Category: Literatura

  • Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Daniel Galera em seu quar­to romance, Bar­ba Ensopa­da de Sangue (Com­pan­hia das Letras, 2012), é pro­tag­on­i­za­do por um “homem forte e silen­cioso” como diria Tony Sopra­no. Assim como em Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, temos uma nar­ra­ti­va onde a vio­lên­cia surge no cotid­i­ano con­fortáv­el da classe média. 

    Após o suicí­dio do pai, o pro­tag­o­nista decide viv­er um ano em Garopa­ba para se dedicar como instru­tor em uma acad­e­mia da região e se iso­lar de sua cidade natal, Por­to Ale­gre. Ao seu lado, temos a cachor­ra Beta, que per­ten­cia ao seu pai e que ele se recu­sou a sacrificar. 

    Diag­nos­ti­ca­do com uma doença neu­rológ­i­ca rara que o impos­si­bili­ta de guardar na memória o próprio ros­to e o das pes­soas com quem vem a se rela­cionar, o pro­tag­o­nista leva con­si­go um álbum de retratos para lem­brar-se do ros­to dos ami­gos, da família e inclu­sive da sua própria face. 

    Eis um dos mis­térios do romance: Na con­ver­sa que teve com seu pai quan­do esse o infor­ma que ira tirar a própria vida, fica saben­do que seu avô, Gaudério, acabou se isolan­do na cidade de Garopa­ba nos anos 1960 e dev­i­do ao seu com­por­ta­men­to vio­len­to foi assas­si­na­do a facadas por vários nativos e seu cor­po nun­ca foi encon­tra­do. Desco­brir o que real­mente acon­te­ceu com ele é uma de suas metas, mes­mo que isso pos­sa colo­car sua vida em risco. 

    Daniel Galera
    Daniel Galera atingiu um nív­el téc­ni­co muito alto nesse romance real­ista e ambi­cioso, com per­son­agens fortes e caris­máti­cos (vide Bonobo, o bud­ista nada orto­doxo), descrições ric­as em detal­h­es, e parece jus­ti­ficar a razão do seu nome estar em voga ape­nas com a qual­i­dade da sua nar­ra­ti­va. O livro tem muitas semel­hanças entre os romances Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, mas em nen­hum momen­to o autor está se autoplagiando. 

    Ninguém escol­he nada e mes­mo assim a respon­s­abil­i­dade é nos­sa” diz o per­son­agem prin­ci­pal em uma dis­cussão com a ex-namora­da. O cen­tro do romance tra­ta a questão de livre-arbítrio e deter­min­is­mo, tópi­co estu­da­do por David Fos­ter Wal­lace, uma grande influên­cia do escritor brasileiro e do qual traduz­iu recen­te­mente a coletânea Fican­do Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.

    Des­de o princí­pio do tra­bal­ho, eu que­ria que o romance explo­rasse de maneira implíci­ta a questão filosó­fi­ca da respon­s­abil­i­dade humana em uma visão de mun­do deter­min­ista, segun­do a qual tudo que acon­tece é ape­nas resul­ta­do inevitáv­el do que acon­te­ceu logo antes. É um assun­to que me inter­es­sa.” Diz o autor em uma entre­vista para o site do Jor­nal do Comércio

    O úni­co pon­to neg­a­ti­vo está no tra­bal­ho grá­fi­co do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a tra­ma de mais de 400 pági­nas não é em nen­hum momen­to cansati­va e uma das críti­cas feitas ao livro, da qual ele pode­ria ser menor e menos ver­bor­rági­co, é infundado.

    Bar­ba Ensopa­da de Sangue é um óti­mo romance, mas ain­da é cedo para diz­er qual é sua importân­cia para a lit­er­atu­ra brasileira. Ao mes­mo tem­po vemos uma pro­dução literária nacional dar pas­sos cada vez maiores (antolo­gias, feiras literárias, críti­cos aten­to ao que acon­tece no cenário nacional, etc.), ain­da não sabe­mos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.

  • A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    A Mulher Desiludia, de Simone de Beauvoir | Livros

    Sin­to-me solidária com as mul­heres que assumi­ram suas vidas e que lutam para ter suces­so, o que não me impede, porém, de inter­es­sar-me pelas que não con­seguiram alcançá-lo.

    O bas­tante lúci­do tre­cho aci­ma – reti­ra­do do livro Bal­anço Final de 1972 — define a sinopse de A Mul­her Desilu­di­da (tradução de Hele­na Sil­veira e Maryan A. Bon Bar­bosa, Nova Fron­teira, 2010), da escrito­ra e uma das per­sonas mais con­heci­das do movi­men­to fem­i­nista no cam­po int­elec­tu­al, a france­sa Simone de Beauvoir.

    É basi­ca­mente impre­scindív­el con­hecer ao menos um pouco da tra­jetória de Beau­voir para se com­preen­der a força dos três con­tos de A Mul­her Desilu­di­da e não se ver lendo ape­nas tex­tos sim­plórios da vida de três mul­heres. Con­heci­da por várias situ­ações que vão des­de seu rela­ciona­men­to con­sid­er­a­do bas­tante inco­mum, movi­da pelo int­elec­tu­al de ambos, que atrav­es­sou décadas com o filó­so­fo Jean Paul-Sartre, a relação pas­sion­al e à dis­tân­cia – pas­saram muitos anos se comu­ni­can­do ape­nas por car­tas — com o escritor amer­i­cano Nel­son Algren (con­heci­do por O Homem do braço de Ouro) ou a ousa­da escrit­u­ra dos dois vol­umes de O Segun­do Sexo, Beau­voir viveu con­forme suas próprias regras bus­can­do sem­pre o sen­ti­do de liber­dade. Com a cru­el con­sciên­cia de que ser livre não é uma questão tão sim­ples quan­do se depende das con­vivên­cias soci­ais e o desprendi­men­to dos papéis pré-esta­b­ele­ci­dos, a escrito­ra deu voz e uni­ver­sos fic­cionais ínti­mos da real­i­dade à mul­heres que matavam seus próprios demônios femininos.

    Em a Mul­her Desilu­di­da, Simone de Beau­voir apre­sen­ta três mul­heres, em momen­tos cru­ci­ais de suas vidas, onde a questão do papel fem­i­ni­no – o pré-esta­b­ele­ci­do ver­sus as escol­has próprias das per­son­agens – entra em con­fli­to com a questão da idade e todo o apara­to psi­cológi­co que acom­pan­ha o para­doxo que pode ser agir ora através dos sen­ti­men­tos, ora respei­tan­do suas próprias ide­olo­gias e escol­has. As mul­heres descritas por Beau­voir refletem muito do momen­to, o ini­cio da déca­da de 70, as rev­oluções fem­i­nistas e as novas situ­ações encar­adas por essas mulheres.

    Des­de quan­do o ter­reno bal­dio do bule­var Edgar-Quinet se tornou esta­ciona­men­to? A mod­ernidade da pais­agem me salta aos olhos, todavia não me lem­bro de tê-la vis­to de out­ra for­ma. Gostaria de con­tem­plar lado a lado os dois cenários: antes e depois, e me espan­tar com a difer­ença. Mas não. O mun­do se con­strói sob meus olhos num eter­no pre­sente. Habituo-me tão depres­sa aos seus aspec­tos que ele não parece mudar. (p.11)

    Simone de Beauvoir
    O livro abre com o con­to A idade da dis­crição que tra­ta de uma acadêmi­ca e escrito­ra entran­do na ter­ceira idade, sentin­do-se dis­tante do momen­to que vive, acred­i­tan­do que não con­segue mais ter ale­grias para viv­er. Sua per­son­al­i­dade de mul­her inde­pen­dente, com um casa­men­to de décadas, aparente­mente bem suce­di­do, e car­reira de pro­fes­so­ra uni­ver­sitária, bate de frente com o papel cru­cial e dom­i­nador de mãe. Com um fil­ho adul­to, cri­a­do con­forme seus próprios ideais, ela se depara com um homem dono de sua própria vida e dis­pos­to a tro­car o foco fem­i­ni­no mater­no e apon­tá-lo para sua esposa.

    É clara a difi­cul­dade da per­son­agem em aceitar que não exis­tem eternidades quan­do se tra­ta de quase todas as relações, sejam elas físi­cas ou mate­ri­ais. A par­tir do momen­to que ela se dá con­ta que tudo ao seu redor está em con­stante proces­so de desen­volvi­men­to e que há um ciclo fun­cio­nan­do por trás dis­so, ela sim­ples­mente encara a força da idade e em vários momen­tos se vê melancóli­ca e descrente.

    Tam­bém é isso envel­he­cer. Tan­tos mor­tos atrás de si, lamen­ta­dos, esque­ci­dos. De repente, quan­do leio o jor­nal, des­cubro uma nova morte: um escritor queri­do, uma cole­ga, um anti­go colab­o­rador de André, um de nos­sos cama­radas políti­cos, um ami­go com quem perdemos o con­ta­to (p.75 e 76)

    Monól­o­go, assim como apon­ta o títu­lo, é nar­ra­do por fluxo de con­sciên­cia de uma mul­her per­tur­ba­da pelo divór­cio e aban­dono. Oscilante entre dormir e acor­dar durante uma madru­ga­da de fes­ta na casa viz­in­ha ela reflete, de for­ma bas­tante pas­sion­al entre amor e ódio, sobre como pode­ria ter sido uma esposa e mãe mel­hor já que seus fil­hos aparente­mente estão com o pai. É uma nar­ra­ti­va assus­ta­da e descon­tro­la­da de uma mul­her que perdeu sua úni­ca refer­ên­cia de posição fem­i­ni­na como esposa e mãe, uma situ­ação nada pecu­liar para uma sociedade que durante tan­to tem­po ale­gou ser esse o úni­co papel da mulher.

    O con­to que car­rega o nome do livro é o mais lon­go e tam­bém dá con­tinuidade, de for­ma mais detal­ha­da e próx­i­ma, a questão do pseu­do pro­tag­o­nis­mo da mul­her no casa­men­to. Nar­ra através da intim­i­dade de um diário, escrito em pouco mais de 3 meses, a vida con­ju­gal de Monique, uma mul­her de 44 anos que ten­ta viven­ciar uma relação aber­ta com o mari­do, mas se vê em ple­na decadên­cia psi­cológ­i­ca quan­do este arru­ma uma amante mais jovem e tor­na-se divi­di­do entre a “segu­rança” da com­pan­heira de anos e a juven­tude sen­su­al da amante independente.

    Quan­do se viveu de tal maneira para os out­ros, é um pouco difí­cil começar a viv­er para si. Não cair nas armadil­has da ded­i­cação: sei muito bem que as palavras dar e rece­ber são inter­cam­biáveis e como eu tin­ha neces­si­dade da neces­si­dade que min­has fil­has tin­ham de mim. Nesse sen­ti­do nun­ca ble­fei. (p.145)

    Monique é a per­son­agem mais conc­re­ta das três apre­sen­tadas no livro pois a con­strução de sua per­son­al­i­dade e con­ceitos próprios se dá através da sua descon­strução como mul­her e mãe nar­ra­da por si própria no seu diário. O con­fli­to com o seu cor­po, o sen­ti­do do sexo longe da juven­tude e a difi­cul­dade de se enten­der os lim­ites de um rela­ciona­men­to aber­to são cru­ci­ais para a deses­ta­bi­liza­ção da auto­con­fi­ança da per­son­agem até porque muitas das regras desse jogo – a relação e o sexo entre o casal – foram delim­i­tadas pelo mari­do que decide a hora que entra ou sai da situação.

    Simone e Sartre cli­ca­dos pelo litu­ano Antanas Sutkus
    Percebe-se nas vozes das três mul­heres de A Mul­her Desilu­di­da um tan­to da Simone e seus dile­mas no entorno do fem­i­nis­mo, prin­ci­pal­mente obser­van­do o con­fli­to pes­soal destas que se encon­tram no fato de encar­ar toda uma sociedade de época, basea­da em padrões morais de família e repro­dução. A divisão clara entre a opção de uma vida profis­sion­al ou de man­tene­do­ra do lar é de uma força cru­cial den­tro dos con­tos. Mas tam­bém traz muito do que se con­hece através de out­ras obras da auto­ra e biografias da sua relação com Sartre.

    Simone de Beau­voir con­segue faz­er com que A Mul­her Desilu­di­da seja tan­to suas exper­iên­cias e relatos que ouviu e viu inti­ma­mente das mul­heres de sua época. São histórias ador­nadas pela beleza da lit­er­atu­ra. Ou como uma própria per­son­agem define: Eis o priv­ilé­gio da lit­er­atu­ra – disse eu – As fig­uras se defor­mam, empalide­cem. As palavras, nós as lev­a­mos conosco. (p.83)

  • Daniel Piza: Legado e Saudades

    Daniel Piza: Legado e Saudades

    Daniel Piza por Eduar­do Baptistão

    So this house is emp­ty now There’s noth­ing I can do To make you want to stay So tell me how Am I sup­posed to live with­out you?

    This House is Emp­ty Now – de Elvis Costel­lo e Burt Bacharach

    O homem de cabe­los claros, lev­e­mente aver­mel­ha­dos, aparên­cia jovial, mas far­to em gestos e expressões car­regadas de uma maturi­dade muito aci­ma da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aque­le era Daniel Piza, dire­ta­mente dos livros, das impressões do jor­nal e da tela do com­puta­dor para o auditório de um dos shop­pings da cap­i­tal piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “final­mente”. Ela começa em 2009 e se desen­ro­la em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou con­vic­ta de que não. Como sibilou a poet­i­sa Emi­ly Dick­in­son:“To see the Sum­mer Sky/ Is Poet­ry, though nev­er in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nun­ca em um livro seja encontrada/Os ver­dadeiros poe­mas voam). Dito isso, vamos aten­der a ordem afe­ti­va dos acon­tec­i­men­tos. Teresina, 18 de março de 2011. Sex­ta-feira, últi­mo dia antes do final de sem­ana, o acla­ma­do sus­piro de alívio que tan­tos tra­bal­hadores, estu­dantes e até mes­mo os adep­tos do “ócio refi­na­do” esper­am em polvorosa, con­tan­do nos dedos. No meio dessa expec­ta­ti­va, às 9 horas da man­hã, eu rece­bi a notí­cia de que o jor­nal­ista Daniel Piza, então edi­tor-exec­u­ti­vo e col­u­nista cul­tur­al do jor­nal O Esta­do de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclu­si­va pro­movi­da pelo Fes­ti­val Artes de Março, even­to que reúne músi­ca, lit­er­atu­ra e exposições artís­ti­cas. Par­tic­u­lar­mente, aque­le seria o momen­to mais espe­cial da min­ha vivên­cia jor­nalís­ti­ca e literária até então. O sujeito que esta­va vin­do par­tic­i­par da pro­gra­mação cul­tur­al do fes­ti­val não era ape­nas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fiz­er­am pas­sar noites acor­da­da na ânsia de ter­miná-los para recomeçá-los nova­mente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ min­ha grande inspi­ração nas águas ondu­lantes do Jor­nal­is­mo Cul­tur­al; o homem que me pro­por­cio­nou ver uma mudança níti­da na for­ma de infor­mar e par­til­har cul­tura, fazen­do com que o con­hec­i­men­to asso­ci­a­do à con­sciên­cia saísse de um plano da inex­istên­cia típi­ca dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há cor­agem, há ini­cia­ti­va. E isso não se esquece.

