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  • Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    Cada homem é uma raça, de Mia Couto | Livro

    cada-homem-e-uma-raca-mia-couto-livroCon­heci a lit­er­atu­ra de Mia Couto durante o perío­do em que fiz Doutora­do em Recife. Jun­tei-me a um grupo de estu­dos denom­i­na­do Lit­er­atu­ra Africana: nar­ra­ti­vas da des­col­o­niza­ção, sob a coor­de­nação de Sil­via Cortez Sil­va, min­ha pro­fes­so­ra e ori­en­ta­do­ra. Entre cafez­in­hos, bolos, livros e boa con­ver­sa, Mia Couto foi sendo assim­i­la­do por mim, ou mel­hor, ele foi comi­do, cheira­do, absorvi­do pela min­ha fome de lit­er­atu­ra e poesia.

    Mia Couto nasceu em Beira, Moçam­bique, no ano de 1955. Faz parte de uma ger­ação de escritores africanos de lín­gua por­tugue­sa. Her­dou da cul­tura oral africana a habil­i­dade de ouvir e con­tar nar­ra­ti­vas. Na min­ha edição do livro “Cada homem é uma raça: con­tos” (edi­to­ra Cia das Letras, 2013), inspi­rador dessa resen­ha afe­ti­va e reflex­i­va, ten­ho reg­istra­do na con­tra­ca­pa um breve autó­grafo do autor: “À Ana Cristi­na. Bei­jo. Mia Couto. 2013.” Guar­do com muito car­in­ho esse “quase” encon­tro, já que a obra foi um pre­sente de min­ha ex-ori­en­tan­da do cur­so de História, que ter­mi­nou por se encan­tar com a obra do autor após a leitu­ra de um arti­go meu sobre out­ro de seus livros: “O Out­ro pé da sereia”. Mia Couto é um dess­es autores que encan­ta pela per­for­mance estilista, pela notáv­el capaci­dade que tem de mover para sua escri­ta a sen­si­bil­i­dade e a del­i­cadeza de quem apren­deu que a mel­hor batal­ha não é trava­da nos cam­pos de guer­ra, mas nos domínios da escrita.

    O livro “Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de onze con­tos escritos em uma lin­guagem colo­quial, mas não se engane o leitor, a obra não tem sen­ti­dos fáceis. Assim como a rep­re­sen­tação do numer­al onze, na numerolo­gia, diz respeito ao desafio e batal­ha, o autor irá lançar sob seu leitor uma luta intri­g­ante por sen­ti­dos, já que os con­tos se ref­er­em a uma prob­lemáti­ca bas­tante opor­tu­na para nos­sa con­tem­po­ranei­dade: se cada pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual, qual é a intenção em se lev­an­tar ban­deiras e pre­con­ceitos con­tra o Out­ro? Se cada indi­ví­duo é uma fron­teira, quem me garante que não esta­mos todos em trân­si­to, em amar­go e sin­istro esta­do de embriaguez?

    Os onze con­tos se dis­tribuem pelo espaço do livro, mas ape­nas para que não o per­camos de vista. Eles infini­tam as fron­teiras do leitor e da leitu­ra, os levan­do para out­ros cenários atem­po­rais com per­son­agens que mais pare­cem humanos (talvez sejam). Ain­da no começo da obra, em for­ma­to de frag­men­to, Mia Couto nos faz pensar:

    Min­ha raça sou eu mes­mo. A pes­soa é uma humanidade indi­vid­ual. Cada homem é uma raça, sen­hor Polícia.

    Toda essa advertên­cia para que o leitor se pre­pare para uma desci­da aos sub­ter­râ­neos do son­ho, da lou­cu­ra, da amar­gu­ra, do ciúme, da ausên­cia e da solidão. O que faze­mos quan­do nos­sa humanidade vaga em oscilantes dese­qui­líbrios de desumanidade? O que somos quan­do nos res­ta ape­nas o pesade­lo e a desilusão?

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é um con­jun­to de dese­qui­líbrios nar­ra­tivos equi­li­bra­dos pela suavi­dade e per­spicá­cia do autor, que enche de sen­ti­men­tos e ressen­ti­men­tos os sujeitos que tran­si­tam sob o espaço da obra. No con­to A Rosa Caramela, a per­son­agem é cor­cun­da e magra e tem uma des­ori­en­tação bas­tante ina­bit­u­al: vivia apaixon­a­da por está­tuas. Son­dam alguns que o moti­vo ten­ha sido o son­ho frustra­do de ser noi­va. Ela inven­tara-se noi­va no desas­sossego dos seus son­hos em ter uma fes­ta de casa­men­to com bril­hos e corte­jos. Enam­orou-se de está­tuas com a lev­eza de quem se apaixona pela frieza do amor não cor­re­spon­di­do. Era sua lou­cu­ra que a fazia perder o juí­zo? Ou teria sido a fal­ta de afe­tivi­dade com aque­la que era sem beleza para se aco­modar na (ir)realidade de um casamento?

    A lou­cu­ra de Rosa Caramela cruza-se na nar­ra­ti­va com a do Tio Geguê e do seu sobrin­ho, que pas­sam a nar­ra­ti­va viven­do em um uni­ver­so de insanidade e alu­ci­nação. Os dois per­son­agens vivem cada um a seu modo a desilusão da guer­ra e da orfan­dade. O Tio Geguê havia se tor­na­do par­tic­i­pante de um grupo de vig­ilân­cia e saben­do somente mar­char foi para guer­ra. O sobrin­ho, que vivia tem­pos de alu­ci­nação, acha­va ter fal­a­do com a mãe que nun­ca con­hecera. Ele imag­i­na­va que seu pais não quis­er­am “ver tran­si­tan­do de bicho para meni­no, ran­han­do bar­bas, magro até na tosse.” Ambos cam­in­ham pela nar­ra­ti­va ébrios de nascença e de ausên­cia e descon­fi­avam que “a morte se tor­na­va tão fre­quente que só a vida fazia espan­to”.

    Mas não é somente lou­cu­ra e alu­ci­nação que indi­vid­u­al­iza, human­iza e frag­iliza os per­son­agens da obra de Mia Couto. O moí­do cotid­i­ano do sofri­men­to cas­ti­ga e chega a cri­ar uma ilusão de per­tenci­men­to. Ros­alin­da é gor­da, cheia de saudades do sofri­men­to que havia vivi­do com seu fina­do mari­do Jac­in­to. No cemitério, por vin­gança, tro­ca as inscrições dos túmu­los viz­in­hos para que suas anti­gas namoradas não lhe aco­mo­dem saudades e choros. Espan­ca­da e traí­da, via no gesto sua últi­ma for­ma de vencer os ter­ríveis anos que havia pas­sa­do em sua com­pan­hia. Somente na morte seu sofri­men­to fin­d­a­va; somente na morte e na tro­ca do aqui jaz pode­ria ser final­mente esposa.

    A temáti­ca sobre machis­mo é recor­rente na obra de Mia Couto que inven­ta out­ro per­son­agem quase míti­co, um pescador que fica cego durante uma das suas pescarias e não acei­ta que sua mul­her fos­se pescar e desse ordem no bar­co. No intu­ito de desmo­bi­lizar a mul­her de suas intenções, ele leva o bar­co — jun­ta­mente com os fil­hos — para o alto das dunas. Fiz­era daque­la embar­cação primeiro sua mora­dia e depois o incen­deia a golpes de insanidade na frente dos fil­hos e da mul­her. Vivia a procu­rar seus olhos no mar e sem quer­er enx­er­gar que a mul­her pre­cisou ir tra­bal­har para traz­er man­ti­men­tos para casa. Des­de o princí­pio da nar­ra­ti­va, o leitor é adver­tido: “vive­mos longe de nós, em dis­tante fin­g­i­men­to. Desa­pare­ce­mo-nos. Porque nos prefe­r­i­mos nes­sa escuridão inte­ri­or?”.

    Mia Couto
    Mia Couto

    Cada Homem é uma Raça” é uma lit­er­atu­ra de denún­cia sobre as difer­entes maneiras que ergue­mos muros e fin­camos ban­deiras.  A aparên­cia como req­ui­si­to de sofri­men­to é um bom gan­cho de pen­sa­men­to para refle­tir­mos a par­tir de qual momen­to nos­sa aparên­cia físi­ca pas­sa a ser deter­mi­nante para defin­i­mos quem somos. Os estrangeiros que per­am­bu­lam pelos con­tos de Mia Couto são víti­mas do olhar sem­pre indifer­ente do Out­ro. São persegui­dos e vivem sob olhar aten­to da descon­fi­ança e do medo. A len­da de amor entre um forasteiro e sua ama­da, que vivia em uma aldeia, é sig­ni­fica­ti­vo para perce­ber­mos como somos rápi­dos em faz­er jul­ga­men­tos e lentos em apri­morar nos­sa humanidade.

    O con­to O embodeiro que son­ha­va pás­saro nar­ra a história de um vende­dor de pás­saros que pas­sa a ser o prin­ci­pal sus­peito em uma colô­nia de estrangeiros, que viam com descon­fi­ança aque­la difí­cil con­vivên­cia com um homem pobre e pre­to, que vivia a andar pelo lugar venden­do pás­saros e a roubar das cri­anças des­cuida­dos inter­ess­es. Aque­les que não gostavam daque­la inad­e­qua­da junção sen­ti­am ciúmes do pas­sa­do, da feliz arru­mação das criat­uras pela aparên­cia. Em um des­fe­cho fenom­e­nal, o autor nos leva a pen­sar sob quais gaio­las vive­mos pre­sos? Somos pás­saros que son­hamos com voo, mas ape­nas raste­jamos pelo chão?

    Os con­tos em trân­si­to deix­am os leitores ton­tos. Somos lev­a­dos a refle­tir que ape­nas quan­do repen­samos nos­sas ati­tudes nos abri­mos para rever­mos nos­sas certezas.  Duarte Fortin, coxo e encar­rega­do ger­al dos cri­a­dos em uma min­er­ado­ra, em con­fis­são ao padre admite: — “Se Deus for negro, sen­hor padre, estou frito: nun­ca mais vou ter perdão”. Se exis­tem certezas elas nos man­tém cegos pela vida. Deve­mos procu­rar nos­sos olhos não no mar, mas na fun­dura de nos­so Ser. É a par­tir de um movi­men­to de reflexão e de respon­s­abil­i­dade éti­ca com o Out­ro que poder­e­mos abrir nos­sos escuros para mel­hor enx­er­gar­mos nos­sas tes­si­turas. Vag­amos pela leitu­ra de Mia Couto procu­ran­do com­preen­der e jun­tar os sen­ti­dos que habitam nos seus con­tos, mas ape­nas somos lev­a­dos a uma viagem inte­ri­or, em bus­ca de nos­so próprio proces­so de (des)humanização.

  • Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

    Istambul – Memória e Cidade, de Orhan Pamuk | Livro

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    Capa do livro pela Com­pan­hia das Letras

    Nos últi­mos meses, o mun­do tem con­heci­do o poder da mobi­liza­ção pop­u­lar na Turquia, onde protestos reuni­ram quase 2,5 mil­hões de pes­soas. As cidades de Istam­bul e Ancara, esta últi­ma a cap­i­tal do país, con­cen­tram o maior número de atos de protesto con­tra o gov­er­no vigente. No Brasil, a situ­ação não tem sido difer­ente e, à semel­hança do que vêm acon­te­cen­do na Turquia, os movi­men­tos pop­u­lares estão sendo dura­mente reprim­i­dos por gov­er­nos autoritários e coercitivos.

    Antes dess­es impor­tantes acon­tec­i­men­tos soci­ais e políti­cos, a grande maio­r­ia dos brasileiros teve o primeiro con­ta­to com a cul­tura tur­ca através da afe­ta­da nov­ela glob­al Salve Jorge, com suas dançari­nas de olhos mar­ca­dos, cenários hiper­boli­ca­mente exóti­cos e uma pop­u­lação “arabesca”, bem ao gos­to dos fetich­es oci­den­tais. Diminuir a importân­cia de uma cul­tura transformando‑a em pro­du­to das indús­trias cul­tur­ais tem sido uma práti­ca incan­sáv­el de veícu­los de entreten­i­men­to e comu­ni­cação, bem como de insti­tu­ições sacra­men­tadas, que usam tudo o que podem para angari­ar lucros e difundir ideologias.

    Feliz­mente, não foi dessa vez que eu despen­quei no abis­mo desse esque­ma, pois meu inter­esse pela cul­tura tur­ca remete aos meus treze anos de idade, quan­do escutei pela primeira vez a músi­ca “Şımarık”, do can­tor e per­former Tarkan. De lá para cá, ten­ho sido guia­da por uma espé­cie de “mão invisív­el do des­ti­no” para tudo o que faz refer­ên­cia à Turquia: fiz grandes ami­gos em Istam­bul, Ancara, İzmir e Amas­ra, come­cei a apren­der a lín­gua do país e procu­rar por escritores, poet­as e músi­cos tur­cos. Foi assim que me deparei com Istam­bul – Memória e Cidade (orig­i­nal İst­anb­ul: Hatıralar ve Şehir), exten­so romance memo­ri­al­ista de Orhan Pamuk, primeiro escritor tur­co a rece­ber o Prêmio Nobel de Lit­er­atu­ra (ano de 2006). A edi­to­ra Com­pan­hia das Letras lançou a pub­li­cação brasileira em 2007, com tradução de Ser­gio Flaks­man e basea­da na tradução ingle­sa da obra, assi­na­da por Mau­reen Freely.

