Daniel Galera em seu quarto romance, Barba Ensopada de Sangue (Companhia das Letras, 2012), é protagonizado por um “homem forte e silencioso” como diria Tony Soprano. Assim como em Mãos de Cavalo e Até o Dia que o Cão Morreu, temos uma narrativa onde a violência surge no cotidiano confortável da classe média.
Após o suicídio do pai, o protagonista decide viver um ano em Garopaba para se dedicar como instrutor em uma academia da região e se isolar de sua cidade natal, Porto Alegre. Ao seu lado, temos a cachorra Beta, que pertencia ao seu pai e que ele se recusou a sacrificar.
Diagnosticado com uma doença neurológica rara que o impossibilita de guardar na memória o próprio rosto e o das pessoas com quem vem a se relacionar, o protagonista leva consigo um álbum de retratos para lembrar-se do rosto dos amigos, da família e inclusive da sua própria face.
Eis um dos mistérios do romance: Na conversa que teve com seu pai quando esse o informa que ira tirar a própria vida, fica sabendo que seu avô, Gaudério, acabou se isolando na cidade de Garopaba nos anos 1960 e devido ao seu comportamento violento foi assassinado a facadas por vários nativos e seu corpo nunca foi encontrado. Descobrir o que realmente aconteceu com ele é uma de suas metas, mesmo que isso possa colocar sua vida em risco.
Daniel GaleraDaniel Galera atingiu um nível técnico muito alto nesse romance realista e ambicioso, com personagens fortes e carismáticos (vide Bonobo, o budista nada ortodoxo), descrições ricas em detalhes, e parece justificar a razão do seu nome estar em voga apenas com a qualidade da sua narrativa. O livro tem muitas semelhanças entre os romances Mãos de Cavalo e Até o Dia que o Cão Morreu, mas em nenhum momento o autor está se autoplagiando.
“Ninguém escolhe nada e mesmo assim a responsabilidade é nossa” diz o personagem principal em uma discussão com a ex-namorada. O centro do romance trata a questão de livre-arbítrio e determinismo, tópico estudado por David Foster Wallace, uma grande influência do escritor brasileiro e do qual traduziu recentemente a coletânea Ficando Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.
“Desde o princípio do trabalho, eu queria que o romance explorasse de maneira implícita a questão filosófica da responsabilidade humana em uma visão de mundo determinista, segundo a qual tudo que acontece é apenas resultado inevitável do que aconteceu logo antes. É um assunto que me interessa.” Diz o autor em uma entrevista para o site do Jornal do Comércio
O único ponto negativo está no trabalho gráfico do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a trama de mais de 400 páginas não é em nenhum momento cansativa e uma das críticas feitas ao livro, da qual ele poderia ser menor e menos verborrágico, é infundado.
Barba Ensopada de Sangue é um ótimo romance, mas ainda é cedo para dizer qual é sua importância para a literatura brasileira. Ao mesmo tempo vemos uma produção literária nacional dar passos cada vez maiores (antologias, feiras literárias, críticos atento ao que acontece no cenário nacional, etc.), ainda não sabemos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.
Sinto-me solidária com as mulheres que assumiram suas vidas e que lutam para ter sucesso, o que não me impede, porém, de interessar-me pelas que não conseguiram alcançá-lo.
O bastante lúcido trecho acima – retirado do livro Balanço Final de 1972 — define a sinopse de A Mulher Desiludida (tradução de Helena Silveira e Maryan A. Bon Barbosa, Nova Fronteira, 2010), da escritora e uma das personas mais conhecidas do movimento feminista no campo intelectual, a francesa Simone de Beauvoir.
É basicamente imprescindível conhecer ao menos um pouco da trajetória de Beauvoir para se compreender a força dos três contos de A Mulher Desiludida e não se ver lendo apenas textos simplórios da vida de três mulheres. Conhecida por várias situações que vão desde seu relacionamento considerado bastante incomum, movida pelo intelectual de ambos, que atravessou décadas com o filósofo Jean Paul-Sartre, a relação passional e à distância – passaram muitos anos se comunicando apenas por cartas — com o escritor americano Nelson Algren (conhecido por O Homem do braço de Ouro) ou a ousada escritura dos dois volumes de O Segundo Sexo, Beauvoir viveu conforme suas próprias regras buscando sempre o sentido de liberdade. Com a cruel consciência de que ser livre não é uma questão tão simples quando se depende das convivências sociais e o desprendimento dos papéis pré-estabelecidos, a escritora deu voz e universos ficcionais íntimos da realidade à mulheres que matavam seus próprios demônios femininos.
Em a Mulher Desiludida, Simone de Beauvoir apresenta três mulheres, em momentos cruciais de suas vidas, onde a questão do papel feminino – o pré-estabelecido versus as escolhas próprias das personagens – entra em conflito com a questão da idade e todo o aparato psicológico que acompanha o paradoxo que pode ser agir ora através dos sentimentos, ora respeitando suas próprias ideologias e escolhas. As mulheres descritas por Beauvoir refletem muito do momento, o inicio da década de 70, as revoluções feministas e as novas situações encaradas por essas mulheres.
Desde quando o terreno baldio do bulevar Edgar-Quinet se tornou estacionamento? A modernidade da paisagem me salta aos olhos, todavia não me lembro de tê-la visto de outra forma. Gostaria de contemplar lado a lado os dois cenários: antes e depois, e me espantar com a diferença. Mas não. O mundo se constrói sob meus olhos num eterno presente. Habituo-me tão depressa aos seus aspectos que ele não parece mudar. (p.11)
Simone de BeauvoirO livro abre com o conto A idade da discrição que trata de uma acadêmica e escritora entrando na terceira idade, sentindo-se distante do momento que vive, acreditando que não consegue mais ter alegrias para viver. Sua personalidade de mulher independente, com um casamento de décadas, aparentemente bem sucedido, e carreira de professora universitária, bate de frente com o papel crucial e dominador de mãe. Com um filho adulto, criado conforme seus próprios ideais, ela se depara com um homem dono de sua própria vida e disposto a trocar o foco feminino materno e apontá-lo para sua esposa.
É clara a dificuldade da personagem em aceitar que não existem eternidades quando se trata de quase todas as relações, sejam elas físicas ou materiais. A partir do momento que ela se dá conta que tudo ao seu redor está em constante processo de desenvolvimento e que há um ciclo funcionando por trás disso, ela simplesmente encara a força da idade e em vários momentos se vê melancólica e descrente.
Também é isso envelhecer. Tantos mortos atrás de si, lamentados, esquecidos. De repente, quando leio o jornal, descubro uma nova morte: um escritor querido, uma colega, um antigo colaborador de André, um de nossos camaradas políticos, um amigo com quem perdemos o contato (p.75 e 76)
Já Monólogo, assim como aponta o título, é narrado por fluxo de consciência de uma mulher perturbada pelo divórcio e abandono. Oscilante entre dormir e acordar durante uma madrugada de festa na casa vizinha ela reflete, de forma bastante passional entre amor e ódio, sobre como poderia ter sido uma esposa e mãe melhor já que seus filhos aparentemente estão com o pai. É uma narrativa assustada e descontrolada de uma mulher que perdeu sua única referência de posição feminina como esposa e mãe, uma situação nada peculiar para uma sociedade que durante tanto tempo alegou ser esse o único papel da mulher.
O conto que carrega o nome do livro é o mais longo e também dá continuidade, de forma mais detalhada e próxima, a questão do pseudo protagonismo da mulher no casamento. Narra através da intimidade de um diário, escrito em pouco mais de 3 meses, a vida conjugal de Monique, uma mulher de 44 anos que tenta vivenciar uma relação aberta com o marido, mas se vê em plena decadência psicológica quando este arruma uma amante mais jovem e torna-se dividido entre a “segurança” da companheira de anos e a juventude sensual da amante independente.
Quando se viveu de tal maneira para os outros, é um pouco difícil começar a viver para si. Não cair nas armadilhas da dedicação: sei muito bem que as palavras dar e receber são intercambiáveis e como eu tinha necessidade da necessidade que minhas filhas tinham de mim. Nesse sentido nunca blefei. (p.145)
Monique é a personagem mais concreta das três apresentadas no livro pois a construção de sua personalidade e conceitos próprios se dá através da sua desconstrução como mulher e mãe narrada por si própria no seu diário. O conflito com o seu corpo, o sentido do sexo longe da juventude e a dificuldade de se entender os limites de um relacionamento aberto são cruciais para a desestabilização da autoconfiança da personagem até porque muitas das regras desse jogo – a relação e o sexo entre o casal – foram delimitadas pelo marido que decide a hora que entra ou sai da situação.
Simone e Sartre clicados pelo lituano Antanas SutkusPercebe-se nas vozes das três mulheres de A Mulher Desiludida um tanto da Simone e seus dilemas no entorno do feminismo, principalmente observando o conflito pessoal destas que se encontram no fato de encarar toda uma sociedade de época, baseada em padrões morais de família e reprodução. A divisão clara entre a opção de uma vida profissional ou de mantenedora do lar é de uma força crucial dentro dos contos. Mas também traz muito do que se conhece através de outras obras da autora e biografias da sua relação com Sartre.
