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  • Canta tua aldeia | Crônica

    Canta tua aldeia | Crônica

    Em Paranaguá, min­ha cidade natal, ain­da não há ciclis­tas, cli­cloa­t­ivis­tas, nem bikeiros. Há pes­soas que usam a bici­cle­ta como meio de trans­porte. É uma sen­sação con­fortáv­el estar na min­ha cidade natal com músi­cos na praça e bici­cle­tas. Em vez de ouvir “The Wall”, eu pen­so em “Cin­e­ma Par­adiso”. Em breve esta aldeia será igual a todas as out­ras, com a insta­lação de dois shop­ping cen­ters — todos os que ain­da andam de bici­cle­ta terão seu car­ro. Há tem­pos li que o fotó­grafo Pedro Mar­tinel­li foi morar na Amazô­nia para reg­is­trar os últi­mos momen­tos da flo­res­ta em pé. Tam­bém quero acom­pan­har esse momen­to de trans­for­mação em que a min­ha peque­na cidade vai ser se tornar igual a out­ra qualquer.

    Empresários indo trabalhar de bicicleta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan - Bridgepix)
    Empresários indo tra­bal­har de bici­cle­ta em Kobe, Japão (Foto: Thad Roan — Bridgepix)

    Na Ale­man­ha, na Holan­da e na Bél­gi­ca, na Chi­na e no Japão, país­es em que a bici­cle­ta não é meio de mobil­i­dade alter­na­ti­va, mas pref­er­en­cial, as pes­soas lev­am tudo sobre duas rodas. Os japone­ses, mais ele­gantes: exec­u­tivos ped­alam de ter­no e gra­va­ta e hábeis, empun­ham o guar­da-chu­va numa das mãos e com a out­ra agar­ram o pun­ho do guidão; sen­ho­ras alin­hadas na últi­ma moda des­fil­am com graça. Os chi­ne­ses já se pare­cem mais com os caiçaras, lev­am a mul­her e o fil­ho e a mudança de casa sobre a bike.

    No filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid”, Paul New­man tem uma famosa cena de bici­cle­ta com Kather­ine Ross. Lá, expli­ca que para os chi­ne­ses, quan­do uma mul­her e um homem andam jun­tos numa bici­cle­ta estão namorando.

    31Dada a pro­fusão de bici­cle­tas na cidade, meu avô, Kingo Kub­o­ta, ao insta­lar-se na cidade, teve visão de negó­cios. Abriu a Bici­cle­taria San­ta Cecília, hom­e­nage­an­do a cidade que morou ante­ri­or­mente, no norte do Paraná: San­ta Cecília do Pavão. Como todo bom japonês, meu avô cul­tua­va rit­u­ais e ado­ra­va hom­e­na­gens. Meu nome, por exem­p­lo, é uma hom­e­nagem a out­ra cidade em que morou, no inte­ri­or de São Paulo: Marília.

    Cena do filme "Butch Cassidy and Sundance Kid" (1969)
    Cena do filme “Butch Cas­sidy and Sun­dance Kid” (1969)

    Fui uma cri­ança cujo pai era dono de uma bici­cle­taria. Meus cole­gas de esco­la achavam que eu era a cri­ança mais sor­tu­da do mun­do. Era o tem­po em que nos­so son­ho con­sum­ista era gan­har uma Caloi, graças à pro­pa­gan­da tele­vi­si­va: “Eu quero a min­ha Caloi”, anun­ci­avam em todas as telas. Apren­di a andar de bici­cle­ta com rod­in­has e depois, sem rod­in­has, cain­do algu­mas vezes. Cer­ta vez, min­ha esco­la pro­moveu um pas­seio de bici­cle­ta e não fui. Todos me olharam espantados.

    Além de vender bici­cle­tas que ele mes­mo mon­ta­va, com a car­caça de bici­cle­tas usadas, meu pai tam­bém tin­ha uma ofic­i­na. Os pri­mos de meu pai e meus dois irmãos tra­bal­haram na ofic­i­na. Um dia meu irmão mais vel­ho foi para a esco­la com a mão suja de graxa. A pro­fes­so­ra per­gun­tou o que era aqui­lo. Ele ficou com ver­gonha e nun­ca mais quis voltar pra escola.

    Meu pai, Satoru Kubota e minha mãe, Tijiro, ao lado de minha tia Tereza, o trio em frente à Bicicletaria Central. (Foto: Kingo Kubota)
    Meu pai, Satoru Kub­o­ta e min­ha mãe, Tijiro, ao lado de min­ha tia Tereza, o trio em frente à Bici­cle­taria Cen­tral. (Foto: Kingo Kubota)

    Depois de anos, meu pai decid­iu ampli­ar o negó­cio de duas rodas para qua­tro. E pas­sou a vender peças de automóveis. Os pri­mos já não tra­bal­havam com ele, meu avô havia par­tido, e o irmão enver­gonhado não suja­va a mão com graxa. No ano de 1995, meus pais foram ao Japão pela primeira vez e viram de per­to como o japonês se movia nas grandes cidades com bici­cle­tas. Aban­don­avam suas bici­cle­tas no esta­ciona­men­to e pegavam out­ras, como guar­da-chu­vas. Já não se comovi­am com as magrelas.

    Des­de que o cicloa­t­ivis­mo começou a gan­har força em Curiti­ba e nas grandes metrópoles, impul­sion­a­do pelo exem­p­lo das cidades europeias, pas­sei a ver a bici­cle­ta com os olhos de out­ros. Não era mais o gan­ha-pão de min­ha família, que pagou meus estu­dos. A bici­cle­ta ago­ra é trans­porte alter­na­ti­vo na mobil­i­dade urbana.

    Em Paranaguá as magre­las con­tin­u­am em sua condição provin­ciana. Indo e vin­do, levan­do o mun­do sobre duas rodas. Pen­so que voltei numa hora boa para reci­clar meus con­ceitos sobre a min­ha aldeia.

