Iniciando o nosso ciclo de entrevistas com autores nacionais de Histórias em Quadrinhos, conversamos diretamente de Curitiba com o André Caliman, que recentemente teve seu projeto “Revolta!” financiado pela plataforma Catarse.
André também é escritor, ilustrador, caricaturista e professor. Ele foi um dos criadores da revista Quadrinhópole e também da revista Avenida, possuindo vários de seus trabalhos publicados tanto nacionalmente quanto internacionalmente, como as HQs: “Rua”, “Fire”, “Sequestro em Três Buracos” e “E.L.F”.
Como surgiu a ideia de criar “Revolta” e qual foi o estopim para o projeto sair apenas do mundo das ideias?
Escrevi e desenhei o primeiro capítulo em Outubro de 2012. A situação não era a mesma que vivemos agora. Na verdade era bem o contrário. Pairava no ar uma calmaria desconfortável. Parecia que um jogava no outro a culpa por ninguém fazer nada com relação aos escândalos de corrupção. Quantas vezes, em alguma discussão política, eu ouvia alguém falar, não necessariamente pra mim: “Ah, é?! E você, o que está fazendo sobre isso?”
Outro comentário recorrente era: “Quero ver quando chegar algum maluco e matar esses ladrões!”
Nessa época eu queria fazer um projeto meu, e algo que fosse relevante, que falasse sobre o momento atual e sobre essas pessoas que eu encontrava em bares, faculdades, etc. Imaginei o que aconteceria se as pessoas se revoltassem. Ou ao menos, se uma pessoa se revoltasse.
O resto da história veio naturalmente.
Você já pensava desde o início em utilizar o crowdfunding para viabilizar uma versão impressa da HQ?
Não, a ideia era simplesmente escrever e desenhar e esperar que as pessoas lessem. Eu não sabia muito bem no que isso ia dar. O primeiro capítulo, que retrata o bar que eu sempre frequentava e os amigos com os quais eu sempre estava, foi umas das coisas mais divertidas que já fiz. Quando a história foi tomando corpo e vi que seria um grande livro e precisava ser publicado o quanto antes, pois a realidade se mostrou coerente com a ficção, o Catarse pareceu a melhor opção, me valendo do público que já acompanhava a HQ na internet.
Como foi o planejamento para criar a campanha deste seu primeiro projeto de crowdfunding? Onde você sentiu, ou sente, mais dificuldade?
“Revolta!” é uma HQ mais marginal, violenta, transgressora. E quando coloquei ela no Catarse, me deparei com uma suposta obrigação de torná-la comercial, um produto que precisava ser comprado. E o desafio foi fazer isso sem descaracterizar a obra e sua intenção provocativa. Acho que deu certo.

Há vários projetos de HQs que conseguiram ser viabilizados graças a essa nova dinâmica, para citar apenas alguns: “GNUT”, “RYOTIRAS OMNIBUS” e recentemente o livro “Ícones dos Quadrinhos”. Você acredita que o modelo de crowdfunding pode ser, ou já está sendo, uma grande revolução no cenário nacional dos quadrinhos?
Acho que sim, pois há muito tempo são os próprios autores de quadrinhos que fazem o mercado nacional. As editoras tem uma misteriosa dificuldade para apostar em coisas novas e autores novos. Então o Catarse vem como uma ferramenta para tirar essa dificuldade que os autores tem de atingir o seu público e vender seu produto diretamente.
Por que você decidiu lançar a HQ gratuitamente na internet? Você acredita que isto pode ter um impacto negativo numa futura venda da versão impressa de algum projeto deste tipo?
Acho que não. Pretendo manter o público que começou a ler a HQ gratuitamente no blog, fazendo-os conhecer mais do material e eternizá-lo em suas prateleiras com o livro impresso. Fora que essa inciativa de publicar gratuitamente também teve um intuito de atingir um público mais amplo, que não está acostumado e comprar quadrinhos. Mesmo porque, antes disso, precisa saber que existem bons quadrinhos sendo feitos.
Você já trabalhou roteirizando e desenhando (“FIRE” e “Avenida”), somente desenhando (“E.L.F.” e “Sequestro em Três Buracos”) e recentemente participou em um projeto que apenas roteirizou. Qual você mais gosta de fazer? Como foi trabalhar só escrevendo?