    O mod­e­lo de inspi­ração começou a se for­mar no meu ínti­mo em março de 2009, dois anos antes e, ironi­ca­mente, no mes­mo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começa­do o cur­so de Jor­nal­is­mo — um dos meus grandes pro­je­tos de vida -, eu esta­va às voltas com pesquisas bib­li­ográ­fi­cas e redação de um arti­go sobre cul­tura, jor­nal­is­mo, análise do dis­cur­so e exclusão social. Exata­mente nesse perío­do, uma das pro­fes­so­ras da fac­ul­dade me entre­gou um livro fino, com uma imagem à moda anti­ga na capa e com o títu­lo de Jor­nal­is­mo Cul­tur­al. Ao fol­hear dis­traida­mente o livro para começar min­has ano­tações, não con­segui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naque­le momen­to, tive a certeza de que gostaria e dev­e­ria saber mais sobre o escritor que retoma­va tão bem os primór­dios do Jor­nal­is­mo Cul­tur­al e esboça­va assun­tos polêmi­cos, como a sep­a­ração entre “alta cul­tura” e “baixa cul­tura” de for­ma lúci­da, ele­gante, inter­es­sante. O autor? Um sen­hor de nome Daniel Luiz de Tole­do Piza, nasci­do em São Paulo no ano de 1970 e for­ma­do em Dire­ito pela tradi­cional Fac­ul­dade de Dire­ito do Largo São Fran­cis­co (USP). Como o des­ti­no é ter­ra de ninguém, Daniel deu asas à tendên­cia jor­nalís­ti­ca que lhe perseguia e envere­dou pelos cader­nos de cul­tura do Esta­do de São Paulo, Fol­ha de São Paulo e Gaze­ta Mer­can­til, além de atu­ar como comen­tarista esportivo.

    Coleção da Mara com títu­los do autor

    À época, para saber mais sobre o jor­nal­ista, fiz o que qual­quer “indi­ví­duo-máquina” do sécu­lo XXI faria: dei uma “goog­lea­da” no nome Daniel Piza e desco­bri o blog pes­soal do autor e inúmeras out­ras infor­mações. Eu ain­da não sabia, mas, ao exe­cu­tar essa procu­ra, eu tin­ha encon­tra­do o jor­nal­ista que viria a ser a min­ha maior inspi­ração des­de então. Come­cei a procu­rar livros, tex­tos, arti­gos, ensaios, frag­men­tos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jor­nal­is­mo Cul­tur­al” (edi­to­ra Con­tex­to), “Mis­térios da Lit­er­atu­ra – Poe, Macha­do, Con­rad e Kaf­ka” (edi­to­ra Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Pen­ta” (edi­to­ra Nova Alexan­dria), “Con­tem­porâ­neo de Mim – Dez anos da col­u­na Sinopse” (edi­to­ra Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (edi­to­ra Bertrand Brasil), “Amazô­nia de Euclides” (edi­to­ra LeYa) e “Dez Anos que Encol­her­am o Mun­do” (edi­to­ra LeYa). Ape­sar da pou­ca idade e cer­ca de vinte anos de car­reira, Daniel escreveu e pub­li­cou dezes­sete livros, além de assi­nar traduções das obras de Bernard Shaw, Her­man Melville e Hen­ry James, nomes de peso da lit­er­atu­ra mundial.

    Tweet do jogador Ronal­do sobre a morte de Piza

    Além de todas as láureas profis­sion­ais, Daniel Piza con­seguiu o impos­sív­el: provo­car min­ha curiosi­dade o sufi­ciente para ler e pesquis­ar sobre fute­bol, esporte que está longe de alcançar qual­quer incli­nação da min­ha parte. Com títu­los inusi­ta­dos, que mais pare­ci­am um anún­cio para o Col­iseu de Roma, o jor­nal­ista descrevia jogos, atle­tas, ambi­entes de com­petições e as tendên­cias do momen­to. Através dos tex­tos dele, eu soube, por exem­p­lo, quem é Ney­mar, qual a importân­cia real do Pelé (me des­culpem os doutos na vida esporti­va, mas devo con­fes­sar que não enten­dia nen­hu­ma reverên­cia ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns téc­ni­cos — e tor­ci­das — são tão indi­gestos. Daniel era cor­in­tiano apaixon­a­do e foi respon­sáv­el por reporta­gens exclu­si­vas, como o anún­cio da aposen­ta­do­ria do jogador Ronal­do, o Fenô­meno, de quem era ami­go. O jor­nal­ista, escritor e tradu­tor, fil­ho da Dona Edith e do Sr. Her­al­do Piza, e tam­bém, como ele mes­mo gosta­va de se descr­ev­er, “casa­do com Rena­ta Piza e pai de Letí­cia, Maria Clara e Bernar­do”, segu­ra­va muitos leitores horas a fio na frente do com­puta­dor, lendo e relen­do (a releitu­ra faz parte de um proces­so de apren­diza­do), arti­gos e matérias de con­teú­do impecáv­el, bem escrito e per­sua­si­vo. Todos os dias, às 7:15h da man­hã, eu cor­ria para o com­puta­dor para me man­ter infor­ma­da sobre as atu­al­iza­ções do blog que Daniel man­tinha. No tra­bal­ho, em algu­ma fol­ga, o esque­ma era o mes­mo. Lem­bro de ter aper­ta­do F5 ( o que cor­re­sponde à oper­ação de atu­al­iza­ção) no tecla­do umas seis vezes em um só dia esperan­do novas posta­gens. Quan­do via­ja­va ou me ausen­ta­va, procu­ra­va retomar as leituras per­di­das e “sub­ornar” com refrig­er­antes e doces caseiros o jor­naleiro da ban­ca que eu fre­quen­ta­va, para que ele guardasse pelo menos algu­mas edições do Estadão.

    Daniel Piza e o fotó­grafo Tia­go Queiroz, em Sena Madureira (AC)

    Até que, coin­ci­den­te­mente, em março de 2011, Daniel Piza ater­ris­sou em solo piauiense pela primeira vez, com con­fer­ên­cia mar­ca­da para 19h. Lá esta­va a min­ha opor­tu­nidade úni­ca – e por isso mes­mo imperdív­el — de con­ferir o que o jor­nal­ista-refer­ên­cia dos meus tex­tos e arti­gos tin­ha a diz­er, ago­ra pres­en­cial­mente. Cheguei ao local com qua­tro horas de ante­cedên­cia — sem neces­si­dade, lógi­co — e fiquei flanan­do pela praça de ali­men­tação e livraria. Às 18h, já esta­va na por­ta, obser­van­do o entra e sai de profis­sion­ais da impren­sa e do col­u­nis­mo social piauiense, todos queren­do uma declar­ação, imagem ou gravação para seus respec­tivos veícu­los. Afi­nal, ali esta­va o autor de ensaios inter­es­santes sobre lit­er­atu­ra, onde um tra­bal­ho de pesquisa e a paixão o levaram a escr­ev­er a biografia de Macha­do de Assis.O fascínio pela união entre lit­er­atu­ra e jor­nal­is­mo o fez sair Amazô­nia a den­tro para per­cor­rer o cam­in­ho de Euclides da Cun­ha, ou ain­da ter atre­vi­men­to e, aci­ma de tudo, cor­agem, para dar opinião, apon­tar o dedo, diz­er o que pen­sa com respon­s­abil­i­dade e conhecimento.

    Ambi­ente de tra­bal­ho do Daniel Piza

    Daniel Piza con­seguia andar pelo fute­bol sem per­na de pau, dis­cor­rer sobre políti­ca com cer­ta pas­sion­al­i­dade, mas com força argu­men­ta­ti­va, e falar sobre músi­ca, lit­er­atu­ra, artes plás­ti­cas e arquite­tu­ra, aden­tran­do o uni­ver­so cul­tur­al como ninguém. Assim, fica difí­cil mes­mo não quer­er uma pon­tin­ha desse fenô­meno, que muitos insis­tem em chamar de herdeiro de Paulo Fran­cis, mas que ago­ra, depois da maturi­dade que vem com leituras e reflexões, pre­firo men­cionar como pro­tag­o­nista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sen­tan­do em uma das primeiras filas, à esquer­da, e con­segui ver Daniel Piza conce­den­do entre­vis­tas, recon­hecen­do ter­reno e falan­do sobre cul­tura, cul­tura e mais cul­tura. Do meu lugar, obser­va­va as expressões e o tom de voz — baixo e explica­ti­vo –, imag­i­nan­do tam­bém que tin­ha me engana­do um pouco. Lem­bro de ter con­cluí­do que a tele­visão e a inter­net aumen­tam as pes­soas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão cor­po­ral trans­mi­tia serenidade.

    Daniel Piza e Mara Vanes­sa Torres

    No final do even­to, impul­sion­a­da por um ami­go men­tal­mente estáv­el – já que min­ha timidez me pren­deu solo abaixo -, tro­quei algu­mas palavras com Daniel Piza. Meu diál­o­go foi reple­to de palavras bal­bu­ci­adas, rec­headas de con­strang­i­men­to. Desnecessário. Notan­do min­ha timidez, o bió­grafo do grande Macha­do de Assis sim­ples­mente disse: “Não tem prob­le­ma. Eu tam­bém sou tími­do”. Desse momen­to, ape­nas um reg­istro feito com câmera de celu­lar. Tími­do, como todas as boas inspi­rações. Na man­hã do dia 31 de dezem­bro de 2011, 9 meses depois da vin­da de Daniel Piza à min­ha cidade, rece­bo um SMS tru­ci­dante às 8h da man­hã, dizen­do que Daniel tin­ha sido víti­ma de um AVC (aci­dente vas­cu­lar cere­bral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vas­to con­hec­i­men­to e de alguém que soube ser o máx­i­mo de encan­to em uma vida de des­en­can­to. Daniel Luiz de Tole­do Piza vive hoje no coração daque­les que o amam, nas feições de seus três fil­hos, no lega­do de obras pub­li­cadas, inúmeros tex­tos jor­nalís­ti­cos, arti­gos, opiniões, pre­fá­cios e nas hom­e­na­gens con­stan­te­mente prestadas. No dia 04 de jul­ho deste ano, a prefeitu­ra do Rio de Janeiro inau­gurou a Esco­la Munic­i­pal Jor­nal­ista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A insti­tu­ição de ensi­no fica situ­a­da em um bair­ro com menor Índice de Desen­volvi­men­to Humano (IDH) da cap­i­tal flu­mi­nense, aten­den­do alunos do 6º ao 9º anos do ensi­no fun­da­men­tal. Mes­mo de longe, Daniel con­tin­ua trans­for­man­do, crian­do e obser­van­do o mun­do através das palavras. Um gênio raro, con­ste­lação int­elec­tu­al de primeira grandeza. Que ele con­tin­ue fazen­do por muitos out­ros, inclu­sive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a con­sciên­cia e des­per­tar o entendi­men­to para um mun­do novo.

    (…) Não deixar o des­en­can­to tomar con­ta é o mel­hor presente.

    Daniel Piza

    danielpiza-bibliografia

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  • A riqueza do mundo, de Lya Luft

    A riqueza do mundo, de Lya Luft

    Uma voz impo­nente parece segu­rar com as duas mãos a figu­ra de traços ger­mâni­cos e tom brasileiro, de olhar firme e colar de con­tas grossas no pescoço. Era a primeira vez que eu par­a­va para vê-la, ali, do out­ro lado da tela do com­puta­dor, falan­do sobre os livros recém-pub­li­ca­dos, sobre os que já pas­saram e sobre a vida que dá ares de quem está ape­nas começan­do. Esse foi o con­ta­to ini­cial que tive com a escrito­ra e tradu­to­ra Lya Luft. Aos 74 anos, a san­tacruzense descen­dente de alemães arreba­ta dezenas com a ven­da de livros, nas sessões de autó­grafos e palestras em que é conferencista.

    Con­heci o tra­bal­ho de Lya em 2004 e, ao con­trário do que se pode pen­sar, não foi por meio do seu suces­so edi­to­r­i­al Per­das & Gan­hos (2003), lançan­do no ano ante­ri­or. À época, por questões de tra­bal­ho, eu acom­pan­ha­va o con­teú­do da revista Veja e, vez ou out­ra, sem­pre batia os olhos na col­u­na Pon­to de vista, assi­na­da por Lya. Coin­cidên­cia ou não, os tex­tos que li na col­u­na abor­davam temas cotid­i­anos e sem­pre fazi­am refer­ên­cia aos rela­ciona­men­tos famil­iares, às difi­cul­dades e desafios, aos sabores e ale­grias. Opiniões que soavam como fortes con­sel­hos, na verdade.

    Então, oito anos depois dos primeiros con­tatos, rece­bi A riqueza do mun­do (edi­to­ra Record, 2011, pág. 272), uma coletânea de ensaios sobre a existên­cia humana com tudo o que ela tem de mel­hor e pior: amor, tris­teza, revol­ta, indig­nação, esper­ança, con­tes­tação e per­cepção. Aci­ma de tudo, a obra for­ma um con­jun­to de reflexões da auto­ra sobre os mais vari­a­dos temas, com aque­le aro­ma de “eu escre­vo por um mun­do mel­hor”. Não duvi­do, cer­ta­mente. Os ensaios de Lya são deci­di­dos, ela não tem medo de se posi­cionar, de apon­tar, de emi­tir juí­zos de val­or. Em uma sociedade em que a mais recente ban­deira é faz­er apolo­gia ao “ficar em cima do muro”, Lya Luft assume e assi­na suas ideias, mes­mo que isso tra­ga à tona opiniões que fler­tam com um con­ser­vadoris­mo embrul­ha­do em papel celofane. 

    Lya Luft
    Divi­di­do em três partes (Da Sociedade, Dos Afe­tos e Das Coisas Várias), o livro de Lya vai mape­an­do pon­tos que se mis­tu­ram, abor­dan­do des­de o sen­ti­men­to de insat­is­fação com o sis­tema vigente no mun­do, rodea­do de cor­rupções, bar­bárie, vio­lên­cia e morte, até situ­ações e vivên­cias que cir­cun­dam as relações famil­iares, chegan­do à gan­gor­ra do encan­to ver­sus des­en­can­to com as infini­tas pos­si­bil­i­dades tec­nológ­i­cas e soci­ais con­tem­porâneas. Na maio­r­ia das vezes, fica evi­dente que estou escu­tan­do alguém com sabedo­ria sufi­ciente para falar sobre um mun­do per­di­do, onde poucos se encon­tram. Em toda a obra, sen­ti um mis­to de desabafos e ser­mões – por mais que, no próprio tex­to, a auto­ra negue o ter­mo ‘con­sel­hos’, atribuí­do por quem assim o iden­ti­fi­ca na sua obra.

    Ape­sar de temas inter­es­santes, me sen­ti pouco à von­tade com a quan­ti­dade de exem­p­los para uma mes­ma ideia, agru­pan­do uma lista exten­sa de ele­men­tos sep­a­ra­dos por vír­gu­las em uma úni­ca frase. Essa táti­ca se repete em todos os três capí­tu­los, retoman­do tam­bém, de for­ma cansati­va, pen­sa­men­tos que já foram ditos. Esse tipo de opção lança uma ânco­ra às palavras, deixan­do o tex­to exaustivo. 

    Vale men­cionar os três poe­mas que abrem cada capí­tu­lo, com destaque para o boni­to “Deuses e Home­ns”, com belas ima­gens for­madas por palavras e a con­junção da mitolo­gia que nos acom­pan­ha des­de a nos­sa ances­tral­i­dade, fazen­do jus à nar­ra­ti­va de origem, pro­pos­ta por mitól­o­gos como Mircea Eli­ade e Joseph Camp­bell.

    Lya Luft tem muito a diz­er. Ela não está por aí como mera auto­ra de best sell­er ou mais um tra­bal­ho para o seg­men­to da autoa­ju­da. Não, não é isso. Nesse primeiro con­ta­to, notei uma auto­ra com pen­sa­men­tos, com luz própria, com opiniões — mes­mo que algu­mas delas não façam parte do meu rol de ideias, como a predileção por Mon­teiro Loba­to. Mais um detal­he que faz parte das min­has obser­vações é o ato de escr­ev­er sobre as mudanças do mun­do de den­tro do gabi­nete. Mas não a con­de­no. Boa parte dos int­elec­tu­ais brasileiros, quiçá do mun­do, está sen­ta­da con­for­t­avel­mente em suas escrivan­in­has de mog­no, refletindo sobre as injustiças e soltan­do os pen­sa­men­tos no ar para que, talvez, out­ros os exe­cutem. Pode ser que esse não seja o caso, não sei. Mas vale à pena rev­er o con­ceito de que ape­nas com ideias se move o mundo. 

  • Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    Livro: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace

    O escritor norte-amer­i­cano David Fos­ter Wal­lace tirou a própria vida no ano de 2008, aos 46 anos. Deixou três romances (The Broom of Sys­tem, Infi­nite Jest* e o pós­tu­mo e inacaba­do The Pale King*), três coletâneas de con­tos (Girl With Curi­u­os Hair, Brief Inter­views with Hideous Men e Obliv­ion) e dois livros de não ficção que con­tém ensaios e reporta­gens (A Sup­pos­ed­ly Fun Thing I’ll Nev­er Do Again e Con­sid­er The Lobster). 

    Fã do autor de Infi­nite Jest, o escritor Daniel Galera, entrou em con­ta­to com a agente literária de Wal­lace, Bon­nie Nadell, no mes­mo ano da morte de DFW, fazen­do uma pro­pos­ta para orga­ni­zar e pub­licar uma coletânea com o mel­hor da sua não ficção como uma nova chance para os brasileiros de apre­sen­tar o autor, já que Breve Entre­vis­tas com Home­ns Hedion­dos (lança­do no país em 2005 pela Com­pan­hia das Letras) não teve uma boa recepção por parte dos leitores e da mídia. Além de ser um livro difí­cil, quase enci­clopédi­co , não hou­ve uma boa divul­gação pela editora. 

    Galera rece­beu o sinal verde de Nadelle e eis que temos Fican­do Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (orga­ni­za­ção e tradução Daniel Galera + Daniel Pel­liz­zari, 312 pági­nas, Com­pan­hia das Letras, R$: 44,50). Para aque­les que não estão famil­iar­iza­dos com os tex­tos de DFW em inglês e teve uma difi­cul­dade para ler os con­tos de Breves Entre­vis­tas, Fican­do Longe é a mel­hor for­ma de ter um primeiro con­ta­to com a obra “daque­le cara que usa ban­dana”.

    A seleção ficou entre três reporta­gens : Fican­do Longe do Fato de Estar Meio que Longe de Tudo, Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da que Eu Nun­ca Mais Vou Faz­er e Pense Na Lagos­ta. Um ensaio: Alguns Comen­tários Sobre a Graça de Kaf­ka dos quais Provavel­mente se Omi­tiu. O famoso dis­cur­so de paran­in­fo de 2005: Isto é Água. E uma crôni­ca esporti­va: Fed­er­er como Exper­iên­cia Religiosa.

    O tex­to que dá títu­lo a coletânea (Fican­do Longe etc etc) é um óti­mo cartão de vis­i­tas para quem não leu nada do DFW. A revista Harper´s Mag­a­zine em 1993 deu uma cre­den­cial para o fale­ci­do autor e disse “Olha, vai lá para aque­le dia­cho de Feira Estad­ual de Illi­nois e ape­nas nos diga o que você viu, ok?”

    A Feira Estad­ual de Illi­nois acon­tece anual­mente na cap­i­tal Spring­field des­de 1853 e tem como tema cen­tral a agri­cul­tura e demais out­ros even­tos que são cap­i­tanea­d­os por grandes cor­po­rações e tudo é reg­u­la­do sob o sig­no do hedo­nis­mo predatório. 

    Wal­lace morou nas prox­im­i­dades de onde ocorre a feira, mas mes­mo assim lev­ou uma Aju­dante Nati­va como guia em um lugar onde você já é recep­ciona­do com uma faixa com os diz­eres “A gente quer cur­tição!”. As con­ver­sas entre David e a Aju­dante Nati­va são hilárias, mas é bom prestar atenção às con­sid­er­ações do autor, onde a feira aca­ba sendo o pon­to de par­ti­da para uma reflexão maior sobre a vida mod­er­na e suas contradições. 

    A questão é: Esta­mos acos­tu­ma­dos com aglom­er­ações, caos e demais per­tur­bações da vida na cidade grande. Logo, quan­do temos opor­tu­nidade, opta­mos por FICAR LONGE. Ago­ra, quan­do você mora em Illi­nois, onde a noção de espaço é infini­ta (você fica sem­anas sem ver seus viz­in­hos), não há NADA a não ser grandes pas­tos, calor bru­tal, reli­giosos fanáti­cos, como é ir para uma Feira em um lugar que você está já está LONGE DE TUDO e encar­ar dis­trações além da con­ta? A respos­ta é: vocês vão ler e saber, oras. Parem de me olhar com essa cara.

    Ain­da temos no livro o famoso tex­to do cruzeiro (Uma Coisa Suposta­mente Diver­ti­da) onde o autor vai nos mostrar o quan­to pode ser triste uma viagem em alto-mar mes­mo sendo papari­ca­do por todos os fun­cionários do navio. O ensaio sobre Kaf­ka e sua veia cômi­ca é inter­es­sante pela pre­ocu­pação de Wal­lace – que foi pro­fes­sor uni­ver­sitário – sobre como ensi­nar um clás­si­co da lit­er­atu­ra para alunos mais inter­es­sa­dos no entreten­i­men­to que só a Améri­ca pode ofer­e­cer a eles. 

    Curioso como Pense na Lagos­ta, uma reportagem encomen­da­da pela revista Gourmet, para cobrir a fes­ta da Lagos­ta do Maine, ger­ou uma dis­cussão no site da revista por causa do rela­to sobre as lagostas serem coz­in­hadas vivas e isso implicar numa con­sid­er­ação do autor sobre o méto­do. E ain­da tem o dis­cur­so Isto é Água (que virou viral no youtube e mantra de mui­ta gente) e o rela­to da par­ti­da entre Fed­er­er e Rafael Nadal que pode pare­cer pouco , mas é o mel­hor primeiro con­ta­to com o autor de Infi­nite Jest.

    Em algu­mas entre­vis­tas recentes, Daniel Galera disse que vai faz­er uma nova orga­ni­za­ção de tex­tos de não ficção de David Fos­ter Wal­lace. E ficamos no aguardo.

    *É bom saber que está sendo fei­ta no momen­to que você lê esse tex­to ver­gonhoso, a tradução de Infi­nite Jest, o mastodonte de 1100 pági­nas, pelo rapaz que atende pela alcun­ha de Cae­tano W. Gallindo. Ele tam­bém está traduzin­do The Pale King. Você pode acom­pan­har tudo no Blog da Com­pan­hia das Letras.

  • Livro: Jack Kerouac — King of the beats, de Barry Miles

    Livro: Jack Kerouac — King of the beats, de Barry Miles

    Assim, ele bebeu até mor­rer. Que é ape­nas mais um jeito de viv­er, ou de lidar com a dor e a inutil­i­dade de saber que tudo não pas­sa de son­ho e de um grande, descon­cer­tante e bobo vazio (Allen Gins­berg sobre a morte de Jack Kerouac)

    Se o livro Jack Ker­ouac: King of the Beats (José Olym­pio, 2012), de Bar­ry Miles tivesse uma tril­ha sono­ra seria algo ao som de Char­lie Park­er, em alguns momen­tos alter­nan­do para a rapi­dez de Dizzy Gille­spie. De fato, Miles, jor­nal­ista e figu­ra con­heci­da dos anos 60, não deixa pas­sar sem tril­ha sono­ra a saga do escritor que é até hoje uma refer­ên­cia quan­do se tra­ta de con­tra­cul­tura e prosa espon­tânea, embal­a­do ao som do jazz ou bebop. Ker­ouac des­de sem­pre ambi­cio­nou ser grandioso, mas pas­sou mais tem­po imer­so no efeito do álcool, dro­gas e prob­le­mas com o ego que acabou como uma boa len­da: sem muito pres­ti­gio, mes­mo com fama inter­na­cional, mor­to sen­ta­do em um sofá, ven­do TV e beben­do cerveja.

    Mes­mo que aparente­mente decep­cio­nante o fim do pai dos beats, a vida de Jack daria um belo romance que Miles con­ta de for­ma dire­ta e sem fôlego, assim como as nar­ra­ti­vas do escritor. Vale lem­brar que Bar­ry escreveu a biografia dos out­ros dois nomes que fig­u­raram ao lado de Jack Ker­ouac: Allen Gins­berg e William Bor­roughs, entre out­ros nomes da con­tra­cul­tura das décadas seguintes. Mes­mo que o autor ten­ha sido ape­nas um ado­les­cente quan­do ouviu falar de Ker­ouac pela primeira vez, ele rela­ta tudo como se estivesse vivi­do cada segun­do com o grupo amer­i­cano, e ain­da, se dá ao dire­ito de repreen­der o biografa­do sem­pre que pos­sív­el. A figu­ra de Jack Ker­ouac é dessacral­iza­da e trans­for­ma­da na imagem de um eter­no garo­to per­di­do com um dom enorme de con­tar histórias.

    Em King of the Beats, Miles faz todo o per­cur­so de Jean-Louis Lebris Ker­ouac, des­de a chega­da da família Ker­ouac — fran­co-canadens­es — para os EUA, na cidade de Low­ell (Mass­a­chus­sets) onde Jack dá seus primeiros pas­sos no dom de reunir pes­soas, dis­cu­tir histórias e mais tarde isso envolve­ria tam­bém mul­heres, dro­gas e bebi­da. Nesse movi­men­to cronológi­co o autor con­strói uma biografia rec­hea­da de detal­h­es, dan­do enfâse para deter­mi­na­dos momen­tos da vida do pai dos beats . Por exem­p­lo, a for­mação do grupo que ele ded­i­ca um capí­tu­lo inteiro, chama­do de A Comu­na da 115th Street, ou ain­da em Cidade do Méx­i­co em que tra­ta a importân­cia desse momen­to em que Ker­ouac tran­si­ta entre várias fas­es, escreven­do sobre jazz, con­viven­do com Bor­roughs e viven­do longe da mãe.

    O bió­grafo con­ta que ouviu falar de Jack no fim dos anos 50, época em que final­mente o escritor gan­hou o mun­do com o lança­men­to de On The Road. Miles con­ta que era impos­sív­el para um ado­les­cente não sen­tir o ven­to no ros­to e a liber­dade ao ler as pági­nas da chama­da bíblia beat. Depois dis­so, con­ta que jamais seria o mes­mo, como de fato nun­ca foi, inclu­sive rela­tan­do os anos 60 que viveu no livro In the Six­ties.

    Jack Ker­ouac começou a escr­ev­er ain­da cri­ança, bas­tante cedo já escrevia para um jor­nal local que seu pai tra­bal­ha­va. Mas o jovem Ker­ouac que­ria mais, era cada vez mais atraí­do pela lit­er­atu­ra e teima­va em trans­for­mar tudo na sua vida em ficção, ninguém escapa­va da visão min­un­ciosa de Jack. Ele não pre­cisa­va de muito esforço para romancear a real­i­dade de for­ma a con­tar óti­mas histórias que sem­pre pare­ci­am bas­tante reais. Seu primeiro livro a ser edi­ta­do, The Town and The City foi o úni­co que man­teve o esti­lo de prosa tradi­cional, mas alta­mente influ­en­ci­a­do pelo amer­i­cano Thomas Wolfe,Jack que­ria mais. Ambi­ciona­va a prosa espon­tânea como veícu­lo das suas histórias, o dese­jo de faz­er uma lit­er­atu­ra foca­da na lin­guagem colo­quial, nar­ra­da con­forme o rit­mo do rela­to, foi lev­a­da até o fim por ele. Ker­ouac se con­sid­er­a­va um mestre nes­sa téc­ni­ca e inclu­sive, escreveu uma espé­cie de man­i­festo sobre o assunto.

    The Sub­ter­raneans foi escrito numa prosa espon­tânea, com fras­es lon­gas a pon­to de se esten­derem por pági­nas inteiras, sem obe­de­cer a regras estri­tas de gramáti­ca, mas con­ser­van­do um fio da mea­da em ter­mos de sen­ti­do. Esse é o esti­lo espon­tâ­neo de Ker­ouac sob seu aspec­to mais pos­i­ti­vo. Tan­to Allen Gins­berg como William Bor­roughs ficaram impres­sion­a­dos como que ele havia real­iza­do e que­ri­am saber mais sobre seu méto­do. Pedi­ram-lhe que escrevesse um pequeno fol­heto com instruções sobre como escr­ev­er daque­la maneira. O resul­ta­do foi o ensaio “Essen­tials of Spon­ta­neous Prose”, escrito ini­cial­mente para seus ami­gos, porém, mais tarde, divul­ga­do ampla­mente em antolo­gias na condição de man­u­al de seu con­teú­do (p.271)

    Mapa desen­hado pelo próprio Kerouac.

    Assim como Thomas Wolfe influ­en­ciou forte­mente Ker­ouac na questão espon­tânea de escr­ev­er, ele deu tam­bém a neces­si­dade de desco­brir a Améri­ca que Jack sen­tia pul­sante. Quan­to mais loucos ambu­lantes ele con­hecia, mais que­ria ter histórias para con­tar. Ape­sar dele já ter via­ja­do muito, incluin­do como aju­dante de coz­in­ha na Mar­in­ha, nun­ca tin­ha aden­tra­do os Esta­dos Unidos e vis­to de per­to seus per­son­agens. Depois da primeira ida para além dos lim­ites de Nova Iorque, Jack jamais parou, levan­do con­si­go sem­pre papel e lápis para ano­tar cada impro­vi­so feito por onde fosse.

    É muito inter­es­sante perce­ber a importân­cia das fig­uras de Allen Gins­berg e William Bor­roughs, o segun­do como o grande guru do restante do grupo Beat. Bas­ta obser­var em On The Road — inclu­sive no filme a figu­ra de Old Bull Lee — a for­ma como todos achavam a lou­cu­ra dele extrema­mente lou­váv­el. Foi Bill — como era chama­do — que apre­sen­tou grandes nomes da lit­er­atu­ra, fala­va sobre liber­dade, William Reich, Freud e dava con­sel­hos para os garo­tos que vivi­am cir­cu­lan­do por todos os lados em bus­ca de algo.

    Bill emprestou-lhes uma pil­ha de livros: Cocteau, Blake, Kaf­ka, Joyce e Céline. Dis­cu­tiu a teo­ria cir­cu­lar da história, de Vico, e mostrou-lhes um vol­ume de ilus­trações dos códices maias. (…) (p.109)

    Um dos pon­tos mais rel­e­vantes de King Of The Beats é a for­ma como a figu­ra de Jack Ker­ouac vai se desmi­ti­f­i­can­do ao lon­go do cam­in­ho. Se você leu ape­nas o clás­si­co On The Road e/ou viu a recente adap­tação do brasileiro Wal­ter Salles no cin­e­ma, pode ir se desar­man­do sobre a figu­ra do escritor. Ape­sar dessa obra con­heci­da ser total­mente basea­da nos primeiros impul­sos de Jack via­jar pelo país, ele lev­ou um bom tem­po para ser escrito, pois Ker­ouac nun­ca acha­va sufi­ciente tudo que vivia. Pas­sa­va muito tem­po dese­qui­li­bra­do com mul­heres, dro­gas, a mãe e questões metafísi­cas que seus livros, por serem espon­tâ­neos, car­regam toda essa força onde somente a coin­cidên­cia com a real­i­dade lig­a­va um livro ao outro.

