ou seja, as guil­hoti­nas são para os reis e os tiros, para os pres­i­dentes. (p.47)

    Durante toda a nar­ra­ti­va de Fes­ta no Cov­il fica níti­da uma relação estre­i­ta do meni­no com as palavras, incluin­do o próprio dis­cur­so que ele cui­da que seja bem explica­ti­vo. O pequeno Tochtli não dorme sem ler o dicionário, ele gos­ta de nomear os sen­ti­men­tos e as pes­soas e quan­do se encan­ta com uma palavra a usa em vários con­tex­tos, inde­pen­dente se elas con­tin­u­am ou não com o mes­mo significado. 

    Juan Pablo Vil­lalo­bos, até pouco tem­po atrás, era um nome descon­heci­do da lit­er­atu­ra lati­noamer­i­cana. O mex­i­cano, casa­do com uma brasileira e res­i­dente no país, diz que sua visão sobre o Méx­i­co é de quem obser­va de longe e que nesse pon­to de fora con­segue ver com muito mais clareza a situ­ação vivi­da pelo país. Quan­do ques­tion­a­do se ele espera que no Brasil haja iden­ti­fi­cação com o pequeno Tochtli, diz que sim mas que no Brasil ele vê mais otimis­mo, uma das car­ac­terís­ti­cas impres­sio­n­antes no per­son­agem-garo­to de A Fes­ta no Cov­il.

    É impos­sív­el sair imune de Tochtli e seus son­hos mima­dos. Enquan­to o Méx­i­co, e con­se­quente­mente seu pai, vivem perío­dos de lim­bos, o garo­to ape­nas anseia em encon­trar o casal de ani­mais que fal­ta para seu zoológi­co. Pequenos nuances detal­ham a real­i­dade do per­son­agem que faz de Fes­ta no Cov­il uma fábu­la de uma cri­ança — lem­bran­do o sig­nifi­ca­do do seu nome aste­ca — den­tro de um bura­co, alheio ao mun­do caóti­co e sem esper­ança de fora.

  • O Futuro do Livro: Dora Garrido

    O Futuro do Livro: Dora Garrido

    Dan­do sequên­cia a série de depoi­men­tos sobre O Futuro do Livro (Elvi­ra Vigna e Lean­dro Már­cio Ramos), o inter­ro­gAção dessa vez pediu a opinião de um profis­sion­al que, talvez no imag­inário mais recor­rente, tem uma relação muito ínti­ma com os livros. Não falo de escritores que os cri­am, nem de edi­tores que aju­dam a via­bi­lizar o obje­to-livro, mas sim da Bib­liotecária. Dora Gar­ri­do é estu­dante do últi­mo ano do cur­so de Bib­liote­cono­mia da Uni­ver­si­dade Fed­er­al de San­ta Cata­ri­na e como você pode ver em seu blog e twit­ter , ela não deixa escapar prati­ca­mente nada sobre infor­mação & livros.

    O tex­to que segue foi escrito espe­cial­mente para a nos­sa sessão, pedi que ela respon­desse alguns ques­tion­a­men­tos sobre sua visão do assun­to e ela fez bem mais que isso. Dora apon­ta questões bas­tante apro­fun­dadas sobre o para­doxo de futuro do con­teú­do e das visões apoc­alíp­ti­cas do obje­to — pode-se diz­er até fetichista — do livro, pas­san­do tam­bém pelas bib­liote­cas e o futuro delas. O tex­to é bem situ­a­do e ref­er­en­ci­a­do, inclu­sive, com os tex­tos que a própria auto­ra escreve em seu blog, que tam­bém dis­cute a infor­mação, pesquisas e o papel do Bib­liotecário. Creio que a prin­ci­pal importân­cia da opinião e desen­volvi­men­to da visão da Dora Gar­ri­do é jus­ta­mente apon­tar infor­mações vin­das de den­tro da acad­e­mia e, ape­sar dis­so, nem de longe apre­sen­ta uma visão clas­sicista. Afir­mo que acer­ta­mos na escol­ha. Leia o tex­to e não deixe de acom­pan­har os tra­bal­hos dessa pro­lí­fi­ca pesquisado­ra e apaixon­a­da por Biblioteconomia.

    Sobre o futuro dos livros, das bib­liote­cas, dos leitores… (Por Dora Gar­ri­do)

    Escr­ev­er sobre o futuro, pra quem não é visionário, é um desafio e tan­to, eu diria. E os visionários são chama­dos assim (bem como tam­bém são chama­dos de hereges ou loucos) jus­ta­mente por ousarem talvez enx­er­gar o que ninguém mais enx­er­ga ain­da. Não é o meu caso. Tam­bém não sou muito imag­i­na­ti­va, mas pos­so ten­tar adi­v­in­har o que vai acon­te­cer, sem­pre com mui­ta cautela, quase como uma inimi­ga do “pro­gres­so”.

