Author: Aristides Oliveira

  • Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    Três Dedos: Um Escândalo Animado (2009), de Rich Koslowski | HQ

    tres-dedos-um-escandalo-animado-2009-de-rich-koslowski-hqQuan­do éramos cri­anças, cor­ríamos para o sofá (ou cadeira) com o intu­ito de assi­s­tir aos desen­hos ani­ma­dos que envolvi­am per­son­agens-ani­mais, tais como Taz, Per­na­lon­ga, Tom, Jer­ry, Mick­ey, entre out­ros. Mas o que não sabíamos aca­ba de ser rev­e­la­do na obra “Três Dedos: Um escân­da­lo Ani­ma­do” (2009), de Rich Koslows­ki.

    O que muitos críti­cos acusam como um tra­bal­ho vazio ou uma “leitu­ra par­o­dís­ti­ca do mun­do encan­ta­do dos desen­hos” reflete uma ten­ta­ti­va para silen­ciar a gravi­dade no inte­ri­or do escân­da­lo expos­to neste livro.

    Em for­ma de HQ-Doc­u­men­tário, Rich inves­ti­ga os basti­dores da indús­tria cin­e­matográ­fi­ca hol­ly­wood­i­ana através de um lev­an­ta­men­to detal­ha­do que nos mostra seu surg­i­men­to, des­de o fim do cin­e­ma prim­i­ti­vo nos Esta­dos Unidos.

    Nesse con­tex­to, o leitor con­hece a vida do cineas­ta Dizzy Wal­ters, fun­dador do “cin­e­ma ani­ma­do” oci­den­tal. Com uma tra­jetória de vida mar­ca­da por crises e suces­sos, Rich apon­ta que o grande difer­en­cial de Dizzy deu-se na cor­agem de reti­rar do sub­mun­do, os artis­tas – que, por serem “desen­hos ani­ma­dos” — eram demo­niza­dos pela sociedade tradi­cional­ista norte-americana.

    Rich Koslowski
    Rich Koslows­ki

    Viven­do uma fase som­bria, “ele começou a fre­qüen­tar partes cada vez mais perigosas e pouco recomen­dadas da cidade, até que final­mente, uma noite, encon­trou-se vagan­do (…) pela ‘Ani­malân­dia’” e con­heceu – tocan­do numa boate escon­di­da — o rat­in­ho Rick­ey”. Esse encon­tro muda toda a história do cinema.

    O tal­en­to e caris­ma de Rick­ey no pal­co fez Dizzy tomar uma ati­tude arrisca­da: levar para as telas os “ani­ma­dos”, mes­mo cor­ren­do o risco de perder sua dig­nidade, pois nes­sa época, ess­es bich­in­hos sofri­am bas­tante pre­con­ceito, viven­do na mar­gin­al­i­dade e esque­ci­dos pelo poder público.

    Ser um “ani­ma­do” era noci­vo, repug­nante e assus­ta­dor. A sociedade com­pos­ta pelos humanos excluiu a raça ani­ma­da do con­vívio social e a jogou — sem o mín­i­mo de cidada­nia — nos bair­ros per­iféri­cos, no qual muitos deles vivi­am da pros­ti­tu­ição, trá­fi­co de dro­gas e ani­mação em fes­tas infan­tis, onde as cri­anças con­tratavam os “ani­ma­dos” para vio­len­tá-los em orgias envol­ven­do recheio de chi­clete sin­téti­co, refrig­er­ante com alto teor de gás e brigadeiros industriais.

    O risco em tornar um “ani­ma­do” ícone pop era alto, mas Dizzy Wal­ters investiu todo seu din­heiro no filme “Rick­ey na Fer­rovia”. Sur­preen­den­te­mente, o suces­so foi ime­di­a­to! Mes­mo com todo o ceti­cis­mo enraiza­do na críti­ca de cin­e­ma espe­cial­iza­da, as plateias humanas acla­mavam o filme como “rev­olu­cionário”.

    Rich Koslows­ki afir­ma que:

    Rap­i­da­mente, todos os grandes estú­dios de cin­e­ma começaram a pro­duzir filmes estre­la­dos por atores ani­ma­dos. Seis meses após a estréia de ‘Rick­ey na Fer­rovia’, qua­tro dos maiores estú­dios lançari­am pro­duções estre­ladas ape­nas por elen­cos de atores animados.

    Assim, a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca de ani­mação pro­move uma avalanche de filmes mar­ca­dos pelo fra­cas­so de bil­hete­ria. Por algum moti­vo descon­heci­do, o públi­co não respon­dia pos­i­ti­va­mente ao lança­men­to dos novos filmes que sur­gi­ram após o “fenô­meno Rickey”.

    O autor entre­vista (entre ex-atores e teste­munhos da época) Hans Wurstmacher:

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    Enquan­to os filmes ani­ma­dos não estre­la­dos por Rick­ey causavam pre­juí­zos aos atrav­es­sadores, pro­du­tores e exibidores, a fama de Dizzy e seu par­ceiro lotavam as capas de revista, jor­ran­do din­heiro por todos os lados!

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    A alta cúpu­la do setor de ani­mação em Hol­ly­wood estran­hou como Dizzy e Rick­ey tornaram-se, do dia para a noite, os novos mag­natas do cin­e­ma. Algo erra­do esta­va acon­te­cen­do nos cír­cu­los inter­nos do setor.

    O suces­so de Rick­ey aumen­ta­va a cada filme real­iza­do, mas para atin­gir a fama ime­di­a­ta os artis­tas sem­pre pagam um alto preço.

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    Até o ano de 1946, ape­nas os filmes da dupla pros­per­avam, fazen­do Rick­ey tornar-se o maior super-astro ani­ma­do de todos os tem­pos, o que o lev­ou a casar-se com uma humana! A união afe­ti­va com Rosa Bel­mont pro­moveu uma grande dis­cussão étni­ca nos anos 40 nos Esta­dos Unidos: Humanos podem unir-se a Ani­ma­dos? Mes­mo com a fúria do públi­co con­ser­vador norte-amer­i­cano, sem dúvi­da, Rick­ey e Rosa que­braram os tabus em torno do amor entre seres tão distintos.

    A vida de Rick­ey e Dizzy esta­va no seu mel­hor momen­to, até que os seg­re­dos sobre o Rit­u­al são rev­e­la­dos à impren­sa a par­tir de uma denún­cia anôn­i­ma real­iza­da em 1948, que trouxe à tona um dos­siê fotográ­fi­co respon­sáv­el pela des­graça da car­reira de ambos. As ima­gens con­fir­mam: o Rit­u­al é uma ter­rív­el realidade.

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    A par­tir das ima­gens expostas por Rich, “Três Dedos” pro­move um debate com ex-atores ani­ma­dos fra­cas­sa­dos para com­preen­der a pos­sív­el lig­ação dos per­son­agens cen­trais com o escân­da­lo envol­ven­do o Ritual.

    Seria essas práti­cas macabras que o levaram à fama abso­lu­ta? É a par­tir des­ta fór­mu­la bizarra que os desen­hos ani­ma­dos con­seguem hip­no­ti­zar mil­hares de cri­anças atual­mente? Seria o “hor­ror” a palavra de ordem nas ani­mações que for­maram ger­ações de home­ns e mulheres?

    Numa rara aparição à Rich Koslows­ki, Rick­ey polemiza:

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    Comen­tários bom­bás­ti­cos bus­cam ques­tionar a indús­tria cin­e­matográ­fi­ca e avaliar o raio‑X do maior escân­da­lo da cul­tura pop nos anos 40.

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    Quem lem­bra do Pato Daniel? Engas­guin­ho? Ton­to? Liu Liu? Rapid­in­ho Rodriguez? Gafan­ho­to Can­tante? Per­nalou­ca? Frei­drich Von Gatze? Mil­lie Mar­su­pi­al? Pato Nil­do? Anti­gos grandes astros da ani­mação que hoje vivem em condições precárias, na maio­r­ia dos casos venden­do-se à indús­tria pornográ­fi­ca lig­a­da à cat­e­go­ria Zoo-She­male-Gag­fac­tor ou tra­bal­han­do nas zonas boêmias da Animalândia.

    A reper­cussão em torno do Rit­u­al pro­moveu ataques de artis­tas e políti­cos famosos (como Mar­i­lyn Mon­roe, o senador Theodore Iver­son, Mar­tin Luther King e J. F. Kennedy), que “se lev­an­taram con­tra o abu­so e trata­men­to ruim dado aos ani­ma­dos”. Poucos meses após a man­i­fes­tação de apoio aos ani­ma­dos, os mes­mo críti­cos que acusavam a indús­tria hol­ly­wood­i­ana por tais crimes sofr­eram trági­cos “aci­dentes de per­cur­so” até hoje inex­plicáveis. Have­ria algu­ma lig­ação entre essas mortes e o Ritual?