  • Olhai para o céu | Crônica

    Olhai para o céu | Crônica

    Imagem do telescópio Hubble, da NASA
    Imagem do telescó­pio Hub­ble, da NASA

    Nestes dias de super­lua e pôr-de-sol alaran­ja­do todos olham para o céu. Diante de fenô­menos astronômi­cos e geofísi­cos extra­ordinários volta­mos a ser mul­heres e home­ns pale­olíti­cos, embas­ba­ca­dos pelo poder das forças nat­u­rais, Pas­samos a girar em torno de satélites, astros e estre­las do zodía­co. Não como sim­ples con­sulentes de horós­co­pos, mas como seres deslum­bra­dos sob o cos­mo desconcertante.

    Não por aca­so há uma cor­re­spondên­cia entre os sig­nos celestes e os sig­nos lin­guís­ti­cos. “As estre­las no céu lem­bram as letras no papel”, can­tou o poeta. Nos primór­dios, a lua e as estre­las eram fonte de inspi­ração para os aedos. Can­ta­va-se para uma noite român­ti­ca, que ocul­ta­va em seu man­to negro galáx­i­as a serem descober­tas por cien­tis­tas e astrônomos, sécu­los adi­ante. Munidos de lune­tas e telescó­pios potentes, os cien­tis­tas desmisti­ficaram a abóba­da celeste. Ape­sar de hoje saber­mos que as estre­las que vemos no céu são cor­pos moven­do-se a anos-luz da Ter­ra, o encan­to não se diluiu.

    Falan­do em roman­tismo, emb­o­ra para a maio­r­ia dos oci­den­tais esta face não seja a mais visív­el, o japonês tem sua porção sen­ti­men­tal­ista bem acen­tu­a­da. Evo­can­do o mote “olhar para o céu”, lem­bro uma canção que fez suces­so nos anos 60: Ue wo muite aruk­ou. Na voz de Kyu Sakamo­to, a canção japone­sa, cuja tradução do títu­lo é Ande olhan­do para o céu, cru­zou os mares e ecoou nas Améri­c­as, reba­ti­za­da nos Esta­dos Unidos como Sukiya­ki.

    A letra aparente­mente abor­da um fra­cas­so amoroso e inci­ta o amante rejeita­do a seguir em frente, de cabeça ergui­da. A canção, que em 1963 atingiu o topo das paradas de suces­so amer­i­canas, tornou-se um hino para os japone­ses. Não se tra­ta de uma sim­ples canção român­ti­ca. Seu autor, Rokusuke Ei, escreveu a letra enquan­to ia para casa, voltan­do de protesto estu­dantes japone­ses con­tra a pre­sença mil­i­tar dos amer­i­canos no Japão. Des­de a der­ro­ta na 2a. Guer­ra Mundi­al, o Japão se tornou uma nação ocu­pa­da e até hoje a ilha de Oki­nawa man­tém uma base mil­i­tar amer­i­cana, tor­nan­do-se um pon­to estratégi­co dos EUA no mapa geopolíti­co da Ásia. Vários can­tores do mun­do todo gravaram a canção, inclu­sive brasileiros. Há uma ver­são da canção em que Daniela Mer­cury a can­ta, em japonês, com sotaque e rit­mos brasileiros. Para lev­an­tar os âni­mos dos japone­ses desabri­ga­dos pelo tsunâ­mi de 2011, vários músi­cos japone­ses gravaram a canção, com arran­jos que vão do pop ao jazz.

    Isto eu escrevi porque hoje faz 6 meses com­ple­tos de luto pela morte de meu com­pan­heiro. Durante 6 meses a ale­gria muitas vezes bateu à min­ha por­ta e eu a ignor­ei. Hoje à noite, olhan­do para céu, perce­bi que não pos­so mais deixar a por­ta tran­ca­da. Não pos­so chorar pelo ama­do que se foi pelo restante da vida. Ten­ho ami­gos que se enlu­taram e até hoje con­tin­u­am choran­do suas per­das. Mas não con­si­go mais resi­s­tir ao clam­or do céu.

    O céu que se alaran­jou na últi­ma sem­ana de out­ubro é a con­fir­mação de uma nova pri­mav­era. Pri­mav­era que per­gun­ta, em sus­sur­ro: “você perdeu seu com­pan­heiro e tem 51 anos. E ago­ra?” Ago­ra só pos­so con­tin­uar ouvin­do Ue wo muite aruk­ou e andar olhan­do para o céu.

  • Distrações Ambulantes | Crônica

    Distrações Ambulantes | Crônica

    Quan­do come­cei a tra­bal­har em jor­nal, min­ha primeira incum­bên­cia como estag­iária foi faz­er a pági­na de óbitos. Eu detes­ta­va aqui­lo. Que­ria escr­ev­er críti­cas de livros e de filmes e ser céle­bre. Mas nem um estag­iário é con­trata­do para escr­ev­er críti­cas de livros e filmes. Para não ter que ape­nas dig­i­tar a pági­na com o nome dos mor­tos do dia, inven­ta­va nomes estapafúr­dios como Epaminon­das Pan­ta­gru­el e metia no meio da lista. Se alguém perce­beu a peque­na traquinagem, nun­ca fiquei sabendo.

    A primeira reportagem que fiz na vida foi sobre irreg­u­lar­i­dades de esta­ciona­men­tos pri­va­dos na cidade. Eu não lia jor­nais locais, só revis­tas sem­anais e as pági­nas de cul­tura, além de 4 ou 5 livros de ficção por sem­ana. Não sabia como fun­ciona­va a admin­is­tração públi­ca, nem os negó­cios. Tra­bal­hei durante muito tem­po na edi­to­ria “Ger­al”, como se chamavam os cader­nos que trazi­am notí­cias e reporta­gens sobre a cidade. Entre­vis­tei muito bura­co de rua. Hoje nem sei como escrevi essas matérias. Além de tími­da (não sabia faz­er per­gun­tas), não sabia escr­ev­er matérias para a edi­to­ria de notí­cias locais. Algu­mas devem ter sido estapafúr­dias, e pos­so ter meti­do um poe­ma ou citação literária no meio.