Simone de Beauvoir consegue fazer com que A Mulher Desiludida seja tanto suas experiências e relatos que ouviu e viu intimamente das mulheres de sua época. São histórias adornadas pela beleza da literatura. Ou como uma própria personagem define: Eis o privilégio da literatura – disse eu – As figuras se deformam, empalidecem. As palavras, nós as levamos conosco. (p.83)
So this house is empty now There’s nothing I can do To make you want to stay So tell me how Am I supposed to live without you?
This House is Empty Now – de Elvis Costello e Burt Bacharach
O homem de cabelos claros, levemente avermelhados, aparência jovial, mas farto em gestos e expressões carregadas de uma maturidade muito acima da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aquele era Daniel Piza, diretamente dos livros, das impressões do jornal e da tela do computador para o auditório de um dos shoppings da capital piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “finalmente”. Ela começa em 2009 e se desenrola em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou convicta de que não. Como sibilou a poetisa Emily Dickinson:“To see the Summer Sky/ Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam). Dito isso, vamos atender a ordem afetiva dos acontecimentos. Teresina, 18 de março de 2011. Sexta-feira, último dia antes do final de semana, o aclamado suspiro de alívio que tantos trabalhadores, estudantes e até mesmo os adeptos do “ócio refinado” esperam em polvorosa, contando nos dedos. No meio dessa expectativa, às 9 horas da manhã, eu recebi a notícia de que o jornalista Daniel Piza, então editor-executivo e colunista cultural do jornal O Estado de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclusiva promovida pelo Festival Artes de Março, evento que reúne música, literatura e exposições artísticas. Particularmente, aquele seria o momento mais especial da minha vivência jornalística e literária até então. O sujeito que estava vindo participar da programação cultural do festival não era apenas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fizeram passar noites acordada na ânsia de terminá-los para recomeçá-los novamente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ minha grande inspiração nas águas ondulantes do Jornalismo Cultural; o homem que me proporcionou ver uma mudança nítida na forma de informar e partilhar cultura, fazendo com que o conhecimento associado à consciência saísse de um plano da inexistência típica dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há coragem, há iniciativa. E isso não se esquece.
O modelo de inspiração começou a se formar no meu íntimo em março de 2009, dois anos antes e, ironicamente, no mesmo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começado o curso de Jornalismo — um dos meus grandes projetos de vida -, eu estava às voltas com pesquisas bibliográficas e redação de um artigo sobre cultura, jornalismo, análise do discurso e exclusão social. Exatamente nesse período, uma das professoras da faculdade me entregou um livro fino, com uma imagem à moda antiga na capa e com o título de Jornalismo Cultural. Ao folhear distraidamente o livro para começar minhas anotações, não consegui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naquele momento, tive a certeza de que gostaria e deveria saber mais sobre o escritor que retomava tão bem os primórdios do Jornalismo Cultural e esboçava assuntos polêmicos, como a separação entre “alta cultura” e “baixa cultura” de forma lúcida, elegante, interessante. O autor? Um senhor de nome Daniel Luiz de Toledo Piza, nascido em São Paulo no ano de 1970 e formado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Como o destino é terra de ninguém, Daniel deu asas à tendência jornalística que lhe perseguia e enveredou pelos cadernos de cultura do Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, além de atuar como comentarista esportivo.
Coleção da Mara com títulos do autor
À época, para saber mais sobre o jornalista, fiz o que qualquer “indivíduo-máquina” do século XXI faria: dei uma “googleada” no nome Daniel Piza e descobri o blog pessoal do autor e inúmeras outras informações. Eu ainda não sabia, mas, ao executar essa procura, eu tinha encontrado o jornalista que viria a ser a minha maior inspiração desde então. Comecei a procurar livros, textos, artigos, ensaios, fragmentos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jornalismo Cultural” (editora Contexto), “Mistérios da Literatura – Poe, Machado, Conrad e Kafka” (editora Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Penta” (editora Nova Alexandria), “Contemporâneo de Mim – Dez anos da coluna Sinopse” (editora Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil), “Amazônia de Euclides” (editora LeYa) e “Dez Anos que Encolheram o Mundo” (editora LeYa). Apesar da pouca idade e cerca de vinte anos de carreira, Daniel escreveu e publicou dezessete livros, além de assinar traduções das obras de Bernard Shaw, Herman Melville e Henry James, nomes de peso da literatura mundial.
Tweet do jogador Ronaldo sobre a morte de Piza
Além de todas as láureas profissionais, Daniel Piza conseguiu o impossível: provocar minha curiosidade o suficiente para ler e pesquisar sobre futebol, esporte que está longe de alcançar qualquer inclinação da minha parte. Com títulos inusitados, que mais pareciam um anúncio para o Coliseu de Roma, o jornalista descrevia jogos, atletas, ambientes de competições e as tendências do momento. Através dos textos dele, eu soube, por exemplo, quem é Neymar, qual a importância real do Pelé (me desculpem os doutos na vida esportiva, mas devo confessar que não entendia nenhuma reverência ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns técnicos — e torcidas — são tão indigestos. Daniel era corintiano apaixonado e foi responsável por reportagens exclusivas, como o anúncio da aposentadoria do jogador Ronaldo, o Fenômeno, de quem era amigo. O jornalista, escritor e tradutor, filho da Dona Edith e do Sr. Heraldo Piza, e também, como ele mesmo gostava de se descrever, “casado com Renata Piza e pai de Letícia, Maria Clara e Bernardo”, segurava muitos leitores horas a fio na frente do computador, lendo e relendo (a releitura faz parte de um processo de aprendizado), artigos e matérias de conteúdo impecável, bem escrito e persuasivo. Todos os dias, às 7:15h da manhã, eu corria para o computador para me manter informada sobre as atualizações do blog que Daniel mantinha. No trabalho, em alguma folga, o esquema era o mesmo. Lembro de ter apertado F5 ( o que corresponde à operação de atualização) no teclado umas seis vezes em um só dia esperando novas postagens. Quando viajava ou me ausentava, procurava retomar as leituras perdidas e “subornar” com refrigerantes e doces caseiros o jornaleiro da banca que eu frequentava, para que ele guardasse pelo menos algumas edições do Estadão.
Daniel Piza e o fotógrafo Tiago Queiroz, em Sena Madureira (AC)
Até que, coincidentemente, em março de 2011, Daniel Piza aterrissou em solo piauiense pela primeira vez, com conferência marcada para 19h. Lá estava a minha oportunidade única – e por isso mesmo imperdível — de conferir o que o jornalista-referência dos meus textos e artigos tinha a dizer, agora presencialmente. Cheguei ao local com quatro horas de antecedência — sem necessidade, lógico — e fiquei flanando pela praça de alimentação e livraria. Às 18h, já estava na porta, observando o entra e sai de profissionais da imprensa e do colunismo social piauiense, todos querendo uma declaração, imagem ou gravação para seus respectivos veículos. Afinal, ali estava o autor de ensaios interessantes sobre literatura, onde um trabalho de pesquisa e a paixão o levaram a escrever a biografia de Machado de Assis.O fascínio pela união entre literatura e jornalismo o fez sair Amazônia a dentro para percorrer o caminho de Euclides da Cunha, ou ainda ter atrevimento e, acima de tudo, coragem, para dar opinião, apontar o dedo, dizer o que pensa com responsabilidade e conhecimento.
Ambiente de trabalho do Daniel Piza
Daniel Piza conseguia andar pelo futebol sem perna de pau, discorrer sobre política com certa passionalidade, mas com força argumentativa, e falar sobre música, literatura, artes plásticas e arquitetura, adentrando o universo cultural como ninguém. Assim, fica difícil mesmo não querer uma pontinha desse fenômeno, que muitos insistem em chamar de herdeiro de Paulo Francis, mas que agora, depois da maturidade que vem com leituras e reflexões, prefiro mencionar como protagonista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sentando em uma das primeiras filas, à esquerda, e consegui ver Daniel Piza concedendo entrevistas, reconhecendo terreno e falando sobre cultura, cultura e mais cultura. Do meu lugar, observava as expressões e o tom de voz — baixo e explicativo –, imaginando também que tinha me enganado um pouco. Lembro de ter concluído que a televisão e a internet aumentam as pessoas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão corporal transmitia serenidade.