    Per­nalou­ca, após ser ques­tion­a­do por Rich sobre sua pos­sív­el lig­ação com rit­u­al, reage de for­ma surpreendente:

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    Desse modo, “Três Dedos” apre­sen­ta aos leitores o proces­so de con­strução dos mitos ani­ma­dos da TV e cin­e­ma. Anal­isa como a indús­tria da ani­mação lucra mil­hões de dólares, investin­do em filmes e séries tele­vi­si­vas infan­tis que movi­men­tam um mer­ca­do macabro, obri­g­an­do os artis­tas a se sub­me­terem ao Rit­u­al em tro­ca da fama, luxo e recon­hec­i­men­to de públi­co. Quan­do os pro­du­tores lucram tudo que podem, os jogam no esquec­i­men­to absoluto.

    O que está por trás do uni­ver­so dos filmes infan­tis? Até que pon­to nos­sos fil­hos devem con­sumir tais con­teú­dos, mar­ca­dos por uma atmos­fera de hor­ror e sub­mis­são? “Três Dedos” é um livro que pre­cisa ser lido e divul­ga­do ime­di­ata­mente nas esco­las, crech­es e aos pais mais cuida­dosos, como um aler­ta moral sobre a maldição envol­ven­do os desen­hos animados.

  • Trilogia Nikopol (2012), de Enki Bilal | HQ

    Trilogia Nikopol (2012), de Enki Bilal | HQ

    Somos todos mon­stros de nós mesmos

    trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-capaAo ler “Trilo­gia Nikopol”, do Enki Bilal, nos deparamos com a seguinte reflexão gilber­tiana: “Quem hoje fala de futuro, sabe­mos que fala num tem­po que já é quase pre­sente, tal a rapi­dez com que esta­mos pas­san­do de pre­sente a futuro. Nun­ca mais do que hoje o homem viveu tem­po aparente só mod­er­no já tão alcança­do pelo pós-mod­er­no e ain­da influ­en­ci­a­do pelo pré-mod­er­no”. O que um per­nam­bu­cano tem em comum com um iugoslavo?

    Ao abrir “Além do Ape­nas Mod­er­no”, de Gilber­to Freyre, e ler esse tre­cho, fiquei com von­tade de escr­ev­er sobre Bilal, um autor muito novo e difí­cil pra mim, mas que me desafiou a for­mu­lar algu­mas con­sid­er­ações sobre sua trilogia.

    A Edi­to­ra Nemo fez um óti­mo tra­bal­ho ao reunir “A Feira dos Imor­tais”, “A Mul­her Armadil­ha” e “Frio Equador” num encader­na­do auda­cioso lança­do em 2012 por aqui, traduzi­do por Fer­nan­do Scheibe.

    Enlaçan­do resum­i­da­mente as histórias, Bilal afir­ma que “se suce­dem nos três livros, cacos obsedantes e grotescos de nos­so mun­do, deuses egíp­cios ver­gonhosa­mente mal­trata­dos, um homem com nome de cidade da Ucrâ­nia (…), uma emblemáti­ca e aber­rante mul­her de pele bran­ca e cabe­los azuis nat­u­rais, ani­mais, ver­dadeiros, fal­sos (…) uma pirâmide voado­ra (…) e tam­bém histórias de amor e son­hos de cin­e­ma”. Este é o mosaico que vamos explo­rar a seguir.

    Esta­mos em março de 2023, Paris. A atmos­fera “facis­ti­za­da” da cidade — mul­ti­povoa­da e sec­ciona­da em dis­tri­tos desiguais – é alter­a­da (em ple­na farsa eleitoral) pela aparição de uma pirâmide, esta­ciona­da no céu cinzen­to, pro­por­cio­nan­do um mal-estar cole­ti­vo aos habi­tantes, sobre­viventes desse “uni­ver­so de degenerescên­cia, mis­éria e imundície”.

    Os ocu­pantes da pirâmide voado­ra exigem com­bustív­el ao dita­dor Fer­di­nand Chou­blanc. O silên­cio dele a respeito do fato “não tran­quil­iza ninguém”.

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    No inte­ri­or da pirâmide, os deuses egíp­cios estão pre­ocu­pa­dos com o sum­iço de Hórus, con­de­na­do a perder sua condição eter­na por deserção e práti­cas sub­ver­si­vas con­tra a “ordem uni­ver­sal e a san­ta eternidade”. Nesse momen­to, Anúbis, Bes, Bastet e a cúpu­la inteira tra­mavam os cam­in­hos necessários para recap­turar Hórus e obri­gar Chou­blanc a ced­er com­bustív­el à pirâmide.

    O proces­so de nego­ci­ação entre o dita­dor e os deuses fica ten­so, pois Chou­blanc sug­ere algo nada amigáv­el: “Estou pron­to a ced­er-lhes todo o com­bustív­el de que vocês neces­si­tam, (…) mas sob a condição de que vocês me con­cedam a imor­tal­i­dade em con­tra­parti­da”, pro­pos­ta que é inter­romp­i­da brus­ca­mente pelo cha­cal: “Bas­ta, Jean- Fer­di­nand Chou­blanc! Está fora de questão con­trari­ar a ordem universal!”

    O dita­dor é expul­so da pirâmide, encer­ran­do as nego­ci­ações. Para­le­lo a esse acon­tec­i­men­to, o jor­nal “A Voz Legal” (instru­men­to pux­as­aquista de Chou­blanc) pub­li­ca um con­jun­to de notí­cias que pode tumul­tu­ar ain­da mais os rumos de Paris.

    A impren­sa local tra­ta das nego­ci­ações entre Chou­blanc e Anúbis com cin­is­mo e vista grossa — típi­co dos jor­nal­is­tas “lambe-botas” dos dias de hoje -, atribuin­do tal como proces­so à “fineza diplomáti­ca”, detur­pan­do o que teste­munhamos nos basti­dores piramidais.

    Corte para a lin­ha 4 (Met­ro­pol­i­tano): Porte D’Orléans de Clig­nan­court. Em proces­so de descon­ge­la­men­to, Alcide Nikopol ain­da não con­segue lem­brar como chegou ali. Joga­do na beira dos tril­hos, a úni­ca sen­sação que o tor­tu­ra é a forte dor na região da per­na amputa­da no aci­dente aéreo da sua cela criogêni­ca. Um sono de 30 anos.

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    Eis que Hórus surge para “aux­il­iar” Nikopol com o grave fer­i­men­to, mas como para tudo é pre­cis­ar tro­car, o pás­saro lança sua pro­pos­ta: ofer­e­cer uma “per­na” (de fer­ro, extraí­da dos tril­hos) para Nikopol, e este con­ced­er seu cor­po para hospedar o espíri­to de Hórus. “E foi assim que teve lugar, no dia 03 de março de 2023, no metrô Alésia, a posse do cor­po de Alcide Nikopol por Hórus de Hierakonópolis”.

    Tal encon­tro, pro­movi­do na primeira sequên­cia da trilo­gia (“A Feira dos Imor­tais”) ger­ou uma resul­tante de forças que irá sacud­ir a supos­ta tran­quil­i­dade do gov­er­no de Chou­blanc, ali­men­tan­do con­fli­tos políti­cos ter­restres e divi­nos, pren­den­do a res­pi­ração do leitor.

    Nikopol e Hórus. Dois deser­tores, dois inimi­gos do poder, dois cor­pos em per­fei­ta sin­to­nia e con­ju­gação. Cor­pos e espíri­tos unidos, Hórus começa sua empre­ita­da e define para Nikopol seus obje­tivos na Ter­ra: depor Chou­blanc e con­stru­ir seu império. Após burlar todas as bar­reiras, final­mente Hórus manip­u­la a mente do gov­er­nante e vai dire­to ao ponto:

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    O pro­longa­men­to da história (ini­ci­a­da nos anos 80) segue com “Mul­her Armadil­ha”, expon­do a fase de Nikopol dois anos após seu inter­na­men­to (eles e Chou­blanc enlouque­ce­r­am com a exper­iên­cia men­tal via-Hórus).

    Através de um lev­an­ta­men­to hemero­grá­fi­co da época, Bilal cos­tu­ra o panora­ma políti­co do perío­do que Hórus/Nikopol pro­movem o golpe à Chou­blanc, para situ­ar o leitor historicamente.

    Após ser con­de­na­do e iso­la­do numa câmara criogêni­ca, Hórus é lib­er­ta­do aci­den­tal­mente e vol­ta com tudo, rein­cor­po­ran­do-se ao cor­po de Nikopol, à contragosto.