    Pen­sa-se no futuro do livro (ou o futuro do con­teú­do) des­de que “a Inter­net é Inter­net” como a con­hece­mos, ou seja, faz uns 15 anos por aí. Man­ter o foco no obje­to físi­co do livro é mais difí­cil hoje uma vez que cada vez mais trata­mos de con­teú­do de modo ger­al (músi­ca, filmes, seri­ados, notí­cias, etc). Esta­mos em uma época em que vive­mos entre os mun­dos físi­co e dig­i­tal, e isso tem cau­sa­do grande impacto em todos os setores e em todas as estru­turas que con­hecíamos até então. Quem sem­pre edi­tou e/ou pro­duz­iu con­teú­do físi­co sente-se muito ameaça­do: edi­toras, autores, gravado­ras, alguns artis­tas, etc. E ago­ra, as bib­liote­cas — bem como as livrarias — tam­bém estão se sentin­do ameaçadas.

    Nat­u­ral­mente ninguém que seja bib­liotecário irá pre­gar o fim dos livros, você pen­saria. Afi­nal, este é “o úni­co obje­to de tra­bal­ho” deles e sem os livros “que util­i­dade have­ria para um bib­liotecário?” não é mes­mo? Mas aí é que está: exis­tem bib­liotecários que se pre­ocu­pam ape­nas com os livros (ou quais­quer que sejam os mate­ri­ais do acer­vo). Out­ros que se pre­ocu­pam ape­nas com as pes­soas. E out­ros ain­da que se pre­ocu­pam um pouco mais com a tec­nolo­gia, em detri­men­to dos out­ros “obje­tos” de estu­do. É pos­sív­el que exis­tam bib­liotecários que este­jam pre­ocu­pa­dos, em nív­el de igual­dade, com todos ess­es “obje­tos” do nos­so faz­er. Mas a tendên­cia é que cada um tra­bal­he com algum dess­es aspec­tos em especí­fi­co com mais pro­fun­di­dade. Enfim… Entre o pre­to e o bran­co existe uma margem, bem ampla, dos vários tons de cin­za.

    Quem curte pre­gar o fim total e irrestri­to dos livros são tec­nocratas que acred­i­tam que a tec­nolo­gia já sub­sti­tu­iu abso­lu­ta­mente tudo o que é analógi­co. Notem bem: eles acred­i­tam que a tec­nolo­gia sub­sti­tu­iu e não que IRÁ sub­sti­tuir. O futuro, para eles, é ago­ra. Pes­soal­mente, acred­i­to que pes­soas com este per­fil inde­pen­dem de área, mes­mo por que na Ciên­cia da Com­putação pode ser pos­sív­el encon­trar pes­soas pre­ocu­padas com a ‘causa humana’, bem como na Bib­liote­cono­mia é pos­sív­el encon­trar tec­nól­o­gos frustra­dos — e ain­da assim, tec­nocratas! — que pregam que livro impres­so é uma coisa inútil do pas­sa­do que ninguém mais (que eles con­hecem) usa. O que é curioso, pois aí a pes­soa faz Bib­liote­cono­mia e diz que “odeia bib­liote­cas” e tam­bém pre­ga o fim dos livros, para o hor­ror total das “tias da bib­liote­ca”. Acred­i­to que esse dis­cur­so, vin­do da min­ha área, tam­bém deve pare­cer um tan­to quan­to con­tra­ditório para quem é ‘de fora’. Pois é.

    Os tec­nocratas defen­d­em o que defen­d­em — e como defen­d­em! — pois esse é o mun­do deles, o mun­do ao qual eles tem aces­so irrestri­to e o mun­do no qual eles acred­i­tam ser o mel­hor, para todos indis­tin­ta­mente. Tam­bém acred­i­to que a tec­nolo­gia pode via­bi­lizar — e mel­ho­rar, trans­for­mar de ver­dade — uma série de coisas como tem feito de fato nos últi­mos anos (impos­sív­el igno­rar isso). Mas mes­mo fazen­do uso das tec­nolo­gias e queren­do apren­der mais sobre, ain­da ten­ho a cautela de acred­i­tar que vive­mos numa época de tran­sição, em que apren­demos a con­viv­er com esse hib­ridis­mo, entre o que é analógi­co e o que é dig­i­tal. Não pos­so jul­gar se as tec­nolo­gias devem ser igno­radas ou endeu­sadas por que acho que não deve­mos viv­er ‘de extremos’, mas não pos­so igno­rar o fato de que hoje, eu ten­ho uma miríade de escol­has des­de livros com aque­le cheiro que gosta­mos tan­to, ou tablets e e‑books, que me per­mitem aces­so a uma porção de out­ras coisas, tudo ao mes­mo tem­po aqui e ago­ra. Se a pos­si­bil­i­dade existe, então por que não?