Daniel Piza e Mara Vanessa Torres
No final do evento, impulsionada por um amigo mentalmente estável – já que minha timidez me prendeu solo abaixo -, troquei algumas palavras com Daniel Piza. Meu diálogo foi repleto de palavras balbuciadas, recheadas de constrangimento. Desnecessário. Notando minha timidez, o biógrafo do grande Machado de Assis simplesmente disse: “Não tem problema. Eu também sou tímido”. Desse momento, apenas um registro feito com câmera de celular. Tímido, como todas as boas inspirações. Na manhã do dia 31 de dezembro de 2011, 9 meses depois da vinda de Daniel Piza à minha cidade, recebo um SMS trucidante às 8h da manhã, dizendo que Daniel tinha sido vítima de um AVC (acidente vascular cerebral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vasto conhecimento e de alguém que soube ser o máximo de encanto em uma vida de desencanto. Daniel Luiz de Toledo Piza vive hoje no coração daqueles que o amam, nas feições de seus três filhos, no legado de obras publicadas, inúmeros textos jornalísticos, artigos, opiniões, prefácios e nas homenagens constantemente prestadas. No dia 04 de julho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A instituição de ensino fica situada em um bairro com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital fluminense, atendendo alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental. Mesmo de longe, Daniel continua transformando, criando e observando o mundo através das palavras. Um gênio raro, constelação intelectual de primeira grandeza. Que ele continue fazendo por muitos outros, inclusive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a consciência e despertar o entendimento para um mundo novo.
(…) Não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Daniel Piza
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Uma voz imponente parece segurar com as duas mãos a figura de traços germânicos e tom brasileiro, de olhar firme e colar de contas grossas no pescoço. Era a primeira vez que eu parava para vê-la, ali, do outro lado da tela do computador, falando sobre os livros recém-publicados, sobre os que já passaram e sobre a vida que dá ares de quem está apenas começando. Esse foi o contato inicial que tive com a escritora e tradutora Lya Luft. Aos 74 anos, a santacruzense descendente de alemães arrebata dezenas com a venda de livros, nas sessões de autógrafos e palestras em que é conferencista.
Conheci o trabalho de Lya em 2004 e, ao contrário do que se pode pensar, não foi por meio do seu sucesso editorial Perdas & Ganhos (2003), lançando no ano anterior. À época, por questões de trabalho, eu acompanhava o conteúdo da revista Veja e, vez ou outra, sempre batia os olhos na coluna Ponto de vista, assinada por Lya. Coincidência ou não, os textos que li na coluna abordavam temas cotidianos e sempre faziam referência aos relacionamentos familiares, às dificuldades e desafios, aos sabores e alegrias. Opiniões que soavam como fortes conselhos, na verdade.
Então, oito anos depois dos primeiros contatos, recebi A riqueza do mundo (editora Record, 2011, pág. 272), uma coletânea de ensaios sobre a existência humana com tudo o que ela tem de melhor e pior: amor, tristeza, revolta, indignação, esperança, contestação e percepção. Acima de tudo, a obra forma um conjunto de reflexões da autora sobre os mais variados temas, com aquele aroma de “eu escrevo por um mundo melhor”. Não duvido, certamente. Os ensaios de Lya são decididos, ela não tem medo de se posicionar, de apontar, de emitir juízos de valor. Em uma sociedade em que a mais recente bandeira é fazer apologia ao “ficar em cima do muro”, Lya Luft assume e assina suas ideias, mesmo que isso traga à tona opiniões que flertam com um conservadorismo embrulhado em papel celofane.
Lya LuftDividido em três partes (Da Sociedade, Dos Afetos e Das Coisas Várias), o livro de Lya vai mapeando pontos que se misturam, abordando desde o sentimento de insatisfação com o sistema vigente no mundo, rodeado de corrupções, barbárie, violência e morte, até situações e vivências que circundam as relações familiares, chegando à gangorra do encanto versus desencanto com as infinitas possibilidades tecnológicas e sociais contemporâneas. Na maioria das vezes, fica evidente que estou escutando alguém com sabedoria suficiente para falar sobre um mundo perdido, onde poucos se encontram. Em toda a obra, senti um misto de desabafos e sermões – por mais que, no próprio texto, a autora negue o termo ‘conselhos’, atribuído por quem assim o identifica na sua obra.
Apesar de temas interessantes, me senti pouco à vontade com a quantidade de exemplos para uma mesma ideia, agrupando uma lista extensa de elementos separados por vírgulas em uma única frase. Essa tática se repete em todos os três capítulos, retomando também, de forma cansativa, pensamentos que já foram ditos. Esse tipo de opção lança uma âncora às palavras, deixando o texto exaustivo.
Vale mencionar os três poemas que abrem cada capítulo, com destaque para o bonito “Deuses e Homens”, com belas imagens formadas por palavras e a conjunção da mitologia que nos acompanha desde a nossa ancestralidade, fazendo jus à narrativa de origem, proposta por mitólogos como Mircea Eliade e Joseph Campbell.
Lya Luft tem muito a dizer. Ela não está por aí como mera autora de best seller ou mais um trabalho para o segmento da autoajuda. Não, não é isso. Nesse primeiro contato, notei uma autora com pensamentos, com luz própria, com opiniões — mesmo que algumas delas não façam parte do meu rol de ideias, como a predileção por Monteiro Lobato. Mais um detalhe que faz parte das minhas observações é o ato de escrever sobre as mudanças do mundo de dentro do gabinete. Mas não a condeno. Boa parte dos intelectuais brasileiros, quiçá do mundo, está sentada confortavelmente em suas escrivaninhas de mogno, refletindo sobre as injustiças e soltando os pensamentos no ar para que, talvez, outros os executem. Pode ser que esse não seja o caso, não sei. Mas vale à pena rever o conceito de que apenas com ideias se move o mundo.
O escritor norte-americano David Foster Wallace tirou a própria vida no ano de 2008, aos 46 anos. Deixou três romances (The Broom of System, Infinite Jest* e o póstumo e inacabado The Pale King*), três coletâneas de contos (Girl With Curiuos Hair, Brief Interviews with Hideous Men e Oblivion) e dois livros de não ficção que contém ensaios e reportagens (A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again e Consider The Lobster).
Fã do autor de Infinite Jest, o escritor Daniel Galera, entrou em contato com a agente literária de Wallace, Bonnie Nadell, no mesmo ano da morte de DFW, fazendo uma proposta para organizar e publicar uma coletânea com o melhor da sua não ficção como uma nova chance para os brasileiros de apresentar o autor, já que Breve Entrevistas com Homens Hediondos (lançado no país em 2005 pela Companhia das Letras) não teve uma boa recepção por parte dos leitores e da mídia. Além de ser um livro difícil, quase enciclopédico , não houve uma boa divulgação pela editora.
Galera recebeu o sinal verde de Nadelle e eis que temos Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo (organização e tradução Daniel Galera + Daniel Pellizzari, 312 páginas, Companhia das Letras, R$: 44,50). Para aqueles que não estão familiarizados com os textos de DFW em inglês e teve uma dificuldade para ler os contos de Breves Entrevistas, Ficando Longe é a melhor forma de ter um primeiro contato com a obra “daquele cara que usa bandana”.
A seleção ficou entre três reportagens : Ficando Longe do Fato de Estar Meio que Longe de Tudo, Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer e Pense Na Lagosta. Um ensaio: Alguns Comentários Sobre a Graça de Kafka dos quais Provavelmente se Omitiu. O famoso discurso de paraninfo de 2005: Isto é Água. E uma crônica esportiva: Federer como Experiência Religiosa.
O texto que dá título a coletânea (Ficando Longe etc etc) é um ótimo cartão de visitas para quem não leu nada do DFW. A revista Harper´s Magazine em 1993 deu uma credencial para o falecido autor e disse “Olha, vai lá para aquele diacho de Feira Estadual de Illinois e apenas nos diga o que você viu, ok?”
A Feira Estadual de Illinois acontece anualmente na capital Springfield desde 1853 e tem como tema central a agricultura e demais outros eventos que são capitaneados por grandes corporações e tudo é regulado sob o signo do hedonismo predatório.
Wallace morou nas proximidades de onde ocorre a feira, mas mesmo assim levou uma Ajudante Nativa como guia em um lugar onde você já é recepcionado com uma faixa com os dizeres “A gente quer curtição!”. As conversas entre David e a Ajudante Nativa são hilárias, mas é bom prestar atenção às considerações do autor, onde a feira acaba sendo o ponto de partida para uma reflexão maior sobre a vida moderna e suas contradições.
A questão é: Estamos acostumados com aglomerações, caos e demais perturbações da vida na cidade grande. Logo, quando temos oportunidade, optamos por FICARLONGE. Agora, quando você mora em Illinois, onde a noção de espaço é infinita (você fica semanas sem ver seus vizinhos), não há NADA a não ser grandes pastos, calor brutal, religiosos fanáticos, como é ir para uma Feira em um lugar que você está já está LONGEDETUDO e encarar distrações além da conta? A resposta é: vocês vão ler e saber, oras. Parem de me olhar com essa cara.
Ainda temos no livro o famoso texto do cruzeiro (Uma Coisa Supostamente Divertida) onde o autor vai nos mostrar o quanto pode ser triste uma viagem em alto-mar mesmo sendo paparicado por todos os funcionários do navio. O ensaio sobre Kafka e sua veia cômica é interessante pela preocupação de Wallace – que foi professor universitário – sobre como ensinar um clássico da literatura para alunos mais interessados no entretenimento que só a América pode oferecer a eles.