    Out­ro pon­to inter­es­sante é como Ker­ouac — e claro, toda a impren­sa da época — se pre­ocu­pa­va em definir o ter­mo Beat Gen­er­a­tion. Bar­ry Miles vai con­stru­in­do como cada sig­nifi­ca­do dado foi se agre­gan­do ao grupo, não deixan­do que nen­hum omi­tisse os adje­tivos que defini­am aque­les jovens. O bió­grafo vai bem além de faz­er um grande rela­to da vida de Jack Ker­ouac, ele aca­ba traçan­do um panora­ma com­ple­to da Ger­ação Beat, amar­ran­do as situ­ações e as pes­soas que eram seduzi­das pela vida boêmia, altas dos­es de lit­er­atu­ra e mui­ta filosofia de boteco.

    Em 1948, eu disse a John Clelon Holmes “Essa é mes­mo uma ger­ação beat”. Ele con­cor­dou e, em 1952, pub­li­cou um arti­go no New York Times inti­t­u­la­do “Esta é uma ger­ação beat”, e atribuiu a mim a ver­são orig­i­nal. Desse modo, já dera a ela o nome de Ger­ação Beat nos orig­i­nais de On The Road, escrito em maio de 1951 (Jack Ker­ouac, pre­ocu­pa­do com a reivin­di­cação da pater­nidade do ter­mo, p.208)

    Diria que a Times Square era o cen­tro em torno do qual ficamos vagan­do — Bor­roughs, Ker­ouac e eu — em 1945 e 1948, provavel­mente o perío­do mais for­ma­ti­vo da mente Spen­g­le­ri­ana, em que a lin­guagem que incluía expressões como “Zap”, “Hip”, “Square”, “Beat” nos era ofer­e­ci­da por Huncke às mesas do café Bick­ford. Basi­ca­mente eu diria que Her­bert Hucke foi quem deu origem à noção de beat (…) (p.271)

    Muito se fala sobre o movi­men­to hip­pie, o adven­to do rock e os ques­tion­a­men­tos que vier­am com eles na déca­da de 60 como ele­men­tos car­ac­ter­i­zantes de con­tra­cul­tura. Mas a ver­dade é que os jovens beats, nas décadas de 40 e 50 — descen­dentes da Ger­ação Per­di­da — eram embriões muito poderosos para que depois exis­tisse esse cenário infla­ma­do. Estes jovens vin­ham de um perío­do caóti­co de depressão econômi­ca e uma Segun­da Guer­ra trauma­ti­zante. Que­ri­am mes­mo era se desven­cil­har dos códi­gos soci­ais e o modo de vida amer­i­cano que mostra­va sérios prob­le­mas em se man­ter em pé. Os relatos de Bar­ry Miles sobre as noites de fes­tas em aparta­men­tos, regadas à alcool, ben­zad­ri­na e bebop não deix­am nada a dev­er para as lou­curas que viri­am a ser feitas nas próx­i­mas décadas ao som das gui­tar­ras elétricas.

    Jack Ker­ouac, Allen Gins­berg, Peter Orlovsky e Gre­go­ry Cor­so, em 1956

    Para muito além do sen­so comum de que Jack Ker­ouac e seus pares eram vagabun­dos ambu­lantes que son­havam em ser escritores, King of The Beats rela­ta as aven­turas, per­spec­ti­vas e ten­ta­ti­vas vari­adas de um grupo de jovens encon­trar a sua voz e se perder tan­tas vezes no meio do cam­in­ho, deixan­do para além de obras que recon­stroem em poe­sia, relatos e lou­curas, um sen­ti­men­to de liber­dade que é práti­ca­mente inevitáv­el de não se sen­tir ao ler On The Road, Uivo, Almoço Nu e etc. Um pas­seio há uma época dis­tante que ain­da trans­mite e faz parte do sen­ti­men­to de não acomodação.
     

    Algu­mas Curiosi­dades:

    Ker­ouac demor­ou mais de 10 anos para con­seguir pub­licar o On The Road e ain­da assim com mui­ta edição e mudanças, pois os edi­tores con­sid­er­avam o tex­to pornográ­fi­co, homos­sex­u­al e incen­ti­vador do uso de dro­gas. O romance que seria a bíblia dos Beats saiu só no fim da déca­da de 50 e no ini­cio acha­va-se que ela per­ten­cia aque­la época. Jack, ape­sar de ser muito lido nesse momen­to, era incom­preen­di­do pois não con­cor­da­va com o novo modo de viv­er dos jovens e acha­va cha­to explicar como as coisas fun­cionavam na déca­da anterior.

    Quan­do man­dou os orig­i­nais the On The Road para o edi­tor, ele man­dou tam­bém o esboço de uma capa que seria, na opinião dele, per­fei­ta para o livro, incluin­do uma foto própria do seu agra­do. Na ver­dade ele tin­ha acha­do hor­rív­el a capa de Town and The City e resolveu sug­erir uma mel­hor para esse livro. Jack Ker­ouac era bas­tante per­fec­cionista (para não diz­er cha­to) em relação à sua obra, man­ten­do uma relação dífi­cil com os editores.

    Jack Ker­ouac não per­doa e con­tin­ua resmungão até na sua últi­ma entre­vista, traduzi­da aqui, pela Revista Bula.

    O man­u­scrito orig­i­nal de On The Road, tem 36 met­ros de com­pri­men­to e foi escrito num rit­mo frenéti­co, rega­do a ben­zad­ri­na e cig­a­r­ros e em ape­nas três sem­anas. São rolos de papel, cola­dos com fita ade­si­va que estarão expos­tos a par­tir desse mês até o fim de 2012 na Bib­liote­ca Britâni­ca, em Londres.

     

    Leia mais sobre a Ger­ação Beat aqui e aqui.

  • O Futuro do Livro: Robert Darnton

    O Futuro do Livro: Robert Darnton

    Mas as pes­soas dizem que o futuro é dig­i­tal. Claro que é dig­i­tal. O pre­sente tam­bém é digital.

    Quan­do o assun­to é a espec­u­lação a respeito do futuro do livro, é difí­cil não ouvir aque­la já bati­da per­gun­ta: “o livro dig­i­tal vai matar o livro físi­co?”. Mas por que um deve nec­es­sari­a­mente aniquilar o out­ro? Não seria pos­sív­el haver uma coex­istên­cia? Robert Darn­ton, his­to­ri­ador e dire­tor da bib­liote­ca de Har­vard, a maior bib­liote­ca uni­ver­sitária do mun­do, não só defende a ideia que os dois podem coex­i­s­tir, mas que são com­ple­mentares, que um reforça o outro.

    Darn­ton não é só con­heci­do como um grande his­to­ri­ador norte-amer­i­cano, mas tam­bém como um dos pio­neiros na área da história do livro. Um de seus livros, A Questão dos Livros — pas­sa­do, pre­sente e futuro (The Case for Books, 2010), traduzi­do por Daniel Pel­liz­zari e lança­do pela Com­pan­hia da Letras, abor­da jus­ta­mente este ques­tion­a­men­to a respeito do futuro dos livros. Nos últi­mos anos, tam­bém está tra­bal­han­do no pro­je­to da Bil­iote­ca Públi­ca da Améri­ca cujo obje­ti­vo é disponi­bi­lizar gra­tuita­mente livros na inter­net, uma alter­na­ti­va livre a ini­cia­ti­vas com­er­ci­ais como o Google Livros, ten­do seu lança­men­to mar­ca­do para abril de 2013.

    Abaixo segue um vídeo pro­duzi­do pela UNIVESPTV, real­iza­do logo após a par­tic­i­pação de Robert Darn­ton no Roda Viva da TV Cul­tura, onde o mes­mo é entre­vis­ta­do a respeito do futuro dos livros.

    httpv://www.youtube.com/watch?v=XjwIbJVzE4A

  • Fábulas Vol. 1 – Lendas no Exílio, de Bill Willingham, Lan Medina e Steve Leialoha

    Fábulas Vol. 1 – Lendas no Exílio, de Bill Willingham, Lan Medina e Steve Leialoha

    Os con­tos de fada estão em alta. As famosas histórias cri­adas orig­i­nal­mente pelos Irmãos Grimm, tão acla­madas na infân­cia, têm inspi­ra­do bas­tante autores e dire­tores de cin­e­ma. Só este ano, dois filmes influ­en­ci­a­dos no con­to Bran­ca de Neve e os Sete Anões chegaram às telonas. O primeiro Espel­ho, Espel­ho Meu (Mir­ror, Mir­ror), estre­la­do por Lily Collins (fil­ha de Phill Collins) e o mais recente Bran­ca de Neve e o Caçador (Snow White and the Hunts­man), com o belo papel desem­pen­hado por Char­l­ize Theron como Rain­ha Má. Ape­sar das adap­tações feitas aos roteiros e per­son­agens fugirem um pouco dos con­tos tradi­cionais, a ideia dos ambi­entes e a tra­ma prin­ci­pal con­tin­u­am os mes­mos. A série Once Upon a Time, famosa nos Esta­dos Unidos, tam­bém reúne os per­son­agens dos con­tos de fada, e ape­sar de dis­torcer um pouco a história orig­i­nal, pois os per­son­agens vivem na cidade e não se lem­bram quem real­mente são, eles ain­da pas­sam pelos mes­mos prob­le­mas e esti­mam pelos mes­mos son­hos, serem felizes e encon­trarem o seu ver­dadeiro amor. É aí que a HQ Fábu­las (Devir, 2004), apre­sen­ta o seu difer­en­cial. Nela não existe mais o mes­mo felizes para sem­pre.

    Em Fábu­las Vol. 1 – Lendas no Exílio, com roteiro de Bill Will­ing­ham e arte de Lan Med­i­na e Steve Leialo­ha, após a invasão de um adver­sário enig­máti­co de seu povo em sua ter­ra natal, os per­son­agens foram exi­la­dos e pas­saram a viv­er na cidade de Nova York, ao lado dos humanos, ou “mun­danos como são comu­mente chama­dos. Bran­ca de Neve ago­ra não mais vive para amar e dedicar-se ao seu príncipe, mas sim como uma vice-prefei­ta intol­er­ante, divor­ci­a­da e que não pode nem sequer ouvir falar nos sete anões. O Lobo Mau (Big­by Lobo), aque­le da Chapeuz­in­ho Ver­mel­ho, não é mais gov­er­na­do pela sua bar­ri­ga e sim pela sua mente. Como xerife da cidade, a sua prin­ci­pal ‘refe’ição é deli­ciar-se ao desven­dar os mis­térios que ron­dam os crimes da cidade das Fábu­las. O príncipe encan­ta­do, que aliás é o mes­mo para todas as prince­sas, é um nar­ci­sista aproveita­dor, que pos­sui um reina­do sem val­or no mun­do em que vive ago­ra. Cada per­son­agem apre­sen­ta uma per­son­al­i­dade úni­ca e dis­tor­ci­da dos con­tos orig­i­nais, o que con­tribuiu enorme­mente para faz­er de Fábu­las um quadrin­ho que con­ta algo anti­go, de for­ma total­mente inovadora.

    Um dos pon­tos fortes da orig­i­nal­i­dade de Fábu­las é a com­plex­i­dade dos prob­le­mas vivi­dos pelos per­son­agens. A difi­cul­dade ago­ra não é mais de a prince­sa con­seguir viv­er feliz para sem­pre ao lado de seu príncipe enquan­to a rain­ha má paga pelas suas mal­dades. O que era trági­co vira cômi­co. Dev­i­do aos prob­le­mas cotid­i­anos e finan­ceiros de um casal que perdeu sua for­tu­na, Fera não con­segue con­tro­lar a maldição que tor­na a sua aparên­cia feri­na, prin­ci­pal­mente com o mau humor e recla­mações de sua esposa Bela. Ou o Pinóquio que fica revolta­do com a fada que o trans­for­mou em um meni­no de ver­dade, mas que nun­ca chega à puberdade.

    Neste primeiro vol­ume de Fábu­las, a história prin­ci­pal se pas­sa no desa­parec­i­men­to de Rosa Ver­mel­ha, irmã de Bran­ca de Neve. O cli­ma de inves­ti­gação de romance poli­cial da tra­ma, semel­hante a quadrin­hos como Júlia Kendall: As Aven­turas de uma Crim­inólo­ga envolve o leitor do iní­cio ao fim, com diál­o­gos exce­lentes ricos em iro­nia e fran­queza. Bill Will­ing­ham obtém suces­so ao trans­for­mar os clás­si­cos per­son­agens antes inat­ingíveis, em pes­soas quase comuns que ape­nas procu­ram viv­er suas vidas, ten­tan­do não rev­e­lar sua aparên­cia mág­i­ca ao mun­do humano. No desen­ro­lar da tra­ma, o autor apre­sen­ta assun­tos que você difi­cil­mente pen­saria em ver entre os mocin­hos dos con­tos de fada, como traição, sex­u­al­i­dade e por aí afora.

    As 132 pági­nas de Fábu­las têm ilus­trações fan­tás­ti­cas, com teor mais real­ista e atu­al, mas que em alguns momen­tos são inter­cal­adas com desen­hos de per­son­agens recon­tan­do histórias anti­gas, com aque­le ar dos con­tos mais clás­si­cos. Ao final da história, tam­bém há um con­to ilustra­do pelo próprio roteirista Bill Will­ing­ham chama­do Um lobo entre cordeiros, que rev­ela detal­hada­mente como o lobo obteve sua for­ma humana.

    Pub­li­ca­dos pela Pani­ni Comics, os vol­umes no Brasil encon­tram-se na 11º edição. Para quem gos­ta de boas histórias com um quê de fan­ta­sia, Fábu­las é uma óti­ma opção.

  • Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    Livro: A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia — Janet Malcolm

    A incrív­el tol­erân­cia do leitor (que ele não esten­de­ria a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sen­ti­do se for enten­di­da como uma espé­cie de cumpli­ci­dade entre ele e o bió­grafo numa ativi­dade exci­tante e proibi­da: atrav­es­sar o corre­dor na pon­ta dos pés, parar diante da por­ta do quar­to e espi­ar pelo bura­co da fechadu­ra (p.16)

    Sylvia Plath (1932–1963), foi uma escrito­ra amer­i­cana rad­i­ca­da na Inglater­ra nos anos 50 e uma figu­ra fem­i­ni­na bas­tante forte. Ficou mais con­heci­da por sua poe­sia del­i­ca­da, intimista e em boa parte dela som­bria, dota­da de resquí­cios de uma depressão que aparente­mente era intrin­se­ca à per­son­al­i­dade da escrito­ra. Todas essas car­ac­terís­ti­cas são apre­sen­tadas em A Mul­her Cal­a­da: Sylvia Plath, Ted Hugh­es e os lim­ites da Biografia (reim­pressão de 2012, Com­pan­hia das Letras, Tradução de Ser­gio Flaks­man), uma pro­pos­ta ousa­da de análise biográ­fi­ca da jor­nal­ista Janet Malcolm. 

    Em 1961, Sylvia Plath escreveu A Redo­ma de Vidro, o úni­co romance de sua car­reira e de tom alta­mente con­fes­sion­al. A per­son­agem Esther é uma Sylvia mais cora­josa mas igual­mente sen­sív­el, que ao sofr­er decepções nâo vê out­ra saí­da além da morte. Plath deixou todos ao seu redor assus­ta­dos e temerosos pelas descrições do romance. Já para ela era como um gri­to do que vin­ha enfrentan­do des­de a ado­lescên­cia e a total não aceitação do pos­sív­el com­por­ta­men­to promis­cuo de Hugh­es. Mes­mo ten­do cresci­do numa época de lib­er­tação fem­i­ni­na, muito de uma mul­her tem­pera­men­tal e obses­si­va se escon­dia na pele da moça loira, sim­páti­ca da capa do livro. E é essa Plath que Janet con­strói, uma mul­her comum, forte e tam­bém áci­da, ciu­men­ta e desagradáv­el com um tem­pera­men­to deci­di­do, inclu­sive com a cor­agem de acabar com a própria vida.

