Diante das tensões políticas que estão explodindo na Ucrânia, Síria e uma possível re-polarização internacional, tento montar o quebra-cabeças individual desta conjuntura turbulenta. Esse “redesenhar” de fronteiras do Leste europeu e adjacências me obrigam a compreender (como professor de História) minimamente isso tudo. Assim, desde que tive acesso às reflexões de Edward Said com “Orientalismo” (2007), da diretora de cinema Kathryn Bigelow e das conversas em sala de aula, fui atrás de novas referências sobre algo que desconhecemos: O outro lado do mapa.
No meu trânsito de leitor/HQ amador, encontrei por acaso dois nomes bem posicionados no debate político que segue: Joe Sacco e Enki Bilal. Hoje quero falar de Sacco, apesar de Bilal possuir algumas convergências poéticas muito interessantes com ele. Talvez o explore nas minhas próximas pontas soltas.
Após sorrir e chorar com “Derrotista” (2006) retiro da estante “Uma História de Sarajevo” (2005). Esse livro prendeu minha leitura numa sentada, pois ele revela o quanto desconhecemos as cicatrizes de um dos conflitos mais sangrentos da História: o conflito na Bósnia entre 1992–95.
Com seu talento voltado para o jornalismo em quadrinhos, o escritor maltês desvenda o cenário de guerra a partir de um conjunto de lembranças da sua fonte mais pertinente: o ex-soldado, Neven.
A partir de pequenos pagamentos (bebidas, almoços) a Neven, Sacco é fisgado para visualizar uma memória sangrenta, marcado por grupos paramilitares que comandavam o conflito na Bósnia, formado por ex-presidiários, mercenários, artistas e qualquer um que decida lutar por Sarajevo “livre”.
Neven é seu guia, um companheiro fundamental: “Entenda, estou vulnerável. É uma guerra pelo amor de Deus, e agora que eu me envolvi nela preciso de um ombro amigo (…), alguém que me carregue suavemente pelas ruínas”.
Através da rigidez típica do seu traço em p&b, somos levados a um universo completamente desconhecido aos ocidentais (leitores da imprensa oficial), no qual o significado da vida perde o valor em nome da “limpeza étnica”, chamuscada por uma complexa teia envolvendo religião, geopolítica, intrigas e morte.
Seu quadrinho-documentário narra o processo de desintegração da Iugoslávia (1991), enquanto “na Bósnia, a república de maior mistura étnica, tudo parece estar em paz na capital Sarajevo, enquanto políticos nacionalistas sérvios debatem acaloradamente o futuro da terra que dividem”. Com o pós-guerra fria e o desmantelo da URSS, novos interesses geopolíticos configuram-se, principalmente a emancipação de países antes vinculados ao gigante soviético. Na Bósnia, a situação não foi diferente.
Nesse sentido, Neven faz um retrato da fragmentação a partir da formação de grupos armados que buscam impedir o cerco a Sarajevo pelos sérvios e croatas. No conjunto de soldados dedicados ao conflito, os eixos narrativos principais circulam nas experiências militares como Ismet Bajramovic, Jusuf Prazina, Musan Tapalovic e Ramiz Delalic, e seus pequenos impérios de sangue. Vale a pena frisar que não há didatismo na obra, aqui você não vai “aprender” sobre o conflito na Bósnia, mas sim mergulhar nos seus destroços.
Ao transitar por estes líderes, Neven relata uma história até então pouco conhecida sobre o conflito, da ascensão dos grupos paramilitares, as atrocidades cometidas aos civis, o impacto político que tais “exércitos” provocaram na esfera política nacional até seu enfraquecimento total, após a Bósnia neutralizar suas zonas de atuação “ilegais”.
Neven declara que “começam a se acumular provas comprometedoras contra outros senhores da guerra (…) incluindo o assassinato de cidadãos, em especial sérvios (…) os antigos heróis de Sarajevo não serão perdoados. Eles ameaçaram a autoridade do governo em casa e o envergonharam fora dela”.
Como confiar em Neven? Que limites Sacco estabeleceu para construir uma ponte entre a amizade e a confiança entre os dois? Afinal, o que este conflito representa para nós? Para Bruno Garcia, “contrariando o bom senso, o conflito completa [22] anos sendo melancolicamente ignorado pela imprensa internacional, que parece já ter extraído do evento tudo que era possível para vender jornais”.
A contribuição de Sacco para iluminar nossos olhares para o Outro reforça o abismo criado pelos ocidentais, diante de conflitos expostos nos telejornais na hora do jantar. Até quando não vamos enxergar as crises internacionais como algo que nos afeta diretamente? Inspirado em Edward Said, seria o Oriente um mito Ocidental? Até quando as bombas vão explodir em nossa indiferença? Joe Sacco, com “Uma História de Sarajevo”, provoca e atiça com o objetivo de retirar o leitor do lugar comum.