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    Orhan Pamuk

    As memórias auto­bi­ográ­fi­cas de Orhan Pamuk se mis­tu­ram a relatos de via­jantes oci­den­tais famosos, escritores tur­cos imer­sos em ruí­nas e tris­tezas e acon­tec­i­men­tos que mar­caram para sem­pre o coração da cidade mais famosa da Turquia. O livro é um apan­hado detal­ha­do da vida em Istam­bul com todas as suas belezas e decadên­cias, onde as ruas estão cer­cadas pelas man­sões dos anti­gos paxás, com­ple­ta­mente destruí­das pelo fogo e pelo tem­po; famílias ric­as dese­jam a qual­quer cus­to osten­tar uma imagem oci­den­tal­iza­da, desprezan­do tudo o que faz refer­ên­cia ao império otomano ou às tradições ori­en­tais. Entre citações de escritores tur­cos como Yahya Kemal, Reşat Ekrem Koçu, Ahmet Ham­di Tan­pı­nar e Ahmet Rasim, famosos por descreverem detal­h­es que até mes­mo uma boa parte dos “Istan­bul­lus” descon­hece, o pre­mi­a­do memo­ri­al­ista dá ao leitor um panora­ma ger­al da cidade que o viu nascer e crescer, capaz tam­bém de des­per­tar sen­ti­men­tos contraditórios.

    Orhan Pamuk nasceu em 1952, den­tro de uma família bur­gue­sa que entra­va grada­ti­va­mente em ruí­na finan­ceira. Jun­to com seu irmão mais vel­ho, Orhan cresceu rodea­do por par­entes e pela pre­sença autoritária da avó pater­na. Ape­sar das inten­sas dis­putas inter­nas pela posse de pro­priedades e bens, tios, tias, mães, pais, irmãos, sobrin­hos e avó se reu­ni­am na mesa de jan­tar e sus­ten­tavam as aparên­cias. Segun­do descrição con­ti­da no livro, esse tipo de com­por­ta­men­to inco­mo­da­va o escritor des­de pequeno, mas só ao pon­to de não inter­ferir em seu próprio mun­do. As brigas ger­adas no seio do Edifí­cio Pamuk trazi­am à tona a real­i­dade de uma sociedade des­gas­ta­da, arru­ina­da pelas mudanças que se oper­avam na ten­ta­ti­va de apa­gar o pas­sa­do, impon­do uma vida oci­den­tal­iza­da para esque­cer as ori­gens. A família Pamuk não era reli­giosa e não fix­a­va seus princí­pios em segui­men­tos tradi­cionais de obe­diên­cia cega, o que deixou espaço para um desen­volvi­men­to int­elec­tu­al e pes­soal maior. Orhan e seu irmão vivi­am no con­for­to de car­ros impor­ta­dos, esco­las caras e pas­seios famil­iares ao Bós­foro, desta­ca­do pelo autor como parte cen­tral da vida de qual­quer habi­tante de Istambul.

    Pintura de Melling, do livro "Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore"
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    O livro vem reple­to de fotografias em pre­to e bran­co – exata­mente como o autor con­cebe a cidade -, além de traz­er um min­u­cioso tra­bal­ho de pesquisa. Para falar a ver­dade, Orhan Pamuk colo­ca para fora toda a obsessão de memo­ri­al­ista que o persegue, com 408 pági­nas de uma trav­es­sia lenta, melancóli­ca e silen­ciosa, escri­ta em tons de cin­za. Para o “olhar oci­den­tal”, é inter­es­sante con­hecer as impressões que o fab­u­loso pin­tor Antoine Ignace Melling teve de Istam­bul, através das ima­gens de suas obras repro­duzi­das no livro. Destaque tam­bém para comen­tários de Pamuk aos difer­entes relatos dos france­ses Gerárd de Ner­val, Theóphile Gau­ti­er e Gus­tave Flaubert sobre Istam­bul, influ­en­cian­do dire­ta­mente autores turcos.

    Orhan Pamuk
    Orhan Pamuk

    É inegáv­el a destreza e segu­rança com que Pamuk expõe as nuances que car­ac­ter­i­zam a sua cidade, procu­ran­do faz­er para­le­los com sua vida pes­soal. No decor­rer das pági­nas, o leitor tam­bém se depara com fotos do arqui­vo famil­iar, mostran­do Orhan e seu irmão pequenos, assim como os par­entes em ger­al. Par­tic­u­lar­mente, tive a sen­sação de que as palavras do autor trazem uma car­ga de melan­co­l­ia, con­fir­ma­da ain­da mais pelas fotografias das ruas cinzen­tas, degradadas e pouco ilu­mi­nadas de Istam­bul, assim como pelo triste olhar da mãe de Orhan, mul­her lindís­si­ma e de embaraço melancóli­co, eterniza­do pela imo­bil­i­dade fotográfica.

    Assim como o Brasil tem a palavra “Saudade” como um vocábu­lo úni­co, os “Istan­bul­lus” têm o ter­mo “Hüzün” para definir a inten­sa melan­co­l­ia que sen­tem. A importân­cia dessa palavra é tão grande para enten­der os sig­nifi­ca­dos da cidade que Pamuk dedi­cou um capí­tu­lo inteiro para esmi­uçar as mais difer­entes acepções para o ter­mo. Essa ‘tris­teza’ reflete uma rup­tura, um far­do cul­tur­al enorme, uma exper­iên­cia espir­i­tu­al que ultra­pas­sa o entendi­men­to e se trans­for­ma em poe­sia diária de quem res­pi­ra o ar do Bós­foro e cam­in­ha pelas ruas de casas de madeira queimadas, anti­gas mora­dias de paxás e por vielas que divi­dem lugar com ciprestes e cemitérios.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Istam­bul – Memória e Cidade parece ser uma ten­ta­ti­va de retorno e redenção de Orhan Pamuk, já que o próprio autor viveu momen­tos de con­fli­to e negação com relação à cidade. Seja em meio aos momen­tos da infân­cia, brigas de família, iní­cio da vida esco­lar e, anos mais tarde, entra­da desan­i­ma­da na fac­ul­dade de Arquite­tu­ra, Pamuk mostra o lado que per­tence aos ver­dadeiros nativos da cidade em pre­to e bran­co. No meio de tan­tas lem­branças, há tam­bém os estu­dos que o autor real­i­zou para escr­ev­er o livro, o qual­i­fi­ca­do con­hec­i­men­to históri­co que ele apre­sen­ta, a sua desen­f­rea­da bus­ca por arquiv­os públi­cos e tam­bém a par­til­ha de sen­ti­men­tos que mar­caram a sua vida, como a dolorosa sep­a­ração do ambi­ente famil­iar, quan­do começou a fre­quen­tar o colé­gio; sua neces­si­dade de expressão por meio de desen­hos e pin­turas e o inesquecív­el caso de amor que ele teve com uma garo­ta a quem dele­gou um pseudôn­i­mo curioso (Rosa Negra). Lamen­tavel­mente para o autor – e isso fica bem claro no decor­rer desse capí­tu­lo -, o romance não dá cer­to e a cul­pa recai em cima da opção de Pamuk pela arte.

    Barış Akarsu
    Barış Akar­su

    Min­ha exper­iên­cia com a leitu­ra desse livro foi bas­tante pos­i­ti­va, mas pre­ciso men­cionar a vagarosi­dade na sequên­cia de alguns capí­tu­los, que exigem grande esforço de con­cen­tração por parte do leitor, e tam­bém a lacu­na que sen­ti por não perce­ber nen­hum capí­tu­lo ou comen­tário mais detal­ha­do sobre a pro­dução musi­cal de Istam­bul, tão rica e diver­si­fi­ca­da. A Turquia tem pro­duzi­do os mais vari­a­dos tipos de músi­ca, e eu não pode­ria deixar de enfa­ti­zar o instru­men­tista Hüs­nü Şen­lendiri­ci que, a propósi­to, tem uma com­posição belís­si­ma chama­da  İst­anb­ul İst­anb­ul Olalı, e o fab­u­loso can­tor e per­former Barış Akar­su, vence­dor da série tele­vi­si­va Akade­mi Türkiye (Acad­e­mia Tur­ca), em 2004, com a inter­pre­tação prodi­giosa da músi­ca Islak Islak. Barış tam­bém atu­ou na série Yalancı Yarim (algo como “meu amante men­tiroso” ou ain­da “metade men­tiroso”), atingin­do um suces­so estron­doso até sua morte, aos 28 anos, viti­ma­do por um aci­dente de carro.

    Pintura de Melling, do livro “Voyage pittoresque de Constantinople et des rives du Bosphore”
    Pin­tu­ra de Melling, do livro “Voy­age pit­toresque de Con­stan­tino­ple et des rives du Bosphore”

    Como entu­si­as­ta da pro­dução cul­tur­al da Turquia, e sem esque­cer da importân­cia de Pamuk para a lit­er­atu­ra tur­ca como o autor mais ven­di­do do país, com obras traduzi­das para mais de sessen­ta lín­guas, recomen­do a leitu­ra de Istam­bul – Memória e Cidade porque, muito mais do que uma viagem ao pas­sa­do, essa obra con­strói pontes que, ao invés de dis­tan­cia­rem, aproximam.

  • Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    Contos Plausíveis, de Carlos Drummond de Andrade | Livros

    contos-plausiveis-capaSe o assun­to é poe­sia brasileira, o primeiro nome que nos sacode a mente e pula dire­to para a lín­gua, sem pes­tane­jar, é o de Car­los Drum­mond de Andrade. Poeta mineiro nasci­do em 1902, Drum­mond virou sinôn­i­mo indis­cutív­el de arte poéti­ca, traduzi­do em diver­sos país­es e rev­er­en­ci­a­do como um dos maiores gênios que o Brasil teve o praz­er de ger­ar. Feito de memórias, iro­nias e del­i­cadezas, o tra­bal­ho do poeta tam­bém envere­dou pela prosa de ficção, mes­mo que em menor número. O livro Con­tos Plausíveis, lança­do pela edi­to­ra Com­pan­hia das Letras em 2012, traz uma amostra da capaci­dade de Drum­mond em cri­ar fábu­las do cotid­i­ano, cir­cu­lan­do pelas ruas da cidade e estrad­in­has do inte­ri­or, entre o ontem, o hoje e o depois.

    Rápi­dos, certeiros e peque­nas chaves de bol­so, ess­es “con­tos plausíveis” foram escritos para o lendário Jor­nal do Brasil, a par­tir do final dos anos 60, e pub­li­ca­dos em uma peque­na tiragem em 1981, fora de com­er­cial­iza­ção. O caráter de ane­do­ta e fina iro­nia fazem dos con­tos uma diver­são à parte, como se o “poeta maior” (títu­lo que Drum­mond, em toda a sua humil­dade e timidez, não recon­heceu), estivesse ali, silen­cioso e ubíquo, pron­to para con­tar o que viu e ouviu, fazen­do jus à tradição oral.

    Drummond ao lado da mulher e filha
    Drum­mond ao lado da mul­her e filha

    São mais de cem con­tos onde o leitor pode se recon­hecer até mes­mo na lin­guagem do absur­do. A maio­r­ia deles trazem situ­ações fan­tás­ti­cas, provo­can­do cer­to sus­to em um primeiro momen­to. Afi­nal de con­tas, uma mul­her que tro­ca de cabeça todo dia? Ani­mais com com­por­ta­men­to demasi­ada­mente humano? Um homem otimista que escapa de uma enx­ur­ra­da e é “deposi­ta­do na crista de um pico mais alto que o da Nebli­na”? Isso para não falar de par­tidos basea­d­os em cores, home­ns sem cabeça que delib­er­am sem delib­er­ar e o cômi­co no trági­co, em situ­ações para lá de sur­reais, onde o plausív­el reside na von­tade do autor em con­ce­bê-lo assim.

    A poéti­ca se mis­tu­ra ao real­is­mo, fazen­do ess­es “con­tos de bol­so”, como dizia o próprio autor, serem mais do que nar­ra­ti­vas sin­téti­cas; eles são, na ver­dade, mate­r­i­al de con­sul­ta em um mun­do em que as certezas já vivem no lim­ite do absur­do. Como nos lem­bra Noe­mi Jaffe no pos­fá­cio que assi­na na recente edição, “o que soa como irre­al não pode­ria ser mais plausív­el diante do absur­do que teste­munhamos todos os dias”. Ideia que foi se imis­cuin­do na obra de Car­los Drum­mond de Andrade e no seu “des­en­can­to com o esta­b­ele­ci­do”, preferindo par­tir em bus­ca da liber­dade e da ação, mas sem faz­er alardes.

    Drummond em sua casa por ocasião da homenagem aos seus 80 anos
    Drum­mond em sua casa por ocasião da hom­e­nagem aos seus 80 anos

    Nos con­tos “A vol­ta das cabeças” e “Incên­dio”, a lem­brança de Macha­do de Assis nos assalta instan­ta­nea­mente, reme­tendo ao antológi­co “Teo­ria do Medal­hão” e pela hom­e­nagem sin­gela fei­ta por meio da tran­scrição do iní­cio do con­to “Mis­sa do Galo”, respec­ti­va­mente. A fina essên­cia da iro­nia, car­ac­terís­ti­ca da obra macha­di­ana, tam­bém encon­tra espaço na prosa-fic­cional-poéti­ca de Drum­mond. Não há como deixar de rir – e pen­sar – com per­son­agens de com­por­ta­men­tos ou aparên­cias tão atípi­cos, mas que camu­flam o que real­mente querem rev­e­lar, como o diver­tidís­si­mo “Casa­men­to por Cin­co Anos”, “A Vol­ta do Guer­reiro” “Aque­le Casal” e o atu­al “A Ter­ra do Índio”. São mais de cem con­tos que trazem nos próprios títu­los o ele­men­to sur­pre­sa, onde o irre­al­izáv­el encon­tra mais ressonân­cia neste mun­do do que real­mente supo­mos. A obra drum­mon­di­ana nos per­mite fechar os olhos e dormir, mes­mo que os “ombros con­tin­uem supor­tan­do o mundo”.

  • Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Cidade Aberta, de Teju Cole | Livros

    Eu gos­to de explo­rar essa imper­feição, porque é assim que as pes­soas são de ver­dade, boas e más, não ape­nas boas ou ape­nas más”, diz o escritor amer­i­cano Teju Cole (1975) em uma entre­vista durante a sua pas­sagem pela FLIP de 2012. Cole con­segue explo­rar a imper­feição humana de for­ma muito rica e analíti­ca em seu romance de estreia Cidade Aber­ta (Com­pan­hia das Letras, 2012, tradução de Rubens Figueire­do), vence­dor do Prêmio Pen/Hemingway 2012 e elo­gia­do pela críti­ca americana.