    A jor­nal­ista se propõe a ir além de uma biografia comum, já que a vida de Sylvia não era novi­dade para ninguém do meio literário, seja em out­ras ten­ta­ti­vas biográ­fi­cas ou espec­u­lações. Ela ques­tiona o sen­ti­do do gênero, qual o papel de quem o escreve e a importân­cia de man­ter intim­i­dade com o leitor. Mal­colm se atem no perío­do em que Plath con­hece o poeta Ted Hugh­es, quan­do deu ini­cio à uma das relações mais con­tro­ver­sas e polêmi­cas de pares no meio literário, até o sui­cidio em 1963. 

    Janet Mal­colm
    O títu­lo de mul­her cal­a­da é jus­ta­mente pelo grande número de espec­u­lações sobre os fatos e mitos no entorno de Sylvia Plath con­struí­dos des­de sua morte. O casa­men­to com Hugh­es, a relação com a mãe e ami­gos são expostas pela infinidade de car­tas tro­cadas, ver­dadeiros fós­seis de sen­ti­men­tos da época e pos­síveis fatores de recon­sti­tu­ição. Essas mis­si­vas e os diários, que a poet­i­sa escrevia tan­to quan­to res­pi­ra­va, são os maiores ali­men­ta­dores para as biografias já escritas sobre a vida de Plath. A jor­nal­ista ques­tiona e dá sua opinião sobre cada uma das pub­li­cações feitas ao lon­go das décadas que seguiram e o faz com­para­n­do as obras com o próprio mate­r­i­al col­hi­do, uma espé­cie de inves­ti­gação insti­gante, quase em rit­mo detetivesco.

    Sylvia Plath
    E como em uma boa história de sus­pense, a per­son­agem oscilante de Sylvia gan­ha ares de mocin­ha quan­do o assun­to é a família Hugh­es, que durante muito tem­po deteve os dire­itos autorais da escrito­ra. Não bas­tassem as histórias no entorno da figu­ra de Ted Hugh­es, sua irmã Olwyn se apre­sen­ta como a mul­her total­mente indisponív­el e mal humora­da quan­do se tra­ta de fofo­cas sobre sua família. A figu­ra dos Hugh­es con­tra­ce­na com a de Plath, pois depois da morte de Sylvia foram eles os por­ta-vozes para qual­quer tra­bal­ho que envolvesse a figu­ra da escritora.

    A Mul­her Cal­a­da é um desafio ao leitor, o colo­ca como pas­sageiro das via­gens, encon­tros e leituras de car­tas que Janet faz. O tom poli­cial que a jor­nal­ista tra­ta dos fatos colo­ca o leitor na dúvi­da se há algum mocin­ho ou ban­di­do na história mitológ­i­ca de Sylvia Plath, sua mãe e a família Hugh­es. Mal­colm brin­ca com a mais inqui­etante questão literária que é o lim­ite da ficção e real­i­dade. Usan­do a seu favor os fatos e provas escritas do que pode ter acon­te­ci­do, a jor­nal­ista mon­ta toda uma teia com lin­guagem fic­cional para que o leitor pos­sa ape­nas vis­lum­brar a figu­ra da poeta cal­a­da e assim poder decidir em que voz pref­ere confiar.

    Filme

    Para quem se inter­esse por uma fac­eta de Plath, há uma cinebi­ografia inti­t­u­la­da de Sylvia (2003), dirigi­da por Chris­tine Jeffs e inter­pre­ta­da por Gwyneth Pal­trow e Daniel Craig como Ted Hugh­es. O lon­ga mostra clara­mente a vitimiza­ção da escrito­ra per­ante a vul­ner­a­bil­i­dade da relação com o poeta, pare­cen­do que Sylvia era ape­nas uma mul­her com tendên­cias sui­ci­das à beira de seu próprio precipício.

  • Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao —  Junot Díaz

    Livro: A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao — Junot Díaz

    A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao (Record, 2009), do escritor domini­cano Junot Díaz, é o livro per­feito para quem gos­ta de história e de apren­der sobre out­ras cul­turas. Esse romance acla­ma­do como um dos mel­hores livros de 2008 ren­deu à Díaz o Prêmio Pulitzer de ficção e esteve na lista dos livros mais ven­di­dos do The New York Times por mais de vinte sem­anas, chegan­do ao segun­do lugar.

    Pro­fes­sor de cri­ação literária do Mass­a­chu­setts Insti­tute of Tech­nol­o­gy (MIT) e edi­tor da Boston Review, Díaz já é con­sid­er­a­do nos EUA como um dos escritores mais promis­sores de lín­gua ingle­sa da atu­al­i­dade. Sim, Junot Díaz escreve em inglês. O autor cariben­ho se mudou para o esta­do amer­i­cano de Nova Jer­sey quan­do tin­ha ape­nas seis anos, o mes­mo esta­do que cede cenário à grande parte do seu romance.

    No começo de A Fan­tás­ti­ca Vida Breve de Oscar Wao, Oscar, o pro­tag­o­nista, é um meni­no tími­do, fã de ficção cien­tí­fi­ca, obe­so e virgem – o típi­co nerd que não sai da frente do vídeo-game. Ele tem dois grandes son­hos: ser o J. R. R. Tolkien de sua ger­ação e ter um grande amor que seja correspondido.

    Junot Diaz
    Nasci­do na Repúbli­ca Domini­cana afe­ta­da pelos desav­i­sos do dita­dor Gen­er­al Rafael Leónidas Tru­jil­lo, da mes­ma for­ma que o próprio Díaz, Oscar aca­ba por aban­donar Nova Jer­sey para voltar às ter­ras domini­canas, ain­da na ânsia do seu primeiro bei­jo e das grandes con­quis­tas que ele alme­ja. Víti­ma do que ele acred­i­ta ser uma maldição de família, con­heci­da na ilha como fukú, tudo dá erra­do na vida do já adul­to Oscar e na de out­ros mem­bros da família de León.

    Há quem não acred­ite em fukú e culpe a depressão e tendên­cias sui­ci­das do Oscar, somadas ao azar de ter nasci­do um meni­no sen­sív­el e nerd na cul­tura lati­na de cul­tuação da figu­ra do macho, pelo seu azar. Mas e de onde surgiu a má sorte dos seus par­entes e, na ver­dade, de todos que cruzam o cam­in­ho de Oscar e com­pan­hia? O sen­so de mist­i­cis­mo, super­stição, tradição e até mes­mo mág­i­ca que persegue a família é o que faz deste dra­ma uma obra inesquecível.

    Esta epopeia de uma família imi­grante con­ta um pouco da vida dos mil­hões de lati­nos que vivem tão longe de suas ter­ras e par­entes. Díaz faz exten­so uso da lín­gua espan­ho­la (man­ti­do na tradução para o por­tuguês), gírias e palavrões no seu tex­to, fazen­do pos­sív­el iden­ti­ficar a classe social e nív­el de esco­lar­i­dade dos per­son­agens através da linguagem.

    Pos­sivel­mente, o títu­lo do livro faz uma refer­ên­cia indi­re­ta ao con­to “A Feliz Vida Breve de Fran­cis Macomber”, em tradução livre, do escritor Hem­ing­way. Essen­cial­mente, o con­to fala sobre cor­agem e covar­dia, dois dos temas mais recor­rentes des­ta obra de Díaz.

    O romance é rec­hea­do de notas de rodapé que dão uma aula de história domini­cana e de refer­ên­cias cul­tur­ais que vão de H. P. Love­craft, Frank Her­bert e Matrix a Paulo Coel­ho, A Noviça Rebelde, Gabriel Gar­cía Mar­quez e Oscar Wilde — de onde surgiu o nome do nos­so pro­tag­o­nista. Cer­ta­mente foi necessária mui­ta pesquisa, espe­cial­mente para man­ter os fatos rela­ciona­dos ao Tru­jil­la­to mais próx­i­mos o pos­sív­el da real­i­dade, como prom­ete o autor. Eu asso­cio de cara este livro com A Fes­ta do Bode (Alfaguara, 2011), ficção do gan­hador do Prêmio Nobel Mario Var­gas Llosa que tam­bém retra­ta os últi­mos anos de poder de Trujillo.

    Junot Díaz demor­ou onze anos para escr­ev­er a tumul­tua­da vida breve de Oscar, que, na ver­dade, não é nem tão breve assim. Como disse Abra­ham Lin­coln, não são os anos da vida que con­tam, mas a vida em anos.

  • Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Livro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios — Marçal Aquino

    Alguém pode­ria escr­ev­er um man­u­al sobre como se deve rea­gir a esse tipo de notí­cia, se as cir­cun­stân­cias não forem favoráveis ao casal. Eu rece­be­ria as piores notí­cias dos seus lin­dos lábios. Seria bas­tante útil para home­ns como eu. (p.183)

    Des­de as primeiras estórias de amor que se tem noti­cia o infortúnio de amantes é sem­pre um mote inter­es­sante para escritores. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios (Com­pan­hia das Letras, 2005), de Marçal Aquino já nasce com um amor desafor­tu­na­do, cheio de paixão e tragé­dia con­ta­da pela voz de Cau­by, quase que um Romeu nas mãos de Aquino.

    Cau­by é fotó­grafo, rodou o mun­do e sem­pre se sen­tiu incom­ple­to quan­to à vida. Num impul­so de fotogra­far lugares inóspi­tos e fugir da frenéti­ca São Paulo, vai para o inte­ri­or do Pará. Numa região onde as leis são feitas à base do silên­cio dom­i­nador dos grandes e os sujeitos à estes — pes­soas que vis­lum­bram o encon­tro de ouro nos garim­pos — é o pano de fun­do da história do fotó­grafo com a mis­te­riosa e sen­su­al Lavinia. No calor do norte do Brasil, lugar descrito por Cau­by como quente e um tan­to mor­to é propí­cio que tudo se mis­ture, a lei, a religião e o amor, tudo, sem o mín­i­mo de delicadeza.

    Nun­ca prom­e­te­mos nada um ao out­ro, e eu sabia que podia acabar de repente. Poe­ma que ces­sa antes de virar a pági­na. Um Haikai. Na práti­ca, con­tu­do, não me con­for­ma­va com a ideia. Eu que­ria mais. (p.67)

    Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é nar­ra­do em tom de alu­ci­nação e insistên­cia de um homem apaixon­a­do. Cau­by oscila entre o pre­sente, um momen­to cur­to de uma noite, onde um out­ro homem nar­ra as suas decepcões amorosas, e o pas­sa­do, não muito longe, inten­so e cheio de revi­ra­voltas. Tudo sem maiores sinal­iza­ções além da lóg­i­ca que a própria leitu­ra dá. Um pon­to-chave e bacana do livro é o fluxo de con­sciên­cia de Cau­by, reple­to de sen­ti­men­tos e orga­ni­za­do con­forme os fatos que vão surgin­do e reme­tendo à out­ras situ­ações. O nar­rador con­segue cri­ar uma própria orga­ni­za­ção no seu rela­to sem deixar de ser infor­mal e con­t­a­m­i­na­do pelo que sente, usan­do a não-lin­eari­dade total­mente a seu favor.

    Lem­brei dos dias que pas­sei sem ela. Dias em que encon­trar, por aca­so, um fio de seu cabe­lo pre­so na fron­ha do trav­es­seiro bas­ta­va para me encher de angús­tia e dor. Estive a pon­to de raste­jar. Atire a primeira pedra aque­le que não estreme­ceu ao recu­per­ar, nos lençóis encar­di­dos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mul­her ausente. (p.74)

    Marçal Aquino
    O livro é divi­di­do em três partes com títu­los bas­tante per­ti­nentes e trag­icômi­cos quan­do se tra­ta de Marçal Aquino. Em Amor é Sex­ual­mente Trans­mís­siv­el tra­ta da efer­vescên­cia do amor de Cau­by e Lavinia como um encan­ta­men­to que é basi­ca­mente sex­u­al. Seus cor­pos con­ver­sam, tro­cam e fun­cionam mel­hor na cama. O diál­o­go entre os dois quase só é pos­sív­el quan­do con­seguem curar o seu caos no sexo. Quan­do não o fazem é tudo muito estran­ho e depen­dente, nem eles sabem ao cer­to porque estão ali. Para enten­der um pouco da desen­f­rea­da Lavinia, em Carne-Viva é apre­sen­ta­da, numa nar­ra­ti­va bem con­ven­cional, o históri­co dessa mul­her que dá sequên­cia no rela­to de Cau­by em Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo, onde somos lev­a­dos, já sem fôlego, ao des­fe­cho da relação tem­pes­tu­osa do casal.

    De acor­do com o pro­fes­sor Schi­an­berg (op. cit), não é pos­sív­el deter­mi­nar o momen­to exa­to em que uma pes­soa se apaixona. Se fos­se, ele afir­ma, bas­taria um ter­mômetro para com­pro­var sua teo­ria de que, neste instante, a tem­per­atu­ra cor­po­ral se ele­va vários graus. Uma febre, nos­sa úni­ca sequela div­ina. Schi­amberg diz mais: ao se apaixonar, um ¨homem de sangue quente¨ exper­i­men­ta o desam­paro de sen­tir-se vul­neráv­el. Ele não caçou; foi caça­do. (p.15)

    Um dos pon­tos mais inter­es­santes é como Cau­by e o per­son­agem Vik­tor são lev­a­dos a agir con­forme leituras feitas. O fotó­grafo é fiel seguidor do fic­tí­cio filó­so­fo do amor, Ben­jamin Schi­an­berg, o mes­mo que veio a se tornar o ide­al­izador imag­inário do exper­i­men­to de Beto Brant em O amor segun­do B. Schi­an­berg . Os tre­chos de livros do filó­so­fo são inseri­dos de for­ma bas­tante inteligente em Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios com Cau­by trazen­do a tona pági­nas e citações inteiras asso­ci­adas à sua relação com Lavínia. 

    Mas Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios não é somente um livro sobre amantes mal suce­di­dos. Em vários momen­tos o casal se tor­na ape­nas duas peças para tratar de uma ter­ra sem lei, com explo­ração ambi­en­tal e humana onde quase tudo é deci­di­do por instin­to. Essa filosofia do matar ou mor­rer é que tor­na os per­son­agens um monte de anti-heróis fada­dos a um des­ti­no deter­mi­na­do caso não andem con­forme o pro­gra­ma­do. Todos são reple­tos de con­tro­vér­sias, donos de val­ores que acred­i­tam ter, como se estivessem nesse lugar aparente­mente tão longe para expur­gar sua vida.

    Fada­dos ou não à tragé­dia, Cau­by e Lavinia, assim como boa parte dos per­son­agens são toma­dos pelo sen­ti­men­to de insistên­cia, seja de val­ores, sen­ti­men­tos e o que for. Eu Rece­be­ria as Piores Noti­cias de seus lin­dos Lábios é um romance para se ler com o fôlego daque­les que gostam de arriscar con­tra o tédio da vida.

    *Eu Rece­be­ria as Piores Notí­cias dos seus lin­do Lábios foi adap­ta­do — com títu­lo homôn­i­mo — para o cin­e­ma pelo dire­tor Beto Brant e entrou em car­taz em abril de 2012.

  • Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Livro: Honra teu Pai — Gay Talese

    Em 1971 era pub­li­ca­do o livro Hon­ra Teu Pai (Cia das Letras, 512 pági­nas, tradução de Don­ald­son M. Garscha­gen), do jor­nal­ista Gay Talese, que pas­sou sete anos fazen­do pesquisas sobre a família Bon­nano, uma das mais impor­tantes da máfia nos Esta­dos Unidos.

    Hon­ra Teu Pai parte do seque­stro de Joseph Bonan­no em 1964, um dos líderes das Cin­co Famílias de Nova York, e a ten­são que cai nos ombros de seu fil­ho, Sal­va­tore “Bill” Bon­nano, para man­ter a ordem nos negó­cios e evi­tar uma pos­sív­el guer­ra entre gru­pos rivais. Além dis­so, Talese tam­bém vol­ta a Sicília dos anos 1920, na cidade Castel­la­mare, onde nasceu Joseph e a orga­ni­za­ção que hoje em dia é con­heci­da como Cosa Nos­tra, até os dias finais das orga­ni­za­ções Bonnano.