Eu gosto cada vez mais de escrever. E a atualidade está me dando muitas ideias que quero abordar. Não consigo mais me satisfazer desenhando roteiros de outras pessoas que falam de personagens que já não existem há cem anos.
E, para mim, a única forma de ser um quadrinista completo é escrever e desenhar histórias próprias. Recentemente eu escrevi um roteiro que foi desenhado por uma quadrinista super talentosa daqui de Curitiba, a Marina Tyemi, e gostei da experiência.
Mas como disse, não é um trabalho autoral completo.
Você também já possui trabalhos publicados no exterior (“E.L.F.” e “Fire”), como foi essa experiência?
Antes ainda de me formar, comecei a desenhar a série E.L.F. escrita pelo Jason Avery. Antes disso, eu havia feito apenas revistas independentes, então foi um momento de profissionalização do meu trabalho. Tinha muita preocupação com o resultado, e isso me fez crescer muito, pensando novas formas de resolver meu desenho.
Também foi muito bom ser bem remunerado e publicado lá fora. É um mercado para o qual eu quero voltar, mas com projetos próprios.
Falando em publicar no exterior, há planos de no futuro sair uma versão em inglês de Revolta?
Sim. Mas antes preciso publicar aqui. A história pertence a este país e esse é o momento de ser publicada aqui. Mas num passo seguinte, com certeza.
Acho que o tema da Revolta é universal. E os conflitos dos personagens da HQ com certeza são reconhecíveis em qualquer parte do mundo. E isso fica provado com algumas críticas que recebo no blog onde a HQ é publicada. As pessoas sempre criticam aquilo que as aflige, que as provoca. E na minha opinião, é isso que uma boa história deve causar nas pessoas.
Quais são os autores e artistas que exercem algum tipo de influência no seu trabalho?
Muitos, mas eu poderia citar alguns: Hugo Pratt, Flavio Colin, Victor de La Fuente, Dino Battaglia, Lourenço Mutarelli.
Se você pensar na sua trajetória até agora no mundo dos quadrinhos, houve algo específico que te deixou extremamente revoltado?
Algo óbvio: As editoras nacionais se empenharem tanto em republicar material estrangeiro e não fazerem muito esforço para apostar em algo feito aqui, muitas vezes com uma qualidade maior.
Inclusive autores brasileiros que estão acostumados a publicar por editoras estrangeiras, que possuem trabalhos autorais superiores ao que fazem lá fora, encontram dificuldade em achar espaço com as editoras daqui.
Acho que a atitude a ser tomada pelas editoras é: Apostar em coisas novas e interessantes. Os autores já estão fazendo isso, e se elas não os acompanharem, vão ser deixadas cada vez mais de lado.
Na maioria das vezes que te vi desenhando Revolta, você estava com fone de ouvido. Que tipo de música você costuma escutar para desenhar?
Na maioria das vezes ouço palestras filosóficas. Hahaha
Ouço todo tipo de música.
Analisando o cenário atual de HQs, tanto nacionalmente quanto internacionalmente, quais são os quadrinistas que mais estão chamando a sua atenção?
Gipi, Sean Murphy, Danilo Beyruth, Cyril Pedrosa, Guazzelli, Craig Thompson.
Muito se discute sobre os novos jeitos de se criar quadrinhos na web, adicionando animações, interatividade e até realidade aumentada. Como você vê isso? Acredita que ainda possam ser chamados de quadrinhos ou é outra coisa? Tem alguma dessas novas possibilidades que você gostaria de explorar?
Quando você muda de formato, é natural que perca alguns elementos e ganhe outros. Acho que essas possibilidades tem que ser bem aproveitadas. E se chegarem ao ponto de se tornarem outra coisa que não quadrinhos, ótimo. Os quadrinhos vão continuar do jeito que são.
Não penso em nada do tipo agora, mas é uma possibilidade.
Na maioria de seus quadrinhos você sempre aparece de alguma forma, as vezes você mesmo é o personagem principal das histórias e em outras as vezes aparece discretamente apenas em um desenho. Essa aparição é algo estilo Hitchcock ou tem algum significado específico?
É inevitável. Em todos os personagens há um pouco de mim e quando eu retrato a mim mesmo, tem um pouco de outras pessoas ali. E isso acontece porque gosto de humanizar bastante meus personagens, torná-los reconhecíveis. A minha melhor referencia sou eu mesmo e as pessoas ao meu redor.