    O dig­i­tal não excluirá, de uma vez por todas, o impres­so assim como

    O rádio não destru­iu o jor­nal, a tele­visão não matou o rádio e a Inter­net não extin­guiu a TV. Em cada caso, o ambi­ente de infor­mação se tornou mais rico e mais com­plexo. É essa a exper­iên­cia por que pas­samos nes­ta fase cru­cial de tran­sição para uma ecolo­gia pre­dom­i­nan­te­mente dig­i­tal. - Robert Darn­ton

    Fico feliz por poder viv­er numa época em que eu pos­so escol­her a qual mídia vou me ape­gar. Pos­so escol­her não mais ver TV e tam­bém não ver seri­ados e só acom­pan­har blogs que falam de BBB por exem­p­lo. Pos­so escol­her cole­cionar vinis ou ter uma série de mp3 em diretórios bagunça­dos, sendo que algu­mas eu nun­ca ouço e nem sei o que são dire­ito. Pos­so escol­her dec­o­rar o lugar onde eu moro com estantes e ter um escritório próprio com vários livros orga­ni­za­dos lin­da­mente, ou pos­so jog­ar tudo fora pra ter mais espaço pra jog­ar Wii na sala e com­prar um Kin­dle que cai­ba em cima da mesin­ha de cabe­ceira. Mas é sem­pre bom ter em mente que nen­hu­ma coisa é mel­hor ou pior que a out­ra, nen­hu­ma sig­nifi­ca estri­ta­mente avanço ou retro­ces­so.. São ape­nas mod­os de vida difer­entes, escol­has difer­entes — quan­do trata­mos de escol­has indi­vid­u­ais, claro. Quan­do pen­so em uma bib­liote­ca e no que ela pode ofer­e­cer, acred­i­to que pri­var os leitores de qual­quer uma dessas pos­si­bil­i­dades, por hora, pode ser um tan­to quan­to equiv­o­ca­do, ape­nas isso.

    E o “futuro apoc­alíp­ti­co” das bib­liote­cas já está aí. Para os tec­nocratas isso é ape­nas “o futuro”, nada além dis­so. Ou ain­da, para eles, deve ser um futuro que “demor­ou demais” a acon­te­cer. E como os livros (entre out­ros mate­ri­ais) acom­pan­ham as bib­liote­cas, já podemos imag­i­nar que “o fim de tudo é mes­mo inevitáv­el!”. O fechamen­to das bib­liote­cas públi­cas britâni­cas e amer­i­canas que apare­cem vez e out­ra na time­line do Twit­ter não me deixa men­tir. Já tem gente choran­do as pitan­gas e tudo o mais. E é mes­mo o fim de uma era por que afi­nal, sem os livros, sem as bib­liote­cas e sem os bib­liotecários “esta­mos todos con­de­na­dos mes­mo!”. Claro que exis­tem N out­ras questões pra serem dis­cu­ti­das quan­do destes “cortes de cus­tos”, cortes estes tão pro­fun­dos que atingem toda a iden­ti­dade de uma comu­nidade de leitores, bem como tam­bém um recur­so intangív­el (infor­mação) que — sem­pre bom recor­dar — nem todas as pes­soas tem condições de pagar.

    Sobre a per­gun­ta “o livro impres­so vai acabar de fato?”, acho que não pos­so respon­der isso por um grupo — no caso, estu­dantes de bib­liote­cono­mia e bib­liotecários. Para mim, pes­soal­mente, não irá acabar enquan­to os leitores desse tipo de mate­r­i­al exi­s­tirem, sim­ples­mente. Ou seja, ten­do em vista que eu ten­ho XX anos, coloque mais uns 60 anos aí, talvez mais, tran­quil­a­mente, e apos­to como os mate­ri­ais impres­sos (livros, per­iódi­cos e obras de refer­ên­cia) ain­da exi­s­tirão. A questão da afe­tivi­dade com as bib­liote­cas e com os livros ain­da existe e tam­bém não pode ser igno­ra­da. A questão do aces­so a infor­mação tam­bém con­ta: percebe­mos que a tec­nolo­gia ampliou o aces­so de maneiras até então inimag­ináveis, e que a con­vergên­cia das mídias já é um fato con­sid­er­a­do cada vez mais nat­ur­al (e dese­ja­do)… Mas e a qual­i­dade com que o con­teú­do está sendo aces­sa­do? Auto­di­datismo, sendo bem real­ista, não me parece ser um priv­ilé­gio de todos e lit­era­cia da infor­mação (o “apren­der a apren­der”) não me parece que fará parte do cur­rícu­lo esco­lar tão cedo.

    Rig­gs, no post “Quem lê livros?” de acor­do com uma pesquisa que encon­trou do Grupo Jenk­ins, ques­tiona se hou­ve uma mudança no entreten­i­men­to pop­u­lar ou se ape­nas os livros este­jam menos inter­es­santes do que cos­tu­mavam ser antiga­mente, ou ain­da, ques­tiona se as pes­soas estão de fato embur­recen­do (o que não deixa de ser uma teo­ria). Talvez tudo isso este­ja asso­ci­a­do ao mod­e­lo de edu­cação que ain­da per­siste até hoje, segun­do Sir Ken Robin­son. Em um comen­tário que tam­bém li hoje no post “Pre­cisamos mes­mo de bib­liote­cas?” (tema que con­fes­so já estar cansa­da de ver pipocar na min­ha time­line no Twit­ter) um autor anôn­i­mo colo­cou o seguinte ques­tion­a­men­to que achei interessante:

    Vocês real­mente acham que todo mun­do vai con­seguir com­prar e‑books? E se de repente todo mun­do no mun­do (alfa­bet­i­za­do ou não) tivesse um e‑book e aces­so ilim­i­ta­do à e‑books grátis, acham que isso seria o suficiente?
    Então sim, acho que pre­cisamos sim de nos­sas bib­liote­cas. Por que e‑books, assim como livros impres­sos, são um meio e não a solução para todas as nos­sas neces­si­dades de informação.