    Os anos 60 foram anos de trans­for­mações tan­to cul­tur­ais quan­to com­por­ta­men­tais, mas para o mun­do de Bill Bon­nano, tudo per­mane­cia igual: as guer­ras feu­dais travadas na Sicília ape­nas se mudaram para os Esta­dos Unidos e ele se con­sid­er­a­va, ape­sar de ter cur­sa­do a fac­ul­dade agrono­mia na cidade de Tuc­son (da qual não con­cluiu), um mero vende­dor de car­roças. A figu­ra pater­na de Joseph Bon­nano era onipresente demais na vida do jovem Bill e este acabou entran­do nos negó­cios do pai sem pes­tane­jar. Hon­ra Teu Pai é um clás­si­co não ape­nas sobre a con­tra­venção, mas de um fil­ho devota­do ao pai a pon­to de colo­car a própria vida em risco se aven­tu­ran­do em seu mundo.

    E não fican­do somente nis­so: as difi­cul­dades vivi­das pelas esposas dos gang­sters na pele de Ros­alie, esposa de Bill, que cria os fil­hos em para­le­lo a vida de seu mari­do con­tra­ven­tor, geran­do muitos prob­le­mas no casa­men­to, que vão de infi­del­i­dade, segu­rança e a fal­ta de din­heiro. (Talese se aproveitou da boa vendagem do livro e mais o din­heiro obti­do na ven­da dos dire­itos de fil­magem* para cri­ar um fun­do para os fil­hos de Ros­alie e Bill pudessem cur­sar a fac­ul­dade quan­do mais velhos)

    Con­sid­er­a­do um dos cri­adores do Jor­nal­is­mo Literário (títu­lo que não faz mui­ta questão de osten­tar), Gay Talese tra­bal­hou no jor­nal The New York Times por 12 anos (exper­iên­cia que ren­deu o livro O Reino e o Poder, tam­bém lança­do pela Cia das Letras) e tam­bém foi colab­o­rador das revis­tas New York­er e Esquire. Em entre­vista a Paris Review, o jor­nal­ista diz que tra­ta a não-ficção com a mes­ma seriedade que um autor de ficção faria, mas faz questão de deixar claro que tudo que se pas­sa em seus livros acon­te­ceu de ver­dade. A imer­são em suas histórias é total. Na pro­dução de Hon­ra Teu Pai, Talese anda­va com Bill Bon­nano e seus segu­ranças, sujeito a ser balea­do ou sofr­er ataques a bom­ba na Guer­ra das Bananas. O jor­nal­ista pas­sa­va bas­tante tem­po com seus per­son­agens entre­vi­s­tan­do-os, toman­do notas sobre tudo que fazi­am. A obsessão per­fec­cionista do autor o lev­ou a sua fama merecida.

    Ques­tion­a­do sobre a razão de ter escrito um livro sobre assas­si­nos, Talese disse que não via muitas difer­enças entre um mafioso e um sol­da­do que mata um ser humano em nome do gov­er­no: ambos vivem sob um rígi­do códi­go de con­du­ta e se pro­tegem uns aos out­ros.

    *Escrito por Lewis John Car­li­no e dirigi­do por Paul Wend­kos, o filme feito para TV de Hon­ra Teu Pai pode ser vis­to na inte­gra aqui:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=Y5pYTR7iPkY

  • Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Livro: Coisas Frágeis — Neil Gaiman

    Nor­mal­mente a primeira coisa que vem em mente quan­do falam­os em Neil Gaiman é Sand­man, ou algu­ma de suas out­ras Graph­ic Nov­el, mas asso­ciar o nome aos seus tra­bal­hos literários ain­da não é algo muito comum. Acred­i­to que como muitos, ini­cial­mente nem sequer sabia que ele pos­suía tra­bal­hos além dos quadrin­hos e deci­di então ini­ciar min­ha leitu­ra nes­ta nova fac­eta — para mim — do autor pelo livro Coisas Frágeis (2010, Con­rad Edi­to­ra), com tradução de Michele de Aguiar Vartuli.

    É inter­es­sante já avis­ar que se você é daque­les que não gos­ta de saber cer­tas infor­mações antes de ler/assistir algo, aí vai uma dica impor­tante: leia a intro­dução só depois que você tiv­er lido Coisas Frágeis inteiro. Porque nela Neil Gaiman con­ta a história do moti­vo e situ­ação em que escreveu cada um dos con­tos, além de muitas vezes citar no esti­lo de quem se influ­en­ciou. Par­tic­u­lar­mente pre­firo deixar esse tipo de leitu­ra para depois, assim como não gos­to de ler críti­cas antes de ver um filme — as vezes evi­to até trail­ers — para assim poder depois com­parar as min­has impressões com aque­la do autor. Mas se você gostar de saber algu­mas par­tic­u­lar­i­dades antes, é garan­ti­do que são infor­mações que aju­dam e muito em uma com­preen­são mel­hor de cada um dos contos.

    Acho que pos­so afir­mar sem­pre ter sus­peita­do que o mun­do fos­se uma farsa bara­ta e tosca, um pés­si­mo dis­farce para algo mais pro­fun­do, mais esquisi­to e infini­ta­mente mais estran­ho, e de algu­ma for­ma sem­pre ter sabido a ver­dade. (p. 105)

    Coisas Frágeis é com­pos­to de nove con­tos e como não tin­ha ideia do que esper­ar e não haven­do ordem para seguir, deci­di escol­her aque­le que tin­ha o títu­lo mais inter­es­sante e par­ti para a leitu­ra. Emper­rei. Não era algo do tipo que eu que­ria ler naque­le momen­to. Próx­i­mo con­to. Depois de mais duas tro­cas, deci­di final­mente parar e ler um até o final. Desco­bri que o iní­cio de alguns deles é meio arras­ta­do mes­mo, pois a apre­sen­tação dos per­son­agens e situ­ações cos­tu­mam ser feitas de maneira bem pon­tu­a­da em um mar de out­ras infor­mações. Mas logo que você avança mais um pouco na leitu­ra e se ambi­en­ta neste mun­do, muitas vezes nada con­ven­cional, o con­to vai gan­han­do um óti­mo rit­mo, as vezes até bem frenéti­co, onde a últi­ma coisa que você quer faz­er é largar o livro de tão ansioso que fica para saber o seu desfecho.

    O inter­es­sante em todos os con­tos do Coisas Frágeis é que por mais cotid­i­anas e nor­mais que algu­mas situ­ações aparentam ser, sem­pre aparece algum ele­men­to fan­tás­ti­co no meio, mas que não que­bra total­mente esta sen­sação de que aqui­lo pode­ria acon­te­cer com qual­quer um a qual­quer momen­to. E por que não acon­te­cer com você tam­bém? Com certeza seria uma aven­tu­ra incrív­el acom­pan­har o mis­te­rioso dete­tive de Um estu­do em esmer­al­da ou assi­s­tir o curioso rit­u­al do O monar­ca do Vale.

    E então seu son­ho se encheu de deuses: deuses vel­hos e esque­ci­dos, mal-ama­dos e aban­don­a­dos, e novos deuses, coisas assus­tadas e tran­sitórias, ilu­di­das e con­fusas. (p. 175)

    Mas um dos con­tos em par­tic­u­lar, enti­t­u­la­do de O Pás­saro-do-Sol, me cativou de maneira sur­preen­dente! Não só pela excên­tri­ca ideia de um grupo cuja mis­são é exper­i­men­tar tudo que é comestív­el no mun­do, mas tam­bém pelos ele­men­tos mais mís­ti­cos e sim­bóli­cos, car­ac­terís­ti­ca que acred­i­to ser a mais inter­es­sante em Neil Gaiman e que é, de cer­ta for­ma, onipresente em seu tra­bal­ho. Se eu fos­se recomen­dar um con­to para alguém começar a ler Coisas Frágeis, com certeza seria este! Mas vou deixar a curiosi­dade pairan­do mes­mo sobre ele, pois ten­ho receio de estra­gar qual­quer agradáv­el sur­pre­sa que pos­sa vir a quem lê-lo.

    As reuniões men­sais dos epi­cu­ri­anos vêm acon­te­cen­do há mais de 150 anos, des­de a época do meu pai, do meu avô e do meu bisavô, e ago­ra temo que seja necessário parar, porque não res­ta mais nada que nós, ou nos­sos ante­ces­sores no clube, já não ten­hamos comi­do. (p. 135)

    O esti­lo dos con­tos de Coisas Frágeis muda dras­ti­ca­mente, poden­do assim causar uma cer­ta sen­sação de estran­heza se forem lidos muito segui­dos. Por isso recomen­do que sejam lidos com um cer­to inter­va­lo de tem­po, até para poder digerir todas as infor­mações de cada um. Por isso tam­bém, pode ser que alguns não sejam do gos­to de todos, mas que em ger­al o livro pos­sa ser do inter­esse de vários tipos difer­entes de pessoas.

    Acred­i­to que a dica mais impor­tante é: este­ja total­mente aber­to para o ines­per­a­do no iní­cio de cada con­to de Coisas Frágeis. Pois no mín­i­mo será uma aven­tu­ra por lugares, pes­soas e criat­uras fasci­nantes que você nun­ca esper­a­va, mas talvez gostaria, encon­trar. Se ao final de todos eles você ain­da sen­tir um gostin­ho de quero mais, como acon­te­ceu comi­go, foi tam­bém lança­do pela Con­rad a con­tin­u­ação Coisas Frágeis 2. Nos vemos no próx­i­mo livro?

  • Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Livro: Estórias Abensonhadas — Mia Couto

    Estas estórias falam desse ter­ritório onde nos vamos refazen­do e vamos mol­han­do de esper­ança o ros­to da chu­va, água aben­son­ha­da. Desse ter­ritório onde todo homem é igual, assim: fin­gin­do que está, son­han­do que vai, inven­tan­do que vol­ta. (Pre­fá­cio de Estórias Abensonhadas)

    Ten­ho uma grande con­vicção de que grandes leitores sem­pre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, con­ver­sas de ônibus e qual­quer out­ro lugar. Ter essa sen­sív­el per­cepção quan­to ao mun­do me parece bas­tante per­ti­nente quan­do você lê livros como se estivesse ouvin­do uma série de boas histórias, assim como acon­tece com Estórias Aben­son­hadas (Com­pan­hia das Letras, 2012) , de Mia Couto.

    É prati­ca­mente indis­pen­sáv­el a apre­sen­tação da figu­ra do escritor Moçam­bi­cano que comu­mente é colo­ca­do no hall dos grandes escritores fan­tás­ti­cos e inven­tivos. Assim como Gabriel Gar­cía Mar­quez, Guimarães Rosa e Manoel de Bar­ros, Mia Couto recria a real­i­dade ressaltan­do situ­ações com tons de magia. Nada é banal na vida dos per­son­agens que com­põem as suas nar­ra­ti­vas e essas fig­uras, com seu próprio por­tuguês e modo de se expres­sar, cir­cu­lam pelo tex­to dire­cio­nan­do o leitor.

    Estórias Aben­son­hadas é um con­jun­to de con­tos e como sinal­iza­do na intro­dução, foram escritos num perío­do pós-guer­ras — em 1994, ano de lança­men­to do livro, fazia ape­nas dois anos que a Guer­ra Civ­il de Moçam­bique soma­da a Guer­ra da Inde­pên­den­cia que se arras­tou des­de os anos 60, havi­am ter­mi­na­do — e o livro é for­ma­do por con­tos onde fig­uras como o sangue e a guer­ra são ele­men­tos de histórias de recomeço e ilu­mi­nações, como se os per­son­agens estivessem apren­den­do a ver a luz nova­mente e assim recon­stru­in­do suas rotinas.

    Mia Couto escreve com a lin­guagem dos son­hos, opera a palavra como um tra­bal­hador opera o seu mel­hor instru­men­to. E vai além, recria seu uso e funções provan­do que a lín­gua Por­tugue­sa se trans­mu­ta con­forme a sua geografia, é viva. E em Estórias Aben­son­hadas essa lín­gua gan­ha ares de esper­ança num ter­reno onde tudo pre­cisa de recon­strução e mes­mo que a morte este­ja pre­sente em boa parte dos con­tos, não há como escon­der a esper­ança de ir adiante.

    Nas Águas do Tem­po, o con­to que abre o livro, o leitor é apre­sen­ta­dos à magia do rela­to e a importân­cia da figu­ra do avô, um sím­bo­lo do con­ta­dor de histórias. O avô per­mite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fan­tas­mas da guer­ra ain­da cir­cu­lam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários out­ros con­tos, a pre­sença maciça da mitolo­gia da região rep­re­sen­ta­da por fig­uras e palavras próprias dá ordem do tom de oral­i­dade de Mia Couto.

    No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para den­tro, ess­es que usamos para ver os son­hos. O que acon­tece, meu fil­ho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver ess­es out­ros que nos visi­tam. Os out­ros? sim, ess­es que nos ace­nam da out­ra margem. E assim lhes causamos uma total tris­teza. Eu levo-lhe lá nos pân­tanos para que você apren­da a ver. Não pos­so ser o últi­mo a ser vis­i­ta­do pelos panos. (p.13)

    Em out­ros tex­tos como em O Cego Estre­lin­ho é a força da palavra que faz recri­ar ima­gens nun­ca vis­tas. Com uma grande sen­si­bil­i­dade os per­son­agens tem nomes muito sug­es­tivos como é o caso de Estre­lin­ho que, ori­en­ta­do pelas mãos de Gig­i­to é apre­sen­ta­do por um mun­do fan­tás­ti­co e pul­sante e quan­do este é man­da­do à guer­ra — mata­do­ra de esper­anças e cores — o cego pas­sa a ser ori­en­ta­do pela irmã, a Infe­lizmi­na que não vê nada demais no mun­do ali fora.

    O erro da pes­soa é pen­sar que os silên­cios são todos iguais. Enquan­to não: há dis­tin­tas qual­i­dades de silên­cio. É assim o escuro, este nada apa­ga­do que estes meus olhos tocam: cada um é um, des­b­o­ta­do à sua maneira. Entende, mano Gig­i­to? (p.23)

    Boa parte dos per­son­agens de Estórias Aben­son­hadas tem seus pares que con­tra­bal­ançam a fal­ta de esper­ança, como a capa da edição brasileira sug­ere, duas cadeiras frente a frente ven­do o sol nascer. Duas pes­soas são capazes de ini­ciar uma guer­ra como sinal­iza A Guer­ra dos Pal­haços onde dois pal­haços brin­cantes, numa acalo­ra­da dis­cussão, começam uma guer­ra entre os espec­ta­dores que ten­tam inter­pre­tar a per­for­mance. Um tex­to cur­to mas imen­so de ale­go­rias sobre a estu­pid­ez de um conflito.

    Com romances pre­mi­a­dos e igual­mente inven­tivos, Mia Couto demon­stra maior ver­sa­til­i­dade ain­da em con­tos ou crôni­cas porque são relatos cur­tos e boa parte deles pub­li­ca­do no jor­nal por­tuguês Públi­co. O fato de estarem pre­sentes em jor­nal, além de dar uma grande vis­i­bil­i­dade, dialo­ga muito inti­ma­mente com o leitor, mes­mo aque­le desacos­tu­ma­do com o seu tom fan­tás­ti­co. Creio que um dos fatos cru­ci­ais do escritor con­seguir cri­ar essa relação de intim­i­dade é a sua profis­são de biól­o­go que per­mite que ele seja inven­ti­vo unin­do o ser humano e sua relação com o espaço, ambi­ente e o lugar.