    Até hoje não sei como con­segui ser aprova­da em todos os cur­sos vestibu­lares para os quais prestei con­cur­so. No cur­so de jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Estad­ual de Lon­d­ri­na, nos cur­sos de Letras da Pon­tí­fice Uni­ver­si­dade Católi­ca do Paraná e da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná e no cur­so de Jor­nal­is­mo da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná. Se tivesse juí­zo, teria mora­do 4 anos em Lon­d­ri­na. Um dos pro­fes­sores do cur­so dizia que o jor­nal­is­mo era arte, como a arquite­tu­ra. E que teve uma alu­na que não con­seguia orga­ni­zar as ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Me iden­ti­fiquei ime­di­ata­mente. Nun­ca con­segui orga­ni­zar ideias para escr­ev­er uma notí­cia. Não sei como fiz entre­vis­tas e escrevi reporta­gens durante 25 anos de profissão.

    Revi­sores e edi­tores sem­pre sofr­eram comi­go. Na ver­dade, jamais publiquei poe­mas meus nos jor­nais em que tra­bal­hei. Tam­bém não escrevia tex­tos poéti­cos em reporta­gens jor­nalís­ti­cas, emb­o­ra algu­mas notí­cias — pela min­ha fal­ta de con­ta­to com a real­i­dade conc­re­ta — fos­sem estapafúrdias.

    Com o tem­po, apren­di a não levar tudo tão a sério. Mas ain­da é difí­cil ser sim­páti­ca e agradáv­el o tem­po todo. Em grupo, gos­to de ficar em silên­cio, mais obser­van­do do que falan­do. Soz­in­ha, gos­to de cur­tir melan­co­l­ia e ler sobre tipos esquisi­tos. Se um poe­ma, crôni­ca ou nov­ela tra­ta da vida de um tipo esquisi­to, me apaixono, como os bizarros de J.D. Salinger ou os solitários de Dostoievski.

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    Hoje em dia pre­firo seguir o cam­in­ho con­trário ao dos que se apres­sam para chegar a algum lugar. Ando em ruas solitárias e des­cubro que alguns con­sen­sos podem ser rompi­dos. Andan­do a pé, con­ver­so com moradores de rua e muitos pare­cem não ser perigosos. Pelo con­trário, têm medo de rece­ber um não. Não devia con­ver­sar com descon­heci­dos. Isso acon­tece por aci­dente. Alguém pede din­heiro e eu digo que não ten­ho, mas dou um sor­riso. Daí o mar­gin­al perde o medo e começa a conversar.

    Algu­mas pes­soas me acham insu­portáv­el por esque­cer tudo. Des­de acon­tec­i­men­tos a nomes de pes­soas. Esque­cia o chu­veiro lig­a­do ou a chave na por­ta de casa. Cheguei a esque­cer de pegar doc­u­men­tos para ir via­jar, as pas­sagens de avião ou as malas. Min­ha dis­tração chega a tal pon­to que acabo esque­cen­do mui­ta gente. Nesse caso, cor­roboro o dita­do “há males que vêm para bem”. Esque­cer se tor­na uma dádi­va quan­do é pre­ciso apa­gar ofen­sas e ressen­ti­men­tos da alma. Já dizia o inesquecív­el Mário Quin­tana; “ten­ta esque­cer-me… Ser lem­bra­do é como evocar/Um fan­tas­ma”. Assim é…

  • Mukashi Mukashi* | Crônica

    Mukashi Mukashi* | Crônica

    Masa Sato e todos os netos, Sorocaba, anos 40
    Masa Sato e todos os netos, Soro­ca­ba, anos 40

    Seu nome, Miya, dev­e­ria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japone­sas nasci­das no cam­po usarem o ideogra­ma KO [子]. O uso era per­mi­ti­do ape­nas às mul­heres de origem nobre. O ideogra­ma miya [宮] sig­nifi­ca tem­p­lo xin­toís­ta, príncipe ou prince­sa da família impe­r­i­al. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometi­da a um noi­vo que não gosta­va, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deser­dou. Miya tin­ha um irmão mais vel­ho, Sada­ji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kame­ki. Muito jovem, min­ha avó se inter­es­sou por lit­er­atu­ra. Em sua cidade, que fica na provín­cia de Saga, região sul, per­to de Nagasa­ki, só havia bib­liote­cas na igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Ela se con­ver­teu, só para fre­quen­tar a bib­liote­ca e ler a obra do escritor francês Vic­tor Hugo. Sada­ji e Kame­ki vier­am para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a tra­bal­har no cafezal da família Shi­nobu, na Colô­nia Nipolân­dia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vier­am Miya e Tome.

    Museu de Etnografia de Paranaguá (Foto:  Kingo Kubota)
    Museu de Etno­grafia de Paranaguá (Foto: Kingo Kubota)

    Kun­yo Tiba, meu avô, mar­in­heiro, tam­bém veio para o Brasil, com a mis­são de bus­car a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aven­tu­rar no “País dos fru­tos doura­dos”, como era chama­do pela Imi­gração Japone­sa. Veio como agre­ga­da da família Shi­nobu, um expe­di­ente comum na época. Famílias eram com­postas por mem­bros de difer­entes ori­gens, for­jan­do doc­u­men­tos. Miyoko mora­va na “casa grande”, com a família arti­fi­cial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anex­a­do a Manchúria e começaram os con­fli­tos com a Chi­na. No cafezal, con­heceu Miya e casou com ela.