Curioso como Pense na Lagosta, uma reportagem encomendada pela revista Gourmet, para cobrir a festa da Lagosta do Maine, gerou uma discussão no site da revista por causa do relato sobre as lagostas serem cozinhadas vivas e isso implicar numa consideração do autor sobre o método. E ainda tem o discurso Isto é Água (que virou viral no youtube e mantra de muita gente) e o relato da partida entre Federer e Rafael Nadal que pode parecer pouco , mas é o melhor primeiro contato com o autor de Infinite Jest.
Em algumas entrevistas recentes, Daniel Galera disse que vai fazer uma nova organização de textos de não ficção de David Foster Wallace. E ficamos no aguardo.
*É bom saber que está sendo feita no momento que você lê esse texto vergonhoso, a tradução de Infinite Jest, o mastodonte de 1100 páginas, pelo rapaz que atende pela alcunha de Caetano W. Gallindo. Ele também está traduzindo The Pale King. Você pode acompanhar tudo no Blog da Companhia das Letras.
Assim, ele bebeu até morrer. Que é apenas mais um jeito de viver, ou de lidar com a dor e a inutilidade de saber que tudo não passa de sonho e de um grande, desconcertante e bobo vazio (Allen Ginsberg sobre a morte de Jack Kerouac)
Se o livro Jack Kerouac: King of the Beats (José Olympio, 2012), de Barry Miles tivesse uma trilha sonora seria algo ao som de Charlie Parker, em alguns momentos alternando para a rapidez de Dizzy Gillespie. De fato, Miles, jornalista e figura conhecida dos anos 60, não deixa passar sem trilha sonora a saga do escritor que é até hoje uma referência quando se trata de contracultura e prosa espontânea, embalado ao som do jazz ou bebop. Kerouac desde sempre ambicionou ser grandioso, mas passou mais tempo imerso no efeito do álcool, drogas e problemas com o ego que acabou como uma boa lenda: sem muito prestigio, mesmo com fama internacional, morto sentado em um sofá, vendo TV e bebendo cerveja.
Mesmo que aparentemente decepcionante o fim do pai dos beats, a vida de Jack daria um belo romance que Miles conta de forma direta e sem fôlego, assim como as narrativas do escritor. Vale lembrar que Barry escreveu a biografia dos outros dois nomes que figuraram ao lado de Jack Kerouac: Allen Ginsberg e William Borroughs, entre outros nomes da contracultura das décadas seguintes. Mesmo que o autor tenha sido apenas um adolescente quando ouviu falar de Kerouac pela primeira vez, ele relata tudo como se estivesse vivido cada segundo com o grupo americano, e ainda, se dá ao direito de repreender o biografado sempre que possível. A figura de Jack Kerouac é dessacralizada e transformada na imagem de um eterno garoto perdido com um dom enorme de contar histórias.
Em King of the Beats, Miles faz todo o percurso de Jean-Louis Lebris Kerouac, desde a chegada da família Kerouac — franco-canadenses — para os EUA, na cidade de Lowell (Massachussets) onde Jack dá seus primeiros passos no dom de reunir pessoas, discutir histórias e mais tarde isso envolveria também mulheres, drogas e bebida. Nesse movimento cronológico o autor constrói uma biografia recheada de detalhes, dando enfâse para determinados momentos da vida do pai dos beats . Por exemplo, a formação do grupo que ele dedica um capítulo inteiro, chamado de A Comuna da 115th Street, ou ainda em Cidade do México em que trata a importância desse momento em que Kerouac transita entre várias fases, escrevendo sobre jazz, convivendo com Borroughs e vivendo longe da mãe.
O biógrafo conta que ouviu falar de Jack no fim dos anos 50, época em que finalmente o escritor ganhou o mundo com o lançamento de On The Road. Miles conta que era impossível para um adolescente não sentir o vento no rosto e a liberdade ao ler as páginas da chamada bíblia beat. Depois disso, conta que jamais seria o mesmo, como de fato nunca foi, inclusive relatando os anos 60 que viveu no livro In the Sixties.
Jack Kerouac começou a escrever ainda criança, bastante cedo já escrevia para um jornal local que seu pai trabalhava. Mas o jovem Kerouac queria mais, era cada vez mais atraído pela literatura e teimava em transformar tudo na sua vida em ficção, ninguém escapava da visão minunciosa de Jack. Ele não precisava de muito esforço para romancear a realidade de forma a contar ótimas histórias que sempre pareciam bastante reais. Seu primeiro livro a ser editado, The Town and The City foi o único que manteve o estilo de prosa tradicional, mas altamente influenciado pelo americanoThomas Wolfe,Jack queria mais. Ambicionava a prosa espontânea como veículo das suas histórias, o desejo de fazer uma literatura focada na linguagem coloquial, narrada conforme o ritmo do relato, foi levada até o fim por ele. Kerouac se considerava um mestre nessa técnica e inclusive, escreveu uma espécie de manifesto sobre o assunto.
The Subterraneans foi escrito numa prosa espontânea, com frases longas a ponto de se estenderem por páginas inteiras, sem obedecer a regras estritas de gramática, mas conservando um fio da meada em termos de sentido. Esse é o estilo espontâneo de Kerouac sob seu aspecto mais positivo. Tanto Allen Ginsberg como William Borroughs ficaram impressionados como que ele havia realizado e queriam saber mais sobre seu método. Pediram-lhe que escrevesse um pequeno folheto com instruções sobre como escrever daquela maneira. O resultado foi o ensaio “Essentials of Spontaneous Prose”, escrito inicialmente para seus amigos, porém, mais tarde, divulgado amplamente em antologias na condição de manual de seu conteúdo (p.271)
Mapa desenhado pelo próprio Kerouac.
Assim como Thomas Wolfe influenciou fortemente Kerouac na questão espontânea de escrever, ele deu também a necessidade de descobrir a América que Jack sentia pulsante. Quanto mais loucos ambulantes ele conhecia, mais queria ter histórias para contar. Apesar dele já ter viajado muito, incluindo como ajudante de cozinha na Marinha, nunca tinha adentrado os Estados Unidos e visto de perto seus personagens. Depois da primeira ida para além dos limites de Nova Iorque, Jack jamais parou, levando consigo sempre papel e lápis para anotar cada improviso feito por onde fosse.
É muito interessante perceber a importância das figuras de Allen Ginsberg e William Borroughs, o segundo como o grande guru do restante do grupo Beat. Basta observar em On The Road — inclusive no filme a figura de Old Bull Lee — a forma como todos achavam a loucura dele extremamente louvável. Foi Bill — como era chamado — que apresentou grandes nomes da literatura, falava sobre liberdade, William Reich, Freud e dava conselhos para os garotos que viviam circulando por todos os lados em busca de algo.
Bill emprestou-lhes uma pilha de livros: Cocteau, Blake, Kafka, Joyce e Céline. Discutiu a teoria circular da história, de Vico, e mostrou-lhes um volume de ilustrações dos códices maias. (…) (p.109)
Um dos pontos mais relevantes de King Of The Beats é a forma como a figura de Jack Kerouac vai se desmitificando ao longo do caminho. Se você leu apenas o clássico On The Road e/ou viu a recente adaptação do brasileiro Walter Salles no cinema, pode ir se desarmando sobre a figura do escritor. Apesar dessa obra conhecida ser totalmente baseada nos primeiros impulsos de Jack viajar pelo país, ele levou um bom tempo para ser escrito, pois Kerouac nunca achava suficiente tudo que vivia. Passava muito tempo desequilibrado com mulheres, drogas, a mãe e questões metafísicas que seus livros, por serem espontâneos, carregam toda essa força onde somente a coincidência com a realidade ligava um livro ao outro.
Outro ponto interessante é como Kerouac — e claro, toda a imprensa da época — se preocupava em definir o termo Beat Generation. Barry Miles vai construindo como cada significado dado foi se agregando ao grupo, não deixando que nenhum omitisse os adjetivos que definiam aqueles jovens. O biógrafo vai bem além de fazer um grande relato da vida de Jack Kerouac, ele acaba traçando um panorama completo da Geração Beat, amarrando as situações e as pessoas que eram seduzidas pela vida boêmia, altas doses de literatura e muita filosofia de boteco.
