Ler poesia é como ler prosa? Ler poesia como se lê prosa é desler? Para ler poesia ler e reler ao relento, desligando o relé do pensamento. Desligar a face, religar o verso. No epicentro da poesia a palavra, a música, a imagem movem terremotos de imaginação. Para uma sociedade centrada na funcionalidade da palavra, que não admite ambiguidade subjetiva, ou a comunicação por excesso, poesia é um desvio que excede a palavra em ritmo e imagem.
Fiquei pensando isto quando li o Poesia é Não (Iluminuras, 2011), de Estrela Leminski. Primeiro li os poemas. Depois, a autobiografia da poeta, nas orelhas do livro. E folheando, vi aqui e ali páginas compostas em nuances de cores e tipos diferentes. Depois li a resenha de Marcos Pasche no Jornal Rascunho. “Faltou Poesia”, avisou o crítico, logo no título. E escreveu um artigo antecipando sua defesa por não criticar a poesia e sim a personalidade de Estrela, filha de um casal de poetas célebres. O modo que o crítico escolheu é um modo de desler poesia, concentrando-se na personalidade do poeta e não em sua poesia, nem sempre contida apenas nos versos.
Estrela joga com o título Poesia é Não, indicando o que a poesia não é. Catarse, objeto útil, notícia, mercadoria, rascunho de gaveta, protesto, influência. A negatividade se lê nos escritos, nas páginas gráficas. Ao deixar de lado o que está escrito e passar a ler o código visual, a leitura é outra.Papel de embrulho, documento oficial, jornal, livro, operária, conta e pagadora de conta, gaveta, panfleto, verbete de dicionário, literatura, signo, as páginas gráficas apontam para o que a poesia não é. O que ela é , então ?
Poesia é ver o verso, o avesso do que a diz palavra. Se a palavra diz “blogue adolescente”, pode ser que a poesia diga, como Estrela, a alegria pelo Não, alegria de quem cresce e conhece os prazeres de viver, prazer da comunhão pela palavra. Ser poeta é não parar de adolescer, é amadurecer adolescendo, envelhecer adolescendo, morrer adolescendo. Ser poeta é não desistir da infância para se preocupar em como escrever, escrever bem, escrever para um público, escrever sagrando o já sagrado. Escrever poesia é desescrever, é não saber, não acertar o ritmo, ler livros de poesia e esquecer, saber línguas e confundi-las com a língua da boca. Sem esquecimento, ignorância, erro, a poesia é pobre, por que uma vida perfeita é pobre, ou impossível. Querer que uma poeta jovem não cresça é ideia de quem acha que todo mundo deve nascer velho.
Juventude nem sempre é vitalidade. Velhice não é sinônimo de decrepitude. O domínio sobre a linguagem, que os críticos esperam dos bons (?) escritores não é sinal de maturidade. É sinal de quem tem medo de criar, de quem se protege por trás da terminologia letrada. O jargão intelectual não interessa para a maioria dos mortais. A maioria silenciosa, ao contrário do que pensam os críticos, ama a poesia — ama ouvir canções populares, por exemplo. A maioria silenciosa ama escrever versos, na adolescência cronológica ou tardia. E a maioria silenciosa se envergonha de amar a poesia, quando o crítico se levanta em nome do cânone literário e prega que é preciso ter vergonha por amar poesia e escrever bobagens que qualquer um escreve quando o coração dispara.
“Atirem o poeta ao mar”, diz um dos versos de Estrela, evocando o pai, que escreveu um livro juvenil (Guerra dentro da gente, Scipione) no qual um poeta, considerado o palhaço da tripulação de uma embarcação é atirado ao mar. A única solução para o poeta é atirá-lo ao mar, já que o poeta é inútil em qualquer sociedade. Que fazer com os que amam seus encantamentos? Não se pode atirar os amadores de poesia ao mar, não sobraria mar para todos. Preferível dizer ao crítico não leia seus poemas e condene a personalidade do poeta. Assim apenas um será afogado por suas más palavras.
Mas o poeta é trezentos ou trezentos mil, e seus versos se desdobram entre as palavras de ordem. Apesar das advertências do crítico, os leitores atravessam o texto e seus pretextos e saem atrás de miragens. Para os que amam se divertir, a poesia de Estrela é, sim.
*Marília Kubota, além de colaboradora do interrogAção, escreve no seu blog Micrópolis.
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