    Estórias Aben­son­hadas ultra­pas­sa qual­quer relação sim­plória de leitor e obra, é como se olhásse­mos através de uma janela e con­hecesse­mos ess­es per­son­agens como nos­sos viz­in­hos, ami­gos e par­entes. São histórias fan­tás­ti­cas escritas com a liber­dade de um con­ta­dor de histórias, pois além de Mia não se pren­der à con­veções lin­guís­ti­cas, ele dialo­ga de muito per­to com as nos­sas próprias raízes, é a lin­guagem uni­ver­sal dos sonhos.

  • Ali Boma Ye: dois livros sobre Muhammad Ali

    Ali Boma Ye: dois livros sobre Muhammad Ali

    Muham­mad Ali teve em sua car­reira 56 vitórias (37 por nocaute) e 5 der­ro­tas ape­nas. Há 30 anos sofre do Mal de Parkin­son. Nos anos 60 foi o maior atle­ta que o mun­do con­heceu e a Com­pan­hia das Letras relançou em ver­são de bol­so dois livros impor­tantes sobre o pugilista na coleção Jor­nal­is­mo Literário.

    Em 1998, ano em que o boxe já não tin­ha mais o mes­mo prestí­gio dos anos 60, o jor­nal­ista David Rem­nick, hoje edi­tor da revista New York­er, lançou o livro O Rei do Mun­do (Cia das Letras, tradução de Cel­so Nogueira, 376 pag.), onde a tra­jetória de Cas­sius Clay é con­ta­da des­de seu iní­cio no esporte, suas excen­t­ri­ci­dades (Ali cos­tu­ma­va con­ced­er lon­gas entre­vis­tas falan­do do quan­to era O Mel­hor (The Great­est) e caça­va seus adver­sários na rua para provo­ca-los), a con­ver­são ao islamis­mo (mudan­do seu nome para Muham­mad Ali) e os títu­los que o consagraram.

    Rem­nick não ape­nas foca na vida do luta­dor como vai nar­rar tam­bém os basti­dores da crôni­ca esporti­va da época, os movi­men­tos raci­ais em ascen­são (Mal­colm X era ami­go de Ali, mas depois romper­am relações dev­i­do às divergên­cias de Mal­colm com a Nação do Islã), o sub­mun­do do esporte (as lig­ações estre­itas com a máfia retrata­da na vida de Son­ny Lis­ton). Para quem não con­hece a história de Ali, comece por O Rei do Mun­do.

    Per­son­agem no livro de David Rem­nick, Nor­man Mail­er escreveu A Luta (Cia das Letras, tradução de Clau­dio Weber Abramo, 232 pag.) em 1975 (dez anos após os even­tos nar­ra­dos em O Rei do Mun­do). O livro de Nor­man Mail­er veio ao mun­do com o que ele chama­va de preparo para, segun­do sua própria definição, O Grande Romance amer­i­cano do qual nun­ca nos deu, mas chegou muito perto. 

    Após perder o títu­lo de Campeão dos Pesos Pesa­dos ao se recusar a lutar no Viet­nã, Ali vai até o Zaire lutar con­tra o então campeão George Fore­man, que se aci­den­ta durante o treino e atrasa em um mês aque­la que se tornou uma das lutas mais acla­madas do boxe. Mail­er é tão per­son­agem quan­to os dois luta­dores, par­tic­i­pan­do de uma lon­ga cor­ri­da com Ali e indo a uma car­tomante jun­to com o jor­nal­ista George Plimp­ton pra saber quem vence­ria a dis­pu­ta. Nor­man tam­bém rela­ta a pobreza que se encon­tra­va o país africano coman­da­do pelo dita­dor Mobu­tu Sese Seko e as peripé­cias de Don King, o empresário fan­farão que orga­ni­zou o evento. 

    Ape­sar dos dois livros terem o mes­mo per­son­agem prin­ci­pal, O Rei do Mun­do não sep­a­ra o boxe da políti­ca (des­de 1950, a maio­r­ia dos pesos pesa­dos eram com­pos­ta por negros), e uma amostra do con­fli­to racial da época é exem­pli­fi­ca­da na luta entre Floyd Pat­ter­son e Son­ny Lis­ton, onde o primeiro é o negro lib­er­al, a favor da tol­erân­cia racial con­tra o negro estereoti­pa­do: Lis­ton era con­sid­er­a­do caso per­di­do, com pas­sagens pela cadeia e lig­ação com o crime orga­ni­za­do. Esse ter­reno é arma­do par medir o impacto que seria a figu­ra de Cas­sius Clay no esporte. David tam­bém pres­ta um trib­u­to à crôni­ca esporti­va da época, relem­bran­do A. J. Liebling, Gay Talese (que escreveu um emo­cio­nante per­fil de Floyd Pat­ter­son), James Bald­win e suas desavenças com Nor­man Mail­er. Todo o tra­bal­ho de pesquisa feito por Rem­nick con­tribuiu para um óti­mo livro tan­to sobre boxe como para o que o foram os anos 60.

    A Luta, é o clás­si­co do jor­nal­is­mo literário e da imer­são. Mail­er não faz con­cessão algu­ma quan­to sua par­tic­i­pação nos even­tos e o colo­ca como um per­son­agem tão par­tic­i­pa­ti­vo quan­to Ali e Fore­man. Ali é um mis­tério que Mail­er vai desven­dan­do ao lon­go do livro e assim como é tam­bém o dita­dor Mobu­tu Sese Seko, que para con­ter uma pos­sív­el onda de vio­lên­cia con­tra tur­is­tas estrangeiros no dia do even­to, man­dou reunir mais de mil crim­i­nosos no vestiário do está­dio onde seria a luta e man­dou exe­cu­tar cem deles como um avi­so para o que iria acon­te­cer caso des­obe­de­cesse as ordens de Mobu­tu. Segun­do Mail­er, o chão do está­dio ain­da con­tin­ha sangue no dia da luta. Como expli­ca­do no pos­fá­cio de Clau­dio Weber, muito das brin­cadeiras com palavras que Nor­man faz se per­dem na tradução para o por­tuguês, mas não com­pro­m­ete o texto. 

    Recomen­dações:

    Ali (2001), cinebi­ografia do pugilista dirigi­da por Michael Mann, com Will Smith no papel prin­ci­pal, bus­cou muitas infor­mações no livro de David Remnick


    When We Were Kings (1996), doc­u­men­tário de Leon Gast, mostra como foi à luta entre Ali x Fore­man e con­ta com depoi­men­tos dos cita­dos Nor­man Mail­er e George Plimpton

  • Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    Livro: Festa no Covil — Juan Pablo Villalobos

    ¨Real­mente os cul­tos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. Esse não foi um erro do escritor. Foi um erro da humanidade¨ (p.30)

    Impos­sív­el não se sen­tir ten­ta­do pela capa da edição brasileira de Fes­ta no Cov­il (Com­pan­hia das Letras, 2012) — inspi­rada­mente desen­ha­da pela artista Elisa v. Randow — o romance de estreia de Juan Pablo Vil­lalo­bos. Fazen­do uso da sim­bolo­gia da clás­si­ca fes­ta de Dia de Muer­tos mex­i­cana, a capa é um incrív­el con­vite para que você escute um meni­no solitário con­tar algu­mas peripécias.

    Tochtli — coel­ho, na lín­gua aste­ca — é uma cri­ança comum, ou pode­ria ser, que como qual­quer out­ra dese­ja muito um pre­sente. Segun­do ele próprio mora numa man­são no Méx­i­co, tem uma vida ente­di­ante, pos­sui uma vas­ta coleção de chapéus e son­ha em ter um casal de hipopó­ta­mos anões da Libéria. Um dese­jo nada con­ven­cional e que nos diz muito sobre o per­son­agem que nar­ra o romance do mex­i­cano Juan Pablo Vil­lalo­bos.

    Fes­ta no Cov­il tra­ta de for­ma muito sen­sív­el, ao pas­so que te faz res­pi­rar a cada novo pará­grafo, a vida solitária de uma cri­ança em pleno cenário do nar­cotrá­fi­co mex­i­cano. O pai, um reno­ma­do profis­sion­al do ramo, pro­tege o fil­ho numa espé­cie de for­t­aleza e é escon­di­do do resto do mun­do que o garo­to rela­ta pecu­liari­dades do seu cotid­i­ano, como o número de pes­soas que con­hece e como é a sua roti­na diária, tudo do seu pon­to de vista infan­til, inteligente e com dos­es de ironia.

    Parece que o país Libéria é um país nefas­to. O Méx­i­co tam­bém é um país nefas­to. É um país tão nefas­to que você não pode con­seguir um hipopó­ta­mo anão da Libéria. O nome dis­so na ver­dade é ser do ter­ceiro mun­do.” (p.20)

    O nar­cotrá­fi­co, talvez a ativi­dade mais ren­táv­el na lati­noaméri­ca, é um plano de fun­do um tan­to quan­to fos­co em Fes­ta no Cov­il pois, difer­ente de uma visão real­ista, esse mun­do se apre­sen­ta cheio de metá­foras e por­tas fechadas, vis­tas pelos olhos de uma cri­ança. A mar­gin­al­iza­ção da sociedade mex­i­cana foge da figu­ra do imi­grante e tra­ta mais de per­to os atu­ais prob­le­mas do país no com­bate da máfia das dro­gas. Na ver­dade, qual­quer país abaixo da fron­teira dos Esta­dos Unidos pode­ria ser o cenário da vida de Tochtli e talvez um dos pon­tos mais fortes do livro seja essa sen­sação de con­hec­i­men­to de causa que temos ao ver uma cri­ança encar­an­do a real­i­dade de for­ma tão ingênua.

    Mas Vil­lal­lo­bos não faz um rela­to comum e muito menos pro­duz uma nar­co­l­it­er­atu­ra fun­da­da em real­is­mos. Ele usa a voz de Tochtli para cri­ar um apego entre o leitor e o per­son­agem e assim cri­ar um enre­do que beira à suavi­dade de histórias infan­tis. Em muitos momen­tos nos vemos olhan­do assus­ta­dos para o garo­to da ficção, todo o dis­cur­so do pequeno Tochtli é mar­ca­da por suas sen­síveis pecu­liari­dades. As vezes ele é mima­do, não quer mais brin­car e em out­ros momen­tos ele demon­stra uma maturi­dade, con­sum­i­da por fras­es pre­co­ces, que nos leva a ques­tionar a solidão infantil.

    Há ape­nas um flerte com a real­i­dade vista por ess­es olhos inocentes. Se out­ro­ra a lit­er­atu­ra fazia uso das metá­foras fan­tás­ti­cas para con­tar um fato real, em Fes­ta no Cov­il são os olhos infan­tis que inter­pre­tam a vida com inocên­cia e em algu­mas situ­ações com a frieza da ver­dade. Tochtli é solitário, tem aulas par­tic­u­lares em casa e con­vive o tem­po todo com adul­tos, por­tan­to é inevitáv­el que em sua voz saiam definições pre­co­ces. Não se sabe ao cer­to se o garo­to é somente mima­do, víti­ma de um pai ausente e mãe que mor­reu, ou pro­fun­da­mente inspi­ra­do pelas pes­soas mis­te­riosas que con­vivem com ele e vivem ensi­nan­do algo.

    O pres­i­dente John Kennedy esta­va fazen­do um pas­seio num car­ro sem teto e ati­raram na cabeça dele. Ou seja, as guil­hoti­nas são para os reis e os tiros, para os pres­i­dentes. (p.47)

    Durante toda a nar­ra­ti­va de Fes­ta no Cov­il fica níti­da uma relação estre­i­ta do meni­no com as palavras, incluin­do o próprio dis­cur­so que ele cui­da que seja bem explica­ti­vo. O pequeno Tochtli não dorme sem ler o dicionário, ele gos­ta de nomear os sen­ti­men­tos e as pes­soas e quan­do se encan­ta com uma palavra a usa em vários con­tex­tos, inde­pen­dente se elas con­tin­u­am ou não com o mes­mo significado. 

    Juan Pablo Vil­lalo­bos, até pouco tem­po atrás, era um nome descon­heci­do da lit­er­atu­ra lati­noamer­i­cana. O mex­i­cano, casa­do com uma brasileira e res­i­dente no país, diz que sua visão sobre o Méx­i­co é de quem obser­va de longe e que nesse pon­to de fora con­segue ver com muito mais clareza a situ­ação vivi­da pelo país. Quan­do ques­tion­a­do se ele espera que no Brasil haja iden­ti­fi­cação com o pequeno Tochtli, diz que sim mas que no Brasil ele vê mais otimis­mo, uma das car­ac­terís­ti­cas impres­sio­n­antes no per­son­agem-garo­to de A Fes­ta no Cov­il.

    É impos­sív­el sair imune de Tochtli e seus son­hos mima­dos. Enquan­to o Méx­i­co, e con­se­quente­mente seu pai, vivem perío­dos de lim­bos, o garo­to ape­nas anseia em encon­trar o casal de ani­mais que fal­ta para seu zoológi­co. Pequenos nuances detal­ham a real­i­dade do per­son­agem que faz de Fes­ta no Cov­il uma fábu­la de uma cri­ança — lem­bran­do o sig­nifi­ca­do do seu nome aste­ca — den­tro de um bura­co, alheio ao mun­do caóti­co e sem esper­ança de fora.

  • Livro: Precisamos Falar sobre o Kevin — Lionel Shriver

    Livro: Precisamos Falar sobre o Kevin — Lionel Shriver

    Goza­do como a gente vai esca­v­an­do o bura­co com uma col­her­in­ha de chá – uma con­cessão mín­i­ma, um arredonda­men­to insignif­i­cante ou uma lev­ís­si­ma refor­mu­lação de deter­mi­na­da emoção para out­ra que seja um tiquin­ho mais sim­páti­ca ou lisonjeira.

    Capa Precisamos falar sobre o KevinKevin Khatch­adouri­an é autor de uma chaci­na esco­lar que lev­ou quase uma dezena de pes­soas à morte. Nat­u­ral­mente ao saber­mos dessa infor­mação, são inevitáveis as per­gun­tas que bus­cam elu­ci­dar a razão de tal ato. “O que leva jovens com uma vida aparente­mente boa a tomarem tal ati­tude, tiran­do a vida de pes­soas inocentes?” “Por quê?” é a per­gun­ta que sin­te­ti­za muitas vezes nos­sa per­plex­i­dade diante do fato.

    Porém, ao lon­go da leitu­ra de Pre­cisamos falar sobre o Kevin (2007, Intrínse­ca), de Lionel Shriv­er, esse ato bru­tal pas­sa muitas vezes esque­ci­do, nos parece menor, ou pior ain­da, soa ape­nas como o des­fe­cho de uma sucessão de pecu­liares even­tos que pon­tu­am a vida da família Khatch­adouri­an e de seu filho.

    A história de Kevin é con­ta­da por sua mãe, de sim­bóli­co nome Eva. Por meio de car­tas ao mari­do Franklin, Eva remon­ta sua tra­jetória como uma moça solteira com um desta­ca­do sen­so críti­co aos EUA e com ímpetos de explo­rar o mun­do. Sua vida muda ao con­hecer (e se casar com) aque­le que muitas vezes seria seu opos­to, Franklin, um típi­co norte-amer­i­cano enam­ora­do por seu próprio país.

    A opção de nar­rar as lem­branças de Eva por meio de epís­to­las já nos diz muito sobre a história da qual vamos com­par­til­har em Pre­cisamos falar sobre o Kevin, uma vez que essa escri­ta con­fes­sion­al parece a mais ade­qua­da para que a nar­rado­ra pontue sua cul­pa, seu remor­so e as con­cessões inde­v­i­das que Eva fez ao mari­do des­de que engravi­dara. Seu rela­to é pon­tu­a­do pelo silên­cio e pela resignação.

    Eva não que­ria, de fato, uma cri­ança, mas não pôde “negar” ao mari­do a von­tade de ter um reben­to em casa. Mes­mo durante a gravidez ela se sen­tia descon­fortáv­el, como se a cri­ança anu­lasse sua indi­vid­u­al­i­dade, sua fem­i­nil­i­dade, sua inde­pendên­cia e, pior, seu casamento.