    Para­le­lo a este núcleo nar­ra­ti­vo, Bilal nos apre­sen­ta mais dois per­son­agens: o fil­ho de Nikopol (idên­ti­co, com a mes­ma idade do pai) e Jill, uma mul­her bran­ca, de lábios, lágri­mas e cabe­los azuis. Hórus artic­u­la um encon­tro entre Jill e Nikopol, ini­cian­do um triân­gu­lo amoroso-sex­u­al muito útil para os obje­tivos da ave. Os três via­jam ao Egi­to, em bus­ca de um escon­der­i­jo ade­qua­do para escapar da pirâmide voado­ra, que está caçan­do nova­mente Hórus.

    A Mul­her Armadil­ha” bus­ca con­stru­ir um espaço de con­vivên­cia entre os per­son­agens, crian­do os laços necessários para desen­volver as afe­tivi­dades entre Jill e Nikopol, habil­mente con­tro­la­da por Hórus, que visu­al­iza em Jill uma arma potente para con­cretizar seus planos megalomaníacos.

    E assim, Hórus foge do Cairo (Anúbis desco­bre seu escon­der­i­jo) com sua artil­haria pro­te­gi­da: o seu império ini­cia aqui, pois a ponte para a eternidade esta­va dev­i­da­mente acer­ta­da. Jill acred­i­ta que:

    Nos­sa par­ti­da pre­cip­i­ta­da, provo­ca­da pela chega­da da Pirâmide voado­ra ao Cairo, tin­ha um cer­to ar de jogo que não me desagra­da­va. Isso me per­mi­tia, em todo caso, não me faz­er per­gun­tas demais sobre o nasci­men­to de min­has estra­nhas relações com a dupla Nikopol/Hórus, sobre a qual ignoro até hoje, quase tudo”.

    A nave segue rumo ao “Frio Equador”, onde os dois se sep­a­ram e o amor vira son­ho de cin­e­ma. Bilal gos­ta de pro­duzir novos hor­i­zontes para suas histórias, tran­si­tan­do dos quadrin­hos para o cin­e­ma sem­pre que pos­sív­el. É o que podemos con­ferir em adap­tações audio­vi­suais como Bunker Palace Hotel (1989), Tykho Moon — Seg­re­dos da Eternidade (1996) e Immor­tel (ad vitam) (2004), basea­do na trilo­gia Nikopol.

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    Nas suas leituras cin­e­matográ­fi­cas, a adap­tação resul­ta numa “descon­strução” do núcleo nar­ra­ti­vo das HQs, para ger­ar um novo sen­ti­do aos per­son­agens em con­fli­to, como se fos­se uma “exten­são” do que lemos, um pós-história, o que arrisco a chamar de pós-história exper­i­men­tal, para efe­t­u­ar novos rabis­cos no cor­po dos atores, uma per­for­mance em proces­so de ree­scri­ta do tex­to orig­i­nal. Bilal acred­i­ta que suas tra­mas podem ir além dos desen­hos e faz uma exigên­cia: com­por novas pos­si­bil­i­dades aos seus mun­dos, ele quer músi­ca, movi­men­to, mise en scene. Out­ros des­fe­chos para cri­ar out­ras sensibilidades.

    A trilo­gia é recon­fig­u­ra­da num mix de histórias que cruzam out­ros inter­ess­es de Bilal no uni­ver­so Nikopol. Mais nomes, out­ras cores, ten­sões políti­cas ree­scritas surgem para o autor explo­rar livre­mente, tor­nan­do o cin­e­ma fun­da­men­tal para suas vivên­cias estéti­cas em andamento.

    O peso dos tons envel­he­ci­dos de um futuro em crise é sub­sti­tuí­do pela lev­eza azu­la­da de Jill e da ani­mação com­puta­doriza­da, que dis­tan­cia-se dos odores mal-cheirosos, da neve suja de lama, do con­cre­to mal con­ser­va­do e da imagem vis­cer­al expostas na HQ.

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    A pais­agem audio­vi­su­al de “Immor­tel (ad vitam)” é com­pos­ta por uma nova estru­tu­ra nar­ra­ti­va, que serve como suporte para con­stru­ir vari­a­dos exer­cí­cios de cri­ação na jor­na­da dos per­son­agens cen­trais. Aqui podemos sen­tir uma Jill menos rad­i­cal. Aqui ela é car­ente de suas ori­gens, amáv­el e frágil.

    Nos­so Nikopol é menos rús­ti­co, sedu­tor e firme em seus posi­ciona­men­tos per­ante Hórus. Este man­tém sua rigidez — como lemos na trilo­gia — crian­do sua platafor­ma de per­pet­u­ação e con­t­role do plan­e­ta a lon­go pra­zo, toman­do o cor­po de Nikopol como ponte para a vin­gança con­tra os deuses mag­istra­dos do Egi­to (no filme, tal ação é mais “explica­ti­va” do que no texto-base).

    Uma opor­tu­nidade para ampli­ar os hor­i­zontes cria­tivos de Paris pós-tudo. Um cam­in­ho sofisti­ca­do para per­pet­u­ar o lega­do de Hórus, mais difun­di­da ao públi­co não-leitor ou já fã do tra­bal­ho de Bilal (talvez os mais “lig­a­dos ao tex­to-HQ” não aceit­em este per­cur­so, mas, quem se impor­ta? Se o filme é uma par­ti­tu­ra regi­da pelo próprio cri­ador?). Goran Vejvo­da pro­duz uma sonori­dade-sen­so­r­i­al pen­e­trante em todos os momen­tos, cor­ta­da brus­ca­mente por um hap­py-end que deixa a dese­jar, mas nada prej­udique o con­jun­to da obra. Lança­do em 2004, “Immor­tel (ad vitam)” merece atenção e uma cuida­dosa análise com­par­a­ti­va com os quadrinhos.

    trilogia-nikopol-2012-de-enki-bilal-hq-4E assim, tomo essa obra como ele­men­to de reflexão sobre o mal-estar do autor per­ante o futuro, que se aprox­i­ma-chega de for­ma assus­ta­do­ra. Um futuro cin­za, demar­ca­do pela deses­per­ança do homem pelo homem, este ati­ra­do numa dis­pu­ta ani­malesca pelo con­t­role do Out­ro e de si.

    Vejo nes­ta trilo­gia a expec­ta­ti­va de um vir-a-ser despedaça­do, cor­pos endure­ci­dos pelo fas­cis­mo tri­un­fante, gov­er­na­do por tira­nos cada vez mais enlouque­ci­dos pelo poder. Uma sociedade regi­da pela sep­a­ração e vio­lên­cia aos “pan­fletários”.

    O homem e a mul­her: sui­ci­das em poten­cial. É pre­ciso tomar os com­prim­i­dos de Jill? Os gatos telepatas serão nos­sos mel­hores ami­gos em tem­pos de enges­sa­men­to do amor e do esgo­ta­men­to da con­fi­ança? Como escapar ao olho mor­tal do KKDZO? Seria a sel­va de Equador City o Eldo­ra­do pós-pós-tudo? As prisões criogêni­cas são penal­i­dades ou o pas­s­aporte para a fuga des­ta ger­ação? Hórus e Chou­blanc encar­nam tem­po­ral­i­dades que rev­e­lam rup­tura o con­tin­uís­mo com o pre­sen­tepas­sad­o­fu­turo? Nikopol é a zona inter­mediária do tem­po tríbio gilber­tiano? Nos­so des­ti­no está sela­do ao impul­so autode­stru­ti­vo? Somos Além de Ape­nas Mod­er­nos ou Aquém de Nos­sas Expectativas?

    Nikopol é uma “real­i­dade [insur­gente] na qual se cruzam sobre­vivên­cias, [pro­jeções] e ante­ci­pações”. Seu cor­po é a “fusão tem­po­ral [que] com­ple­ta [Hórus] e o per­eniza. Eterniza‑o em épocas para além e para aquém do pensamento”.

    Bilal provo­ca uma série de questões que somente as próx­i­mas ger­ações irão respon­der, num futuro bem próx­i­mo, pos­sív­el e cru­el. Nikopol nos deixa uma lição que fica clara aos leitores do pas­sado­p­re­sente: somos mon­stros de nós mesmos.

  • Local (2008–09), de Brian Wood e Ryan Kelly | HQ

    Local (2008–09), de Brian Wood e Ryan Kelly | HQ

    Capa do Vol. 1
    Capa do Vol. 1

    À primeira vista, quan­do peguei, por aca­so, o mate­r­i­al de Bri­an Wood (roteiro) e Ryan Kel­ly (arte) na livraria Quin­ta Capa (a mais legal de Teresina), tive basi­ca­mente a intenção de atu­alizar algu­mas leituras ain­da descon­heci­das por mim na cena dos quadrin­hos. A sen­sação que tive (não sei explicar o moti­vo) ao tatear “Local” foi de encon­trar algo na lin­ha nar­ra­ti­va de Craig Thomp­son em “Retal­hos”, por imag­i­nar que o eixo temáti­co seria pare­ci­do. Feliz­mente esta­va engana­do, e o uni­ver­so que se abriu foi out­ro bem difer­ente, lin­do por sinal.