    Nova York é con­heci­da como uma das cap­i­tais mais cos­mopoli­tas do mun­do, assim como São Paulo, à primeira vista parece reinar a plu­ral­i­dade que con­strói o meio urbano. Mas muito tem se lido na lit­er­atu­ra de lín­gua ingle­sa a voz dos estrangeiros — por exem­p­lo, Junot Diaz em “A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao” — que hoje fig­u­ram grande por­cent­agem da pop­u­lação, fazen­do uma grande difer­ença numa eleição e out­ras decisões políti­cas, por exem­p­lo. Mas ain­da demon­stram que a plu­ral­i­dade não é esse son­ho todo e que ain­da nes­sas grandes cidades se vive em guetos.

    O títu­lo do livro pode se rela­cionar ao ter­mo open city — cidade aber­ta traduzi­do ao pé da letra — que foi usa­do pela primeira vez em 1914 para des­ig­nar uma cidade que durante uma guer­ra está despro­te­gi­da mil­i­tar­mente e segun­do as leis inter­na­cionais não pode sofr­er ataques. Numa primeira análise, ten­do con­sciên­cia desse sig­nifi­ca­do, a primeira refer­ên­cia é o 11 de setem­bro amer­i­cano. Mas o ter­mo tam­bém pode ser pen­san­do com o seu sen­ti­do mais comum, uma cidade aber­ta que recebe diari­a­mente mil­hões pes­soas do mun­do inteiro que a constituem.

    Mas a atro­ci­dade não tem nada de novo, não para seres humanos, não para ani­mais. A difer­ença é que em nos­so tem­po ela é extra­or­di­nar­i­a­mente bem orga­ni­za­da, prat­i­ca­da com cur­rais, trens de car­ga, livros de con­tabil­i­dade, cer­cas de arame farpa­do, cam­pos de tra­bal­ho, gás. E esta últi­ma con­tribuição, a ausên­cia de cor­pos. (p.74)

    Teju Cole
    Cidade Aber­ta tra­ta da visão de um estrangeiro num fre­quente ciclo de descober­ta e adap­tação ao efêmero da cidade. São os olhos de Julius, um nar­rador-per­son­agem que flana pela cidade de Nova York mul­ti­fac­eta­da, que anda lado a lado com o leitor. Des­de as suas enormes lojas de depar­ta­men­tos, os pon­tos turís­ti­cos mar­ca­dos pela História, o metrô e seus per­son­agens até as tragé­dias maquiadas pelo rit­mo da cidade. Julius, esmi­uça cada vér­te­bra da metró­pole, nada escapa do seu olhar não só plás­ti­co, mas pro­fun­da­mente int­elec­tu­al. Vin­do da Nigéria aos 17 anos, o per­son­agem é um psiquia­tra recém-for­ma­do e bas­tante atare­fa­do, que faz do seu tem­po livre uma boa des­cul­pa para andar pela cidade con­heci­da pela sua var­iedade de faces.

    Assim como Baude­laire criou a ideia de flâneur — o homem mod­er­no que flana invisív­el pelo meio urbano pre­stando atenção às movi­men­tações, a efe­meri­dade do movi­men­to citadi­no — em Cidade Aber­ta o leitor é tam­bém um flâneur, jun­to do imi­grante que se con­strói con­forme se rela­ciona com esse meio, a ter­ra natal deix­a­da no pas­sa­do e o sen­ti­men­to de difer­ença. O leitor só é apre­sen­ta­do for­mal­mente a Julius, ao nome que o iden­ti­fi­ca, quan­do pas­sa a se apro­fun­dar nas suas memórias e sua vida na Nigéria deix­a­da para trás.

    O livro é divi­di­do em duas partes e ambas são recur­sos poéti­cos para a nar­ra­ti­va pes­soal do per­son­agem. A primeira inti­t­u­la­da de A morte é uma per­feição do olho e a segun­da Eu procu­ra­va a mim mes­mo demon­stram que mes­mo que Julius se dis­farce de ape­nas um pas­sante, um sim­ples obser­vador, enga­ja­do, inteligente, procu­ran­do localizar cada célu­la for­mado­ra da cidade de Nova Iorque, ele está pro­fun­da­mente lig­a­do na bus­ca de encon­trar a si mes­mo, bus­car suas próprias respostas e definir a sua identidade.

    Fran­cis O. Watts With Bird, de John Brew­ster Jr.
    Aliás, a iden­ti­dade é um pon­to inter­es­sante do livro, a história de Julius e Teju Cole são estre­ita­mente próx­i­mas, sal­vo alguns detal­h­es. Julius não é ape­nas um pas­sante que nar­ra a cidade em um uni­ver­so fic­cional. Ele é um grande con­hece­dor de estru­turas históri­c­as e as obser­va fazen­do anális­es plás­ti­cas, como faria Teju que é his­to­ri­ador de arte. Em deter­mi­na­do pas­seio por um museu, ele encon­tra o quadro “Fran­cis O. Watts With Bird” do pin­tor amer­i­cano John Brew­ster Jr. e além de rela­cionar e con­tex­tu­alizar a pin­tu­ra, ele rela­ta uma lig­ação muito ínti­ma entre obser­vador e obra, não deixan­do dúvi­das que está con­duzin­do o leitor pelo passeio.

    O pas­sar­in­ho rep­re­sen­ta­va a alma da cri­ança, como tam­bém acon­te­cia no retra­to feito por Goya do mal­fada­do Manuel Oso­rio Man­rique de Zúñi­ga, de três anos de idade. A cri­ança na pin­tu­ra de Brew­ster mira­va aten­ta, com uma expressão ser­e­na e etérea, do ano de 1805. Ao con­trário de muitas out­ras cri­anças pin­tadas por Brew­ster, o meni­no tin­ha sua audição per­fei­ta. Seria aque­le retra­to um amule­to con­tra a morte? Uma em cada três pes­soas, naque­la época mor­ria antes dos vinte anos de idade. Seria aqui­lo a expressão de um dese­jo mági­co de que a cri­ança resis­tisse e se agar­rase à vida, assim como se agar­ra­va ao cordão?” (p.52)

    A iden­ti­dade de imi­grante, tão penosa de se con­quis­tar mes­mo estando em um lugar por uma decisão própria, é clara em Cidade Aber­ta. Por exem­p­lo, o com­por­ta­men­to dos pás­saros é usa­do em dois momen­tos pelo per­son­agem, ambos retratam a neces­si­dade de migração, quase que nat­ur­al mas mes­mo assim com seus per­calços. O livro tra­ta bas­tante dis­so, da tran­si­to­riedade das pes­soas e espaços a fim de bus­car algo, aparente­mente tão nor­mal em tem­pos de efemeridade. 

    Nova York sem­pre está se mutan­do, se adap­tan­do às crises, ataques e mes­mo assim ain­da guar­da de for­ma orgul­hosa suas mar­cas que con­tam a história da Améri­ca como um lugar do futuro. O nar­rador con­duz muitos dos seus pas­seios afim de em var­ios momen­tos tirar a maquiagem da cidade, por mais que ele diga que não tro­caria esse lugar, ele tam­bém não con­segue se desven­cil­har da sua primeira iden­ti­dade, da sua cor e origens.

    Cer­ca de duzen­tos anos depois, quan­do um jovem da região do Forte Orange desceu pelo rio Hud­son e se esta­b­ele­ceu em Man­hat­tan, decid­iu escr­ev­er seu opus mag­num sobre um Levi­atã albi­no. O autor, que no pas­sa­do tiha sido paro­quiano da Igre­ja da Trindade, inti­t­u­lou seu livro A baleia; o sub­tí­tu­lo, Moby Dick, só foi acres­cen­ta­do depois da primeira edição. Essa mes­ma Igre­ja da Trindade ago­ra não me rece­beu, deixou-me do lado de fora, expos­to ao cor­tante ar mar­in­ho sem me ofer­e­cer nen­hum lugar para rezar. (p.66)

    Mas há tam­bém alguns pon­tos neg­a­tivos em Cidade Aber­ta. Em alguns momen­tos a nar­ra­ti­va des­per­ta um cer­to cansaço por con­ta das descrições detal­hadas e tam­bém das posições políti­cas e críti­cas, lev­adas bas­tante a sério por Julius, que sem­pre aca­ba encon­tran­do motivos para criticar o domínio amer­i­cano. Essas mes­mas opiniões acabam por deixar algu­mas opções do enre­do repet­i­ti­vas e desnecessárias.

    Mas por ser tam­bém uma uma nar­ra­ti­va em primeira pes­soa, mescla­da pela intim­i­dade do jovem psiquia­tra com sua visão do urbano, Cidade Aber­ta é bas­tante atraente ao leitor curioso. Julius con­segue ques­tionar a solidão e a vida mes­mo quan­do anal­isa as pes­soas e fatos através do seu olhar clíni­co, medin­do a quími­ca e con­ceitos das situações.

    A visão de grandes mas­sa humanas descen­do afobadas para câmaras sub­ter­râneas era per­pet­u­a­mente estran­ha para mim, e eu tin­ha a sen­sação de que a raça humana inteira se pre­cip­i­ta­va, empurra­da por um impul­so de morte anti­nat­ur­al, rumo a cat­acum­bas móveis. Na super­fí­cie da ter­ra, eu esta­va com mil­hares de out­ros em sua solidão, mas den­tro do metrô, de pé entre descon­heci­dos, empurran­do e sendo empurra­do em bus­ca de espaço e de uma brecha para res­pi­rar, todos nós recon­stí­tuíamos trau­mas não admi­ti­dos, a solidão inten­si­fi­ca­da. (p.14
    (…) o pro­fes­sor Saito disse cer­ta vez: Adoro mon­stros imag­inários, mas fico apa­vo­ra­do com os mon­stros reais. (p.19)

    A prin­ci­pio pode-se pen­sar que é ape­nas um estrangeiro vitimiza­do pela cul­tura amer­i­cana, mas ele é bem além dis­so, é um ser humano e seu fluxo de con­sciên­cia com­pro­va que Cidade aber­ta é um livro tam­bém sobre solidão. 

  • Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Daniel Galera em seu quar­to romance, Bar­ba Ensopa­da de Sangue (Com­pan­hia das Letras, 2012), é pro­tag­on­i­za­do por um “homem forte e silen­cioso” como diria Tony Sopra­no. Assim como em Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, temos uma nar­ra­ti­va onde a vio­lên­cia surge no cotid­i­ano con­fortáv­el da classe média. 

    Após o suicí­dio do pai, o pro­tag­o­nista decide viv­er um ano em Garopa­ba para se dedicar como instru­tor em uma acad­e­mia da região e se iso­lar de sua cidade natal, Por­to Ale­gre. Ao seu lado, temos a cachor­ra Beta, que per­ten­cia ao seu pai e que ele se recu­sou a sacrificar. 

    Diag­nos­ti­ca­do com uma doença neu­rológ­i­ca rara que o impos­si­bili­ta de guardar na memória o próprio ros­to e o das pes­soas com quem vem a se rela­cionar, o pro­tag­o­nista leva con­si­go um álbum de retratos para lem­brar-se do ros­to dos ami­gos, da família e inclu­sive da sua própria face. 

    Eis um dos mis­térios do romance: Na con­ver­sa que teve com seu pai quan­do esse o infor­ma que ira tirar a própria vida, fica saben­do que seu avô, Gaudério, acabou se isolan­do na cidade de Garopa­ba nos anos 1960 e dev­i­do ao seu com­por­ta­men­to vio­len­to foi assas­si­na­do a facadas por vários nativos e seu cor­po nun­ca foi encon­tra­do. Desco­brir o que real­mente acon­te­ceu com ele é uma de suas metas, mes­mo que isso pos­sa colo­car sua vida em risco. 

    Daniel Galera
    Daniel Galera atingiu um nív­el téc­ni­co muito alto nesse romance real­ista e ambi­cioso, com per­son­agens fortes e caris­máti­cos (vide Bonobo, o bud­ista nada orto­doxo), descrições ric­as em detal­h­es, e parece jus­ti­ficar a razão do seu nome estar em voga ape­nas com a qual­i­dade da sua nar­ra­ti­va. O livro tem muitas semel­hanças entre os romances Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, mas em nen­hum momen­to o autor está se autoplagiando. 

    Ninguém escol­he nada e mes­mo assim a respon­s­abil­i­dade é nos­sa” diz o per­son­agem prin­ci­pal em uma dis­cussão com a ex-namora­da. O cen­tro do romance tra­ta a questão de livre-arbítrio e deter­min­is­mo, tópi­co estu­da­do por David Fos­ter Wal­lace, uma grande influên­cia do escritor brasileiro e do qual traduz­iu recen­te­mente a coletânea Fican­do Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.

    Des­de o princí­pio do tra­bal­ho, eu que­ria que o romance explo­rasse de maneira implíci­ta a questão filosó­fi­ca da respon­s­abil­i­dade humana em uma visão de mun­do deter­min­ista, segun­do a qual tudo que acon­tece é ape­nas resul­ta­do inevitáv­el do que acon­te­ceu logo antes. É um assun­to que me inter­es­sa.” Diz o autor em uma entre­vista para o site do Jor­nal do Comércio

    O úni­co pon­to neg­a­ti­vo está no tra­bal­ho grá­fi­co do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a tra­ma de mais de 400 pági­nas não é em nen­hum momen­to cansati­va e uma das críti­cas feitas ao livro, da qual ele pode­ria ser menor e menos ver­bor­rági­co, é infundado.

    Bar­ba Ensopa­da de Sangue é um óti­mo romance, mas ain­da é cedo para diz­er qual é sua importân­cia para a lit­er­atu­ra brasileira. Ao mes­mo tem­po vemos uma pro­dução literária nacional dar pas­sos cada vez maiores (antolo­gias, feiras literárias, críti­cos aten­to ao que acon­tece no cenário nacional, etc.), ain­da não sabe­mos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.

  • Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    O escritor norte-amer­i­cano David Fos­ter Wal­lace tirou a própria vida no ano de 2008, aos 46 anos. Deixou três romances (The Broom of Sys­tem, Infi­nite Jest* e o pós­tu­mo e inacaba­do The Pale King*), três coletâneas de con­tos (Girl With Curi­u­os Hair, Brief Inter­views with Hideous Men e Obliv­ion) e dois livros de não ficção que con­tém ensaios e reporta­gens (A Sup­pos­ed­ly Fun Thing I’ll Nev­er Do Again e Con­sid­er The Lobster). 

    Fã do autor de Infi­nite Jest, o escritor Daniel Galera, entrou em con­ta­to com a agente literária de Wal­lace, Bon­nie Nadell, no mes­mo ano da morte de DFW, fazen­do uma pro­pos­ta para orga­ni­zar e pub­licar uma coletânea com o mel­hor da sua não ficção como uma nova chance para os brasileiros de apre­sen­tar o autor, já que Breve Entre­vis­tas com Home­ns Hedion­dos (lança­do no país em 2005 pela Com­pan­hia das Letras) não teve uma boa recepção por parte dos leitores e da mídia. Além de ser um livro difí­cil, quase enci­clopédi­co , não hou­ve uma boa divul­gação pela editora. 

    Galera rece­beu o sinal verde de Nadelle e eis que temos Fican­do Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (orga­ni­za­ção e tradução Daniel Galera + Daniel Pel­liz­zari, 312 pági­nas, Com­pan­hia das Letras, R$: 44,50). Para aque­les que não estão famil­iar­iza­dos com os tex­tos de DFW em inglês e teve uma difi­cul­dade para ler os con­tos de Breves Entre­vis­tas, Fican­do Longe é a mel­hor for­ma de ter um primeiro con­ta­to com a obra “daque­le cara que usa ban­dana”.

    A seleção ficou entre três reporta­gens : Fican­do Longe do Fato de Estar Meio que Longe de Tudo, Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da que Eu Nun­ca Mais Vou Faz­er e Pense Na Lagos­ta. Um ensaio: Alguns Comen­tários Sobre a Graça de Kaf­ka dos quais Provavel­mente se Omi­tiu. O famoso dis­cur­so de paran­in­fo de 2005: Isto é Água. E uma crôni­ca esporti­va: Fed­er­er como Exper­iên­cia Religiosa.

    O tex­to que dá títu­lo a coletânea (Fican­do Longe etc etc) é um óti­mo cartão de vis­i­tas para quem não leu nada do DFW. A revista Harper´s Mag­a­zine em 1993 deu uma cre­den­cial para o fale­ci­do autor e disse “Olha, vai lá para aque­le dia­cho de Feira Estad­ual de Illi­nois e ape­nas nos diga o que você viu, ok?”

    A Feira Estad­ual de Illi­nois acon­tece anual­mente na cap­i­tal Spring­field des­de 1853 e tem como tema cen­tral a agri­cul­tura e demais out­ros even­tos que são cap­i­tanea­d­os por grandes cor­po­rações e tudo é reg­u­la­do sob o sig­no do hedo­nis­mo predatório. 

    Wal­lace morou nas prox­im­i­dades de onde ocorre a feira, mas mes­mo assim lev­ou uma Aju­dante Nati­va como guia em um lugar onde você já é recep­ciona­do com uma faixa com os diz­eres “A gente quer cur­tição!”. As con­ver­sas entre David e a Aju­dante Nati­va são hilárias, mas é bom prestar atenção às con­sid­er­ações do autor, onde a feira aca­ba sendo o pon­to de par­ti­da para uma reflexão maior sobre a vida mod­er­na e suas contradições. 

    A questão é: Esta­mos acos­tu­ma­dos com aglom­er­ações, caos e demais per­tur­bações da vida na cidade grande. Logo, quan­do temos opor­tu­nidade, opta­mos por FICAR LONGE. Ago­ra, quan­do você mora em Illi­nois, onde a noção de espaço é infini­ta (você fica sem­anas sem ver seus viz­in­hos), não há NADA a não ser grandes pas­tos, calor bru­tal, reli­giosos fanáti­cos, como é ir para uma Feira em um lugar que você está já está LONGE DE TUDO e encar­ar dis­trações além da con­ta? A respos­ta é: vocês vão ler e saber, oras. Parem de me olhar com essa cara.

    Ain­da temos no livro o famoso tex­to do cruzeiro (Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da) onde o autor vai nos mostrar o quan­to pode ser triste uma viagem em alto-mar mes­mo sendo papari­ca­do por todos os fun­cionários do navio. O ensaio sobre Kaf­ka e sua veia cômi­ca é inter­es­sante pela pre­ocu­pação de Wal­lace – que foi pro­fes­sor uni­ver­sitário – sobre como ensi­nar um clás­si­co da lit­er­atu­ra para alunos mais inter­es­sa­dos no entreten­i­men­to que só a Améri­ca pode ofer­e­cer a eles. 

    Curioso como Pense na Lagos­ta, uma reportagem encomen­da­da pela revista Gourmet, para cobrir a fes­ta da Lagos­ta do Maine, ger­ou uma dis­cussão no site da revista por causa do rela­to sobre as lagostas serem coz­in­hadas vivas e isso implicar numa con­sid­er­ação do autor sobre o méto­do. E ain­da tem o dis­cur­so Isto é Água (que virou viral no youtube e mantra de mui­ta gente) e o rela­to da par­ti­da entre Fed­er­er e Rafael Nadal que pode pare­cer pouco , mas é o mel­hor primeiro con­ta­to com o autor de Infi­nite Jest.

    Em algu­mas entre­vis­tas recentes, Daniel Galera disse que vai faz­er uma nova orga­ni­za­ção de tex­tos de não ficção de David Fos­ter Wal­lace. E ficamos no aguardo.

    *É bom saber que está sendo fei­ta no momen­to que você lê esse tex­to ver­gonhoso, a tradução de Infi­nite Jest, o mastodonte de 1100 pági­nas, pelo rapaz que atende pela alcun­ha de Cae­tano W. Gallindo. Ele tam­bém está traduzin­do The Pale King. Você pode acom­pan­har tudo no Blog da Com­pan­hia das Letras.

  • Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    A incrív­el tol­erân­cia do leitor (que ele não esten­de­ria a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sen­ti­do se for enten­di­da como uma espé­cie de cumpli­ci­dade entre ele e o bió­grafo numa ativi­dade exci­tante e proibi­da: atrav­es­sar o corre­dor na pon­ta dos pés, parar diante da por­ta do quar­to e espi­ar pelo bura­co da fechadu­ra (p.16)

    Sylvia Plath (1932–1963), foi uma escrito­ra amer­i­cana rad­i­ca­da na Inglater­ra nos anos 50 e uma figu­ra fem­i­ni­na bas­tante forte. Ficou mais con­heci­da por sua poe­sia del­i­ca­da, intimista e em boa parte dela som­bria, dota­da de resquí­cios de uma depressão que aparente­mente era intrin­se­ca à per­son­al­i­dade da escrito­ra. Todas essas car­ac­terís­ti­cas são apre­sen­tadas em A Mul­her Cal­a­da: Sylvia Plath, Ted Hugh­es e os lim­ites da Biografia (reim­pressão de 2012, Com­pan­hia das Letras, Tradução de Ser­gio Flaks­man), uma pro­pos­ta ousa­da de análise biográ­fi­ca da jor­nal­ista Janet Malcolm. 

    Em 1961, Sylvia Plath escreveu A Redo­ma de Vidro, o úni­co romance de sua car­reira e de tom alta­mente con­fes­sion­al. A per­son­agem Esther é uma Sylvia mais cora­josa mas igual­mente sen­sív­el, que ao sofr­er decepções nâo vê out­ra saí­da além da morte. Plath deixou todos ao seu redor assus­ta­dos e temerosos pelas descrições do romance. Já para ela era como um gri­to do que vin­ha enfrentan­do des­de a ado­lescên­cia e a total não aceitação do pos­sív­el com­por­ta­men­to promis­cuo de Hugh­es. Mes­mo ten­do cresci­do numa época de lib­er­tação fem­i­ni­na, muito de uma mul­her tem­pera­men­tal e obses­si­va se escon­dia na pele da moça loira, sim­páti­ca da capa do livro. E é essa Plath que Janet con­strói, uma mul­her comum, forte e tam­bém áci­da, ciu­men­ta e desagradáv­el com um tem­pera­men­to deci­di­do, inclu­sive com a cor­agem de acabar com a própria vida.

    A jor­nal­ista se propõe a ir além de uma biografia comum, já que a vida de Sylvia não era novi­dade para ninguém do meio literário, seja em out­ras ten­ta­ti­vas biográ­fi­cas ou espec­u­lações. Ela ques­tiona o sen­ti­do do gênero, qual o papel de quem o escreve e a importân­cia de man­ter intim­i­dade com o leitor. Mal­colm se atem no perío­do em que Plath con­hece o poeta Ted Hugh­es, quan­do deu ini­cio à uma das relações mais con­tro­ver­sas e polêmi­cas de pares no meio literário, até o sui­cidio em 1963. 

    Janet Mal­colm
    O títu­lo de mul­her cal­a­da é jus­ta­mente pelo grande número de espec­u­lações sobre os fatos e mitos no entorno de Sylvia Plath con­struí­dos des­de sua morte. O casa­men­to com Hugh­es, a relação com a mãe e ami­gos são expostas pela infinidade de car­tas tro­cadas, ver­dadeiros fós­seis de sen­ti­men­tos da época e pos­síveis fatores de recon­sti­tu­ição. Essas mis­si­vas e os diários, que a poet­i­sa escrevia tan­to quan­to res­pi­ra­va, são os maiores ali­men­ta­dores para as biografias já escritas sobre a vida de Plath. A jor­nal­ista ques­tiona e dá sua opinião sobre cada uma das pub­li­cações feitas ao lon­go das décadas que seguiram e o faz com­para­n­do as obras com o próprio mate­r­i­al col­hi­do, uma espé­cie de inves­ti­gação insti­gante, quase em rit­mo detetivesco.

    Sylvia Plath
    E como em uma boa história de sus­pense, a per­son­agem oscilante de Sylvia gan­ha ares de mocin­ha quan­do o assun­to é a família Hugh­es, que durante muito tem­po deteve os dire­itos autorais da escrito­ra. Não bas­tassem as histórias no entorno da figu­ra de Ted Hugh­es, sua irmã Olwyn se apre­sen­ta como a mul­her total­mente indisponív­el e mal humora­da quan­do se tra­ta de fofo­cas sobre sua família. A figu­ra dos Hugh­es con­tra­ce­na com a de Plath, pois depois da morte de Sylvia foram eles os por­ta-vozes para qual­quer tra­bal­ho que envolvesse a figu­ra da escritora.

    A Mul­her Cal­a­da é um desafio ao leitor, o colo­ca como pas­sageiro das via­gens, encon­tros e leituras de car­tas que Janet faz. O tom poli­cial que a jor­nal­ista tra­ta dos fatos colo­ca o leitor na dúvi­da se há algum mocin­ho ou ban­di­do na história mitológ­i­ca de Sylvia Plath, sua mãe e a família Hugh­es. Mal­colm brin­ca com a mais inqui­etante questão literária que é o lim­ite da ficção e real­i­dade. Usan­do a seu favor os fatos e provas escritas do que pode ter acon­te­ci­do, a jor­nal­ista mon­ta toda uma teia com lin­guagem fic­cional para que o leitor pos­sa ape­nas vis­lum­brar a figu­ra da poeta cal­a­da e assim poder decidir em que voz pref­ere confiar.

    Filme

    Para quem se inter­esse por uma fac­eta de Plath, há uma cinebi­ografia inti­t­u­la­da de Sylvia (2003), dirigi­da por Chris­tine Jeffs e inter­pre­ta­da por Gwyneth Pal­trow e Daniel Craig como Ted Hugh­es. O lon­ga mostra clara­mente a vitimiza­ção da escrito­ra per­ante a vul­ner­a­bil­i­dade da relação com o poeta, pare­cen­do que Sylvia era ape­nas uma mul­her com tendên­cias sui­ci­das à beira de seu próprio precipício.

  • Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, de Lourenço Mutarelli

    Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, de Lourenço Mutarelli

    Quan­tas vezes você ficou olhan­do para o céu se per­gun­tan­do se não existe mais nada nes­ta imen­sa vastidão que é o uni­ver­so? Será que extrater­restres real­mente exis­tem? Então sente-se con­for­t­avel­mente na cadeira que você irá con­hecer a história de Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente (Com­pan­hia das Letras, 2011), escrito e desen­hado por Lourenço Mutarel­li, que mar­ca o retorno do autor ao uni­ver­so dos “quadrin­hos”.

    Per­gun­tei como era o ET, se era como as ima­gens que con­hece­mos de humanoides cinzen­tos de olhos grandes. Ele disse que era mui­ta ignorân­cia pen­sar dessa for­ma. Disse que seria a mes­ma coisa que se um ser de out­ra galáx­ia avis­tasse um astro­nau­ta e achas­se que ele esta­va pelado.

    As primeiras per­gun­tas que surgem quan­do você pega um exem­plar na mão são: é um quadrin­ho? um livro ilustra­do? um obje­to de out­ro plan­e­ta? A respos­ta é sim­ples: nen­hum deles e todos eles ao mes­mo tem­po. Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente, segun­do o próprio Mutarel­li, tem o for­ma­to de tela de cin­e­ma, onde o tex­to par­tic­i­pa como uma leg­en­da em um filme. Mas o autor decid­iu ir além e con­ta que as ima­gens não tem necessári­a­mente haver com o tex­to que ire­mos ler, o que deve ter deix­a­do muitas pes­soas no mín­i­mo con­fusas. Mas aí entra a grande per­gun­ta, por que as fig­uras dev­e­ri­am seguir a mes­ma nar­ra­ti­va — se é que há uma — do tex­to? Como o livro é com­pos­to de ima­gens sequen­ci­ais, muitas vezes ele é clas­si­fi­ca­do como um quadrin­ho, ape­sar destas não estarem lit­eral­mente den­tro de quadros. Mas, acred­i­to que a obra como um todo tende mais para um exper­i­men­to artís­ti­co do que sim­ples­mente uma história em quadrinhos.