Em 1948, eu disse a John Clelon Holmes “Essa é mesmo uma geração beat”. Ele concordou e, em 1952, publicou um artigo no New York Times intitulado “Esta é uma geração beat”, e atribuiu a mim a versão original. Desse modo, já dera a ela o nome de Geração Beat nos originais de On The Road, escrito em maio de 1951 (Jack Kerouac, preocupado com a reivindicação da paternidade do termo, p.208)
Diria que a Times Square era o centro em torno do qual ficamos vagando — Borroughs, Kerouac e eu — em 1945 e 1948, provavelmente o período mais formativo da mente Spengleriana, em que a linguagem que incluía expressões como “Zap”, “Hip”, “Square”, “Beat” nos era oferecida por Huncke às mesas do café Bickford. Basicamente eu diria que Herbert Hucke foi quem deu origem à noção de beat (…) (p.271)
Muito se fala sobre o movimento hippie, o advento do rock e os questionamentos que vieram com eles na década de 60 como elementos caracterizantes de contracultura. Mas a verdade é que os jovens beats, nas décadas de 40 e 50 — descendentes da Geração Perdida — eram embriões muito poderosos para que depois existisse esse cenário inflamado. Estes jovens vinham de um período caótico de depressão econômica e uma Segunda Guerra traumatizante. Queriam mesmo era se desvencilhar dos códigos sociais e o modo de vida americano que mostrava sérios problemas em se manter em pé. Os relatos de Barry Miles sobre as noites de festas em apartamentos, regadas à alcool, benzadrina e bebop não deixam nada a dever para as loucuras que viriam a ser feitas nas próximas décadas ao som das guitarras elétricas.
Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e Gregory Corso, em 1956
Para muito além do senso comum de que Jack Kerouac e seus pares eram vagabundos ambulantes que sonhavam em ser escritores, King of The Beats relata as aventuras, perspectivas e tentativas variadas de um grupo de jovens encontrar a sua voz e se perder tantas vezes no meio do caminho, deixando para além de obras que reconstroem em poesia, relatos e loucuras, um sentimento de liberdade que é práticamente inevitável de não se sentir ao ler On The Road, Uivo, Almoço Nu e etc. Um passeio há uma época distante que ainda transmite e faz parte do sentimento de não acomodação.
Algumas Curiosidades:
Kerouac demorou mais de 10 anos para conseguir publicar o On The Road e ainda assim com muita edição e mudanças, pois os editores consideravam o texto pornográfico, homossexual e incentivador do uso de drogas. O romance que seria a bíblia dos Beats saiu só no fim da década de 50 e no inicio achava-se que ela pertencia aquela época. Jack, apesar de ser muito lido nesse momento, era incompreendido pois não concordava com o novo modo de viver dos jovens e achava chato explicar como as coisas funcionavam na década anterior.
Quando mandou os originais the On The Road para o editor, ele mandou também o esboço de uma capa que seria, na opinião dele, perfeita para o livro, incluindo uma foto própria do seu agrado. Na verdade ele tinha achado horrível a capa de Town and The City e resolveu sugerir uma melhor para esse livro. Jack Kerouac era bastante perfeccionista (para não dizer chato) em relação à sua obra, mantendo uma relação díficil com os editores.
Jack Kerouac não perdoa e continua resmungão até na sua última entrevista, traduzida aqui, pela Revista Bula.
O manuscrito original de On The Road, tem 36 metros de comprimento e foi escrito num ritmo frenético, regado a benzadrina e cigarros e em apenas três semanas. São rolos de papel, colados com fita adesiva que estarão expostos a partir desse mês até o fim de 2012 na Biblioteca Britânica, em Londres.
Mas as pessoas dizem que o futuro é digital. Claro que é digital. O presente também é digital.
Quando o assunto é a especulação a respeito do futuro do livro, é difícil não ouvir aquela já batida pergunta: “o livro digital vai matar o livro físico?”. Mas por que um deve necessariamente aniquilar o outro? Não seria possível haver uma coexistência? Robert Darnton, historiador e diretor da biblioteca de Harvard, a maior biblioteca universitária do mundo, não só defende a ideia que os dois podem coexistir, mas que são complementares, que um reforça o outro.
Darnton não é só conhecido como um grande historiador norte-americano, mas também como um dos pioneiros na área da história do livro. Um de seus livros, A Questão dos Livros — passado, presente e futuro (The Case for Books, 2010), traduzido por Daniel Pellizzari e lançado pela Companhia da Letras, aborda justamente este questionamento a respeito do futuro dos livros. Nos últimos anos, também está trabalhando no projeto da Bilioteca Pública da América cujo objetivo é disponibilizar gratuitamente livros na internet, uma alternativa livre a iniciativas comerciais como o Google Livros, tendo seu lançamento marcado para abril de 2013.
Abaixo segue um vídeo produzido pela UNIVESPTV, realizado logo após a participação de Robert Darnton no Roda Viva da TV Cultura, onde o mesmo é entrevistado a respeito do futuro dos livros.
Os contos de fada estão em alta. As famosas histórias criadas originalmente pelos Irmãos Grimm, tão aclamadas na infância, têm inspirado bastante autores e diretores de cinema. Só este ano, dois filmes influenciados no conto Branca de Neve e os Sete Anões chegaram às telonas. O primeiro Espelho, Espelho Meu(Mirror, Mirror), estrelado por Lily Collins (filha de Phill Collins) e o mais recente Branca de Neve e o Caçador (Snow White and the Huntsman), com o belo papel desempenhado por Charlize Theron como Rainha Má. Apesar das adaptações feitas aos roteiros e personagens fugirem um pouco dos contos tradicionais, a ideia dos ambientes e a trama principal continuam os mesmos. A série Once Upon a Time, famosa nos Estados Unidos, também reúne os personagens dos contos de fada, e apesar de distorcer um pouco a história original, pois os personagens vivem na cidade e não se lembram quem realmente são, eles ainda passam pelos mesmos problemas e estimam pelos mesmos sonhos, serem felizes e encontrarem o seu verdadeiro amor. É aí que a HQ Fábulas (Devir, 2004), apresenta o seu diferencial. Nela não existe mais o mesmo felizes para sempre.
Em Fábulas Vol. 1 – Lendas no Exílio, com roteiro de Bill Willingham e arte de Lan Medina e Steve Leialoha, após a invasão de um adversário enigmático de seu povo em sua terra natal, os personagens foram exilados e passaram a viver na cidade de Nova York, ao lado dos humanos, ou “mundanos como são comumente chamados. Branca de Neve agora não mais vive para amar e dedicar-se ao seu príncipe, mas sim como uma vice-prefeita intolerante, divorciada e que não pode nem sequer ouvir falar nos sete anões. O Lobo Mau (Bigby Lobo), aquele da Chapeuzinho Vermelho, não é mais governado pela sua barriga e sim pela sua mente. Como xerife da cidade, a sua principal ‘refe’ição é deliciar-se ao desvendar os mistérios que rondam os crimes da cidade das Fábulas. O príncipe encantado, que aliás é o mesmo para todas as princesas, é um narcisista aproveitador, que possui um reinado sem valor no mundo em que vive agora. Cada personagem apresenta uma personalidade única e distorcida dos contos originais, o que contribuiu enormemente para fazer de Fábulas um quadrinho que conta algo antigo, de forma totalmente inovadora.
Um dos pontos fortes da originalidade de Fábulas é a complexidade dos problemas vividos pelos personagens. A dificuldade agora não é mais de a princesa conseguir viver feliz para sempre ao lado de seu príncipe enquanto a rainha má paga pelas suas maldades. O que era trágico vira cômico. Devido aos problemas cotidianos e financeiros de um casal que perdeu sua fortuna, Fera não consegue controlar a maldição que torna a sua aparência ferina, principalmente com o mau humor e reclamações de sua esposa Bela. Ou o Pinóquio que fica revoltado com a fada que o transformou em um menino de verdade, mas que nunca chega à puberdade.
Neste primeiro volume de Fábulas, a história principal se passa no desaparecimento de Rosa Vermelha, irmã de Branca de Neve. O clima de investigação de romance policial da trama, semelhante a quadrinhos como Júlia Kendall: As Aventuras de uma Criminóloga envolve o leitor do início ao fim, com diálogos excelentes ricos em ironia e franqueza. Bill Willingham obtém sucesso ao transformar os clássicos personagens antes inatingíveis, em pessoas quase comuns que apenas procuram viver suas vidas, tentando não revelar sua aparência mágica ao mundo humano. No desenrolar da trama, o autor apresenta assuntos que você dificilmente pensaria em ver entre os mocinhos dos contos de fada, como traição, sexualidade e por aí afora.
As 132 páginas de Fábulas têm ilustrações fantásticas, com teor mais realista e atual, mas que em alguns momentos são intercaladas com desenhos de personagens recontando histórias antigas, com aquele ar dos contos mais clássicos. Ao final da história, também há um conto ilustrado pelo próprio roteirista Bill Willingham chamado Um lobo entre cordeiros, que revela detalhadamente como o lobo obteve sua forma humana.
Publicados pela Panini Comics, os volumes no Brasil encontram-se na 11º edição. Para quem gosta de boas histórias com um quê de fantasia, Fábulas é uma ótima opção.