    Local” expõe a importân­cia dos lugares e das cam­in­hadas que faze­mos pelos espaços. No iní­cio da leitu­ra, tive pre­con­ceito em achar que a história não teria uma potên­cia poéti­ca uni­ver­sal na lin­ha de tra­bal­hos autorais como de Emilio Fra­ia e DW Rib­ats­ki (“Cam­po em Bran­co”) ou do próprio Craig, mas não. Mes­mo com uma nar­ra­ti­va que fre­qüen­ta ambientes/paisagens estadunidens­es, o impacto da obra uni­ver­sal­iza o que somos e o que podemos ser… É surpreendente!

    Estru­tu­ra­do em 12 capí­tu­los “auto­con­ti­dos” (encader­na­do em dois vol­umes: “Pon­to de Par­ti­da” e “Fim da Jor­na­da”, pelo Devir Livraria), as histórias estão demar­cadas na vida de Megan McK­eenan, uma jovem em bus­ca de novas exper­iên­cias, que segue via­jan­do pelos EUA atrás de si mesma.

    Cada capí­tu­lo situa Megan numa cidade-aven­tu­ra, no qual ela vive uma série de situ­ações cotid­i­anas com pes­soas nor­mais, que vivem seus prob­le­mas, suas con­quis­tas, afe­tivi­dades e deses­per­os, que nem sem­pre é fácil de enten­der: um mer­gul­ho nas particularidades.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-3Entre empre­gos, namora­dos, sus­tos, exper­iên­cias cul­tur­ais, decepções e ima­turi­dades, Megan nos encan­ta com sua von­tade de descen­trar o Eu que a habi­ta, pul­ver­izan­do as raízes que a pren­dem no chão, car­regan­do nas costas sua mochi­la rec­hea­da de dese­jos e son­hos. Que­brar as lin­has rígi­das do mapa e com­preen­der-se enquan­to car­tografia: se jog­ar sem medo ou cul­pa, pelo Não do previsível.

    Megan cam­in­ha pela cidade encarando‑a como um lab­o­ratório de sen­si­bil­i­dades. Talvez ela não com­preen­da ini­cial­mente a força dos ele­men­tos afe­tivos que está crian­do, mas do decor­rer da nar­ra­ti­va é pos­sív­el acom­pan­har que cada espaço prat­i­ca­do rep­re­sen­ta uma micro-rev­olução fun­da­men­tal na con­strução da sua personalidade.

    Megan muda seu olhar para o mun­do a cada apren­diza­do vivi­do. Poten­cial­iza os estil­haços recol­hi­dos dos con­fron­tos urbanos inte­ri­ores e das pes­soas que habitam estas ten­sões. Ser a soma dos cruza­men­tos das avenidas, dos gri­tos e estouros alheios, dos par­ceiros de quar­to mal-resolvi­dos, do irmão prob­lemáti­co e dos corações-fan­tas­mas. Histórias muitas vezes incon­clusas, encer­radas às pres­sas com um bil­hete de despedida.

    A paixão de Megan pela fuga/deambulação/desprendimento dos cen­tros de fix­idez vem des­de a infân­cia, quan­do avisa­va para a mãe que esta­va fug­in­do para algum lugar e tin­ha como respos­ta: “Mas daqui a pouco é hora de jan­tar. O que você vai com­er? Quem vai coz­in­har pra você?”.

    Capa do Vol. 2
    Capa do Vol. 2

    Sua primeira ten­ta­ti­va de explo­rar o mun­do foi frustra­da, pois não pas­sou do “car­val­ho no nos­so quin­tal da frente”. A supos­ta “indifer­ença” da mãe em torno das fugas era, na ver­dade, um incen­ti­vo para que Megan seguisse seu des­ti­no sem medo de sonhar.

    Enquan­to nos­sas mães nos sufo­cam com pro­teção e mimo, “ela esta­va removen­do qual­quer obstácu­lo que sur­gisse no meu cam­in­ho. Ela que­ria que eu me sen­tisse livre”. A mãe era víti­ma de uma pro­fun­da prisão inte­ri­or, e não dese­ja­va o mes­mo à filha.

    A mãe atua como espaço livre de trav­es­sia para o mun­do em con­strução. A figu­ra pater­na aparece como ele­men­to repres­sor na jor­na­da, mas nada que atra­pal­he seus obje­tivos: “Meu pai nun­ca a desafiou [mãe], nun­ca levan­tou um dedo para tirá-la da sua roti­na diária. Acho que na cabeça dela, me lim­i­tar seria uma for­ma de mau trato”.

    Apren­den­do com a mãe que o desprendi­men­to rep­re­sen­ta os son­hos e a esper­ança da liber­dade, Megan só encer­ra sua cam­in­ha­da quan­do a pontes entre o coração mater­no e o mun­do rompem-se com a vio­lên­cia ines­per­a­da da morte.

    Após o falec­i­men­to da mãe, é hora de voltar. A dis­per­são e a iden­ti­dade flâneur con­vertem-se em fechadu­ra-por­ta-casa. Ago­ra é pre­ciso sen­tar no sofá, tomar um leite quente e ser impor­tu­na­da por todos os espíri­tos que o pas­sa­do guardou na mochi­la. Quan­tos ter­ritórios te perseguem? Quan­do amores não enter­ra­dos te per­tur­bam? Quan­tas feri­das não cica­trizaram na memória? Qual o preço de per­cor­rer tan­tos uni­ver­sos em bus­ca da liber­dade? Os fan­tas­mas “querem saber por que você os abandonou?”.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-4O trân­si­to pelo mun­do é encer­ra­do (por enquan­to) na casa da fale­ci­da mãe, em Ver­mont, soz­in­ha. O lar mater­no é chave para o auto-con­hec­i­men­to. Recol­her-se para o des­can­so, até que novas aven­turas e con­vites para futur­os saltos apareçam por aí.

    Meu primeiro instin­to é fugir, ir emb­o­ra, sim­ples­mente se esqui­var da questão e evi­tar a situ­ação. Mas não há pra onde fugir. Por que fui emb­o­ra todas aque­las vezes? Eu não sei por quê!”

    Num encon­tro com o espíri­to da mãe, ela con­fes­sa que suas fugas pelo mun­do resul­taram em pro­fun­das crises exis­ten­ci­ais. A solidão da cam­in­ha­da a obrigou a enten­der seus con­fli­tos pes­soais soz­in­ha, já que, até então, nun­ca com­preen­deu por que as pes­soas foram tão hor­ríveis com ela, porque esta­va deslo­ca­da de tudo.

    Pre­cisamos sen­tir saudade, talvez esse foi o erro de Megan: neg­li­gen­ciar tal sentimento.

    local-2008-09-de-brian-wood-e-ryan-kelly-hq-5Sen­ta­da na varan­da da vel­ha casa, ela pen­sa: “No fim, o que real­mente impor­ta­va era o que eu pen­sa­va, como eu respon­dia às min­has próprias per­gun­tas. Demor­ei muito tem­po pra perce­ber isso. E com o tem­po, eu fiquei ver­dadeira­mente feliz comi­go mesma.”

    O retorno ao anti­go lar move a per­gun­ta final: “A sua cidade natal se impor­ta com você?”

    Somos como Megan. Sujeitos em construção/contradição. Um pedaço de muitos lugares, cacos de muitas esquinas, retal­hos de amores feri­dos, rup­turas em bus­ca de aconchego, mutações diárias, ilhas descon­heci­das. Somos conexões de olhares e sabores de cidades pas­sadas. De nen­hum lugar, de todos os lugares.

    No final, o cheiro da infân­cia nos tor­na pes­soas fortes.

  • Uma História de Sarajevo (2005), de Joe Sacco | HQ da Semana

    Uma História de Sarajevo (2005), de Joe Sacco | HQ da Semana

    uma-historia-de-sarajevo-2005-de-joe-sacco-hq-da-semana-capaDiante das ten­sões políti­cas que estão explodin­do na Ucrâ­nia, Síria e uma pos­sív­el re-polar­iza­ção inter­na­cional, ten­to mon­tar o que­bra-cabeças indi­vid­ual des­ta con­jun­tu­ra tur­bu­len­ta. Esse “redesen­har” de fron­teiras do Leste europeu e adjacên­cias me obrigam a com­preen­der (como pro­fes­sor de História) min­i­ma­mente isso tudo. Assim, des­de que tive aces­so às reflexões de Edward Said com “Ori­en­tal­is­mo” (2007), da dire­to­ra de cin­e­ma Kathryn Bigelow e das con­ver­sas em sala de aula, fui atrás de novas refer­ên­cias sobre algo que descon­hece­mos: O out­ro lado do mapa.