    O enre­do dele não pode­ria ser mel­hor resum­i­do do que o próprio títu­lo da obra sug­ere: Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente. É inter­es­sante notar quie nen­hum per­son­agem do livro tem pro­pri­a­mente um nome, todos são iden­ti­fi­ca­dos através de rótu­los genéri­cos como: pai, mão, tio, irmã, o tal de cabe­lo bran­co, … todos anôn­i­mos, assim como as fotos de descon­heci­dos que pai do nar­rador com­pra­va e guar­da­va em uma caixa, por um moti­vo que ele nun­ca entendeu.

    Um pouco antes de meu pai se encon­trar com o ET, quem mor­reu foi min­ha mãe. Con­to isso porque é um fato impor­tante. É engraça­do que, antes de min­ha mãe mor­rer, eu não perce­bia meus pais como indi­ví­du­os. Você sabe, eram meus pais e eu os via como uma mes­ma coisa. Como uma úni­ca coisa.

    Ape­sar de ser com­pos­to por tex­tos cur­tos, cada frase tem grande sig­nificân­cia, nada parece ter sido escrito a toa. É difí­cil muitas vezes não parar pen­sati­vo após ler algu­ma pági­na, fazen­do um pequeno inter­va­lo, as vezes até sem perce­ber, para refle­tir o sig­nifi­ca­do daqui­lo na nos­sa própria vida. As ima­gens de Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente reme­tem bas­tante a um grande ban­co de lem­branças de uma ou mais vidas, onde cada uma tem uma car­ga emo­cional muito forte. É como se você entrasse em uma loja de obje­tos usa­dos e sen­tisse história bem par­tic­u­lar que cada obje­to car­rega con­si­go. Arrisco até a diz­er que cada ilus­tração pos­sui sua própria nar­ra­ti­va que é com­ple­men­tar ao texto.

    O autor comen­tou que a história surgiu quan­do o escritor Marçal Aquino, um ami­go seu, con­tou uma pia­da na qual havia um extrater­reste que fala­va “leve-me a seu líder” e essa frase ficou remoen­do em sua cabeça, por muito tem­po. Afi­nal, se algum ET chegasse e fizesse essa per­gun­ta a ele, para quem iria levar? Quem seria o seu líder? Então começou a ficar muito obceca­do com isso. Esse mes­mo ques­tion­a­men­to surge no meio de Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente, com uma respos­ta que me fez lem­brar o humor e esti­lo de Ray Brad­bury em As Crôni­cas Mar­cianas, livro que aliás recomen­do muito.

    Meu pai disse que não só tin­ha vis­to como tin­ha con­ver­sa­do com ele. Per­gun­tei que idioma a criatu­ra fala­va. Ele disse que não fala­va idioma nen­hum. Disse que se comu­nicaram telepati­ca­mente. Fazia sentido.

    Em um bate-papo na Gibi­Con #0, que acon­te­ceu em Jul­ho de 2011 em Curiti­ba, quan­do per­gun­tei ao Mutarel­li sobre sua relação com o tema extrater­restres, ele comen­tou que anda meio obceca­do pela temáti­ca. Sem­pre que pos­sív­el esta­va acom­pan­han­do uma série de pro­gra­mas a respeito de ETs, como Aliení­ge­nas do Pas­sa­do, Arquiv­os Extrater­restres e Caçadores de Óvnis, todos exibidos pelo His­to­ry Chan­nel. Além dis­so, cada vez acred­i­ta mais no assun­to, mes­mo que ness­es pro­gra­mas eles nun­ca encon­trem nada e sem­pre dizem ter uma pro­va incrív­el no final de cada episó­dio, ape­sar de nun­ca terem na ver­dade. Admi­to tam­bém com­par­til­ho o mes­mo inter­esse pelo assun­to — só não sei se tão obsecada­mente tam­bém — e após a leitu­ra de Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente ape­nas ficou mais forte ain­da a sen­sação de que faz tem­po não esta­mos mais sozinhos.

    Ape­sar de as ima­gens pare­cerem desconexas do tex­to em Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente, não acred­i­to que isto seja real­mente ver­dade. Uma segun­da leitu­ra da obra acabou con­fir­man­do ain­da mais essa sus­pei­ta, pois como a história ago­ra já era con­heci­da, cada uma das ilus­trações se encaixa em um ou out­ro momen­to da nar­ra­ti­va. A sen­sação era como se a ordem das ima­gens tivesse sido embar­al­ha­da e que as vezes as próprias ilus­trações eram uma con­tin­u­ação de uma nar­ra­ti­va com­ple­men­tar ao que esta­va escrito. Foi a mes­ma sen­sação que ten­ho quan­do vejo as cenas extras de um filme em DVD, com todo aque­le con­teú­do adi­cional, mas não essen­cial para o entendi­men­to da nar­ra­ti­va como um todo. Se já leu o livro, gostaria de saber qual a sua opinião a respeito deste ques­tion­a­men­to, as ima­gens e tex­to real­mente pare­ce­r­am ser total­mente desconexas para você?

    Esque­ci de diz­er que min­ha mãe não tin­ha hob­by. Ela gosta­va de assi­s­tir às nov­e­las, mas não pos­so diz­er que isso fos­se um hob­by. A meu ver, um hob­by se ref­ere a algo que você faz com as própias mãos.

    Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente é uma obra que no iní­cio pode pare­cer meio con­fusa e talvez até aleatória, mas que pos­sui uma sutileza e sig­nifi­ca­do extra­ordinário. Com um humor seco e ao mes­mo tem­po sen­sív­el, já car­ac­terís­ti­co do Mutarel­li, além de suas ilus­trações incríveis, o livro cer­ta­mente é um deleite que não deve ficar somente empoeiran­do na sua estante.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=j8ub2bppjgw

    A equipe do inter­ro­gAção par­ticipou do lança­men­to em Curiti­ba de Quan­do meu pai se encon­trou com o ET fazia um dia quente e gan­hou um autó­grafo desen­hado do Mutarel­li espe­cial­mente para o site:

  • Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Alguém pode­ria escr­ev­er um man­u­al sobre como se deve rea­gir a esse tipo de notí­cia, se as cir­cun­stân­cias não forem favoráveis ao casal. Eu rece­be­ria as piores notí­cias dos seus lin­dos lábios. Seria bas­tante útil para home­ns como eu. (p.183)

    Des­de as primeiras estórias de amor que se tem noti­cia o infortúnio de amantes é sem­pre um mote inter­es­sante para escritores. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios (Com­pan­hia das Letras, 2005), de Marçal Aquino já nasce com um amor desafor­tu­na­do, cheio de paixão e tragé­dia con­ta­da pela voz de Cau­by, quase que um Romeu nas mãos de Aquino.

    Cau­by é fotó­grafo, rodou o mun­do e sem­pre se sen­tiu incom­ple­to quan­to à vida. Num impul­so de fotogra­far lugares inóspi­tos e fugir da frenéti­ca São Paulo, vai para o inte­ri­or do Pará. Numa região onde as leis são feitas à base do silên­cio dom­i­nador dos grandes e os sujeitos à estes — pes­soas que vis­lum­bram o encon­tro de ouro nos garim­pos — é o pano de fun­do da história do fotó­grafo com a mis­te­riosa e sen­su­al Lavinia. No calor do norte do Brasil, lugar descrito por Cau­by como quente e um tan­to mor­to é propí­cio que tudo se mis­ture, a lei, a religião e o amor, tudo, sem o mín­i­mo de delicadeza.

    Nun­ca prom­e­te­mos nada um ao out­ro, e eu sabia que podia acabar de repente. Poe­ma que ces­sa antes de virar a pági­na. Um Haikai. Na práti­ca, con­tu­do, não me con­for­ma­va com a ideia. Eu que­ria mais. (p.67)

    Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é nar­ra­do em tom de alu­ci­nação e insistên­cia de um homem apaixon­a­do. Cau­by oscila entre o pre­sente, um momen­to cur­to de uma noite, onde um out­ro homem nar­ra as suas decepcões amorosas, e o pas­sa­do, não muito longe, inten­so e cheio de revi­ra­voltas. Tudo sem maiores sinal­iza­ções além da lóg­i­ca que a própria leitu­ra dá. Um pon­to-chave e bacana do livro é o fluxo de con­sciên­cia de Cau­by, reple­to de sen­ti­men­tos e orga­ni­za­do con­forme os fatos que vão surgin­do e reme­tendo à out­ras situ­ações. O nar­rador con­segue cri­ar uma própria orga­ni­za­ção no seu rela­to sem deixar de ser infor­mal e con­t­a­m­i­na­do pelo que sente, usan­do a não-lin­eari­dade total­mente a seu favor.

    Lem­brei dos dias que pas­sei sem ela. Dias em que encon­trar, por aca­so, um fio de seu cabe­lo pre­so na fron­ha do trav­es­seiro bas­ta­va para me encher de angús­tia e dor. Estive a pon­to de raste­jar. Atire a primeira pedra aque­le que não estreme­ceu ao recu­per­ar, nos lençóis encar­di­dos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mul­her ausente. (p.74)

    Marçal Aquino
    O livro é divi­di­do em três partes com títu­los bas­tante per­ti­nentes e trag­icômi­cos quan­do se tra­ta de Marçal Aquino. Em Amor é Sex­ual­mente Trans­mís­siv­el tra­ta da efer­vescên­cia do amor de Cau­by e Lavinia como um encan­ta­men­to que é basi­ca­mente sex­u­al. Seus cor­pos con­ver­sam, tro­cam e fun­cionam mel­hor na cama. O diál­o­go entre os dois quase só é pos­sív­el quan­do con­seguem curar o seu caos no sexo. Quan­do não o fazem é tudo muito estran­ho e depen­dente, nem eles sabem ao cer­to porque estão ali. Para enten­der um pouco da desen­f­rea­da Lavinia, em Carne-Viva é apre­sen­ta­da, numa nar­ra­ti­va bem con­ven­cional, o históri­co dessa mul­her que dá sequên­cia no rela­to de Cau­by em Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo, onde somos lev­a­dos, já sem fôlego, ao des­fe­cho da relação tem­pes­tu­osa do casal.

    De acor­do com o pro­fes­sor Schi­an­berg (op. cit), não é pos­sív­el deter­mi­nar o momen­to exa­to em que uma pes­soa se apaixona. Se fos­se, ele afir­ma, bas­taria um ter­mômetro para com­pro­var sua teo­ria de que, neste instante, a tem­per­atu­ra cor­po­ral se ele­va vários graus. Uma febre, nos­sa úni­ca sequela div­ina. Schi­amberg diz mais: ao se apaixonar, um ¨homem de sangue quente¨ exper­i­men­ta o desam­paro de sen­tir-se vul­neráv­el. Ele não caçou; foi caça­do. (p.15)

    Um dos pon­tos mais inter­es­santes é como Cau­by e o per­son­agem Vik­tor são lev­a­dos a agir con­forme leituras feitas. O fotó­grafo é fiel seguidor do fic­tí­cio filó­so­fo do amor, Ben­jamin Schi­an­berg, o mes­mo que veio a se tornar o ide­al­izador imag­inário do exper­i­men­to de Beto Brant em O amor segun­do B. Schi­an­berg . Os tre­chos de livros do filó­so­fo são inseri­dos de for­ma bas­tante inteligente em Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios com Cau­by trazen­do a tona pági­nas e citações inteiras asso­ci­adas à sua relação com Lavínia. 

    Mas Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios não é somente um livro sobre amantes mal suce­di­dos. Em vários momen­tos o casal se tor­na ape­nas duas peças para tratar de uma ter­ra sem lei, com explo­ração ambi­en­tal e humana onde quase tudo é deci­di­do por instin­to. Essa filosofia do matar ou mor­rer é que tor­na os per­son­agens um monte de anti-heróis fada­dos a um des­ti­no deter­mi­na­do caso não andem con­forme o pro­gra­ma­do. Todos são reple­tos de con­tro­vér­sias, donos de val­ores que acred­i­tam ter, como se estivessem nesse lugar aparente­mente tão longe para expur­gar sua vida.

    Fada­dos ou não à tragé­dia, Cau­by e Lavinia, assim como boa parte dos per­son­agens são toma­dos pelo sen­ti­men­to de insistên­cia, seja de val­ores, sen­ti­men­tos e o que for. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é um romance para se ler com o fôlego daque­les que gostam de arriscar con­tra o tédio da vida.

    *Eu Rece­be­ria as Piores Notí­cias dos seus lin­do Lábios foi adap­ta­do — com títu­lo homôn­i­mo — para o cin­e­ma pelo dire­tor Beto Brant e entrou em car­taz em abril de 2012.

  • Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Em 1971 era pub­li­ca­do o livro Hon­ra Teu Pai (Cia das Letras, 512 pági­nas, tradução de Don­ald­son M. Garscha­gen), do jor­nal­ista Gay Talese, que pas­sou sete anos fazen­do pesquisas sobre a família Bon­nano, uma das mais impor­tantes da máfia nos Esta­dos Unidos.

    Hon­ra Teu Pai parte do seque­stro de Joseph Bonan­no em 1964, um dos líderes das Cin­co Famílias de Nova York, e a ten­são que cai nos ombros de seu fil­ho, Sal­va­tore “Bill” Bon­nano, para man­ter a ordem nos negó­cios e evi­tar uma pos­sív­el guer­ra entre gru­pos rivais. Além dis­so, Talese tam­bém vol­ta a Sicília dos anos 1920, na cidade Castel­la­mare, onde nasceu Joseph e a orga­ni­za­ção que hoje em dia é con­heci­da como Cosa Nos­tra, até os dias finais das orga­ni­za­ções Bonnano.