    Neil Gaiman, além de lamen­tar o fechamen­to de várias bib­liote­cas, já falou que o que o pre­ocu­pa não é o fim dos livros, mas o fim dos leitores. Fechar as bib­liote­cas por que elas gas­tam muito din­heiro é uma decisão admin­is­tra­ti­va e econômi­ca que descon­sid­era total­mente as neces­si­dades de uma comu­nidade que pre­cisa deste tipo de apoio. Ok, sei que é bati­do, mas é isso mes­mo: será que a úni­ca coisa que pre­cisamos nes­sa vida mes­mo é só de comi­da? Podemos sobre­viv­er restri­ta­mente ape­nas com o que é bási­co? Sim, podemos. Mas seria isso mes­mo dese­jáv­el pra toda uma comunidade?

    As bib­liote­cas nun­ca foram armazéns de livros. Emb­o­ra con­tin­uem a fornecer livros no futuro, tam­bém fun­cionarão como sis­tema-ner­voso da infor­mação dig­i­tal­iza­da – tan­to em ter­mos de viz­in­hança, quan­to dos campi uni­ver­sitários. - Robert Darn­ton

    Lit­er­atu­ra não é ape­nas lit­er­atu­ra, assim como livros não são ape­nas livros… E uma bib­liote­ca (depen­den­do das pes­soas que lá tra­bal­ham) não é ape­nas uma bib­liote­ca. É difí­cil, para mim, acred­i­tar que as bib­liote­cas e os livros estão mor­ren­do e aca­ban­do, uma vez que a bib­liote­ca da min­ha uni­ver­si­dade nun­ca tem mesas disponíveis, nem espaço para estu­do o sufi­cientes. Por que será que ela está sem­pre cheia de gente, estu­dan­do, com livros, papéis, ano­tações, lap­tops, net­books e celu­lares de mil tipos? Por que essas pes­soas não estu­dam em casa? Se existe um ambi­ente que pro­por­ciona silên­cio e aco­modação, onde as pes­soas se sin­tam con­fortáveis para estu­dar, plane­jar tra­bal­hos, tomar café ou dormir no puffe, por que esse ambi­ente dev­e­ria deixar de exi­s­tir? O que existe nesse ambi­ente e atrai as pes­soas, que não existe em nen­hum out­ro lugar?

    Alguém ousa imag­i­nar o con­ceito de uma bib­liote­ca fei­ta ape­nas de pes­soas ao invés de sim­ples­mente só livros? Em um con­ceito de ‘cen­tro de cul­tura e infor­mação’ total­mente livres e inde­pen­dentes de orga­ni­za­ção e de suportes físi­cos de infor­mação? Imag­i­nar é uma tare­fa difí­cil e con­cil­iar a imag­i­nação com a via­bi­liza­ção, mais difí­cil ain­da. Mas isso a gente deixa para os visionários. Enquan­to isso, con­tin­uare­mos ques­tio­nan­do e ten­tan­do nos adap­tar a todas as mudanças, na medi­da do possível.

    Dora Gar­ri­do é acadêmi­ca do cur­so de Bib­liote­cono­mia da UFSC. Acom­pan­he seu blog aqui

  • Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Alguns livros você lê rap­i­da­mente, mas torce para que demor­em para ter­mi­nar, taman­ha a qual­i­dade. Só Garo­tos (Com­pan­hia das Letras, 2010) de Pat­ti Smith é exata­mente assim. Mais con­heci­da por causa da sua car­reira na músi­ca, Smith sem­pre lidou com diver­sas áreas da arte. Começou escreven­do poe­sias e desen­han­do, a músi­ca veio mais tarde. Em meio a essa jor­na­da, ela con­heceu Robert Map­plethor­pe. É jus­ta­mente sobre a relação entre eles que Pat­ti escreve.

    Nasci­da em 1946, Pat­ti Smith sem­pre soube que seu cam­in­ho seria pelas artes. Aos 21 anos ela se mudou para Nova Iorque para tra­bal­har com o que real­mente gosta­va. Ali, con­heceu Robert, que se tornar­ia sua alma gêmea até a morte dele, em 1989. Os dois começaram uma relação amorosa, mas de inten­so afe­to fra­ter­nal. Jun­tos, escrevi­am, fotografavam e desen­havam. Chegaram a con­hecer grandes artis­tas da época, como Warhol e seus artis­tas da Fac­to­ry, bem como músi­cos (Janis Joplin, Jim­my Hen­drix, entre out­ros) e escritores (Allen Gins­berg e William S. Burroughs).

    A escri­ta de Pat­ti em Só Garo­tos beira o tom con­fes­sion­al, ela rela­ta acon­tec­i­men­tos de sua vida, sem­pre citan­do a influên­cia de Robert. Tam­bém sem­pre faz refer­ên­cia às seus poet­as preferi­dos, como Rim­baud e William Blake. Por se tratar de uma auto­bi­ografia, podemos con­hecer a artista por ela mes­ma. Ape­sar de ser um tex­to verídi­co, ele tam­bém é literário. A auto­ra escol­he bem as palavras e tor­na a leitu­ra bas­tante fluída.