    No meu trân­si­to de leitor/HQ amador, encon­trei por aca­so dois nomes bem posi­ciona­dos no debate políti­co que segue: Joe Sac­co e Enki Bilal. Hoje quero falar de Sac­co, ape­sar de Bilal pos­suir algu­mas con­vergên­cias poéti­cas muito inter­es­santes com ele. Talvez o explore nas min­has próx­i­mas pon­tas soltas.

    Após sor­rir e chorar com “Der­ro­tista” (2006) retiro da estante “Uma História de Sara­je­vo” (2005). Esse livro pren­deu min­ha leitu­ra numa sen­ta­da, pois ele rev­ela o quan­to descon­hece­mos as cica­trizes de um dos con­fli­tos mais san­gren­tos da História: o con­fli­to na Bós­nia entre 1992–95.

    Joe Sacco (por Don Usner)
    Joe Sac­co (por Don Usner)

    Com seu tal­en­to volta­do para o jor­nal­is­mo em quadrin­hos, o escritor maltês desven­da o cenário de guer­ra a par­tir de um con­jun­to de lem­branças da sua fonte mais per­ti­nente: o ex-sol­da­do, Neven.

    A par­tir de pequenos paga­men­tos (bebidas, almoços) a Neven, Sac­co é fis­ga­do para visu­alizar uma memória san­grenta, mar­ca­do por gru­pos para­mil­itares que coman­davam o con­fli­to na Bós­nia, for­ma­do por ex-pre­sidiários, mer­cenários, artis­tas e qual­quer um que deci­da lutar por Sara­je­vo “livre”.

    Neven é seu guia, um com­pan­heiro fun­da­men­tal: “Enten­da, estou vul­neráv­el. É uma guer­ra pelo amor de Deus, e ago­ra que eu me envolvi nela pre­ciso de um ombro ami­go (…), alguém que me car­regue suave­mente pelas ruínas”.

    Através da rigidez típi­ca do seu traço em p&b, somos lev­a­dos a um uni­ver­so com­ple­ta­mente descon­heci­do aos oci­den­tais (leitores da impren­sa ofi­cial), no qual o sig­nifi­ca­do da vida perde o val­or em nome da “limpeza étni­ca”, chamus­ca­da por uma com­plexa teia envol­ven­do religião, geopolíti­ca, intri­gas e morte.

    Seu quadrin­ho-doc­u­men­tário nar­ra o proces­so de desin­te­gração da Iugoslávia (1991), enquan­to “na Bós­nia, a repúbli­ca de maior mis­tu­ra étni­ca, tudo parece estar em paz na cap­i­tal Sara­je­vo, enquan­to políti­cos nacional­is­tas sérvios debatem acalo­rada­mente o futuro da ter­ra que divi­dem”. Com o pós-guer­ra fria e o des­man­te­lo da URSS, novos inter­ess­es geopolíti­cos con­fig­u­ram-se, prin­ci­pal­mente a eman­ci­pação de país­es antes vin­cu­la­dos ao gigante soviéti­co. Na Bós­nia, a situ­ação não foi diferente.

    Trecho de "Uma História de Sarajevo"
    Tre­cho de “Uma História de Sarajevo”

    Nesse sen­ti­do, Neven faz um retra­to da frag­men­tação a par­tir da for­mação de gru­pos arma­dos que bus­cam impedir o cer­co a Sara­je­vo pelos sérvios e croatas. No con­jun­to de sol­da­dos ded­i­ca­dos ao con­fli­to, os eixos nar­ra­tivos prin­ci­pais cir­cu­lam nas exper­iên­cias mil­itares como Ismet Bajramovic, Jusuf Praz­i­na, Musan Tapalovic e Ramiz Delal­ic, e seus pequenos impérios de sangue. Vale a pena fris­ar que não há didatismo na obra, aqui você não vai “apren­der” sobre o con­fli­to na Bós­nia, mas sim mer­gul­har nos seus destroços.

    Ao tran­si­tar por estes líderes, Neven rela­ta uma história até então pouco con­heci­da sobre o con­fli­to, da ascen­são dos gru­pos para­mil­itares, as atro­ci­dades cometi­das aos civis, o impacto políti­co que tais “exérci­tos” provo­caram na esfera políti­ca nacional até seu enfraque­c­i­men­to total, após a Bós­nia neu­tralizar suas zonas de atu­ação “ile­gais”.

    Página da HQ
    Pági­na da HQ

    Neven declara que “começam a se acu­mu­lar provas com­pro­m­ete­do­ras con­tra out­ros sen­hores da guer­ra (…) incluin­do o assas­si­na­to de cidadãos, em espe­cial sérvios (…) os anti­gos heróis de Sara­je­vo não serão per­doa­d­os. Eles ameaçaram a autori­dade do gov­er­no em casa e o enver­gonharam fora dela”.

    Como con­fi­ar em Neven? Que lim­ites Sac­co esta­b­ele­ceu para con­stru­ir uma ponte entre a amizade e a con­fi­ança entre os dois? Afi­nal, o que este con­fli­to rep­re­sen­ta para nós? Para Bruno Gar­cia, “con­trar­ian­do o bom sen­so, o con­fli­to com­ple­ta [22] anos sendo melan­col­i­ca­mente igno­ra­do pela impren­sa inter­na­cional, que parece já ter extraí­do do even­to tudo que era pos­sív­el para vender jornais”.

    A con­tribuição de Sac­co para ilu­mi­nar nos­sos olhares para o Out­ro reforça o abis­mo cri­a­do pelos oci­den­tais, diante de con­fli­tos expos­tos nos tele­jor­nais na hora do jan­tar. Até quan­do não vamos enx­er­gar as crises inter­na­cionais como algo que nos afe­ta dire­ta­mente? Inspi­ra­do em Edward Said, seria o Ori­ente um mito Oci­den­tal? Até quan­do as bom­bas vão explodir em nos­sa indifer­ença? Joe Sac­co, com “Uma História de Sara­je­vo”, provo­ca e atiça com o obje­ti­vo de reti­rar o leitor do lugar comum.

  • Por Dentro do Máscara de Ferro, de Bernardo Aurélio | HQ

    Por Dentro do Máscara de Ferro, de Bernardo Aurélio | HQ

    Será que temos de ser loucos para ser­mos heróis? Será que todos não usamos máscaras?

    Não, aqui você não encon­tra ninguém vesti­do com roupas super-col­ori­das, poderes daque­les que soltam fogo pela boca, raios pelos olhos, muito menos lutas core­ografadas. O tra­bal­ho do quadrin­ista e artic­u­lador cul­tur­al — isso, artic­u­lador: pro­du­tor de ambi­entes cul­tur­ais na área das HQs em Teresina, o que fal­ta a muitos cri­adores hoje em dia — Bernar­do Aurélio pas­sa longe das explosões gra­tu­itas dos nos­sos ama­dos heróis impe­ri­al­is­tas, mas com uma influên­cia fun­da­men­tal no seu proces­so criativo.

    por-dentro-do-mascara-de-ferro-de-bernardo-aurelio-hq-capaAntes de falar de “Por Den­tro do Más­cara de Fer­ro”, vale a pena situ­ar a importân­cia do autor na cena das HQs na cidade. Autor de “Foic­es e Facões – A Batal­ha do Jeni­pa­po” (jun­to com Caio Oliveira, seu irmão e artista dos bons, que par­tic­i­pa do livro como desen­hista con­vi­da­do), Bernar­do faz parte do Núcleo de Quadrin­hos do Piauí, onde orga­ni­za (ao lado de uma equipe muito coer­ente) feiras temáti­cas em Teresina des­de 2001 até então, movi­men­tan­do o cir­cuito dos quadrin­hos inde­pen­dentes por aqui com mui­ta responsabilidade.

    O culpo diari­a­mente por me tornar um apaixon­a­do pelos quadrin­hos há quase um ano. Depois da indi­cação de “Bat­man: Ano Um” não con­si­go parar de ler HQs. Enfim, vamos voltar ao que interessa!

    Por Den­tro do Más­cara de Fer­ro” é um livro que te atrai fisi­ca­mente. Grande, ver­mel­ho, com uma capa impos­sív­el de resi­s­tir à leitu­ra, gos­toso de segu­rar e car­regar por aí. Um difer­en­cial que gostei foi o cruza­men­to com out­ras lin­gua­gens, mar­ca­dos pela inserção do tex­to em prosa no iní­cio da história, seguin­do com seus traços em p&b, bem como a pre­ocu­pação com a pais­agem sono­ra nos momen­tos mais impor­tantes da saga. Músi­ca e HQ tran­si­tam no mes­mo espaço.