A incrível tolerância do leitor (que ele não estenderia a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sentido se for entendida como uma espécie de cumplicidade entre ele e o biógrafo numa atividade excitante e proibida: atravessar o corredor na ponta dos pés, parar diante da porta do quarto e espiar pelo buraco da fechadura (p.16)
Sylvia Plath (1932–1963), foi uma escritora americana radicada na Inglaterra nos anos 50 e uma figura feminina bastante forte. Ficou mais conhecida por sua poesia delicada, intimista e em boa parte dela sombria, dotada de resquícios de uma depressão que aparentemente era intrinseca à personalidade da escritora. Todas essas características são apresentadas em A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da Biografia (reimpressão de 2012, Companhia das Letras, Tradução de Sergio Flaksman), uma proposta ousada de análise biográfica da jornalista Janet Malcolm.
Em 1961, Sylvia Plath escreveu A Redoma de Vidro, o único romance de sua carreira e de tom altamente confessional. A personagem Esther é uma Sylvia mais corajosa mas igualmente sensível, que ao sofrer decepções nâo vê outra saída além da morte. Plath deixou todos ao seu redor assustados e temerosos pelas descrições do romance. Já para ela era como um grito do que vinha enfrentando desde a adolescência e a total não aceitação do possível comportamento promiscuo de Hughes. Mesmo tendo crescido numa época de libertação feminina, muito de uma mulher temperamental e obsessiva se escondia na pele da moça loira, simpática da capa do livro. E é essa Plath que Janet constrói, uma mulher comum, forte e também ácida, ciumenta e desagradável com um temperamento decidido, inclusive com a coragem de acabar com a própria vida.
A jornalista se propõe a ir além de uma biografia comum, já que a vida de Sylvia não era novidade para ninguém do meio literário, seja em outras tentativas biográficas ou especulações. Ela questiona o sentido do gênero, qual o papel de quem o escreve e a importância de manter intimidade com o leitor. Malcolm se atem no período em que Plath conhece o poeta Ted Hughes, quando deu inicio à uma das relações mais controversas e polêmicas de pares no meio literário, até o suicidio em 1963.
Janet MalcolmO título de mulher calada é justamente pelo grande número de especulações sobre os fatos e mitos no entorno de Sylvia Plath construídos desde sua morte. O casamento com Hughes, a relação com a mãe e amigos são expostas pela infinidade de cartas trocadas, verdadeiros fósseis de sentimentos da época e possíveis fatores de reconstituição. Essas missivas e os diários, que a poetisa escrevia tanto quanto respirava, são os maiores alimentadores para as biografias já escritas sobre a vida de Plath. A jornalista questiona e dá sua opinião sobre cada uma das publicações feitas ao longo das décadas que seguiram e o faz comparando as obras com o próprio material colhido, uma espécie de investigação instigante, quase em ritmo detetivesco.
Sylvia PlathE como em uma boa história de suspense, a personagem oscilante de Sylvia ganha ares de mocinha quando o assunto é a família Hughes, que durante muito tempo deteve os direitos autorais da escritora. Não bastassem as histórias no entorno da figura de Ted Hughes, sua irmã Olwyn se apresenta como a mulher totalmente indisponível e mal humorada quando se trata de fofocas sobre sua família. A figura dos Hughes contracena com a de Plath, pois depois da morte de Sylvia foram eles os porta-vozes para qualquer trabalho que envolvesse a figura da escritora.
A Mulher Calada é um desafio ao leitor, o coloca como passageiro das viagens, encontros e leituras de cartas que Janet faz. O tom policial que a jornalista trata dos fatos coloca o leitor na dúvida se há algum mocinho ou bandido na história mitológica de Sylvia Plath, sua mãe e a família Hughes. Malcolm brinca com a mais inquietante questão literária que é o limite da ficção e realidade. Usando a seu favor os fatos e provas escritas do que pode ter acontecido, a jornalista monta toda uma teia com linguagem ficcional para que o leitor possa apenas vislumbrar a figura da poeta calada e assim poder decidir em que voz prefere confiar.
Filme
Para quem se interesse por uma faceta de Plath, há uma cinebiografia intitulada de Sylvia(2003), dirigida por Christine Jeffs e interpretada por Gwyneth Paltrow e Daniel Craig como Ted Hughes. O longa mostra claramente a vitimização da escritora perante a vulnerabilidade da relação com o poeta, parecendo que Sylvia era apenas uma mulher com tendências suicidas à beira de seu próprio precipício.
A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao (Record, 2009), do escritor dominicano Junot Díaz, é o livro perfeito para quem gosta de história e de aprender sobre outras culturas. Esse romance aclamado como um dos melhores livros de 2008 rendeu à Díaz o Prêmio Pulitzer de ficção e esteve na lista dos livros mais vendidos do The New York Times por mais de vinte semanas, chegando ao segundo lugar.
Professor de criação literária do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e editor da Boston Review, Díaz já é considerado nos EUA como um dos escritores mais promissores de língua inglesa da atualidade. Sim, Junot Díaz escreve em inglês. O autor caribenho se mudou para o estado americano de Nova Jersey quando tinha apenas seis anos, o mesmo estado que cede cenário à grande parte do seu romance.
No começo de A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, Oscar, o protagonista, é um menino tímido, fã de ficção científica, obeso e virgem – o típico nerd que não sai da frente do vídeo-game. Ele tem dois grandes sonhos: ser o J. R. R. Tolkien de sua geração e ter um grande amor que seja correspondido.
Junot DiazNascido na República Dominicana afetada pelos desavisos do ditador General Rafael Leónidas Trujillo, da mesma forma que o próprio Díaz, Oscar acaba por abandonar Nova Jersey para voltar às terras dominicanas, ainda na ânsia do seu primeiro beijo e das grandes conquistas que ele almeja. Vítima do que ele acredita ser uma maldição de família, conhecida na ilha como fukú, tudo dá errado na vida do já adulto Oscar e na de outros membros da família de León.
Há quem não acredite em fukú e culpe a depressão e tendências suicidas do Oscar, somadas ao azar de ter nascido um menino sensível e nerd na cultura latina de cultuação da figura do macho, pelo seu azar. Mas e de onde surgiu a má sorte dos seus parentes e, na verdade, de todos que cruzam o caminho de Oscar e companhia? O senso de misticismo, superstição, tradição e até mesmo mágica que persegue a família é o que faz deste drama uma obra inesquecível.
Esta epopeia de uma família imigrante conta um pouco da vida dos milhões de latinos que vivem tão longe de suas terras e parentes. Díaz faz extenso uso da língua espanhola (mantido na tradução para o português), gírias e palavrões no seu texto, fazendo possível identificar a classe social e nível de escolaridade dos personagens através da linguagem.
Possivelmente, o título do livro faz uma referência indireta ao conto “A Feliz Vida Breve de Francis Macomber”, em tradução livre, do escritor Hemingway. Essencialmente, o conto fala sobre coragem e covardia, dois dos temas mais recorrentes desta obra de Díaz.
O romance é recheado de notas de rodapé que dão uma aula de história dominicana e de referências culturais que vão de H. P. Lovecraft, Frank Herbert e Matrix a Paulo Coelho, A Noviça Rebelde, Gabriel García Marquez e Oscar Wilde — de onde surgiu o nome do nosso protagonista. Certamente foi necessária muita pesquisa, especialmente para manter os fatos relacionados ao Trujillato mais próximos o possível da realidade, como promete o autor. Eu associo de cara este livro com A Festa do Bode(Alfaguara, 2011), ficção do ganhador do Prêmio Nobel Mario Vargas Llosa que também retrata os últimos anos de poder de Trujillo.
Junot Díaz demorou onze anos para escrever a tumultuada vida breve de Oscar, que, na verdade, não é nem tão breve assim. Como disse Abraham Lincoln, não são os anos da vida que contam, mas a vida em anos.
Alguém poderia escrever um manual sobre como se deve reagir a esse tipo de notícia, se as circunstâncias não forem favoráveis ao casal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Seria bastante útil para homens como eu. (p.183)
Desde as primeiras estórias de amor que se tem noticia o infortúnio de amantes é sempre um mote interessante para escritores. Eu Receberia as Piores Noticias de seus lindos Lábios(Companhia das Letras, 2005), de Marçal Aquino já nasce com um amor desafortunado, cheio de paixão e tragédia contada pela voz de Cauby, quase que um Romeu nas mãos de Aquino.
Cauby é fotógrafo, rodou o mundo e sempre se sentiu incompleto quanto à vida. Num impulso de fotografar lugares inóspitos e fugir da frenética São Paulo, vai para o interior do Pará. Numa região onde as leis são feitas à base do silêncio dominador dos grandes e os sujeitos à estes — pessoas que vislumbram o encontro de ouro nos garimpos — é o pano de fundo da história do fotógrafo com a misteriosa e sensual Lavinia. No calor do norte do Brasil, lugar descrito por Cauby como quente e um tanto morto é propício que tudo se misture, a lei, a religião e o amor, tudo, sem o mínimo de delicadeza.