    No Brasil, Miya con­tin­u­ou fre­quen­tan­do a igre­ja pres­bi­te­ri­ana. Prat­i­ca­va a arte do tan­ka — uma das for­mas poéti­cas japone­sas. Kuniyo toca­va shakuhachi — a flau­ta de bam­bu japone­sa. Como ele era era mar­in­heiro, poucos ofí­cios restavam em ter­ra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro moran­do na colô­nia japone­sa de Birigui. Decid­iu fab­ricar carvão veg­e­tal e mudou para Tapi­raí, no Sul paulista, que veio a se tornar um impor­tante cen­tro de pro­dução da matéria-pri­ma. A mul­her e os três fil­hos o aju­davam a queimar carvão. Por causa do ofí­cio do patri­ar­ca, a família morou em diver­sos pon­tos da cidade. Kame­ki, o caçu­la Tiba, ficou doente e foi se tratar em Cam­pos de Jordão. Cura­do, decid­iu faz­er um cur­so de far­ma­cêu­ti­co, em São Paulo. Quan­do se for­mou, os irmãos mon­taram uma peque­na far­má­cia no cen­tro de Tapi­raí. Kuniyo decid­iu mon­tar um bar, viz­in­ho à farmácia.

    Família Tiba, Sorocaba, anos 40.
    Família Tiba, Soro­ca­ba, anos 40.

    Meu tio mais vel­ho começou car­reira mil­i­tar e pôde com­prar um sobra­do para os pais, no bair­ro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em mea­d­os dos anos 60. Toda vez que íamos vis­itá-lo, Kuniyo fazia algo­dão-doce para nós. Ele ven­dia o doce nas ruas de São Paulo. Cri­ança, não sabia como o açú­car col­ori­do se trans­for­ma­va em nuvem de algo­dão. A casa de meus avós era meio mág­i­ca. Na coz­in­ha havia um grande telescó­pio. Um dos tios havia entra­do para a Aeronáu­ti­ca e tin­ha mania por ape­tre­chos de avi­ação e aeronáutica.

    Meu avô mor­reu em 1974, de câncer no intesti­no. Na época era uma doença dev­as­ta­do­ra. A família cuidou dele por meses. Depois que o mari­do mor­reu, Miya vin­ha pas­sar férias com min­ha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que fala­va. Sin­to pena de não ter estu­da­do a lín­gua japone­sa quan­do cri­ança. Só desco­bri o que era shakuhachi e tan­ka com quase 40 anos. Zan­nen.**

    * Em japonês: anti­go, anti­go. Em ger­al, as histórias de tradição oral japone­sas começam com “Mukashi, mukashi…”
    **Em japonês: Que pena !

  • A persistência da infância | Crônica

    A persistência da infância | Crônica

    No livrin­ho “Infân­cia”, o escritor J. Coet­zee con­ta que ele e seus irmãos se escon­di­am quan­do os par­entes do lado mater­no chegavam para vis­itá-los. Ele descreve a hipocrisia das gen­tilezas soci­ais e a ten­ta­ti­va da mãe em ensi­nar “bons mod­os” aos fil­hos. Fora do ambi­ente domés­ti­co, denun­cia o apartheid da África do Sul, dan­do como exem­p­lo sua exper­iên­cia esco­lar. Cri­anças não europeias, ou seus fil­hos, eram espan­cadas pelas europeias. Coet­zee con­tou numa palestra em Curiti­ba que seus livros pas­saram pelo cri­vo da cen­sura ofi­cial, mas foram lib­er­a­dos sob a ale­gação de que a lin­guagem eru­di­ta só seria enten­di­da pela elite letrada.

    O escritor moçam­bi­cano Mia Couto diz que a mãe pas­sa­va apuros com o pai, poeta, que não con­seguia aju­dar em nen­hum tra­bal­ho da vida domés­ti­ca. E ela reza­va para que não sur­gisse na família mais poet­as. Uma vez, man­dou o fil­ho à padaria, a algu­mas quadras de casa. No cam­in­ho, Mia se dis­traiu seguin­do uma bor­bo­le­ta e esque­ceu o que ia faz­er. Sen­ta­do na calça­da, pas­sou horas ven­do formi­gas. Em sua casa, uma con­fusão: o pai havia pas­sa­do mal. O meni­no ficou na rua até que, tarde da noite, quan­do lem­braram dele o foram bus­car. Encon­traram-no ain­da a obser­var o formigueiro.

    ( Desenho por: Gervasio Troche )
    ( Desen­ho por: Ger­va­sio Troche )

    Essas duas histórias me vier­am à cabeça, quan­do volta­va da con­sul­ta à min­ha médi­ca home­opa­ta. De repente, o ônibus parou. Lá atrás uma pas­sageira gri­tou: “o que acon­te­ceu?” Um bar­bu­do com camisa do Atléti­co respon­deu: “Quer saber o que acon­te­ceu? Quer mes­mo saber ? Veja aqui, já te mostro.” Remexeu na mochi­la e por alguns segun­dos, os pas­sageiros ficaram apreen­sivos. Como o sujeito demor­ou remex­en­do na mochi­la, um out­ro pas­sageiro, a seu lado, gri­tou “Vai demor­ar pra dar o tiro?” O ner­vos­in­ho acabou sacan­do da mochi­la uma bar­ra de banana-pas­sa. “Olha aqui a banana de dina­mite”, brin­cou, cain­do na gargalhada.

    Uma pas­sageira mudou de lugar, per­gun­tan­do por que o ônibus havia para­do. “Não sei”, respon­di. Ouvi o motorista ao celu­lar: uma car­reta blo­quea­va o trân­si­to. As cobrado­ras desce­r­am do ônibus e con­vi­daram o torce­dor do Atléti­co a aju­dar. “Sair daqui só na con­tramão”, disse o motorista. As cobrado­ras e o pas­sageiro blo­quear­am os car­ros, como se fos­sem guardas. Os três pare­ci­am cri­anças trav­es­sas brin­can­do de guardas de trân­si­to. Apoiamos o trio para poder con­tin­uar seguin­do viagem.