    Já no índice, Bernar­do lança para o leitor uma tril­ha indi­ca­da, pre­scrição sono­ra que des­obe­de­ci — quan­do come­cei a ler, veio out­ro barul­ho na min­ha cabeça, já que na min­ha con­strução sono­ra do per­son­agem cou­ber­am out­ros sons, como Ten Years After e alguns momen­tos de Neil Young — para exper­i­men­tar out­ras pos­si­bil­i­dades de leitu­ra e exer­cí­cios par­tic­u­lares de imaginação.

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    A cada situ­ação valiosa na tra­ma, Bernar­do faz as indi­cações sono­ras apare­cerem ao leitor, como podemos visu­alizar em Aceleran­do em mar­cha ré, com a tril­ha “Foi tudo cul­pa do amor”, de Odair José ou “As rosas não falam”, de Car­to­la, e out­ras sequên­cias musi­cais artic­u­ladas ao enre­do. Assim, Bernar­do abre espaço para ampli­ar as sen­sações do públi­co, tor­nan­do seu tra­bal­ho mais sonoro-visu­al-pop-exper­i­men­tal. Um jogo de mix­agem que deve ser feito tan­to com as músi­cas sug­eri­das e as que com­põem o uni­ver­so do leitor, sacud­in­do as exper­iên­cias do personagem.

    Numa ofic­i­na de car­ros, o jovem mecâni­co ten­ta recu­per­ar o motor de um Mav­er­ick (entra o som de Alvin Lee e Ten Years After… viu? Não pude evi­tar). Neste cenário é que a história do Más­cara ini­cia em tex­to-prosa. Sua mente está divi­di­da entre o fim de um rela­ciona­men­to e o tra­bal­ho que o con­some, a roti­na, a repetição, a von­tade de mudar o per­cur­so: “ten­ho pen­sa­do em ten­tar coisa nova (…). O prob­le­ma é esse: não sei o que quero. Só sei que pre­ciso sair dessa ofic­i­na vez ou out­ra (…)”.

    Uma inqui­etação move aque­le mecâni­co, algo esta­va fora do lugar. A oper­ação de reviv­er o Mav­er­ick foi um fra­cas­so. Fecham-se as por­tas da ofic­i­na. A pais­agem fica cada vez mais notur­na e úmi­da. Um leve chu­vis­co, daque­les leves e demor­a­dos, com relâm­pa­gos e tro­vões ao fun­do. Nos­so olho está do lado de fora da garagem aparente­mente vazia e triste, esperan­do algo acon­te­cer, pois dá pra ver lá den­tro que a luz está acesa.

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    A garagem abre. Dois faróis acen­dem (…). A Kom­bi gan­ha a rua. Den­tro dele, pela primeira vez, a alma de um aven­tureiro encon­tra aque­le botão de adren­a­li­na escon­di­do, que inje­ta bati­das fortes no peito”. Eis que explode o Más­cara de Fer­ro.

    Car­ac­ter­i­za­do por uma más­cara típi­ca dos sol­dadores, car­regan­do no seu “cin­to de util­i­dades” um maçari­co, umas chaves de boca e roda, marte­lo, pre­gos, por­cas, um cano e o “anti­go 38 do meu vel­ho pai”, o Más­cara de Fer­ro sai em bus­ca de aven­turas nas noites de Teresina.

    Entre ações frustradas como “super-herói” da noite e explo­rações das suas habil­i­dades, o Más­cara abre para nós uma reflexão que move sua cam­in­ha­da: “Será que temos de ser loucos para ser­mos heróis? Será que todos não usamos más­caras?

    por-dentro-do-mascara-de-ferro-de-bernardo-aurelio-hq-3E assim, vamos acom­pan­han­do o proces­so de autode­scober­ta do Más­cara. Após a cômi­ca “car­ga dramáti­ca” que movi­men­ta a per­for­mance do nos­so herói, ele salta pelo ar e viven­cia um con­jun­to de exper­iên­cias fun­da­men­tais para reor­ga­ni­zar seus sen­ti­men­tos, mes­mo em con­fli­to com seu mel­hor ami­go: “Algu­ma vez, da altura dess­es teus vinte e poucos anos, tu já sen­tiu uma maldita certeza de que que­ria faz­er algu­ma coisa na vida e que só o que te impe­dia era tu mes­mo?

    Cam­in­han­do por Teresina (já escu­ra), ele vai em direção aos seus fan­tas­mas, pois a sua más­cara é o instru­men­to que poten­cial­iza todas as suas von­tades mais sec­re­tas, ago­ra com­par­til­hadas entre nós. É aí que fui imag­i­nan­do os traços auto­bi­ográ­fi­cos em con­vergên­cia entre Más­cara e seu autor, que o toma como ele­men­to para explo­rar pais­agens talvez inabitadas, se não hou­vesse a armadu­ra con­struí­da para tal.

    A bus­ca por justiça, ameaça­da por um dese­jo mal com­preen­di­do? A angús­tia e a von­tade de invadir os olhos da anti­ga ama­da? Uma curiosi­dade insis­tente pela feli­ci­dade dela? Por que tomar os olhos dos out­ros? “Você ain­da não con­seguiu colo­car uma pedra por cima dis­so”? Estaria o Más­cara, (como todos nós) bus­can­do uma armadu­ra para resolver seus con­fli­tos mais ínti­mos? Quan­tas Kás­sias pre­cisamos (diari­a­mente) para exor­cizar nos­sos demônios, a fim de rein­ven­tar a noção de dese­jo e todo aque­le pó que cobre nos­sas taras? Aqui entra Mari­na Lima (na min­ha tril­ha sono­ra), situan­do o amor dos dois: “Os dois cansa­dos, de tan­to amar, empapuça­dos, pra poder fugir, os dois cansa­dos, de via­jar, mar­avil­ha­dos, pra poder fugir, enquan­to você se afas­ta me desen­ter­ro…”.

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    Nada como a água para purificar os con­fli­tos inter­nos, mes­mo com Deus cus­pin­do ver­dades que a gente não quer ouvir. Às vezes a gente toma o apren­diza­do como algo doloroso e é dessa for­ma que vejo o Más­cara, um per­son­agem que car­rega a von­tade de des­bravar todos os seus lim­ites e de con­hecer esferas que fogem das con­venções esta­b­ele­ci­das. Como invadir sem pro­teção? Como não sen­tir dor se algu­mas explo­rações podem nos cus­tar um preço alto?

    Todos os des­bravadores da vida, seja por meio líc­i­to ou não, guardam nas mochi­las suas más­caras de fer­ro, pois o cor­po não supor­ta todas as pressões: “somos tão falíveis”!

    Sen­ta­do na calça­da, con­ver­san­do com uma garo­ta per­to da Ponte Metáli­ca, talvez o Más­cara ten­ha encon­tra­do algum estil­haço que pos­sa ser útil para aliviar seus con­fli­tos. “Sabe o que acon­tece quan­do se pede algo a Deus? Ele te dá a opor­tu­nidade de provar para si mes­mo se você merece o que quer… depende mais de você e das suas escol­has do que da von­tade dele”.

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    Os demônios que o cer­cam são expul­sos para que um Amor pos­sa entrar. O Más­cara enfrenta todos os seus inimi­gos inte­ri­ores, amplia todos os seus hor­i­zontes de exper­iên­cia, para final­mente com­ple­tar seu obje­ti­vo mais impor­tante: se reen­con­trar a par­tir do outro.

    Bernar­do é o Más­cara de Fer­ro? E você? Aonde você esconde a sua? Já explodiu em si mes­mo para arran­car as armaduras que o impe­dem de viv­er um grande amor? Não seria a nos­sa más­cara um artefa­to moral­ista-con­ser­vador diante da mar­avil­hosa pos­si­bil­i­dade de tran­si­tar pelo Infer­no e por vários cor­pos ofer­e­ci­dos por Dino Buz­za­ti? A difer­ença entre Más­cara e Orfi é que aque­le não usa vio­lão para lutar con­tra seus maus espíri­tos, mas con­vergem no mes­mo “inven­tário de ‘baix­ezas’ e de ‘nobrezas’, aque­las que se abrigam no coração de todos” (TOSCANI, Cláudio).

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    Orfi sofre o luto de não cap­turar Eura e o Más­cara vive feliz, jogan­do fora sua armadu­ra para poder (final­mente) olhar sem medo para a mul­her que ama, encer­ran­do uma saga inte­ri­or, pois “pou­cas coisas no mun­do devem ser como estar no fun­do da rede com quem você quer”. A vida segue.

  • Dique (2012), de Adalberto Oliveira

    Dique (2012), de Adalberto Oliveira

    dique-cartazFazia cer­to tem­po que não me impres­sion­a­va com o cin­e­ma inde­pen­dente no Brasil. Esta­va acom­pan­han­do muitos filmes que não me tocavam, mas, ao artic­u­lar a curado­ria da Mostra “Panora­ma Per­nam­bu­co” (jun­to com os cineas­tas Jucélio Matos e Már­cio Farias) — exibi­da em Teresina-PI/2012 — algo inusi­ta­do acon­te­ceu, pois den­tro do pacote com belos filmes real­iza­dos naque­las ter­ras, surge com sur­pre­sa: Dique (um filme de Adal­ber­to Oliveira).