Nunca prometemos nada um ao outro, e eu sabia que podia acabar de repente. Poema que cessa antes de virar a página. Um Haikai. Na prática, contudo, não me conformava com a ideia. Eu queria mais. (p.67)
Eu Receberia as Piores Noticias de seus lindos Lábios é narrado em tom de alucinação e insistência de um homem apaixonado. Cauby oscila entre o presente, um momento curto de uma noite, onde um outro homem narra as suas decepcões amorosas, e o passado, não muito longe, intenso e cheio de reviravoltas. Tudo sem maiores sinalizações além da lógica que a própria leitura dá. Um ponto-chave e bacana do livro é o fluxo de consciência de Cauby, repleto de sentimentos e organizado conforme os fatos que vão surgindo e remetendo à outras situações. O narrador consegue criar uma própria organização no seu relato sem deixar de ser informal e contaminado pelo que sente, usando a não-linearidade totalmente a seu favor.
Lembrei dos dias que passei sem ela. Dias em que encontrar, por acaso, um fio de seu cabelo preso na fronha do travesseiro bastava para me encher de angústia e dor. Estive a ponto de rastejar. Atire a primeira pedra aquele que não estremeceu ao recuperar, nos lençóis encardidos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mulher ausente. (p.74)
Marçal AquinoO livro é dividido em três partes com títulos bastante pertinentes e tragicômicos quando se trata de Marçal Aquino. Em Amor é Sexualmente Transmíssivel trata da efervescência do amor de Cauby e Lavinia como um encantamento que é basicamente sexual. Seus corpos conversam, trocam e funcionam melhor na cama. O diálogo entre os dois quase só é possível quando conseguem curar o seu caos no sexo. Quando não o fazem é tudo muito estranho e dependente, nem eles sabem ao certo porque estão ali. Para entender um pouco da desenfreada Lavinia, em Carne-Viva é apresentada, numa narrativa bem convencional, o histórico dessa mulher que dá sequência no relato de Cauby em Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo, onde somos levados, já sem fôlego, ao desfecho da relação tempestuosa do casal.
De acordo com o professor Schianberg (op. cit), não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, neste instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. Uma febre, nossa única sequela divina. Schiamberg diz mais: ao se apaixonar, um ¨homem de sangue quente¨ experimenta o desamparo de sentir-se vulnerável. Ele não caçou; foi caçado. (p.15)
Um dos pontos mais interessantes é como Cauby e o personagem Viktor são levados a agir conforme leituras feitas. O fotógrafo é fiel seguidor do fictício filósofo do amor, Benjamin Schianberg, o mesmo que veio a se tornar o idealizador imaginário do experimento de Beto Brant em O amor segundo B. Schianberg. Os trechos de livros do filósofo são inseridos de forma bastante inteligente em Eu Receberia as Piores Noticias de seus lindos Lábios com Cauby trazendo a tona páginas e citações inteiras associadas à sua relação com Lavínia.
Mas Eu Receberia as Piores Noticias de seus lindos Lábios não é somente um livro sobre amantes mal sucedidos. Em vários momentos o casal se torna apenas duas peças para tratar de uma terra sem lei, com exploração ambiental e humana onde quase tudo é decidido por instinto. Essa filosofia do matar ou morrer é que torna os personagens um monte de anti-heróis fadados a um destino determinado caso não andem conforme o programado. Todos são repletos de controvérsias, donos de valores que acreditam ter, como se estivessem nesse lugar aparentemente tão longe para expurgar sua vida.
Fadados ou não à tragédia, Cauby e Lavinia, assim como boa parte dos personagens são tomados pelo sentimento de insistência, seja de valores, sentimentos e o que for. Eu Receberia as Piores Noticias de seus lindos Lábios é um romance para se ler com o fôlego daqueles que gostam de arriscar contra o tédio da vida.
*Eu Receberia as Piores Notícias dos seus lindo Lábios foi adaptado — com título homônimo — para o cinema pelo diretor Beto Brant e entrou em cartaz em abril de 2012.
Em 1971 era publicado o livro Honra Teu Pai (Cia das Letras, 512 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), do jornalista Gay Talese, que passou sete anos fazendo pesquisas sobre a família Bonnano, uma das mais importantes da máfia nos Estados Unidos.
Honra Teu Pai parte do sequestro de Joseph Bonanno em 1964, um dos líderes das Cinco Famílias de Nova York, e a tensão que cai nos ombros de seu filho, Salvatore “Bill” Bonnano, para manter a ordem nos negócios e evitar uma possível guerra entre grupos rivais. Além disso, Talese também volta a Sicília dos anos 1920, na cidade Castellamare, onde nasceu Joseph e a organização que hoje em dia é conhecida como Cosa Nostra, até os dias finais das organizações Bonnano.
Os anos 60 foram anos de transformações tanto culturais quanto comportamentais, mas para o mundo de Bill Bonnano, tudo permanecia igual: as guerras feudais travadas na Sicília apenas se mudaram para os Estados Unidos e ele se considerava, apesar de ter cursado a faculdade agronomia na cidade de Tucson (da qual não concluiu), um mero vendedor de carroças. A figura paterna de Joseph Bonnano era onipresente demais na vida do jovem Bill e este acabou entrando nos negócios do pai sem pestanejar. Honra Teu Pai é um clássico não apenas sobre a contravenção, mas de um filho devotado ao pai a ponto de colocar a própria vida em risco se aventurando em seu mundo.
E não ficando somente nisso: as dificuldades vividas pelas esposas dos gangsters na pele de Rosalie, esposa de Bill, que cria os filhos em paralelo a vida de seu marido contraventor, gerando muitos problemas no casamento, que vão de infidelidade, segurança e a falta de dinheiro. (Talese se aproveitou da boa vendagem do livro e mais o dinheiro obtido na venda dos direitos de filmagem* para criar um fundo para os filhos de Rosalie e Bill pudessem cursar a faculdade quando mais velhos)
Considerado um dos criadores do Jornalismo Literário (título que não faz muita questão de ostentar), Gay Talese trabalhou no jornal The New York Times por 12 anos (experiência que rendeu o livro O Reino e o Poder, também lançado pela Cia das Letras) e também foi colaborador das revistas New Yorker e Esquire. Em entrevista a Paris Review, o jornalista diz que trata a não-ficção com a mesma seriedade que um autor de ficção faria, mas faz questão de deixar claro que tudo que se passa em seus livros aconteceu de verdade. A imersão em suas histórias é total. Na produção de Honra Teu Pai, Talese andava com Bill Bonnano e seus seguranças, sujeito a ser baleado ou sofrer ataques a bomba na Guerra das Bananas. O jornalista passava bastante tempo com seus personagens entrevistando-os, tomando notas sobre tudo que faziam. A obsessão perfeccionista do autor o levou a sua fama merecida.
Questionado sobre a razão de ter escrito um livro sobre assassinos, Talese disse que não via muitas diferenças entre um mafioso e um soldado que mata um ser humano em nome do governo: ambos vivem sob um rígido código de conduta e se protegem uns aos outros.
*Escrito por Lewis John Carlino e dirigido por Paul Wendkos, o filme feito para TV de Honra Teu Pai pode ser visto na integra aqui:
Normalmente a primeira coisa que vem em mente quando falamos em Neil Gaiman é Sandman, ou alguma de suas outras Graphic Novel, mas associar o nome aos seus trabalhos literários ainda não é algo muito comum. Acredito que como muitos, inicialmente nem sequer sabia que ele possuía trabalhos além dos quadrinhos e decidi então iniciar minha leitura nesta nova faceta — para mim — do autor pelo livro Coisas Frágeis (2010, Conrad Editora), com tradução de Michele de Aguiar Vartuli.
É interessante já avisar que se você é daqueles que não gosta de saber certas informações antes de ler/assistir algo, aí vai uma dica importante: leia a introdução só depois que você tiver lido Coisas Frágeis inteiro. Porque nela Neil Gaiman conta a história do motivo e situação em que escreveu cada um dos contos, além de muitas vezes citar no estilo de quem se influenciou. Particularmente prefiro deixar esse tipo de leitura para depois, assim como não gosto de ler críticas antes de ver um filme — as vezes evito até trailers — para assim poder depois comparar as minhas impressões com aquela do autor. Mas se você gostar de saber algumas particularidades antes, é garantido que são informações que ajudam e muito em uma compreensão melhor de cada um dos contos.
Acho que posso afirmar sempre ter suspeitado que o mundo fosse uma farsa barata e tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade. (p. 105)
Coisas Frágeis é composto de nove contos e como não tinha ideia do que esperar e não havendo ordem para seguir, decidi escolher aquele que tinha o título mais interessante e parti para a leitura. Emperrei. Não era algo do tipo que eu queria ler naquele momento. Próximo conto. Depois de mais duas trocas, decidi finalmente parar e ler um até o final. Descobri que o início de alguns deles é meio arrastado mesmo, pois a apresentação dos personagens e situações costumam ser feitas de maneira bem pontuada em um mar de outras informações. Mas logo que você avança mais um pouco na leitura e se ambienta neste mundo, muitas vezes nada convencional, o conto vai ganhando um ótimo ritmo, as vezes até bem frenético, onde a última coisa que você quer fazer é largar o livro de tão ansioso que fica para saber o seu desfecho.