No Revolta, além de você como referência para o “Animal”, há também há seus amigos como inspiração para o visual dos personagens. Até onde eles se misturam com a realidade?
No começo da HQ, eu queria que os personagens fossem eles mesmos, inteiramente. Mas conforme a história foi avançando, os personagens foram se definindo dentro da trama de formas diferentes. E me dei a liberdade de dar autonomia aos personagens, desvinculando-os em parte das pessoas que os inspiraram. Mesmo assim, ainda agora quando vou desenhar os gestos dos personagens ou colocar uma fala nos balões, penso nos meus amigos que serviram de modelo. Isso enriquece e humaniza muito cada um dos personagens.
Alguém já reclamou por ter se visto desenhado em algum dos quadros da HQ?
Não, todo mundo gosta. (até agora)
Você acha que é possível a ideia principal do Revolta sair do papel e se transformar em realidade?
Foi uma sensação estranha quando, em Junho, eu vi na televisão as manifestações no Brasil todo. Foi quase como se a HQ estivesse se tornando realidade, pois esse era o caminho para o qual eu estava direcionando a trama.
Quando eu participei das manifestações, vi e senti o que estava acontecendo, sabia que eu deveria aproximar ainda mais a HQ da realidade. Se antes eu havia invadido as ruas, colando páginas nas paredes, agora as ruas pareciam estar entrando na HQ. As pessoas que eu desenhava gritando agora gritavam de verdade. E eu deixei que elas entrassem de volta nos quadrinhos. E tudo fez muito mais sentido.
Ainda assim, é uma peça de ficção, e o que eu vi se tornar realidade foi o clima da HQ, a intenção de gritar, falar, se revoltar, reclamar. E não se preocupar se tem um bando de gente dizendo que tudo não passa de uma ingenuidade, porque querem parecer cultas e controladas, quando no fundo o que querem é estar ali gritando junto, mesmo na chuva e depois de um dia de trabalho duro.

Vários quadros do Revolta são bastante cinematográficos, as vezes é quase possível escutar o que está acontecendo em cada um deles. Isso me fez ficar imaginando que tipo de trilha sonora a HQ teria. Qual seria a sua indicação de tracklist perfeita para escutar enquanto se lê Revolta?
Acho que de tudo um pouco, não consigo pensar em uma trilha específica. Mas posso dizer que eu colocaria algumas coisas épicas para os capítulos que ainda estão por vir.
Quais ferramentas físicas e virtuais você utiliza para desenhar este projeto?
Eu desenho tudo com pena e nanquim em papel A3. Depois faço um tratamento no photoshop e coloco as letras. Gosto de manter a simplicidade que os quadrinhos permitem.
Muito legal a sua ideia de colar algumas páginas pela cidade, como está sendo o retorno desta iniciativa? Já pensou em colar eles em algum lugar bem inusitado mas ainda não teve coragem?
O retorno é muito bom. As pessoas me mandam e‑mails, comentam, mas a maior parte do retorno é silencioso. Eu gosto de pensar que as pessoas olham a página colada em algum lugar, gostam ou desgostam e voltam à sua vida normal.
Eu sempre penso em colar onde as pessoas possam ler. Pontos de ônibus, paredes de bares, faculdades. Eu faço isso apenas para as pessoas lerem, e não para provocar os donos de estabelecimentos.
Mas eu gostaria de colar dentro dos ônibus ou dentro da prefeitura.
Você já tem ideia no que quer trabalhar depois deste projeto?
Primeiro eu vou tirar férias (curtas). Mas já tem alguns projetos quase acabados que vão sair logo em seguida do Revolta!
Depois pretendo enveredar por quadrinhos jornalísticos por um tempo.
Mas tudo isso só depois de publicar o livro do Revolta!, que é a minha prioridade.
Para finalizar a entrevista: o sentimento de revolta pode ser um grande catalisador, o que te move a desenhar?
Quando eu comecei a ler, quadrinhos e livros (lá na adolescência), me surpreendi com a possibilidade de conhecer novas ideias e principalmente pensar sobre elas, seja concordando ou discordando. É isso que eu busco agora como autor, abordar ideias, de várias formas. E com isso, sacio a minha necessidade de me expressar.
E o que me mantêm escrevendo e desenhando é ver que as pessoas estão lendo.
Por isso, agradeço a todos que acompanham o blog e que contribuíram no Catarse. O livro da “Revolta!” vai existir graças a vocês.
Obrigado.
Leave a Reply