    As moças, coradas, e o torce­dor do Atléti­co retornaram. Alguém gri­tou que mais um pas­sageiro havia desci­do. Tin­ha que parar o ônibus pra ele reem­bar­car. Quan­do o ônibus voltou a nave­g­ar, me sen­ti estran­ha. Da janelin­ha do cole­ti­vo avis­tei uma mãe e uma fil­ha rindo uma com a out­ra, numa luta de saco­las de supermercado.

    Nos últi­mos tem­pos pen­so se é necessário preser­var a infân­cia em nós. Se, adul­tos, não cor­re­mos o risco de nos infan­tilizar. Para mim, ler ou escr­ev­er poe­sia é uma for­ma de cul­ti­var o lado cri­ança. Quan­to mais envel­he­ce­mos, a cri­ança se tor­na solitária. Algu­mas se sufo­cam comen­do choco­lates, indo à Dis­neylân­dia, ou pro­ferindo dis­cur­sos sobre caixotes de madeira. Out­ras, desen­ham histórias em quadrin­hos, recitam versin­hos, can­tam e tocam vio­lão. As que nun­ca mor­rem são as bufonas, como o torce­dor do Atléti­co. Que sabem que tudo na vida é pas­sageiro, menos quem con­duz a graça.

  • Timidez pra que te quero | Crônica

    Timidez pra que te quero | Crônica

    Campo de Trigo com Corvos (1890), de Vincent van Gogh
    Cam­po de Tri­go com Cor­vos (1890), de Vin­cent van Gogh

    Eu sou assim
    Quem quis­er gostar de mim eu sou assim
    Eu sou assim
    Quem quis­er gostar de mim eu sou assim
    Meu mun­do é hoje
    Não existe aman­hã pra mim
    E sou assim
    Assim mor­rerei um dia
    Não levarei arrependimentos
    Nem o peso da hipocrisia
    Ten­ho pena daqueles
    Que se agacham até o chão
    Enganan­do a si mesmos
    Com din­heiro, posição
    Nun­ca tomei parte
    Desse enorme batalhão
    Pois sei que além de flores
    Nada mais vai no caixão
    Meu mun­do é hoje.
    (Wil­son Batista)

    Des­de cri­ança fui tími­da. A primeira vez que escutei min­ha voz em públi­co lev­ei um sus­to. Pen­sei: Que voz de pato! Feia, gras­na­va. Fala­va baixo para ninguém ouvir. Isso fez com que me ouvis­sem cada vez menos. Sofria de “fal­ta de ini­cia­ti­va”, como acusavam os boletins esco­lares. Tira­va dez em tudo, menos nesse item.

    timidez-pra-que-te-quero-cronica-fazer-amigosEm um mun­do que não pára de falar, o tími­do é doente. Pen­sei assim por 20 anos de vida. Desisti da esco­la, aos 15 anos, porque não con­seguia faz­er palestras. Fiz ter­apia para tratar a “fobia social”. Não me curei. Voltei a estu­dar aos 18, fiz cur­so de Comu­ni­cação Social. E con­tin­uei tímida.

    Me apoiei na escri­ta para suprir o déficit. Primeiro veio a leitu­ra, refú­gio con­tra a hor­da de falantes. Como não sabia abrir a boca, abria um livro para “con­ver­sar”. Assim apren­di a dialog­ar com vozes dis­tantes no tem­po e no espaço, e com meus botões. Pen­sei que me tornar­ia uma escrito­ra, pub­li­ca­da e con­heci­da. A timidez impediu de divul­gar meus escritos, criva­dos pela autocrítica.

    Quan­do come­cei a tra­bal­har, estran­han­do a “fal­ta de ini­cia­ti­va”, cole­gas e ami­gos recomen­davam que fizesse teatro. Nun­ca me entu­si­as­mei, nem para desinibir. Hoje há atores nipo-brasileiros que ofer­e­cem óti­mos cur­sos, basea­d­os em téc­ni­cas teatrais, para aju­dar os tími­dos a se soltarem.

    Para faz­er a defe­sa de meu mestra­do, tomei aulas de impostação de voz com um ami­go. Mas o que me aju­dou a falar em públi­co foi ir a even­tos onde pre­cisa­va falar sobre o anda­men­to da pesquisa. Essas comu­ni­cações cien­tí­fi­cas, como se diz no jargão, duravam dez min­u­tos. Depois de falar meia dúzia de vezes para estu­dantes e pro­fes­sores que talvez não enten­dessem patavina do que eu fala­va, come­cei a ficar menos ansiosa.

    Carl Gustav Jung na Suiça (Foto: absolut Medien)
    Carl Gus­tav Jung na Suiça (Foto: abso­lut Medien)

    Há cer­ca de dois anos, ain­da pen­san­do o quan­to me cus­ta­va abrir a boca em públi­co, fiz o tal cur­so de teatro. Foi um desas­tre. O prob­le­ma não era só falar. Eu não tin­ha inteligên­cia cor­po­ral como os estu­dantes de artes cêni­cas. O meu azar é que era um cur­so volta­do para atores e não para lei­gos. Mas, para não diz­er que não falei de flo­res, nesse ano, no Dia da Mul­her, atuei no pal­co, pela primeira vez na vida, para falar meus poe­mas e de out­ras autoras. Perce­bi que ser tími­do pode não ser um prob­le­ma, mas um esti­lo de personalidade.