    Um livro bom é aque­le que causa as mais diver­sas sen­sações no leitor. E nesse que­si­to Pat­ti Smith escreve com maes­tria. No iní­cio de Só Garo­tos, ficamos amar­gu­ra­dos com sua bus­ca, depois ficamos felizes com suas con­quis­tas, logo os sen­ti­men­tos caem para uma nos­tal­gia daqui­lo que não vive­mos. Somos ape­nas espec­ta­dores daque­la dor que ela sen­tiu ao perder sua alma gêmea. Robert diz que enquan­to ela car­rega­va a vida den­tro dela, ele car­rega­va a morte. Impos­sív­el não sen­tir uma pon­ta­da de tris­teza, por causa de duas mentes iguais que foram separadas.

    Este livro é recomen­da­do não ape­nas para os fãs, mas para qual­quer pes­soa inter­es­sa­da em uma boa leitu­ra. A tra­jetória de Pat­ti e Robert, em que viven­cia­ram momen­tos de deses­pero e humil­hação, até se tornarem grandes artis­tas, é muito bem descri­ta. Vale lem­brar que Só Garo­tos gan­hou o Nation­al Book Award de não ficção, mere­ci­da­mente. Ao ler o livro, nos sen­ti­mos como se a própria Pat­ti estivesse nos con­tan­do a história, o que tor­na seu livro tão ínti­mo e bem escrito. 

  • Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Livro: Leite Derramado — Chico Buarque

    Eulálio Mon­tene­gro D‘Assumpção (sem pro­nun­ciar o “p” mudo para não causar deboche) é o pro­tag­o­nista do romance de Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do, pub­li­ca­do pela Com­pan­hia das Letras em 2009. Este sen­hor com pouco mais de 100 anos, encon­tra-se em um leito de hos­pi­tal, de onde nar­ra suas memórias e pen­sa­men­tos, nem sem­pre cronológi­cos, seja porque sua memória já o con­funde ou por estar sob efeitos dos medica­men­tos, por isso muitas vezes em Leite Der­ra­ma­do aparece: “Não sei se já lhes con­tei algu­ma vez como con­heci Matilde na mis­sa do meu pai…”; as pes­soas para quem ele con­ta os fatos são as enfer­meiras, sua fil­ha ou ape­nas divagações.

    Den­tro desse emaran­hado de pen­sa­men­tos e lem­branças nos damos con­ta de aspec­tos da história do Brasil, dos acon­tec­i­men­tos na sociedade do Rio de Janeiro do sécu­lo pas­sa­do, falar em francês na pre­sença dos empre­ga­dos, por exem­p­lo, e até mes­mo feitos dos famil­iares desse ancião na Europa. A par­tir do “que­bra-cabeça históri­co” apre­sen­ta­do em Leite Der­ra­ma­do, podemos encon­trar refer­ên­cia à vin­da da família real por­tugue­sa, com a qual veio o seu trisavô, à belle épóque, à Segun­da Guer­ra Mundi­al, à que­bra da bol­sa de Nova Iorque e à ditadu­ra mil­i­tar. Todos ess­es fatos nos são nar­ra­dos para lem­brar da importân­cia do seu sobrenome per­ante a sociedade que aos poucos, com a vin­da dos netos, bis­ne­tos e tatarane­tos vai tor­nan­do-se cada vez menos impor­tante, pois antiga­mente era um sobrenome que lhes abri­am por­tas e ago­ra no pre­sente não influ­en­cia em mais nada.

    Chico Buar­que, através do apan­hado de infor­mações, faz uso muito refi­na­do da lin­guagem, usan­do flash-backs não-lin­ear­es, con­fundin­do o leitor e inserindo a temáti­ca do racis­mo com sutileza, como por exem­p­lo a Matilde que é descri­ta como “a mais escur­in­ha das irmãs” ou o seu dese­jo sobre o seu cole­ga fil­ho de escravo.

    Sob meu olhar de leito­ra, Leite Der­ra­ma­do está próx­i­mo ao Budapeste, com histórias e per­son­agens difer­entes, claro, mas com uma cer­ta aprox­i­mação na vida das per­son­agens, ambos estão “per­di­dos”, ou mel­hor, em algum tipo de decadên­cia, e próx­i­mo tam­bém ao Estor­vo, pela descrição das cenas no Rio de Janeiro. Quan­to à for­ma da lin­guagem, cer­ta­mente Chico Buar­que cresceu muito neste, Leite Der­ra­ma­do, pois ele con­segue pren­der o leitor durante toda a nar­ra­ti­va, talvez pela empa­tia que o vel­ho Eulálio nos causa ao con­tar sobre sua ama­da Matilde, mas prin­ci­pal­mente pelo pri­mor da escri­ta, na maio­r­ia das vezes pare­cen­do fluxo de con­sciên­cia, e aí está o pri­mor do romance, Chico Buar­que con­segue faz­er uso da lin­guagem como poucos, pren­den­do e con­fundin­do o leitor na nar­ra­ti­va, mas sem que ele ten­ha se per­di­do ao elab­o­rar a obra.