    Os anos 60 foram anos de trans­for­mações tan­to cul­tur­ais quan­to com­por­ta­men­tais, mas para o mun­do de Bill Bon­nano, tudo per­mane­cia igual: as guer­ras feu­dais travadas na Sicília ape­nas se mudaram para os Esta­dos Unidos e ele se con­sid­er­a­va, ape­sar de ter cur­sa­do a fac­ul­dade agrono­mia na cidade de Tuc­son (da qual não con­cluiu), um mero vende­dor de car­roças. A figu­ra pater­na de Joseph Bon­nano era onipresente demais na vida do jovem Bill e este acabou entran­do nos negó­cios do pai sem pes­tane­jar. Hon­ra Teu Pai é um clás­si­co não ape­nas sobre a con­tra­venção, mas de um fil­ho devota­do ao pai a pon­to de colo­car a própria vida em risco se aven­tu­ran­do em seu mundo.

    E não fican­do somente nis­so: as difi­cul­dades vivi­das pelas esposas dos gang­sters na pele de Ros­alie, esposa de Bill, que cria os fil­hos em para­le­lo a vida de seu mari­do con­tra­ven­tor, geran­do muitos prob­le­mas no casa­men­to, que vão de infi­del­i­dade, segu­rança e a fal­ta de din­heiro. (Talese se aproveitou da boa vendagem do livro e mais o din­heiro obti­do na ven­da dos dire­itos de fil­magem* para cri­ar um fun­do para os fil­hos de Ros­alie e Bill pudessem cur­sar a fac­ul­dade quan­do mais velhos)

    Con­sid­er­a­do um dos cri­adores do Jor­nal­is­mo Literário (títu­lo que não faz mui­ta questão de osten­tar), Gay Talese tra­bal­hou no jor­nal The New York Times por 12 anos (exper­iên­cia que ren­deu o livro O Reino e o Poder, tam­bém lança­do pela Cia das Letras) e tam­bém foi colab­o­rador das revis­tas New York­er e Esquire. Em entre­vista a Paris Review, o jor­nal­ista diz que tra­ta a não-ficção com a mes­ma seriedade que um autor de ficção faria, mas faz questão de deixar claro que tudo que se pas­sa em seus livros acon­te­ceu de ver­dade. A imer­são em suas histórias é total. Na pro­dução de Hon­ra Teu Pai, Talese anda­va com Bill Bon­nano e seus segu­ranças, sujeito a ser balea­do ou sofr­er ataques a bom­ba na Guer­ra das Bananas. O jor­nal­ista pas­sa­va bas­tante tem­po com seus per­son­agens entre­vi­s­tan­do-os, toman­do notas sobre tudo que fazi­am. A obsessão per­fec­cionista do autor o lev­ou a sua fama merecida.

    Ques­tion­a­do sobre a razão de ter escrito um livro sobre assas­si­nos, Talese disse que não via muitas difer­enças entre um mafioso e um sol­da­do que mata um ser humano em nome do gov­er­no: ambos vivem sob um rígi­do códi­go de con­du­ta e se pro­tegem uns aos out­ros.

    *Escrito por Lewis John Car­li­no e dirigi­do por Paul Wend­kos, o filme feito para TV de Hon­ra Teu Pai pode ser vis­to na inte­gra aqui:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=Y5pYTR7iPkY

  • Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Estas estórias falam desse ter­ritório onde nos vamos refazen­do e vamos mol­han­do de esper­ança o ros­to da chu­va, água aben­son­ha­da. Desse ter­ritório onde todo homem é igual, assim: fin­gin­do que está, son­han­do que vai, inven­tan­do que vol­ta. (Pre­fá­cio de Estórias Abensonhadas)

    Ten­ho uma grande con­vicção de que grandes leitores sem­pre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, con­ver­sas de ônibus e qual­quer out­ro lugar. Ter essa sen­sív­el per­cepção quan­to ao mun­do me parece bas­tante per­ti­nente quan­do você lê livros como se estivesse ouvin­do uma série de boas histórias, assim como acon­tece com Estórias Aben­son­hadas (Com­pan­hia das Letras, 2012) , de Mia Couto.

    É prati­ca­mente indis­pen­sáv­el a apre­sen­tação da figu­ra do escritor Moçam­bi­cano que comu­mente é colo­ca­do no hall dos grandes escritores fan­tás­ti­cos e inven­tivos. Assim como Gabriel Gar­cía Mar­quez, Guimarães Rosa e Manoel de Bar­ros, Mia Couto recria a real­i­dade ressaltan­do situ­ações com tons de magia. Nada é banal na vida dos per­son­agens que com­põem as suas nar­ra­ti­vas e essas fig­uras, com seu próprio por­tuguês e modo de se expres­sar, cir­cu­lam pelo tex­to dire­cio­nan­do o leitor.

    Estórias Aben­son­hadas é um con­jun­to de con­tos e como sinal­iza­do na intro­dução, foram escritos num perío­do pós-guer­ras — em 1994, ano de lança­men­to do livro, fazia ape­nas dois anos que a Guer­ra Civ­il de Moçam­bique soma­da a Guer­ra da Inde­pên­den­cia que se arras­tou des­de os anos 60, havi­am ter­mi­na­do — e o livro é for­ma­do por con­tos onde fig­uras como o sangue e a guer­ra são ele­men­tos de histórias de recomeço e ilu­mi­nações, como se os per­son­agens estivessem apren­den­do a ver a luz nova­mente e assim recon­stru­in­do suas rotinas.

    Mia Couto escreve com a lin­guagem dos son­hos, opera a palavra como um tra­bal­hador opera o seu mel­hor instru­men­to. E vai além, recria seu uso e funções provan­do que a lín­gua Por­tugue­sa se trans­mu­ta con­forme a sua geografia, é viva. E em Estórias Aben­son­hadas essa lín­gua gan­ha ares de esper­ança num ter­reno onde tudo pre­cisa de recon­strução e mes­mo que a morte este­ja pre­sente em boa parte dos con­tos, não há como escon­der a esper­ança de ir adiante.

    Nas Águas do Tem­po, o con­to que abre o livro, o leitor é apre­sen­ta­dos à magia do rela­to e a importân­cia da figu­ra do avô, um sím­bo­lo do con­ta­dor de histórias. O avô per­mite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fan­tas­mas da guer­ra ain­da cir­cu­lam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários out­ros con­tos, a pre­sença maciça da mitolo­gia da região rep­re­sen­ta­da por fig­uras e palavras próprias dá ordem do tom de oral­i­dade de Mia Couto.

    No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para den­tro, ess­es que usamos para ver os son­hos. O que acon­tece, meu fil­ho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver ess­es out­ros que nos visi­tam. Os out­ros? sim, ess­es que nos ace­nam da out­ra margem. E assim lhes causamos uma total tris­teza. Eu levo-lhe lá nos pân­tanos para que você apren­da a ver. Não pos­so ser o últi­mo a ser vis­i­ta­do pelos panos. (p.13)

    Em out­ros tex­tos como em O Cego Estre­lin­ho é a força da palavra que faz recri­ar ima­gens nun­ca vis­tas. Com uma grande sen­si­bil­i­dade os per­son­agens tem nomes muito sug­es­tivos como é o caso de Estre­lin­ho que, ori­en­ta­do pelas mãos de Gig­i­to é apre­sen­ta­do por um mun­do fan­tás­ti­co e pul­sante e quan­do este é man­da­do à guer­ra — mata­do­ra de esper­anças e cores — o cego pas­sa a ser ori­en­ta­do pela irmã, a Infe­lizmi­na que não vê nada demais no mun­do ali fora.

    O erro da pes­soa é pen­sar que os silên­cios são todos iguais. Enquan­to não: há dis­tin­tas qual­i­dades de silên­cio. É assim o escuro, este nada apa­ga­do que estes meus olhos tocam: cada um é um, des­b­o­ta­do à sua maneira. Entende, mano Gig­i­to? (p.23)

    Boa parte dos per­son­agens de Estórias Aben­son­hadas tem seus pares que con­tra­bal­ançam a fal­ta de esper­ança, como a capa da edição brasileira sug­ere, duas cadeiras frente a frente ven­do o sol nascer. Duas pes­soas são capazes de ini­ciar uma guer­ra como sinal­iza A Guer­ra dos Pal­haços onde dois pal­haços brin­cantes, numa acalo­ra­da dis­cussão, começam uma guer­ra entre os espec­ta­dores que ten­tam inter­pre­tar a per­for­mance. Um tex­to cur­to mas imen­so de ale­go­rias sobre a estu­pid­ez de um conflito.

    Com romances pre­mi­a­dos e igual­mente inven­tivos, Mia Couto demon­stra maior ver­sa­til­i­dade ain­da em con­tos ou crôni­cas porque são relatos cur­tos e boa parte deles pub­li­ca­do no jor­nal por­tuguês Públi­co. O fato de estarem pre­sentes em jor­nal, além de dar uma grande vis­i­bil­i­dade, dialo­ga muito inti­ma­mente com o leitor, mes­mo aque­le desacos­tu­ma­do com o seu tom fan­tás­ti­co. Creio que um dos fatos cru­ci­ais do escritor con­seguir cri­ar essa relação de intim­i­dade é a sua profis­são de biól­o­go que per­mite que ele seja inven­ti­vo unin­do o ser humano e sua relação com o espaço, ambi­ente e o lugar.

    Estórias Aben­son­hadas ultra­pas­sa qual­quer relação sim­plória de leitor e obra, é como se olhásse­mos através de uma janela e con­hecesse­mos ess­es per­son­agens como nos­sos viz­in­hos, ami­gos e par­entes. São histórias fan­tás­ti­cas escritas com a liber­dade de um con­ta­dor de histórias, pois além de Mia não se pren­der à con­veções lin­guís­ti­cas, ele dialo­ga de muito per­to com as nos­sas próprias raízes, é a lin­guagem uni­ver­sal dos sonhos.

  • Companhia das Letras lança quatro novos selos

    Companhia das Letras lança quatro novos selos

    O mun­do livreiro — aqui inclui des­de livrarias, bib­liote­cas e claro, o mer­ca­do edi­to­r­i­al — vive a incerteza sobre o futuro do livro. Aqui no Brasil, o alarde não é de grandes pro­porções porque somente há pouco tem­po começamos um proces­so de democ­ra­ti­za­ção do livro com um cres­cente número de livrarias e edi­toras expandin­do suas alternativas.

    A Com­pan­hia das Letras, uma das maiores edi­toras do país, atua há 25 anos no mer­ca­do edi­to­r­i­al e há pouco menos de um ano anun­ciou sua junção com a famosa edi­to­ra ingle­sa Pen­guin, lança nesse ano mais qua­tro selos para dar con­ta do cres­cente mer­ca­do de livros que o Brasil vem apre­sen­tan­do. Mostran­do que o mer­ca­do está em pleno vig­or, seja no impres­so ou na con­strução da pop­u­lar­iza­ção do e‑book, o anún­cio de novos selos sem­pre deixa os leitores em polvorosa.

    O selo Para­lela vem para suprir um mer­ca­do cres­cente com best-sell­ers de ficção e não-ficção procu­ra­dos e de boa qual­i­dade. As tira­gens serão supe­ri­ores do que as nor­mais da edi­to­ra e serão lança­dos até dois títu­los por mês, começan­do já nesse mês de abril com o romance poli­cial Scar­pet­ta da escrito­ra Patri­cia Corn­well, e O sinal, livro sobre o San­to Sudário e a origem do Cristianismo.

    Os selos Seguinte e Boa Com­pan­hia serão mais volta­dos ao públi­co jovem, lançan­do até 12 títu­los por ano. O primeiro vai abranger o catál­o­go do selo Cia das Letras, onde famoso escritor Lemo­ny Snick­et (Desven­turas em Série), por exem­p­lo, é um dos nomes que pode ilus­trar o catál­o­go do Seguinte. Já a Boa Com­pan­hia vai edi­tar antolo­gias de clás­si­cos brasileiros para for­t­ale­cer a for­mação de leitores.

    E em 2013 a edi­to­ra pas­sa a edi­tar livros pelo selo Port­fo­lio Pen­guin, com cer­ca de 10 títu­los anu­ais, volta­do para o seg­men­to de mar­ket­ing, negó­cios e empreende­doris­mo em ger­al, com suas óti­mas traduções.

    A Com­pan­hia das Letras afir­ma que com o surg­i­men­to de novos e pequenos selos a edi­to­ra pas­sa a viv­er um novo momen­to de maior alcance de leitores, geran­do uma deman­da maior e com mais seg­men­tos. Torce­mos que sim!

  • Ali Boma Ye: dois livros sobre Muhammad Ali

    Ali Boma Ye: dois livros sobre Muhammad Ali

    Muham­mad Ali teve em sua car­reira 56 vitórias (37 por nocaute) e 5 der­ro­tas ape­nas. Há 30 anos sofre do Mal de Parkin­son. Nos anos 60 foi o maior atle­ta que o mun­do con­heceu e a Com­pan­hia das Letras relançou em ver­são de bol­so dois livros impor­tantes sobre o pugilista na coleção Jor­nal­is­mo Literário.

    Em 1998, ano em que o boxe já não tin­ha mais o mes­mo prestí­gio dos anos 60, o jor­nal­ista David Rem­nick, hoje edi­tor da revista New York­er, lançou o livro O Rei do Mun­do (Cia das Letras, tradução de Cel­so Nogueira, 376 pag.), onde a tra­jetória de Cas­sius Clay é con­ta­da des­de seu iní­cio no esporte, suas excen­t­ri­ci­dades (Ali cos­tu­ma­va con­ced­er lon­gas entre­vis­tas falan­do do quan­to era O Mel­hor (The Great­est) e caça­va seus adver­sários na rua para provo­ca-los), a con­ver­são ao islamis­mo (mudan­do seu nome para Muham­mad Ali) e os títu­los que o consagraram.