    Por causa daqui­lo que acha­va ser um obstácu­lo ao desen­volvi­men­to social em min­ha vida, come­cei a estu­dar sobre a timidez. Desco­bri que o psicól­o­go Carl Gus­tav Jung clas­si­fi­ca os tipos de per­son­al­i­dade em extro­ver­tidos e intro­ver­tidos. Se timidez é con­sid­er­a­da doença, pelo menos de fal­ta de socia­bil­i­dade, a intro­ver­são pode ser um modo como se com­por­ta metade da humanidade.

    timidez-pra-que-te-quero-cronica-poder-quietosÉ o que diz Susan Cain, auto­ra do best-sell­er “O poder dos qui­etos”. Li um e‑book em que ela abom­i­na tipos vende­dores como Dalie Carnegie, autor do best-sell­er “Como faz­er ami­gos e influ­en­ciar pes­soas”. Susan crit­i­ca o rea­cionar­is­mo de Carnegie, que nos anos 60, ensi­na­va que para ter suces­so era pre­ciso sor­rir, falar e ter pen­sa­men­tos pos­i­tivos o tem­po todo. E fin­gir que igno­ra­va os hor­rores da guer­ra do Viet­nã, sor­rindo. Quan­do cru­zo com pes­soas que pare­cem ter lido esse livro, ou incor­po­ra­do suas ideias, ten­ho von­tade de fugir. Em ger­al, acabo ten­do exper­iên­cias desagradáveis com quem não para de falar bobagens ten­tan­do ser simpático.

    Depois de tan­to tem­po, aceito a timidez. Gos­to de ficar soz­in­ha, lendo e escreven­do. Os tími­dos, ou intro­ver­tidos, são mais inde­pen­dentes e têm mel­hor desem­pen­ho tra­bal­han­do soz­in­hos. Desco­bri, lendo o livro de Susan, que depois de pas­sar algum tem­po com out­ras pes­soas, tra­bal­han­do ou em even­tos soci­ais, os tími­dos pre­cisam “recar­regar as bate­rias”. Ou seja, ficar um tem­po a sós.

    Não pre­ciso mais expor num diário públi­co tudo que acon­tece comi­go por me sen­tir só. Ten­ho um com­pan­heiro, uma família, bons ami­gos e uma rede de tra­bal­ho e con­tatos. Fiz as pazes com a garot­in­ha enver­gonha­da que baix­a­va a cabeça diante do piano da sala de pro­fes­sores para posar numa foto esco­lar. Ain­da bem. Não aguen­ta­va mais deixá-la de lado. Com o tem­po, vi que é até bom cul­ti­var a ver­gonha numa cul­tura em que os mais sem-ver­gonha acabam pas­san­do por cima de tudo e de todos.

  • Querido Nikki

    Querido Nikki

    (Foto: Mai Fujimoto)
    (Foto: Mai Fujimoto)

    Havia o diário, onde eu podia escr­ev­er min­has ver­dades, min­has inqui­etações, min­has aflições pes­soais, min­has con­fis­sões, meus amores, e havia poe­sia, que era uma out­ra coisa, e que eu não enten­dia dire­ito o que era. Até que começaram a se aprox­i­mar os dois, enten­deu? As duas coisas começaram a se aprox­i­mar. Perce­bi que no ato de escr­ev­er a intim­i­dade ia se perder mesmo.

    (Ana Cristi­na César, Escritos no Rio, Brasiliense, 1993, p. 206)

    “O livro do travesseiro”, de Sei Shônagon
    “O livro do trav­es­seiro”, de Sei Shônagon

    No Japão as cri­anças são estim­u­ladas a escr­ev­er diários. Lá, o nik­ki não é só um reg­istro pes­soal. É con­sid­er­a­do gênero literário. Obras clás­si­cas, como “O livro do trav­es­seiro” (Maku­ra no Sôchi), de Sei Shô­nagon e “Con­tos de Gen­ji” (Gen­ji mono­gatari) podem ser clas­si­fi­ca­dos como diários ou mis­celâneas do gênero, já que a cat­e­go­riza­ção literária é flu­i­da no país de Mat­suo Bashô. Aliás, o poeta tem um céle­bre diário de viagem, “Sendas do Oku(Oku no Hosomichi). A palavra japone­sa oku, grosso modo, pode ser traduzi­da como “pro­fun­dezas”, o inte­ri­or mais pro­fun­do. No caso de Bashô, sig­nifi­ca­va a viagem que empreen­deu por todas as provín­cias japone­sas, chegan­do às aldeias mais remo­tas, no sécu­lo XVII.

    No oci­dente, ao con­trário do Ori­ente, o diário é con­sid­er­a­do rela­to pes­soal. Nos anos 50, era comum mul­heres, donas-de-casa e mães de família man­terem diários. Uma diarista famosa, a poeta Ana Cristi­na César, expli­ca o moti­vo: o diário é um inter­locu­tor. Ana C. perce­bia a difer­ença entre o diário pes­soal e o diário literário, mais aprox­i­ma­do da lit­er­atu­ra japonesa.

    "A teus pés", de Ana Cristina César
    “A teus pés”, de Ana Cristi­na César

    No Japão, o diário literário con­tém poe­mas e desen­hos, é um hai­bun, como o de Bashô. O diário de Ana C., pub­li­ca­do em “A teus pés”, difere do diário da escrito­ra neoze­landesa Kather­ine Mans­field, por exem­p­lo. Ana C. capricha na lin­guagem poéti­ca, enquad­ran­do a sua intim­i­dade sob o molde literário. O diário de Mans­field é o tipo de doc­u­men­to apre­ci­a­do pela críti­ca genéti­ca, que exam­i­na doc­u­men­tos pes­soais do escritor. A poe­sia de Bashô ou de Ana C., emb­o­ra pertençam à escri­ta da intim­i­dade, cat­e­go­rizadas como diários, são lit­er­atu­ra. O que difere um e out­ro é a lin­guagem que se emprega.