    Com as car­ac­terís­ti­cas apon­tadas sobre traços históri­cos, out­ro traço que podemos destacar é o traço psi­cológi­co do pro­tag­o­nista, a par­tir das descrições e lem­branças dele, é pos­sív­el anal­is­ar a fal­ta que fez uma estru­tu­ra famil­iar, o quan­to o deixou per­di­do as via­gens com o pai para a Europa e a aprox­i­mação das moças nas sofisti­cadas suítes dos hotéis, con­hecer a neve das mon­tan­has etc. Creio que tam­bém o que mar­ca psi­co­logi­ca­mente o pro­tag­o­nista de Leite Der­ra­ma­do é a presença/ausência de Matilde, pre­sente sem­pre em suas memórias, mas ausente a par­tir de alguns acon­tec­i­men­tos e é quan­do Eulálio relem­bra da ama­da que seus pen­sa­men­tos se con­fun­dem. Vale a pena dedicar alguns momen­tos para con­hecer mel­hor esse vel­ho saudo­sista e se perder entre as palavras der­ra­madas nesse romance do Chico Buar­que, Leite Der­ra­ma­do.

    Assista o autor lendo tre­chos da obra:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=_tkaXxXXKVI&feature=player_embedded

  • Resumo da Bienal do Livro Paraná 2010

    Resumo da Bienal do Livro Paraná 2010

    A for­mação de leitores é tema con­stante nas dis­cussões sobre as for­mas de mel­ho­rar a edu­cação no país. A média de livros lidos pelo brasileiro é de dois vol­umes por habi­tante, um número extrema­mente baixo se com­para­do com país­es europeus e out­ros país­es con­sid­er­a­dos desen­volvi­dos. Com isso se tem pro­lif­er­a­do, em razoáv­el escala, o número de feiras, jor­nadas e bien­ais literárias pelo país. Não difer­ente, em out­ubro desse ano acon­te­ceu a primeira Bien­al do Livro Paraná 2010, em Curiti­ba, con­tan­do com 10 dias de pro­gra­mação cul­tur­al para fomen­tar o setor e, prin­ci­pal­mente, aprox­i­mar os vis­i­tantes do uni­ver­so da literatura.

    Pen­san­do nis­so, as atrações foram muitas e ten­taram abranger as mais diver­sas dis­cussões em torno do livro e da lit­er­atu­ra com temas volta­dos a con­tem­po­ranei­dade e as exper­iên­cias do leitor. Alguns destaques foi o Café Literário, que com a curado­ria de João Pereira, do jor­nal Ras­cun­ho, trouxe autores con­tem­porâ­neos dis­cutin­do temas per­ti­nentes não só aos escritores, mas tam­bém aos leitores, os aprox­i­man­do da lit­er­atu­ra como obje­to de estu­do e dis­cussão. O Even­to Nobre trouxe, no sex­to dia da Bien­al do Livro Paraná 2010, o escritor Rubem Alves defend­en­do uma edu­cação pelos sen­ti­dos e, no últi­mo dia, acon­te­ceu uma bela hom­e­nagem ao críti­co Wil­son Mar­tins. Já os debates mais ide­ológi­cos acon­te­ce­r­am no Espaço Livre, que no últi­mo dia deba­teu a liber­dade de impren­sa com Marce­lo Madureira e o pro­mo­tor Rodri­go Chemin. Além dis­so, a qual­i­dade na pro­dução artís­ti­ca para as cri­anças e jovens foi tema em dois dias do Fórum de Debates. Ain­da, o Ter­ritório Jovem, no déci­mo dia de Bien­al, dis­cu­tiu o mun­do da meni­na, um dos temas mais pre­sentes na lit­er­atu­ra infan­to-juve­nil atual.

    Um dos pon­tos fra­cos da Bien­al do Livro Paraná 2010 foi a fal­ta de pre­sença das grandes edi­toras de vários seg­men­tos literários, sendo que muitas daque­las anun­ci­adas estavam somente pre­sentes em estantes na for­ma de pro­du­to e não com uma rep­re­sen­tação ofi­cial, o que era de fato real­mente esper­a­do pelos vis­i­tantes. Dev­i­do a forte pre­sença de sebos e livrarias de pon­ta de estoque, a sen­sação era mais de se estar em uma feira de livros. Além dis­so, muitos leitores que bus­cav­am descon­tos e difer­en­ci­ações de com­pras, além de pro­du­tos mais inédi­tos, se decep­cionaram com preços iguais com os encon­tra­dos fora dele e com a mes­ma ofer­ta de opções, o que deses­tim­u­lou o dese­jo de com­pra em ger­al. Será que ain­da não foi perce­bido que se hou­ver um descon­to espe­cial, por ser uma Bien­al, have­ria um aumen­to sig­ni­fica­ti­vo nas vendas?

    Há uma importân­cia muito grande em apoiar, como vis­i­tantes, colab­o­radores, divul­gadores e etc, even­tos como a Bien­al do Livro Paraná 2010 sim­ples­mente pelo fato de ser em prol da mul­ti­pli­cação de val­ores cul­tur­ais em um país que vive, e é for­ma­do, pela mul­ti­cul­tur­al­i­dade. Pois a lit­er­atu­ra é uma das fer­ra­men­tas mais impor­tantes para a for­mação de cidada­nia e do faz­er-se ser humano.