    Capa Precisamos Falar sobre o Kevin
    Capa da primeira edição

    Des­de a ges­tação, Eva tra­va lutas silen­ciosas com seu fil­ho, em um cli­ma hos­til que per­du­ra por toda nar­ra­ti­va. O cli­ma de Pre­cisamos falar sobre o Kevin nun­ca é leve, e por vezes a leitu­ra dos acon­tec­i­men­tos choca, magoa, deman­da um respiro ao leitor.

    Isso porque as memórias de Eva são retomadas com sin­ceri­dade e bru­tal­i­dade extremas. É pos­sív­el acom­pan­har niti­da­mente cada pas­so erra­do e dado em fal­so pela família, e o oneroso peso que eles têm de pagar por isso. Kevin não é sociáv­el, não é uma cri­ança de desen­volvi­men­to nor­mal – os papéis muitas vezes se invertem e é ele quem força seus pais a crescerem, os provo­ca com sua apa­tia, ques­tiona-os enquan­to pais. A vio­lên­cia, a intran­sigên­cia e o vazio que partem de Kevin per­me­iam a história e é impos­sív­el ficar indifer­ente a ela.

    Nat­u­ral­mente é fácil obser­var os Khatch­adouri­an e tachá-los de cul­pa­dos ou de neg­li­gentes… Ago­ra, a história dessa família, até cer­to pon­to, não se afas­ta muito da nos­sa: quan­tas vezes, em nos­sas relações, não nos vemos força­dos a ced­er a con­tragos­to, a tomar par­tido, a optar por lados? Obvi­a­mente a história de Kevin é um rela­to extrema­do de uma atmos­fera doen­tia e prob­lemáti­ca, mas por isso mes­mo Pre­cisamos falar sobre o Kevin é um livro tão mar­cante – antes de se encer­rar sobre o tema dos assas­si­natos em si, ele se abre ao dialog­ar com nos­sas relações famil­iares, com nos­sos arran­jos soci­ais e com nos­sas crenças.

  • Livro: O Grande Gatsby — F. Scott Fitzgerald

    Livro: O Grande Gatsby — F. Scott Fitzgerald

    Eu quero escr­ev­er uma história sim­ples, bela e extraordinária”

    F. Scott Fitzger­ald em cor­re­spondên­cia para o seu edi­tor Maxwell Perkins em 1922. Três anos depois pub­li­caria O Grande Gats­by (Pen­guin-Com­pan­hia, tradução de Vanes­sa Bar­bara e intro­dução e notas de Tony Tan­ner), romance con­sid­er­a­do por muitos como um dos mel­hores do sécu­lo XX.

    Fitzger­ald nos con­cede uma jor­na­da através da obsessão de um homem que se entre­ga a um mun­do de val­ores duvi­dosos, movi­do ape­nas por um amor do pas­sa­do. Tam­bém é a história de pes­soas super­fi­ci­ais que vivem sobre a ilusão da eter­na juven­tude, beleza e riqueza; não se impor­tan­do com nada a não ser a si mesmos. 

    Nick Car­raway, jovem grad­u­a­do em New Haven e ex-com­bat­ente da Primeira Guer­ra Mundi­al, nar­ra sua mudança para West Egg e aca­ba se tor­nan­do viz­in­ho do mis­te­rioso Jay Gats­by que pro­move fes­tas extrav­a­gantes em sua man­são, atrain­do a alta sociedade local que espec­u­la sobre o seu pas­sa­do: ninguém con­hece Gats­by pes­soal­mente, mas todos já ouvi­ram algu­ma supos­ta história sobre suas ações, entre elas, que já teria cometi­do assassinato. 

    O que ninguém sabe é que Gats­by pre­tende repe­tir o pas­sa­do: reen­con­trar o seu amor per­di­do na juven­tude, Daisy, ago­ra casa­da com o agres­si­vo Tom Buchanan, que mora na parte opos­ta da baía, em East Egg (onde moram os ricos na ilha fic­tí­cia*, West Egg é a parte pobre). Ele ali­men­ta esper­anças de que um dia ela pos­sa vis­i­tar uma de suas fes­tas e assim reconquistá-la.

    Os anos 1920 foram os anos de pros­peri­dade econômi­ca na Améri­ca do Norte, prin­ci­pal­mente nos Esta­dos Unidos, após a Primeira Guer­ra Mundi­al — perío­do con­heci­do como Roar­ing Twen­ties. Após a recessão, a econo­mia amer­i­cana entra­va em uma nova fase. A indús­tria auto­mo­bilís­ti­ca pro­duzia em mas­sa, o cin­e­ma e o rádio eram as prin­ci­pais for­mas de entreten­i­men­to, o jazz se tor­na­va bas­tante pop­u­lar e a pro­pa­gan­da tin­ha um papel impor­tante na mídia. Tam­bém nes­ta déca­da foi insti­tuí­da, em 1923, a Lei Seca (que teve seu fim em 1933) – onde pro­duzir, vender, impor­tar e expor­tar bebidas alcoóli­cas era ile­gal. O crime orga­ni­za­do – a máfia, lid­er­a­da por Al Capone – pas­sou lucrar muito com a ven­da clan­des­ti­na. Nes­sa época, o mate­ri­al­is­mo e o egoís­mo se tornaram parte do son­ho amer­i­cano e isso ficou muito bem retrata­do em O Grande Gats­by.

    O livro tam­bém tra­ta dos prob­le­mas que acar­retam quan­do vive­mos do pas­sa­do e do fim das ilusões da juven­tude. A tris­teza está pre­sente do começo ao fim. A obra con­tin­ua atu­al e é vál­i­da para aque­les que ain­da não tiver­am con­ta­do com esse clás­si­co americano.

    *Acred­i­to que talvez fiquem con­fu­sos com min­ha expli­cação sobre East e West Egg, mas a tradu­to­ra fez uma car­tografia da região no blog da Com­pan­hia.

    ***

    Há seis adap­tações do romance para o cin­e­ma, mas recomen­do a ver­são de 1974 com Robert Red­ford (Gats­by) e Mia Far­row (Daisy) no papeis prin­ci­pais. O roteiro é de Fran­cis Ford Cop­po­la, em sub­sti­tu­ição a Tru­man Capote, demi­ti­do pelo estú­dio. A direção ficou por con­ta de Jack Clayton.

    Está em pós-pro­dução a adap­tação em 3D (não me per­gunte, eu tam­bém não sei o moti­vo) para o cin­e­ma de O Grande Gats­by estre­la­da por Tobey Maguire, na pele de Nick Car­raway, Leonar­do Di Caprio, como Jay Gats­by, Joel Edger­ton inter­pre­ta Tom Buchanan e o papel de Daisy ficou para Carey Mul­li­gan; com estreia pre­vista ain­da para este ano. É esper­ar para ver o resultado.

    ***

    E como pre­sente para o bra­vo e destemi­do leitor (a) que chegou até aqui, fique com o jogo de Super Nin­ten­do do livro mais famoso de F. Scott Fitzger­ald . Não pre­cisa agradecer.

  • Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes na lit­er­atu­ra fei­ta pelo escritor gaú­cho Antônio Xerx­e­nesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus arti­gos e tex­tos pela web — é o uso das suas refer­ên­cias, sejam elas literárias, acadêmi­cas ou inclu­sive de games. Li Areia nos Dentes (Roc­co, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de con­tos A Pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas (Roc­co, 2011), o que me aju­dou a obser­var mais de per­to as tendên­cias metafic­cionais e de met­al­it­er­atu­ra na obra de Xerx­e­nesky.

    O enre­do primário de Areia nos Dentes é o mais improváv­el para um man­u­al de boas maneiras de lit­er­atu­ra brasileira: uma dis­pu­ta de famílias ambi­en­ta­da num vel­ho oeste envol­ven­do zumbis e ques­tion­a­men­tos exis­ten­ci­ais. Mas pode ir esque­cen­do que o livro pos­sa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os lon­gas reflex­ivos de Ser­gio Leone que é inclu­sive o primeiro nome que aparece na lista de agradecime­tos finais.

    ¨Car­l­i­tos, qual é o mel­hor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
    ¨O que isso tem a ver?¨
    ¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme pre­firo. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, com­preende? Porque vou pas­sar isso para o meu rela­to. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e ago­ra cito o mestre ital­iano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
    (p.34)

    Os Mar­lowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspi­ta Mavrak — a palavra Mav­er­ick em um tab­uleiro empoeira­do. O lugar não tem uma local­iza­ção cer­ta mas se entende que está num deser­to mas­sacrante e arenoso onde a rival­i­dade entre famílias, e o calor ator­doante, são os maiores incô­mo­d­os na vida dos habi­tantes. Mas quem nos colo­ca nesse cenário não é um sim­ples nar­rador oni­sciente e sim o próprio homem que está escreven­do a história dos seus antepassados.

    O fato do nar­rador ser o próprio escritor — cau­san­do uma sen­sação de reação em cadeia de autores/narradores — per­mite que o tex­to ten­ha suas próprias mar­cas estilís­ti­cas como letras que travam no com­puta­dor, ono­matopéias que surgem na cabeça do escritor e a liber­dade que ele tem de nar­rar a história em vários for­matos. Há o uso de vários recur­sos des­de um capí­tu­lo em for­ma­to de roteiro, uma perseguição nar­ra­da em duas col­u­nas e car­tas de con­fis­são de personagens.

    Ago­ra ten­ho tan­tas out­ras dúvi­das. E se eu estiv­er repro­duzin­do min­ha relação com min­ha ex-mul­her nes­sa lin­has? E se não for só pre­cisão históri­ca o que eu bus­co ao car­ac­teri­zar as mul­heres dessa for­ma? Se for cul­pa da min­ha men­tal­i­dade, quase tão arcaica quan­to a daque­les pis­toleiros? Ninguém dev­e­ria escr­ev­er nada nun­ca, não há glam­our ou praz­er, só tor­men­to. (p.66)

    Ao pas­so que Areia nos Dentes tra­ta de um homem que ten­ta cri­ar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de cer­ta for­ma, per­pet­u­ar os momen­tos numa for­ma de preencher as lacu­nas, ain­da con­segue se rela­cionar com per­son­agens de out­ras ficções, dan­do voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Mar­lowe e Ramirez fazem refer­ên­cias níti­das ao próprio Xerx­e­nesky que nun­ca fez questão de escon­der seu apreço pelo escritor Thomas Pyn­chon, por exemplo.

    A aprox­i­mação com o escritor real se define mais ain­da quan­do o leitor, con­sciente de alguns gos­tos e escol­has do próprio Anto­nio Xerx­e­nesky, aca­ba por recon­hecê-lo nas con­struções do enre­do. E jus­ta­mente nesse aspec­to surge uma sen­sação de incô­mo­do, jus­ta­mente por ter emen­da­do a leitu­ra com A pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas, fican­do a sen­sação que o autor é dom­i­na­do pelo seu mun­do de leituras e cotid­i­ano, se obri­g­an­do a usá-los em sua ficção. Mas esse incô­mo­do, se pen­sa­do sob o enre­do de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaça­do por suas refer­ên­cias, cotid­i­ano e exper­iên­cias — quase uma ideia Ben­jamini­ana de nar­ra­ti­va — a pon­to de colocá-las no papel, assim como acon­tece com o per­son­agem principal.

    Areia nos Dentes é a pri­ori um romance con­tem­porâ­neo prin­ci­pal­mente pelo envolvi­men­to mas­si­vo com refer­ên­cias, mas tam­bém, pelo trata­men­to metafic­cional dos per­son­agens. E sem anális­es mais pro­fun­das, o romance de estreia de Antônio Xerx­e­nesky é um pas­tiche, mas aci­ma de tudo, uma peque­na amostra da eufo­ria e inter­esse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, alta­mente recomen­da­do para fãs de todos os ele­men­tos citados.

    *Recomen­do bas­tante os tex­tos de Antônio Xerx­e­nesky no blog do Insti­tu­to Mor­eira Salles.

    ** Você pode adquirir esse livro por um preço bem bacana na Livraria de Babel.

  • Porta Na Cara: Deixe o ego fora da sua história

    Porta Na Cara: Deixe o ego fora da sua história

    George Orwell, em um ensaio, disse que escrevia “Por puro egoís­mo. O dese­jo de ser engen­hoso, de ser comen­ta­do, de ser lem­bra­do após a morte (…)”. O lema dessa ger­ação da qual faço parte é escr­ev­er — ape­nas e somente — por puro egoís­mo. Cli­ma de tragédia.

    Ago­ra, as pes­soas que têm a sar­na de escr­ev­er livros, por Deus, livros sobre suas vidas vazias ain­da “verdes”, mes­mo quan­do são capazes de for­mar uma frase, nun­ca são inter­es­santes – na vida real ou em papel. Ao menos eu nun­ca vi. E aí você vê os livros delas entrarem em liq­uidação por R$ 9,90 e atra­van­car­em todos os sebos da cidade e pen­sa: pelo menos o públi­co não se deixa enga­nar tão fácil. Há doi­dos que escrevem coisas boas sobre suas vidas depois de algum tem­po, ou num inter­va­lo entre dois “aces­sos”, nun­ca durante a lou­cu­ra, e chegaram a best-sell­er. Cite­mos: Colette. José Mau­ro de Vas­con­cel­los. Não, não gos­to de Bukowski.”

    Tre­cho do tex­to da escrito­ra car­i­o­ca Simone Cam­pos para o Le Monde Diplo­ma­tique que dá uma ideia da situ­ação. Leiam.

    Deixe o ego fora da sua história. O ego não é a ver­dade” era o con­sel­ho do escritor Hubert Sel­by Jr. para os ini­ciantes. Acho que ain­da é váli­do nos dias de hoje. O mun­do não é feito a imagem e semel­hança dos seus escritores heróis. Vamos todos ago­ra pedir des­cul­pa ao tio Hen­ry Miller e ao tio Charles Bukows­ki. Que coisa feia vocês andam fazen­do em nome deles, meu deus.

    Se vai se aven­tu­rar a escr­ev­er ficção, é bom faz­er a lição de casa: con­hecer e respeitar os clás­si­cos, dis­cu­tir ideias, não tomar como ofen­sa pes­soal o fato de uma pes­soa não gostar dos autores que você apre­cia, saber ouvir críti­cas sobre o seu tex­to e o mais impor­tante: ter ideia que não existe O Seg­re­do para escrever. 

    È um tra­bal­ho difí­cil tan­to para um ini­ciante quan­to para um escritor com cer­ta noto­riedade. E tam­bém não espere recon­hec­i­men­to de ime­di­a­to. Se fiz­er um bom tra­bal­ho, as edi­toras irão entrar em con­ta­to com você, mas isso não impede que você pos­sa faz­er seu próprio mar­ket­ing.

    Gos­to bas­tante de ler ficção, mas não ten­ho pre­ten­sões literárias ou tal­en­to sufi­ciente para escr­ev­er um con­to sobre uma cri­ança triste ou um mon­u­men­tal romance de quin­hen­tas pági­nas sobre o dra­ma de um homem que é impe­di­do de se fan­tasiar de banana. E muito menos sobre min­ha própria vida. É bom ter limites.

    Con­fes­so que sin­to inve­ja de quem tem a habil­i­dade de cri­ar tra­mas, per­son­agens, sub­tex­to e o que mais se pre­cisa para escr­ev­er uma boa história, mas saber que você não leva jeito para coisa tam­bém é uma arte. Aceite.

    Pen­so estar evi­tan­do com a min­ha ati­tude a der­ruba­da de inocentes árvores e pre­venin­do futuras ger­ações de ter o desagradáv­el con­ta­to com uma obra literária de min­ha auto­ria. E tam­bém evi­tan­do a ver­gonha que seria de ter o maior encal­he de livros jamais vis­to na Améri­ca Latina.

    Bruno man­tém o tum­blr de entre­vis­tas Por­ta na Cara