    No plano pes­soal, diário não é só para ficar baten­do-papo con­si­go, num exer­cí­cio exac­er­ba­do de auto-nar­ci­sis­mo. Fun­ciona como arqui­vo, para orga­ni­zar a memória. Para uma ger­ação de mul­heres edu­cadas para serem donas-de-casa ou servirem à família, os diários fun­cionavam como válvu­la de escape. Não bas­ta­va o con­fes­sionário da igre­ja para expi­ar as cul­pas. Essa ger­ação não havia sido intro­duzi­da ao dis­cur­so da psi­canálise e da psi­colo­gia. O diário era a saí­da para preser­var a sanidade mental.

    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angélica Freitas
    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angéli­ca Freitas

    Nos anos 90, os blogs se tornaram moda no Brasil. Blog é tam­bém uma espé­cie de diário. Lançaram mais de um escritor à cele­bri­dade: Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck, Marceli­no Freire, Andréa Del Fuego, Daniel Galera, Angéli­ca Fre­itas, todos tin­ham seus blogs, e reg­is­travam entradas diárias. Com Roland Barthes dec­re­tan­do a morte do autor, tornar-se autor já não era priv­ilé­gio de uma elite de pre­des­ti­na­dos. Os soft­wares que facil­i­tavam a pub­li­cação de diários eletrôni­cos aju­daram. Depois vier­am as redes soci­ais, e os blogs se tornaram ultrapassados.

    Fabrício Carpinejar, Clarah Averbuck e Marcelino Freire
    Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck e Marceli­no Freire

    Mes­mo depois da explosão das redes soci­ais, con­tin­uei a escr­ev­er em meu blog. Hoje ele já não é mais um con­fes­sionário vir­tu­al. Ain­da man­ten­ho o reg­istro da intim­i­dade, mas bus­co uma lin­guagem mais literária, próx­i­ma do nik­ki. O blog não bus­ca auto­ex­posição aleatória. E tam­bém quer preser­var o esta­do de solidão. Esta­b­ele­cer uma comu­ni­cação. Isso é lit­er­atu­ra: o meu caminho.

  • Quem quer criar desordem?

    Quem quer criar desordem?

    Leonilson (por Leonilson)
    (Desen­ho por Leonilson)

    Uma vez uma ami­ga veio em casa e comen­tou: “As pes­soas dizem: não ligue para a bagunça. Mas todo mun­do tem a casa bagunça­da.” Era uma obser­vação sobre a des­or­dem per­ma­nente de min­ha casa. Livros por todos os lados, blo­cos de ano­tação, cader­nos, cópias de xerox, uma casa em que o papel pre­dom­i­na e causa des­or­dem. Gostei do comen­tário da ami­ga. Depois dis­so, pas­sei a não me impor­tar que as vis­i­tas vis­sem a casa em caos.

    Fico com medo de entrar em casas limpas e orga­ni­zadas demais. Medo de pis­ar no chão limpo e bril­hante. Medo de sen­tar no sofá limpo e bril­hante. Uma ami­ga tem uma casa tão limpa e orga­ni­za­da que ten­ho medo de sen­tar no sofá e mor­rer. Lem­bro o sofá de Julio Cortázar, com uma estre­lin­ha pon­ti­agu­da, no qual as cri­anças con­vi­davam as vel­hin­has chatas a sentarem para morrer.

    Na casa da min­ha avó havia uma geladeira que só fecha­va com bar­bante. Ela aproveita­va o jor­nal que meus tios liam para for­rar o chão onde caía gor­du­ra do fogão. Quan­do cri­ança, eu não acha­va sua casa uma bagunça. Não sabia que orga­ni­zar o espaço é fun­da­men­tal para a vida ter um pru­mo, como ensi­nam os admin­istradores de tem­po. Na casa da avó tín­hamos liber­dade máx­i­ma para não nos pre­ocu­par­mos em não sujar e não bagunçar nada. Era o lugar em que bom­bons e piz­zas sur­giam de for­ma mágica.

    Na casa de Hélio Leites há obje­tos inúteis por todos os lados. Latas de sardinha, botas, sap­atos, livros, pedaços de papel, embal­a­gens de leite. Tudo que ele usa em suas cola­gens. Entre várias asso­ci­ações estapafúr­dias que criou, Hélio fez parte do clube de Arte Postal, e “guar­da” os cartões entre para­fu­sos, por­cas, potes de iogurte, chaves. Desco­bri, entre seus papéis, o bole­tim Hitlelíri­co, com paró­dias inspi­radas no Grande Dita­dor. E tam­bém arti­gos, goza­ções homéri­c­as, pub­li­ca­dos no jor­nal “O Esta­do do Paraná”.

    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)
    Hélio Leites em sua casa (Foto: André Saito & Cesar Nery)

    Na chá­cara de Hil­da Hilst, em Camp­inas, os cachor­ros dormi­am em cima de sua cama. O jardim era seco e ela bebia nos fins de tarde. Tive emoções difusas nos dois dias em que estive lá. Ouvi histórias sobre abor­tos, a mágoa por ter sido “esque­ci­da” pelos críti­cos, menos Léo Gilson Ribeiro. A visi­ta se deu antes que Fer­nan­da Mon­tene­gro ence­nasse “A obsce­na sen­hor D.” e Hil­da tivesse a sua obra repub­li­ca­da pela Edi­to­ra Globo. Ela fica­va na sala, beben­do com os ami­gos. Mas quan­do estive em sua casa, ficou impres­sion­a­da com o meu silên­cio e veio descas­car batatas comi­go, na coz­in­ha. E con­fi­den­ciou: “ten­ho pena dos poet­as, são tão sozinhos.”