    Dique já par­ticipou de mais de vinte Fes­ti­vais pelo Brasil e pelo mun­do (dez inter­na­cionais), desta­can­do o 1° Fes­ti­val de Cine Lati­noamer­i­cano Inde­pen­di­ente de Bahía Blan­ca, 34º Fes­ti­val Inter­na­cional del Nue­vo Cine Lati­noamer­i­cano — Sec­ción Para­lela VANGUARDIAS, 2ª Mues­tra Inter­na­cional de Cine Inde­pen­di­ente, em Osorno no Chile e o 18° Festvídeo — Fes­ti­val de Vídeo de Teresina, onde tive o praz­er de par­tic­i­par da comis­são jul­gado­ra, em que foi pos­sív­el tornar o vídeo (em votação unân­ime) vence­dor do even­to na cat­e­go­ria Exper­i­men­tal, jun­to com out­ro tra­bal­ho de Adal­ber­to (Case). Ah, sem falar dos out­ros prêmios (mais de dez até o momen­to) con­quis­ta­dos por aí.

    Com direção, desen­ho sonoro e fotografia de Adal­ber­to Oliveira, cap­tação com hidro­fone de Thel­mo Cristo­vam, mix­agem e final­iza­ção de Adel­mo Tenório, pro­dução de Már­cio Farias e assistên­cia de pro­dução de Nico­las Oliveira, Dique é vídeo que prob­lema­ti­za o ato de ver e sen­tir. Tudo começa com a tela escu­ra, exa­lan­do um estran­ho ruí­do… o que nos pos­si­bili­ta artic­u­lar audição e pele, pois a nar­ra­ti­va abre espaço para explo­rar out­ros sen­ti­dos, além dos olhos e ouvi­dos. O que antes é um breve estran­hamen­to, tor­na-se (em segun­dos), imer­são completa.

    Somos lança­dos numa pais­agem dura, con­trastante, onde as pedras de Casa Caia­da dom­i­nam a cena. Aqui pos­so visu­alizar um exer­cí­cio paciente na bus­ca pelo supos­to equi­líbrio entre a crueza das pedras que demar­cam o litoral, com suas lin­has tor­tu­osas, atrav­es­sadas pela dis­per­são e des­en­con­tro das for­mas, fric­cio­nan­do a suavi­dade celeste de um céu que me remete às pince­ladas impres­sion­istas, em trân­si­to com os pré­dios que ras­gam o teto azul (ondas dis­tantes rev­e­lam a água como ele­men­to purificador).

    Entre a leveza e a crueza.
    Entre a lev­eza e a crueza.

    O som des­do­bra-se nas ima­gens em sequên­cia. Adal­ber­to vira-se con­tra a pais­agem ante­ri­or e olha deti­da­mente para as ondas — estas sel­vagens ao nos­so olhar – que acari­ci­am as pedras, vis­tas como home­ns solitários.
    Cortes rápi­dos inserem novos ele­men­tos à pais­agem sono­ra de Dique, ago­ra com nuvens pesadas ao fun­do e aves tími­das, sus­ten­ta­dos pela frieza dos pré­dios de uma cidade que aparenta uma leve sonolên­cia, com home­ns escon­di­dos no alto de seus andares, habi­tan­do no coração do dis­tan­ci­a­men­to, as sobras orgâni­cas que moram ali.

    Estaria Adal­ber­to esta­b­ele­cen­do um canal de comu­ni­cação entre o orgâni­co e o inorgâni­co? Estari­am os caranguei­jos con­spir­an­do con­tra nós? Somos Home­ns-caranguei­jos ou Caranguei­jos-home­ns? A beira de Casa Caia­da fica mais escu­ra, o som abafa, pequenos crustáceos em mobi­liza­ção micro.

    Carangueijos-bailarinos.
    Caranguei­jos-bailar­i­nos.

    Mais uma vez o ele­men­to-água entra no filme: a chu­va. Ela atua como agente de limpeza e reor­de­na­men­to da pais­agem, que, ao cumprir seu papel, alivia as ten­sões e suaviza os ouvi­dos, através dos choques entre água-pedra. Preparação para out­ros exercícios.

    Rad­i­cal­mente, somos sur­preen­di­dos com caranguei­jos gigantes, no alto de seu Império, tor­nan­do os home­ns, coisas peque­nas, sem foco, igno­rantes de um mun­do para­le­lo que existe bem a sua frente, a um pas­so do balé som­brio, cor­tante, assus­ta­dor. A água invade a areia, todos desaparecem…

    Pré­dios enfileira­dos dom­i­nam a cena, abrindo espaço para o deslo­ca­men­to do olhar-Natureza para o olhar-Homem. Esta con­tradição é inter­mináv­el, cícli­ca, que faz do Homem um ser que nega àquela, mas ao mes­mo tem­po, depende dos seus recur­sos para afir­mar sua separação.

    O olho do cineas­ta con­tem­pla a cidade num exer­cí­cio remete aos capí­tu­los não lin­ear­es de “Can­to de Aves Pam­peanas 1”, do argenti­no Nicolás Testoni, artic­u­lan­do uma von­tade con­jun­ta em expres­sar a pais­agem – não-imo­bilista – como estru­tu­ra que se move para frente, redefinin­do o mosaico de impressões que nos­sos olhos procu­ram detec­tar na con­fusa mis­tu­ra de ele­men­tos de uma cidade que bro­ta, e nasce toda tor­ta… cam­baleante, cheia de cores, ten­sion­adas entre árvores sobre­viventes do impe­ri­al­is­mo urbano.

    Dique joga com con­trastes, rein­ven­ta as pais­agens e reforça sua inqui­etação con­stante — den­tro da min­ha leitu­ra pico­ta­da — Somos Home­ns-caranguei­jos ou Carangueijos-homens?

    Homens-Carangueijos?
    Home­ns-Caranguei­jos?

    O Sol vai cain­do, jun­to com a sobera­nia do Crustáceo-Rei. Der­ro­ta­do pelo tem­po (ali­a­do do silên­cio) inva­sor de cor­pos e car­caças, ele abre cam­in­ho para o lambe-lambe ger­al das moscas, dançan­do em cima das patas que implo­ram pelo últi­mo movimento.

    A noite dom­i­na. Lá longe, as ondas estão indifer­entes ao olho de Adal­ber­to, pois já estão acos­tu­madas com a sua estran­ha pre­sença, que antes era incô­mo­da, mas ago­ra, — pen­sam as ondas — “não podemos faz­er nada, pois não sabe­mos até que pon­to ele quer nos con­sumir”. E assim elas seguem som­brias, rudes, sel­vagens, tra­bal­hado­ras do mar.

    Dique final­iza sua tra­jetória escon­di­do nas pedras de Casa Caia­da, obser­van­do explosões aéreas arti­fi­ci­ais, bus­can­do enten­der as relações entre as duas pais­agens em diál­o­go con­stante: o Homem e a Natureza. Até que pon­to esta­mos hib­ridiza­dos? Até que pon­to exis­tem fron­teiras entre nos­sas patas e suas mãos? Um estu­do sobre as mudanças, o olhar que prob­lema­ti­za os dis­tan­ci­a­men­tos, um poe­ma visu­al que descon­strói nos­sas zonas de conforto.

    Uma certeza: o filme mais impor­tante que assisti em toda cam­in­ha­da real­iza­da até o momen­to nas min­has leituras do cur­ta-metragem brasileiro. Lá em Per­nam­bu­co, o cin­e­ma inde­pen­dente está fervil­han­do de Home­ns e Mul­heres que fazem um serviço sério. Tomem nota! Não adi­anta Adal­ber­to, seu filme saiu de Olin­da para con­quis­tar os olhos do mundo.

    Para mais infor­mações, visi­ta o blog ofi­cial do filme.

    Veja o trail­er abaixo:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=c1NCfN5BMK8

  • DOC de Amor (2010), de Jucélio Matos

    DOC de Amor (2010), de Jucélio Matos

    Esse amor sem razão.
    Sem val­or amanhã.
    Mes­mo assim arderá eternamente.

    Mari­na Lima

    O cin­e­ma brasileiro inde­pen­dente col­he seus fru­tos. Vive­mos uma fase mar­ca­da pelas novas pos­si­bil­i­dades de pro­dução audio­vi­su­al em vir­tude da democ­ra­ti­za­ção das mídias e suporte de expressão. Hoje é pos­sív­el colo­car em práti­ca ideias, até então amar­radas pela lim­i­tação dos recur­sos téc­ni­cos, que esta­va disponív­el nas mãos de poucos. Ago­ra podemos cri­ar e faz­er cin­e­ma no Brasil em per­spec­ti­va plur­al, exper­i­men­tan­do a lin­guagem den­tro de nos­sas via­bil­i­dades e dese­jos de cri­ação, com nos­sos celu­lares, máquinas fotográ­fi­cas e demais dis­pos­i­tivos móveis.