    Rem­nick não ape­nas foca na vida do luta­dor como vai nar­rar tam­bém os basti­dores da crôni­ca esporti­va da época, os movi­men­tos raci­ais em ascen­são (Mal­colm X era ami­go de Ali, mas depois romper­am relações dev­i­do às divergên­cias de Mal­colm com a Nação do Islã), o sub­mun­do do esporte (as lig­ações estre­itas com a máfia retrata­da na vida de Son­ny Lis­ton). Para quem não con­hece a história de Ali, comece por O Rei do Mun­do.

    Per­son­agem no livro de David Rem­nick, Nor­man Mail­er escreveu A Luta (Cia das Letras, tradução de Clau­dio Weber Abramo, 232 pag.) em 1975 (dez anos após os even­tos nar­ra­dos em O Rei do Mun­do). O livro de Nor­man Mail­er veio ao mun­do com o que ele chama­va de preparo para, segun­do sua própria definição, O Grande Romance amer­i­cano do qual nun­ca nos deu, mas chegou muito perto. 

    Após perder o títu­lo de Campeão dos Pesos Pesa­dos ao se recusar a lutar no Viet­nã, Ali vai até o Zaire lutar con­tra o então campeão George Fore­man, que se aci­den­ta durante o treino e atrasa em um mês aque­la que se tornou uma das lutas mais acla­madas do boxe. Mail­er é tão per­son­agem quan­to os dois luta­dores, par­tic­i­pan­do de uma lon­ga cor­ri­da com Ali e indo a uma car­tomante jun­to com o jor­nal­ista George Plimp­ton pra saber quem vence­ria a dis­pu­ta. Nor­man tam­bém rela­ta a pobreza que se encon­tra­va o país africano coman­da­do pelo dita­dor Mobu­tu Sese Seko e as peripé­cias de Don King, o empresário fan­farão que orga­ni­zou o evento. 

    Ape­sar dos dois livros terem o mes­mo per­son­agem prin­ci­pal, O Rei do Mun­do não sep­a­ra o boxe da políti­ca (des­de 1950, a maio­r­ia dos pesos pesa­dos eram com­pos­ta por negros), e uma amostra do con­fli­to racial da época é exem­pli­fi­ca­da na luta entre Floyd Pat­ter­son e Son­ny Lis­ton, onde o primeiro é o negro lib­er­al, a favor da tol­erân­cia racial con­tra o negro estereoti­pa­do: Lis­ton era con­sid­er­a­do caso per­di­do, com pas­sagens pela cadeia e lig­ação com o crime orga­ni­za­do. Esse ter­reno é arma­do par medir o impacto que seria a figu­ra de Cas­sius Clay no esporte. David tam­bém pres­ta um trib­u­to à crôni­ca esporti­va da época, relem­bran­do A. J. Liebling, Gay Talese (que escreveu um emo­cio­nante per­fil de Floyd Pat­ter­son), James Bald­win e suas desavenças com Nor­man Mail­er. Todo o tra­bal­ho de pesquisa feito por Rem­nick con­tribuiu para um óti­mo livro tan­to sobre boxe como para o que o foram os anos 60.

    A Luta, é o clás­si­co do jor­nal­is­mo literário e da imer­são. Mail­er não faz con­cessão algu­ma quan­to sua par­tic­i­pação nos even­tos e o colo­ca como um per­son­agem tão par­tic­i­pa­ti­vo quan­to Ali e Fore­man. Ali é um mis­tério que Mail­er vai desven­dan­do ao lon­go do livro e assim como é tam­bém o dita­dor Mobu­tu Sese Seko, que para con­ter uma pos­sív­el onda de vio­lên­cia con­tra tur­is­tas estrangeiros no dia do even­to, man­dou reunir mais de mil crim­i­nosos no vestiário do está­dio onde seria a luta e man­dou exe­cu­tar cem deles como um avi­so para o que iria acon­te­cer caso des­obe­de­cesse as ordens de Mobu­tu. Segun­do Mail­er, o chão do está­dio ain­da con­tin­ha sangue no dia da luta. Como expli­ca­do no pos­fá­cio de Clau­dio Weber, muito das brin­cadeiras com palavras que Nor­man faz se per­dem na tradução para o por­tuguês, mas não com­pro­m­ete o texto. 

    Recomen­dações:

    Ali (2001), cinebi­ografia do pugilista dirigi­da por Michael Mann, com Will Smith no papel prin­ci­pal, bus­cou muitas infor­mações no livro de David Remnick


    When We Were Kings (1996), doc­u­men­tário de Leon Gast, mostra como foi à luta entre Ali x Fore­man e con­ta com depoi­men­tos dos cita­dos Nor­man Mail­er e George Plimpton

  • Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    ¨Real­mente os cul­tos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. Esse não foi um erro do escritor. Foi um erro da humanidade¨ (p.30)

    Impos­sív­el não se sen­tir ten­ta­do pela capa da edição brasileira de Fes­ta no Cov­il (Com­pan­hia das Letras, 2012) — inspi­rada­mente desen­ha­da pela artista Elisa v. Randow — o romance de estreia de Juan Pablo Vil­lalo­bos. Fazen­do uso da sim­bolo­gia da clás­si­ca fes­ta de Dia de Muer­tos mex­i­cana, a capa é um incrív­el con­vite para que você escute um meni­no solitário con­tar algu­mas peripécias.

    Tochtli — coel­ho, na lín­gua aste­ca — é uma cri­ança comum, ou pode­ria ser, que como qual­quer out­ra dese­ja muito um pre­sente. Segun­do ele próprio mora numa man­são no Méx­i­co, tem uma vida ente­di­ante, pos­sui uma vas­ta coleção de chapéus e son­ha em ter um casal de hipopó­ta­mos anões da Libéria. Um dese­jo nada con­ven­cional e que nos diz muito sobre o per­son­agem que nar­ra o romance do mex­i­cano Juan Pablo Vil­lalo­bos.

    Fes­ta no Cov­il tra­ta de for­ma muito sen­sív­el, ao pas­so que te faz res­pi­rar a cada novo pará­grafo, a vida solitária de uma cri­ança em pleno cenário do nar­cotrá­fi­co mex­i­cano. O pai, um reno­ma­do profis­sion­al do ramo, pro­tege o fil­ho numa espé­cie de for­t­aleza e é escon­di­do do resto do mun­do que o garo­to rela­ta pecu­liari­dades do seu cotid­i­ano, como o número de pes­soas que con­hece e como é a sua roti­na diária, tudo do seu pon­to de vista infan­til, inteligente e com dos­es de ironia.

    Parece que o país Libéria é um país nefas­to. O Méx­i­co tam­bém é um país nefas­to. É um país tão nefas­to que você não pode con­seguir um hipopó­ta­mo anão da Libéria. O nome dis­so na ver­dade é ser do ter­ceiro mun­do.” (p.20)

    O nar­cotrá­fi­co, talvez a ativi­dade mais ren­táv­el na lati­noaméri­ca, é um plano de fun­do um tan­to quan­to fos­co em Fes­ta no Cov­il pois, difer­ente de uma visão real­ista, esse mun­do se apre­sen­ta cheio de metá­foras e por­tas fechadas, vis­tas pelos olhos de uma cri­ança. A mar­gin­al­iza­ção da sociedade mex­i­cana foge da figu­ra do imi­grante e tra­ta mais de per­to os atu­ais prob­le­mas do país no com­bate da máfia das dro­gas. Na ver­dade, qual­quer país abaixo da fron­teira dos Esta­dos Unidos pode­ria ser o cenário da vida de Tochtli e talvez um dos pon­tos mais fortes do livro seja essa sen­sação de con­hec­i­men­to de causa que temos ao ver uma cri­ança encar­an­do a real­i­dade de for­ma tão ingênua.

    Mas Vil­lal­lo­bos não faz um rela­to comum e muito menos pro­duz uma nar­co­l­it­er­atu­ra fun­da­da em real­is­mos. Ele usa a voz de Tochtli para cri­ar um apego entre o leitor e o per­son­agem e assim cri­ar um enre­do que beira à suavi­dade de histórias infan­tis. Em muitos momen­tos nos vemos olhan­do assus­ta­dos para o garo­to da ficção, todo o dis­cur­so do pequeno Tochtli é mar­ca­da por suas sen­síveis pecu­liari­dades. As vezes ele é mima­do, não quer mais brin­car e em out­ros momen­tos ele demon­stra uma maturi­dade, con­sum­i­da por fras­es pre­co­ces, que nos leva a ques­tionar a solidão infantil.

    Há ape­nas um flerte com a real­i­dade vista por ess­es olhos inocentes. Se out­ro­ra a lit­er­atu­ra fazia uso das metá­foras fan­tás­ti­cas para con­tar um fato real, em Fes­ta no Cov­il são os olhos infan­tis que inter­pre­tam a vida com inocên­cia e em algu­mas situ­ações com a frieza da ver­dade. Tochtli é solitário, tem aulas par­tic­u­lares em casa e con­vive o tem­po todo com adul­tos, por­tan­to é inevitáv­el que em sua voz saiam definições pre­co­ces. Não se sabe ao cer­to se o garo­to é somente mima­do, víti­ma de um pai ausente e mãe que mor­reu, ou pro­fun­da­mente inspi­ra­do pelas pes­soas mis­te­riosas que con­vivem com ele e vivem ensi­nan­do algo.

    O pres­i­dente John Kennedy esta­va fazen­do um pas­seio num car­ro sem teto e ati­raram na cabeça dele. Ou seja, as guil­hoti­nas são para os reis e os tiros, para os pres­i­dentes. (p.47)

    Durante toda a nar­ra­ti­va de Fes­ta no Cov­il fica níti­da uma relação estre­i­ta do meni­no com as palavras, incluin­do o próprio dis­cur­so que ele cui­da que seja bem explica­ti­vo. O pequeno Tochtli não dorme sem ler o dicionário, ele gos­ta de nomear os sen­ti­men­tos e as pes­soas e quan­do se encan­ta com uma palavra a usa em vários con­tex­tos, inde­pen­dente se elas con­tin­u­am ou não com o mes­mo significado. 

    Juan Pablo Vil­lalo­bos, até pouco tem­po atrás, era um nome descon­heci­do da lit­er­atu­ra lati­noamer­i­cana. O mex­i­cano, casa­do com uma brasileira e res­i­dente no país, diz que sua visão sobre o Méx­i­co é de quem obser­va de longe e que nesse pon­to de fora con­segue ver com muito mais clareza a situ­ação vivi­da pelo país. Quan­do ques­tion­a­do se ele espera que no Brasil haja iden­ti­fi­cação com o pequeno Tochtli, diz que sim mas que no Brasil ele vê mais otimis­mo, uma das car­ac­terís­ti­cas impres­sio­n­antes no per­son­agem-garo­to de A Fes­ta no Cov­il.

    É impos­sív­el sair imune de Tochtli e seus son­hos mima­dos. Enquan­to o Méx­i­co, e con­se­quente­mente seu pai, vivem perío­dos de lim­bos, o garo­to ape­nas anseia em encon­trar o casal de ani­mais que fal­ta para seu zoológi­co. Pequenos nuances detal­ham a real­i­dade do per­son­agem que faz de Fes­ta no Cov­il uma fábu­la de uma cri­ança — lem­bran­do o sig­nifi­ca­do do seu nome aste­ca — den­tro de um bura­co, alheio ao mun­do caóti­co e sem esper­ança de fora.

  • Livro: O Grande Gatsby — F. Scott Fitzgerald

    Livro: O Grande Gatsby — F. Scott Fitzgerald

    Eu quero escr­ev­er uma história sim­ples, bela e extraordinária”

    F. Scott Fitzger­ald em cor­re­spondên­cia para o seu edi­tor Maxwell Perkins em 1922. Três anos depois pub­li­caria O Grande Gats­by (Pen­guin-Com­pan­hia, tradução de Vanes­sa Bar­bara e intro­dução e notas de Tony Tan­ner), romance con­sid­er­a­do por muitos como um dos mel­hores do sécu­lo XX.

    Fitzger­ald nos con­cede uma jor­na­da através da obsessão de um homem que se entre­ga a um mun­do de val­ores duvi­dosos, movi­do ape­nas por um amor do pas­sa­do. Tam­bém é a história de pes­soas super­fi­ci­ais que vivem sobre a ilusão da eter­na juven­tude, beleza e riqueza; não se impor­tan­do com nada a não ser a si mesmos. 

    Nick Car­raway, jovem grad­u­a­do em New Haven e ex-com­bat­ente da Primeira Guer­ra Mundi­al, nar­ra sua mudança para West Egg e aca­ba se tor­nan­do viz­in­ho do mis­te­rioso Jay Gats­by que pro­move fes­tas extrav­a­gantes em sua man­são, atrain­do a alta sociedade local que espec­u­la sobre o seu pas­sa­do: ninguém con­hece Gats­by pes­soal­mente, mas todos já ouvi­ram algu­ma supos­ta história sobre suas ações, entre elas, que já teria cometi­do assassinato. 

    O que ninguém sabe é que Gats­by pre­tende repe­tir o pas­sa­do: reen­con­trar o seu amor per­di­do na juven­tude, Daisy, ago­ra casa­da com o agres­si­vo Tom Buchanan, que mora na parte opos­ta da baía, em East Egg (onde moram os ricos na ilha fic­tí­cia*, West Egg é a parte pobre). Ele ali­men­ta esper­anças de que um dia ela pos­sa vis­i­tar uma de suas fes­tas e assim reconquistá-la.