    Hilda Hilst
    Hil­da Hilst

    Na sala de min­ha ter­apeu­ta há livros espal­ha­dos numa mesa que ela nun­ca arru­ma. Muitas vezes pen­sei porque uma pes­soa respon­sáv­el por aju­dar a orga­ni­zar o caos inte­ri­or de out­ros man­tém uma mesa de tra­bal­ho em des­or­dem. Na últi­ma vez em que estive com ela, desco­bri. É pre­ciso aceitar a des­or­dem inte­ri­or. Não sabe­mos de tudo, não vemos tudo. O que está em aparente des­or­dem, pode estar afi­na­do na ordem de um sis­tema — famil­iar, comu­nitário, social, galáctico.

    Durante anos me pre­ocu­pei por não ser orga­ni­za­da, nem pro­du­ti­va, efi­ciente e útil. Ler, escr­ev­er, con­ver­sar, dis­cu­tir são uma enorme per­da de tem­po. Hoje sei que isso é ape­nas um pon­to de vista. É pre­ciso perder tem­po, deixar-se des­or­ga­ni­zar-se. Quan­do se entende o que é ter equi­líbrio, a orga­ni­za­ção vai acon­te­cen­do sem perceber.

  • Olhar por trás de estantes

    Olhar por trás de estantes

    Biblioteca de Leminski, fotografada sem produção prévia. Foto : Carlos Roberto Zanello de Aguiar (Macaxeira).
    Bib­liote­ca de Lemins­ki, fotografa­da sem pro­dução prévia.
    Foto : Car­los Rober­to Zanel­lo de Aguiar (Macax­eira).

    Des­de ado­les­cente fre­quen­to bib­liote­cas públi­cas. Quan­do cri­ança, não. Nas esco­las em que estudei, em Paranaguá, não havia bib­liote­cas. Uma vez, uma pro­fes­so­ra inven­tou uma bib­liote­ca ambu­lante. Cada aluno dev­e­ria levar um livro. Não fun­cio­nou. Ninguém lev­ou livros. Quan­do mudei para Curiti­ba, pas­sa­va um tem­pão passe­an­do pelos corre­dores da Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Min­has estantes preferi­das eram as de lit­er­atu­ra brasileira e poe­sia. Tam­bém pas­sei quase cem anos de solidão e areia diante da lit­er­atu­ra em lín­gua espan­ho­la, quan­do desco­bri Gabriel Gar­cia Márquez e Jorge Luis Borges.

    Uma bib­liote­ca que sem­pre me fas­ci­nou foi a da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Paraná, quan­do ain­da não era alu­na. A diver­si­dade de títu­los, e em lín­guas difer­entes impres­sion­a­va. Lem­bro do encan­to por um livro de Luís da Câmara Cas­cu­do sobre lendas brasileiras. Quan­do me tornei alu­na, pude emprestar um livro de poe­mas de Manuel Ban­deira traduzi­dos para o francês. Mais tarde, na pós-grad­u­ação, li livros sobre lit­er­atu­ra japonesa.

    Out­ra bib­liote­ca que gostei de con­hecer foi a do Insti­tu­to Goethe. Fre­quentei pouco, mas quan­do a con­heci, era uma novi­dade emprestar, além de livros, CDs e filmes. Depois, em São Paulo, vis­itei bib­liote­cas que tam­bém tin­ham seções mul­ti­mí­dia. E nas quais pas­sa­va horas lendo revis­tas sobre todo o tipo de assunto.

    Nesse ano con­heci a bib­liote­ca do Insti­tu­to de Estad­ual de Edu­cação Eras­mo Pilot­to, esco­la na qual Hele­na Kolody foi pro­fes­so­ra. Uma ami­ga, a poeta Jane Sprenger Bod­nar, tra­bal­ha lá. O acer­vo, emb­o­ra seja uma bib­liote­ca esco­lar, é diver­si­fi­ca­do. Além de lit­er­atu­ra e edu­cação, há livros sobre cul­tura pop­u­lar. Pena que pre­cise de refor­mas e não rece­ba atenção do gov­er­no do estado.

    Biblioteca Pública do Paraná (Foto: Yasmin Taketani)
    Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná (Foto: Yas­min Taketani)

    Ape­sar de ter sido reestru­tu­ra­da, espe­cial­mente na área de comu­ni­cação visu­al, hoje ten­ho medo de voltar à Bib­liote­ca Públi­ca do Paraná. Já li quase todos os livros da seção de Lit­er­atu­ra que me inter­es­savam. Há poucos títu­los novos. Con­fes­so que ler os autores da lit­er­atu­ra con­tem­porânea, cel­e­bra­dos em even­tos pro­movi­dos pela própria BPP me atemoriza.

    Não con­si­go mais exercer o rit­u­al juve­nil, de aven­tu­rar entre as estantes para desco­brir um livro estran­ho. Falan­do em estran­heza, tem­pos atrás havia leitores bizarros entre os fre­quen­ta­dores da BPP. Escritores, artis­tas, design­ers, jor­nal­is­tas? Não: sem-teto ou desem­pre­ga­dos, enfur­na­dos nas salas de leitu­ra. A neolib­er­al­iza­ção do lugar expul­sou os bizarros, que devem ter volta­do para o seu lugar: as ruas.

    Cer­ta vez, num pro­gra­ma de tevê, vi a bib­liote­ca da pro­fes­so­ra de lit­er­atu­ra Luzilá Gonçalves, que mora no Recife. Os livros estavam em des­or­dem e as estantes roí­das por cupins. Des­or­dem igual às das bib­liote­cas do poeta Paulo Lemins­ki e do ilustrador Clau­dio Seto. Nem tudo está con­forme a nova ordem e os cupins roem as prateleiras. Mais que cupins, o que impor­ta é ali­men­tar os ratos de bib­liote­ca. Em tem­po de bien­ais e grandes even­tos de lit­er­atu­ra, bib­liote­cas cheias de poeira são um refú­gio con­tra os que cobrem a história com verniz.