    Novos doc­u­men­taris­tas surgem nes­sa safra cria­ti­va, pro­duzin­do sen­ti­do à História – seja na políti­ca, nos debates soci­ais, religião, etc — no caso de Jucélio Matos, às histórias das sen­si­bil­i­dades con­tem­porâneas. Ao ini­ciar seus estu­dos sobre cin­e­ma em 2004, Jucélio se rev­el­ou para a cena audio­vi­su­al per­nam­bu­cana em pouco tem­po, com o filme Doc de Amor (2010).

    Real­iza­do para um tra­bal­ho de con­clusão de cur­so da Fac­ul­dade Mau­rí­cio de Nas­sau, o filme já des­bravou qua­tro fes­ti­vais (Fes­ti­val Brasileiro de Cin­e­ma Uni­ver­sitário (RJ), Cur­ta Cabo Frio (RJ), Fes­ti­val do Filme etno­grá­fi­co do Recife (PE) e Arra­ial Cine Fest (BA)) e vem gan­han­do espaço por onde pas­sa, ao explo­rar um tema descon­cer­tante e mis­te­rioso para muitos de nós: o Amor.

    O filme apre­sen­ta um mosaico de histórias: expon­do a vida de várias pes­soas comuns viven­do seu dia-dia, sejam nos pos­tos de gasoli­na, nos bares, nas coz­in­has, nas casas, nas aven­turas ou nos lanch­es habit­u­ais de fim de tarde. Em cada coração que tran­si­ta no filme, podemos encon­trar difer­entes reina­dos, que deci­dem as for­mas de viven­ciar suas noções de Amor.

    O filme prob­lema­ti­za o ato de amar, vis­to nos depoi­men­tos como rup­tura das con­venções, que antes pren­di­am nos­sos cor­pos numa estru­tu­ra rígi­da, sus­ten­ta­do pelo sen­so mas­culin­izante da sociedade, lim­i­tan­do as pos­si­bil­i­dades de exper­i­men­tação dos sentidos.

    Jucélio sabe cap­tar os aro­mas das per­spec­ti­vas, das vozes que pren­dem o espec­ta­dor nas nar­ra­ti­vas mais ínti­mas, na bus­ca de pro­duzir vários sabores que se aprox­i­mam do pal­adar de Rodol­fo, o coz­in­heiro real, espe­cial­ista em trans­for­mar o Amor num con­jun­to de porções regadas à sal­a­da verde (lev­eza), com um toque de arroz mar­ro­quino (con­sistên­cia), mescla­do com pro­teí­na — entre o salmão e o camarão (ener­gia e tran­qüil­i­dade), fechan­do com um café e choco­late, para não perder o ânimo.

    Nem sem­pre o Amor é vis­to como trân­si­to de liber­dade. Ele tam­bém é con­t­role e dis­ci­plina, como aque­le pote de jujubas que você não pode devorá-lo de ime­di­a­to, mas só pode com­er um, sob o monopólio de uma tuto­ra, que impede o dese­jo de se lam­buzar no açú­car. É o que podemos ver no reina­do de Paula, que percebe o Amor numa lóg­i­ca de jogo e con­t­role – muitas vezes de for­ma tirâni­ca – para ger­ar “fun­cional­i­dade” e medi­da na relação. Para ela, “amar é cas­ti­go. Nada sobre con­t­role, tudo em peri­go. Adoráv­el pen­itên­cia, chicote ami­go. Se chegar a falên­cia, mor­ro con­ti­go”.

    Entre comi­da e con­t­role, temos expec­ta­ti­va e morte, entre risos e timidez, temos a rep­re­sen­tação cêni­ca que faz do Amor um grande espetácu­lo, demar­can­do as fron­teiras entre o real e o dese­jo. Até que pon­to nos é per­mi­ti­do que­brar mais de um pote e saciar nos­sa fome?

    Cada vida aber­ta nos ensi­na que o Amor não é vis­to ape­nas por um ângu­lo, mas vivi­dos em múlti­p­los olhares não-con­tem­pla­tivos, que fazem do sen­ti­men­to um cam­po de exper­iên­cias e tro­ca de sen­si­bil­i­dades, mes­mo que o out­ro não fale sua lín­gua, ou que não con­si­ga viv­er no mes­mo teto. Os amores enquan­to proces­so, fluxo e instru­men­to de redefinição con­stante de cada indivíduo.

    O filme não expõe o Amor enquan­to efe­ti­vação, resul­ta­do final, pre­vis­i­bil­i­dade, o que Jucélio procu­ra é tran­si­tar pelas exper­iên­cias que se colo­cam diante de nós, para com­par­til­har um con­jun­to de visões em proces­so de con­strução, muitas vezes não-ditas no uni­ver­so sen­so-comum, que é vigia­da pela estu­pid­ez da vir­il­i­dade machista, restri­ta ao moral­is­mo tri­un­fante do homem sifil­izador e da mul­her recata­da, enri­je­ci­da pela tradição do cor­po que se fecha para os pos­síveis e impossíveis.

    Para­le­lo às nar­ra­ti­vas, Jucélio explo­ra no filme o uso de leg­en­das para con­tar out­ra história, exigin­do do espec­ta­dor atenção redo­bra­da no cruza­men­to entre o tex­to e as ima­gens. Era uma vez, um príncipe que “só gosta­va de príncipes”, com receio de perder todas as suas riquezas, o príncipe “decide escr­ev­er um dis­cur­so a todo seu reina­do”, um pro­nun­ci­a­men­to que fala do Amor.

    Para rece­ber inspi­ração, o príncipe vai à bus­ca de con­viv­er com pes­soas que com­par­til­havam das mes­mas emoções. As leg­en­das que nar­ram esta história não apare­cem numa ordem defini­da, mas durante todo o filme, dis­per­sas entre as vozes que rev­e­lam seus amores ao espec­ta­dor. As leg­en­das tam­bém são uti­lizadas em algu­mas cenas para acom­pan­har simul­tane­a­mente os depoimentos.

    Quan­do entre­vista Rodol­fo, Jucélio exper­i­men­ta tro­car a voz do depoente pelas leg­en­das, onde a entre­vista é tex­tu­al­iza­da, a par­tir de um corte na cena, para invert­er a relação que o espec­ta­dor man­tinha até então com o filme. Nesse momen­to, quem assiste é tam­bém leitor, ao acom­pan­har a con­ver­sa entre os dois, a par­tir do tex­to disponív­el, silen­cian­do as vozes, ao destacar ima­gens de Rodol­fo no tra­bal­ho, coz­in­han­do, despre­ocu­pa­do com a pre­sença da câmera, que fixa o olhar em seus movi­men­tos quase automáti­cos na cozinha.

    Jucélio Matos, dire­tor do documentário

    Já no final do filme, Jucélio retoma as leg­en­das para con­cluir que o príncipe, ao escr­ev­er seu dis­cur­so, “apron­tou-se ele­gan­te­mente… e desis­tiu. Não havia sen­ti­do em falatório algum. Porque ape­sar de amor rimar tan­to com dor, ele resolveu acred­i­tar no tem­po pre­sente. Inde­pen­dente em qual lado do espel­ho estivesse. E a real­i­dade e ficção viraram assim, um só amor”.

    Seria o príncipe do Doc de Amor uma exten­são de Jucélio? Ou nos­sas exten­sões mais ínti­mas, postas em questão? Para aden­trar neste uni­ver­so que se des­faz com uma névoa bran­ca, que se perde entre as fol­has e o céu, é pre­ciso se per­mi­tir, ati­var todos os poros que ain­da nos restam para con­sumir e ser con­sum­i­do pelos amores que com­par­til­hamos num espaço aber­to-fecha­do-aber­to, num exer­cí­cio con­stante de rein­venção dos con­ceitos que cer­cam o Amor, a fim de torná-lo livre, para degus­tações afe­ti­vas, em quem sabe, efetivas…

    O sol rea­parece, os cor­pos são obri­ga­dos a se sep­a­rar… é hora de ir emb­o­ra para casa… mas, como diz Jorge Maut­ner*, “min­has lágri­mas se acabaram, mas não a von­tade de chorar… só o amor pode matar o medo”.

    Esse é o Doc de Amor, meu Doc de Amor, que Jucélio Matos fez para o mun­do. Por uma história das sensibilidades.

    * Jorge Maut­ner em Ressureições do álbum Revirão (Warn­er Music), de 2007