    Os anos 1920 foram os anos de pros­peri­dade econômi­ca na Améri­ca do Norte, prin­ci­pal­mente nos Esta­dos Unidos, após a Primeira Guer­ra Mundi­al — perío­do con­heci­do como Roar­ing Twen­ties. Após a recessão, a econo­mia amer­i­cana entra­va em uma nova fase. A indús­tria auto­mo­bilís­ti­ca pro­duzia em mas­sa, o cin­e­ma e o rádio eram as prin­ci­pais for­mas de entreten­i­men­to, o jazz se tor­na­va bas­tante pop­u­lar e a pro­pa­gan­da tin­ha um papel impor­tante na mídia. Tam­bém nes­ta déca­da foi insti­tuí­da, em 1923, a Lei Seca (que teve seu fim em 1933) – onde pro­duzir, vender, impor­tar e expor­tar bebidas alcoóli­cas era ile­gal. O crime orga­ni­za­do – a máfia, lid­er­a­da por Al Capone – pas­sou lucrar muito com a ven­da clan­des­ti­na. Nes­sa época, o mate­ri­al­is­mo e o egoís­mo se tornaram parte do son­ho amer­i­cano e isso ficou muito bem retrata­do em O Grande Gats­by.

    O livro tam­bém tra­ta dos prob­le­mas que acar­retam quan­do vive­mos do pas­sa­do e do fim das ilusões da juven­tude. A tris­teza está pre­sente do começo ao fim. A obra con­tin­ua atu­al e é vál­i­da para aque­les que ain­da não tiver­am con­ta­do com esse clás­si­co americano.

    *Acred­i­to que talvez fiquem con­fu­sos com min­ha expli­cação sobre East e West Egg, mas a tradu­to­ra fez uma car­tografia da região no blog da Com­pan­hia.

    ***

    Há seis adap­tações do romance para o cin­e­ma, mas recomen­do a ver­são de 1974 com Robert Red­ford (Gats­by) e Mia Far­row (Daisy) no papeis prin­ci­pais. O roteiro é de Fran­cis Ford Cop­po­la, em sub­sti­tu­ição a Tru­man Capote, demi­ti­do pelo estú­dio. A direção ficou por con­ta de Jack Clayton.

    Está em pós-pro­dução a adap­tação em 3D (não me per­gunte, eu tam­bém não sei o moti­vo) para o cin­e­ma de O Grande Gats­by estre­la­da por Tobey Maguire, na pele de Nick Car­raway, Leonar­do Di Caprio, como Jay Gats­by, Joel Edger­ton inter­pre­ta Tom Buchanan e o papel de Daisy ficou para Carey Mul­li­gan; com estreia pre­vista ain­da para este ano. É esper­ar para ver o resultado.

    ***

    E como pre­sente para o bra­vo e destemi­do leitor (a) que chegou até aqui, fique com o jogo de Super Nin­ten­do do livro mais famoso de F. Scott Fitzger­ald . Não pre­cisa agradecer.

  • Porta na Cara: Férias do Barulho, três recomendações de leitura

    Porta na Cara: Férias do Barulho, três recomendações de leitura

    Olá. Você pode me chama de Bruno, mas o que eu mais quero é que você me chame de ami­go. Esta­mos cer­tos? Eu acred­i­to que sim. Então pegue na min­ha mão e vamos embar­car nes­sa empre­ita­da juntos.

    Pen­san­do em você, caro leitor (a) jovem e baladeiro (a), eu vou aqui relatar três livros com selo de qual­i­dade “Que Trem Bão, Sô” para tem­po­ra­da de férias que está por vir. Mas olha só, livros são legais, mas tudo tem lim­ite. Eles não vão deixar você mais inteligente ou algo do tipo. Como diria o sábio Arnal­do Bran­co: se quis­er posar de inteligente, use um cachim­bo. Enfim, segue o baile.


    Ruí­do Bran­co, Don DeLil­lo – Um per­son­agem que usa túni­ca e ócu­los escuro para lecionar pre­cisa — mais do que nun­ca — ser ama­do. E como não amar Jack Glad­ney, um pro­fes­sor uni­ver­sitário pio­neiro no estu­do de Hitlerolo­gia (!), mas que não sabe falar uma palavra em alemão? Ruí­do Bran­co é foca­do na vida desse pro­fes­sor excên­tri­co, sua família nada con­ven­cional e a sua fasci­nação por um assun­to pouco queri­do: A morte. Além de tudo, há um aci­dente nuclear em sua cidade e um sujeito extrema­mente engraça­do chama­do Mur­ray. Mais não pos­so con­tar, mas pos­so diz­er que DeLil­lo influ­en­ciou uma ger­ação de escritores como David Fos­ter Wal­lace, Bret Eas­t­on Ellis, Chuck Palah­niuk, entre out­ros. O romance inspirou uma músi­ca do Mog­wai chama­da White Noise (duh), que está no álbum Hard­core Will Nev­er Die (but you will) (2011).


    Eu Falar Boni­to um Dia, David Sedaris – As rem­i­nis­cên­cias de David Sedaris são uma das coisas mais engraçadas que já li em anos. Mas não espere um cli­ma Clarah Aver­buck de falar do próprio umbi­go, nada dis­so. Sedaris tra­bal­ha com engen­ho rela­tan­do sua tem­po­ra­da em sube­m­pre­gos, sua fase “artís­ti­ca”, sua família para lá de estran­ha e como seu namora­do, Hugh, o aguen­ta mes­mo David sendo desagradáv­el a todo instante. Seus con­tos tam­bém podem ser vis­tos como pequenos ensaios sobre gente comum, ralan­do para ter uma vida digna, extrema­mente bem escrito. David Sedaris é colab­o­rador fre­quente de revis­tas como New York­er, Esquire e tan­tas out­ras. Bril­ha muito esse rapaz. 


    The Alco­holic, Jonathan Ames TREVAS. Assim mes­mo, com caps lock e tudo, é a palavra per­fei­ta para descr­ev­er essa HQ de Jonathan Ames, roteirista do seri­ado Bored to Death, da HBO. Jonathan (o per­son­agem, não o autor) quan­do jovem, era um óti­mo aluno até con­hecer o álcool. Sua vida cai num abis­mo gigan­tesco, mas ele con­segue se safar do prob­le­ma e vira um escritor de romances poli­ci­ais de suces­so – claro que o álcool vol­ta para tornar a vida de nos­so herói um infer­no dos dia­bos nova­mente. Além dis­so, a tra­ma con­ta com sua relação com seu cha­pa, Sal, que não é das mel­hores. Nota 10 de dez estre­las pos­síveis. Con­fi­ra para enten­der porque virei um fã con­strage­dor desse autor. 

    Espero que as recomen­dações agra­dem pelo menos um ou out­ro jovem inter­es­sa­do nes­sas coisas. Estou aqui para con­tribuir com seu bem estar. É o mín­i­mo que pos­so faz­er por vocês, lin­dezas. Até a próx­i­ma e evitem serem fla­gra­dos fazen­do besteira. Sabe­mos que assim é fei­ta a juven­tude, mas vamos com calma.

    Boas férias a todos.

  • Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Livro: Só Garotos — Patti Smith

    Alguns livros você lê rap­i­da­mente, mas torce para que demor­em para ter­mi­nar, taman­ha a qual­i­dade. Só Garo­tos (Com­pan­hia das Letras, 2010) de Pat­ti Smith é exata­mente assim. Mais con­heci­da por causa da sua car­reira na músi­ca, Smith sem­pre lidou com diver­sas áreas da arte. Começou escreven­do poe­sias e desen­han­do, a músi­ca veio mais tarde. Em meio a essa jor­na­da, ela con­heceu Robert Map­plethor­pe. É jus­ta­mente sobre a relação entre eles que Pat­ti escreve.

    Nasci­da em 1946, Pat­ti Smith sem­pre soube que seu cam­in­ho seria pelas artes. Aos 21 anos ela se mudou para Nova Iorque para tra­bal­har com o que real­mente gosta­va. Ali, con­heceu Robert, que se tornar­ia sua alma gêmea até a morte dele, em 1989. Os dois começaram uma relação amorosa, mas de inten­so afe­to fra­ter­nal. Jun­tos, escrevi­am, fotografavam e desen­havam. Chegaram a con­hecer grandes artis­tas da época, como Warhol e seus artis­tas da Fac­to­ry, bem como músi­cos (Janis Joplin, Jim­my Hen­drix, entre out­ros) e escritores (Allen Gins­berg e William S. Burroughs).

    A escri­ta de Pat­ti em Só Garo­tos beira o tom con­fes­sion­al, ela rela­ta acon­tec­i­men­tos de sua vida, sem­pre citan­do a influên­cia de Robert. Tam­bém sem­pre faz refer­ên­cia às seus poet­as preferi­dos, como Rim­baud e William Blake. Por se tratar de uma auto­bi­ografia, podemos con­hecer a artista por ela mes­ma. Ape­sar de ser um tex­to verídi­co, ele tam­bém é literário. A auto­ra escol­he bem as palavras e tor­na a leitu­ra bas­tante fluída.

    Um livro bom é aque­le que causa as mais diver­sas sen­sações no leitor. E nesse que­si­to Pat­ti Smith escreve com maes­tria. No iní­cio de Só Garo­tos, ficamos amar­gu­ra­dos com sua bus­ca, depois ficamos felizes com suas con­quis­tas, logo os sen­ti­men­tos caem para uma nos­tal­gia daqui­lo que não vive­mos. Somos ape­nas espec­ta­dores daque­la dor que ela sen­tiu ao perder sua alma gêmea. Robert diz que enquan­to ela car­rega­va a vida den­tro dela, ele car­rega­va a morte. Impos­sív­el não sen­tir uma pon­ta­da de tris­teza, por causa de duas mentes iguais que foram separadas.

    Este livro é recomen­da­do não ape­nas para os fãs, mas para qual­quer pes­soa inter­es­sa­da em uma boa leitu­ra. A tra­jetória de Pat­ti e Robert, em que viven­cia­ram momen­tos de deses­pero e humil­hação, até se tornarem grandes artis­tas, é muito bem descri­ta. Vale lem­brar que Só Garo­tos gan­hou o Nation­al Book Award de não ficção, mere­ci­da­mente. Ao ler o livro, nos sen­ti­mos como se a própria Pat­ti estivesse nos con­tan­do a história, o que tor­na seu livro tão ínti­mo e bem escrito. 

  • Companhia das Letras lança livro que inspirou A minha versão do Amor

    Companhia das Letras lança livro que inspirou A minha versão do Amor

    Des­de sua morte em 2001, aos 70 anos, a obra de Morde­cai Rich­ler – incluin­do o roteiro que lhe ren­deu uma indi­cação ao Oscar – con­tin­ua como uma das mais sig­ni­fica­ti­vas her­anças literárias da história do Canadá. A min­ha ver­são do Amor, adap­tação do últi­mo e mel­hor romance de Rich­ler (pub­li­ca­do no Brasil com o títu­lo A ver­são de Bar­ney, pela Cia. Das Letras), não é ape­nas uma car­in­hosa cel­e­bração de seu lega­do, mas é tam­bém um raro exem­p­lo de um filme basea­do numa grande obra literária que faz justiça ao mate­r­i­al base.

    Estre­la­do pelo indi­ca­do ao Oscar Paul Gia­mat­ti no papel de Bar­ney Panof­sky, um homem aparente­mente nor­mal que leva uma vida extra­ordinária, e pelo vence­dor do Oscar Dustin Hoff­man como seu pai, o filme osten­ta um grande elen­co que inclui Rosamund Pike, a indi­ca­da ao Oscar Min­nie Dri­ver, Rachelle Lefevre, Scott Speed­man, Bruce Green­wood, Mark Addy, Jake Hoff­man e a estre­ante Anna Hop­kins. Pro­duzi­do por Robert Lan­tos, cuja ten­ta­ti­va para levar a pro­lixa nar­ra­ti­va de Rich­ler para o cin­e­ma lev­ou mais de uma déca­da, o filme foi dirigi­do por Richard J. Lewis a par­tir de um roteiro de Michael Konyves. Copro­duzi­do por Lyse Lafontaine, Domeni­co Pro­cac­ci e Ari Lan­tos, A min­ha ver­são do Amor é uma pro­dução da Serendip­i­ty Point Films em asso­ci­ação com a Fan­dan­go de Roma e a Lyla Films de Mon­tre­al. Mark Mus­sel­man é o pro­du­tor exec­u­ti­vo do filme.

    O Livro:
    Bar­ney Panof­sky, o per­son­agem-nar­rador de A Ver­são de Bar­ney, déci­mo romance do cel­e­bra­do escritor canadense Morde­cai Rich­ler, está pos­ses­so — e bêba­do, como sem­pre —, porque seu vel­ho desafe­to e ex-ami­go, Ter­ry McIv­er, está para lançar um livro auto­bi­ográ­fi­co em que lhe faz pesadas acusações. Fer­ven­do em ansiedade e uísque doze anos, entre baforadas num onipresente charu­to Monte Cristo, Bar­ney liga para o seu advo­ga­do e per­gun­ta: “Pos­so proces­sar por calú­nia alguém que me acu­sou, num tex­to pub­li­ca­do, de mal­tratar mul­heres, de ser uma fraude int­elec­tu­al, de pro­duzir lit­er­atu­ra bara­ta, de ser um bêba­do propen­so à vio­lên­cia e provavel­mente tam­bém assas­si­no?”. O advo­ga­do, do out­ro lado da lin­ha, não titubeia na respos­ta: “Eu diria que ele não está muito longe da verdade”.

    Acabrun­hado, Bar­ney decide, então, recon­sti­tuir a supos­ta ver­dade dos fatos de sua vida. Bus­can­do a origem das acusações, ele engrena sua prosa sar­cás­ti­ca e auto-irôni­ca, que fez a fama de Rich­ler e é comu­mente com­para­da à demoli­do­ra verve humorís­ti­ca, de corte judaico, de Philip Roth e Woody Allen. Será que podemos con­fi­ar na ver­são de Bar­ney? — é o que se per­gun­tará várias vezes o leitor. Até a últi­ma pági­na, sua grande certeza é a de que tem nas mãos uma obra de “um grande estilista, com um tremen­do ouvi­do para a paró­dia e o diál­o­go cômi­co”, como escreveu James Shapiro, no New York Times. 

    Morde­cai Rich­ler (1931–2001) nasceu em Mon­tre­al, no Canadá. Pub­li­cou dez romances, entre eles The Appren­tice­ship of Dud­dy Kravitz, St. Urbain’s Horse­man e Solomon Gursky Was Here.