    Quem teve a opor­tu­nidade de par­tic­i­par dos bate-papos e dis­cussões da Bien­al do Livro Paraná 2010 difi­cil­mente se sen­tiu de algu­ma for­ma arrepen­di­do, pois havi­am muitas opções de óti­ma qual­i­dade. Mas, infe­liz­mente, para muitos que foram em bus­ca de preços mais baratos e diver­si­dade nas escol­has, saíram de mãos vazias e o dese­jo não saci­a­do de adquirir algu­mas obras.

    Out­ras opiniões de quem tam­bém participou:

  • Entrevista: Luiz Ruffato

    Entrevista: Luiz Ruffato

    Luiz Rufatto - Adriana Vichi

    Foto por: Adri­ana Vichi

    ¨A lit­er­atu­ra brasileira está pas­san­do por um de seus mais ricos momen­tos¨ — Luiz Ruffato

    Luiz Ruffa­to é um dos nomes mais notórios na lit­er­atu­ra brasileira da últi­ma déca­da. O mineiro que hoje vive em São Paulo é for­ma­do em Jor­nal­is­mo e já tra­bal­hou até de pipo­queiro, como ele próprio rela­ta e há pelo menos oito anos se ded­i­ca a profis­são de escritor. Gan­hador de dois prêmios pela obra ¨Eles eram muito cav­a­l­os¨, a qual con­sidero um dos grandes tex­tos da lit­er­atu­ra atu­al, uma exper­iên­cia úni­ca de leitu­ra que sug­ere ao leitor a sen­sação de espec­ta­dor de doc­u­men­tário, a nar­ra­ti­va leva o leitor pela mão aos lugares con­heci­dos, e tam­bém descon­heci­dos, da grande e caóti­ca metró­pole de São Paulo, o leitor tor­na-se um sujeito coletivo.

    Seus livros tratam do urbano e dos per­son­agens que com­põem esse cenário e a geografia dos espaços se con­funde com as pes­soas, que em cer­tos momen­tos fun­cionam até como vul­tos de uma cidade. Os livros de Luiz Ruffa­to aprox­i­mam o leitor da sua real­i­dade, os guiam por muitos lugares, crian­do um cenário intimista.

    As obras do escritor foram pub­li­cadas em diver­sos país­es tais como França, Itália, Argenti­na, Por­tu­gal e etc.. Ele diz que tem uma agente literária em Berlim que nego­cia seus dire­itos autorais mun­do afo­ra, o que hoje é muito impor­tante para os escritores pois facili­ta a divul­gação de seus tra­bal­hos fora do país e além de ampli­ar o mer­ca­do edi­to­r­i­al isto ele­va o sta­tus da rica lit­er­atu­ra brasileira contemporânea.

    O autor, em breve entre­vista, fala da aprox­i­mação da lit­er­atu­ra com as artes em ger­al, de como a metró­pole paulista pode ser muitas ao mes­mo tem­po e a respeito do óti­mo momen­to em que a lit­er­atu­ra brasileira pas­sa e , infe­liz­mente, o não acom­pan­hamen­to des­ta pela edu­cação no país.

    Você pode ler a col­u­na de Luiz Ruffa­to no jor­nal de lit­er­atu­ra Ras­cun­ho.

    inter­ro­gAção: Muito se fala que a lit­er­atu­ra, dita con­tem­porânea hoje, bebe de todas as artes: plás­ti­cas, cin­e­ma, músi­ca, fotografia e afins. Você se sente influ­en­ci­a­do por isso? De que for­ma você vê isso na sua literatura?
    LR: Acho que a lit­er­atu­ra sem­pre foi uma arte em diál­o­go com out­ras artes. Se aten­tar­mos, ver­e­mos que a lit­er­atu­ra se insere em todos os grandes movi­men­tos estéti­cos, par­tic­u­lar­mente com as artes plás­ti­cas. É nat­ur­al, por­tan­to, que hoje, quan­do se dis­cute o hib­ridis­mo de gêneros, a inter­re­lação, a inter­pen­e­tração, a lit­er­atu­ra seja parte fun­da­men­tal, não só influ­en­cian­do, mas tam­bém sendo influ­en­ci­a­da pelas out­ras artes e, como novi­dade, pelas out­ras tec­nolo­gias (como a inter­net, por exem­p­lo). Isso, no meu tra­bal­ho, é patente.

    inter­ro­gAção: Ter sido jor­nal­ista colaborou para o seu esti­lo próprio de narrativa?
    LR: Acred­i­to que ter sido jor­nal­ista me ensi­nou como não escr­ev­er ficção… Porque são cam­in­hos muito dis­tantes, às vezes até mes­mo con­trários… O jor­nal­is­mo bus­ca a medi­an­idade, a lit­er­atu­ra a com­plex­i­dade… A lit­er­atu­ra, no meu pon­to de vista, começa onde o jor­nal­is­mo ter­mi­na… O jor­nal­is­mo me deu duas con­tribuições impor­tantes: a dis­ci­plina e a certeza de que não existe inspi­ração, mas trabalho.

    inter­ro­gAção: A pro­dução de ima­gens no romance ¨Eles eram muito cav­a­l­os¨ é inten­sa, a sen­sação de estar sendo guia­do através da nar­ra­ti­va, em cada uma das 69 ¨histórias¨ é inevitáv­el. A vida urbana em SP inspira?
    LR: A vida em São Paulo na ver­dade assus­ta… Tan­to que, curiosa­mente, não são muitos os autores que têm a cidade como per­son­agem ou mes­mo como cenário. No entan­to, para mim, é um desafio saudáv­el ten­tar com­preen­der sua com­plex­i­dade e uma opor­tu­nidade rara para exerci­tar as mais diver­sas lin­gua­gens para dar con­ta de suas car­ac­terís­ti­cas… Porque na ver­dade não existe uma São Paulo, São Paulo são muitas, par­o­dian­do Guimarães Rosa…

    inter­ro­gAção: Como você vê a lit­er­atu­ra atu­al brasileira? O mer­ca­do edi­to­r­i­al é sufi­ciente, dá o suporte necessário?
    LR: A lit­er­atu­ra brasileira está pas­san­do por um de seus mais ricos momen­tos. Nun­ca se pro­duz­iu tan­to, nun­ca se edi­tou tan­to, nun­ca os leitores estiver­am tão aber­tos a con­sumir lit­er­atu­ra nacional. O mer­ca­do edi­to­r­i­al, que vem crescen­do ano a ano, com enorme poten­cial para crescer muito mais ain­da, tem dado opor­tu­nidade para o autor nacional e o gov­er­no vem fazen­do com­pras para as bib­liote­cas. Ago­ra, ain­da fal­ta muito para atin­gir­mos um panora­ma aceitáv­el. Fal­ta, antes de tudo, mel­ho­rar­mos o nív­el da edu­cação e fal­ta nos empen­har­mos para trans­for­mar as bib­liote­cas públi­cas em um organ­is­mo vivo e não os depósi­tos de livros que são hoje…

    inter­ro­gAção: Você está tra­bal­han­do em algum novo pro­je­to ou livro?
    LR: Sim, como escritor profis­sion­al, ten­ho que estar sem­pre tra­bal­han­do. Este ano, com­pus um livro de fras­es do Oswald de Andrade, que faz parte da edição das obras com­ple­tas que estão sendo lançadas pela Edi­to­ra Globo. E no momen­to orga­ni­zo um livro de poeta mineiro, mor­to pre­mat­u­ra­mente, José Hen­rique da Cruz. Além dis­so, estou ter­mi­nan­do o últi­mo vol­ume do pro­je­to Infer­no Pro­visório, que dev­erá se inti­t­u­lar Domin­gos sem Deus, a sair no primeiro semes­tre do ano que vem. De resto, acom­pan­ho a edição de livros meus no exte­ri­or: este ano, estão sendo lança­dos: O mun­do inimi­go (na França); Estive em Lis­boa e lem­brei de você (em Por­tu­gal e Itália), Eles eram muitos cav­a­l­os (Argenti­na) e uma antolo­gia de tex­tos e poe­mas do Fer­nan­do Pes­soa, pub­li­ca­da aqui pela Alfaguara (Quan­do fui Out­ro), que está sain­do em Portugal

    Livros pub­li­ca­dos:

    • Histórias de remor­sos e ran­cores – histórias (1998) ESGOTADO
    • (os sobre­viventes) – histórias (2000) ESGOTADO
      — Menção Espe­cial no Prêmio Casa de las Améri­c­as, de Cuba
    • Eles eram muitos cav­a­l­os – romance (2001; 6ª edição, Rio de Janeiro, Record 2008 — 7ª edição, em bol­so, Rio de Janeiro, Best­bol­so, 2010)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Romance de 2001
      — Prêmio Macha­do de Assis de Nar­ra­ti­va da Fun­dação Bib­liote­ca Nacional
    • As más­caras sin­gu­lares – poe­mas (São Paulo, Boitem­po, 2002)
    • Os ases de Cataguas­es (uma história dos primór­dios do Mod­ernismo) – ensaio (Cataguas­es, Insti­tu­to Fran­cis­ca de Souza Peixo­to, 2002 — 2ª edição, 2010)
    • Mam­ma, son tan­to felice – romance (Rio de Janeiro, Record, 2005)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Ficção de 2005
    • O mun­do inimi­go – romance (Rio de Janeiro, Record, 2005)
      — Prêmio APCA — Mel­hor Ficção de 2005
      — Final­ista do Prêmio Por­tu­gal Telecom
    • Vista par­cial da noite – romance (Rio de Janeiro, Record, 2006)
      — Prêmio Jabu­ti de Romance
    • De mim já nem se lem­bra – romance (São Paulo, Mod­er­na, 2007)
    • O livro das impos­si­bil­i­dades – romance (Rio de Janeiro, Record, 2008)
      — Final­ista do Prêmio Zaffari-Bourbon
    • Tor­ci­da (Sup­port­ers) — con­tos (Rio de Janeiro, 7Letras/GloboSat, 2010) — edição bilíngue por­tuguês- inglês
    • Estive em Lis­boa e lem­brei de você – romance (São Paulo, Cia das Letras, 2010)