O interessante em todos os contos do Coisas Frágeis é que por mais cotidianas e normais que algumas situações aparentam ser, sempre aparece algum elemento fantástico no meio, mas que não quebra totalmente esta sensação de que aquilo poderia acontecer com qualquer um a qualquer momento. E por que não acontecer com você também? Com certeza seria uma aventura incrível acompanhar o misterioso detetive de Um estudo em esmeralda ou assistir o curioso ritual do O monarca do Vale.
E então seu sonho se encheu de deuses: deuses velhos e esquecidos, mal-amados e abandonados, e novos deuses, coisas assustadas e transitórias, iludidas e confusas. (p. 175)
Mas um dos contos em particular, entitulado de O Pássaro-do-Sol, me cativou de maneira surpreendente! Não só pela excêntrica ideia de um grupo cuja missão é experimentar tudo que é comestível no mundo, mas também pelos elementos mais místicos e simbólicos, característica que acredito ser a mais interessante em Neil Gaiman e que é, de certa forma, onipresente em seu trabalho. Se eu fosse recomendar um conto para alguém começar a ler Coisas Frágeis, com certeza seria este! Mas vou deixar a curiosidade pairando mesmo sobre ele, pois tenho receio de estragar qualquer agradável surpresa que possa vir a quem lê-lo.
As reuniões mensais dos epicurianos vêm acontecendo há mais de 150 anos, desde a época do meu pai, do meu avô e do meu bisavô, e agora temo que seja necessário parar, porque não resta mais nada que nós, ou nossos antecessores no clube, já não tenhamos comido. (p. 135)
O estilo dos contos de Coisas Frágeis muda drasticamente, podendo assim causar uma certa sensação de estranheza se forem lidos muito seguidos. Por isso recomendo que sejam lidos com um certo intervalo de tempo, até para poder digerir todas as informações de cada um. Por isso também, pode ser que alguns não sejam do gosto de todos, mas que em geral o livro possa ser do interesse de vários tipos diferentes de pessoas.
Acredito que a dica mais importante é: esteja totalmente aberto para o inesperado no início de cada conto de Coisas Frágeis. Pois no mínimo será uma aventura por lugares, pessoas e criaturas fascinantes que você nunca esperava, mas talvez gostaria, encontrar. Se ao final de todos eles você ainda sentir um gostinho de quero mais, como aconteceu comigo, foi também lançado pela Conrad a continuação Coisas Frágeis 2. Nos vemos no próximo livro?
Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta. (Prefácio de Estórias Abensonhadas)
Tenho uma grande convicção de que grandes leitores sempre foram grandes ouvintes de histórias orais, das vozes nas ruas, conversas de ônibus e qualquer outro lugar. Ter essa sensível percepção quanto ao mundo me parece bastante pertinente quando você lê livros como se estivesse ouvindo uma série de boas histórias, assim como acontece com Estórias Abensonhadas(Companhia das Letras, 2012) , de Mia Couto.
É praticamente indispensável a apresentação da figura do escritor Moçambicano que comumente é colocado no hall dos grandes escritores fantásticos e inventivos. Assim como Gabriel García Marquez, Guimarães Rosa e Manoel de Barros, Mia Couto recria a realidade ressaltando situações com tons de magia. Nada é banal na vida dos personagens que compõem as suas narrativas e essas figuras, com seu próprio português e modo de se expressar, circulam pelo texto direcionando o leitor.
Estórias Abensonhadas é um conjunto de contos e como sinalizado na introdução, foram escritos num período pós-guerras — em 1994, ano de lançamento do livro, fazia apenas dois anos que a Guerra Civil de Moçambique somada a Guerra da Indepêndencia que se arrastou desde os anos 60, haviam terminado — e o livro é formado por contos onde figuras como o sangue e a guerra são elementos de histórias de recomeço e iluminações, como se os personagens estivessem aprendendo a ver a luz novamente e assim reconstruindo suas rotinas.
Mia Couto escreve com a linguagem dos sonhos, opera a palavra como um trabalhador opera o seu melhor instrumento. E vai além, recria seu uso e funções provando que a língua Portuguesa se transmuta conforme a sua geografia, é viva. E em Estórias Abensonhadas essa língua ganha ares de esperança num terreno onde tudo precisa de reconstrução e mesmo que a morte esteja presente em boa parte dos contos, não há como esconder a esperança de ir adiante.
Nas Águas do Tempo, o conto que abre o livro, o leitor é apresentados à magia do relato e a importância da figura do avô, um símbolo do contador de histórias. O avô permite que o neto veja além de um lado do rio em que ele o leva todos dias, pois os fantasmas da guerra ainda circulam pela região e deve-se respeitá-los. Como se vê em vários outros contos, a presença maciça da mitologia da região representada por figuras e palavras próprias dá ordem do tom de oralidade de Mia Couto.
No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. (p.13)
Em outros textos como em O Cego Estrelinho é a força da palavra que faz recriar imagens nunca vistas. Com uma grande sensibilidade os personagens tem nomes muito sugestivos como é o caso de Estrelinho que, orientado pelas mãos de Gigito é apresentado por um mundo fantástico e pulsante e quando este é mandado à guerra — matadora de esperanças e cores — o cego passa a ser orientado pela irmã, a Infelizmina que não vê nada demais no mundo ali fora.
O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende, mano Gigito? (p.23)
Boa parte dos personagens de Estórias Abensonhadas tem seus pares que contrabalançam a falta de esperança, como a capa da edição brasileira sugere, duas cadeiras frente a frente vendo o sol nascer. Duas pessoas são capazes de iniciar uma guerra como sinaliza A Guerra dos Palhaços onde dois palhaços brincantes, numa acalorada discussão, começam uma guerra entre os espectadores que tentam interpretar a performance. Um texto curto mas imenso de alegorias sobre a estupidez de um conflito.
Com romances premiados e igualmente inventivos, Mia Couto demonstra maior versatilidade ainda em contos ou crônicas porque são relatos curtos e boa parte deles publicado no jornal português Público. O fato de estarem presentes em jornal, além de dar uma grande visibilidade, dialoga muito intimamente com o leitor, mesmo aquele desacostumado com o seu tom fantástico. Creio que um dos fatos cruciais do escritor conseguir criar essa relação de intimidade é a sua profissão de biólogo que permite que ele seja inventivo unindo o ser humano e sua relação com o espaço, ambiente e o lugar.
Estórias Abensonhadas ultrapassa qualquer relação simplória de leitor e obra, é como se olhássemos através de uma janela e conhecessemos esses personagens como nossos vizinhos, amigos e parentes. São histórias fantásticas escritas com a liberdade de um contador de histórias, pois além de Mia não se prender à conveções linguísticas, ele dialoga de muito perto com as nossas próprias raízes, é a linguagem universal dos sonhos.
Muhammad Ali teve em sua carreira 56 vitórias (37 por nocaute) e 5 derrotas apenas. Há 30 anos sofre do Mal de Parkinson. Nos anos 60 foi o maior atleta que o mundo conheceu e a Companhia das Letras relançou em versão de bolso dois livros importantes sobre o pugilista na coleção Jornalismo Literário.
Em 1998, ano em que o boxe já não tinha mais o mesmo prestígio dos anos 60, o jornalista David Remnick, hoje editor da revista New Yorker, lançou o livro O Rei do Mundo(Cia das Letras, tradução de Celso Nogueira, 376 pag.), onde a trajetória de Cassius Clay é contada desde seu início no esporte, suas excentricidades (Ali costumava conceder longas entrevistas falando do quanto era O Melhor (The Greatest) e caçava seus adversários na rua para provoca-los), a conversão ao islamismo (mudando seu nome para Muhammad Ali) e os títulos que o consagraram.
Remnick não apenas foca na vida do lutador como vai narrar também os bastidores da crônica esportiva da época, os movimentos raciais em ascensão (Malcolm X era amigo de Ali, mas depois romperam relações devido às divergências de Malcolm com a Nação do Islã), o submundo do esporte (as ligações estreitas com a máfia retratada na vida de Sonny Liston). Para quem não conhece a história de Ali, comece por O Rei do Mundo.
Personagem no livro de David Remnick, Norman Mailer escreveu A Luta(Cia das Letras, tradução de Claudio Weber Abramo, 232 pag.) em 1975 (dez anos após os eventos narrados em O Rei do Mundo). O livro de Norman Mailer veio ao mundo com o que ele chamava de preparo para, segundo sua própria definição, O Grande Romance americano do qual nunca nos deu, mas chegou muito perto.
Após perder o título de Campeão dos Pesos Pesados ao se recusar a lutar no Vietnã, Ali vai até o Zaire lutar contra o então campeão George Foreman, que se acidenta durante o treino e atrasa em um mês aquela que se tornou uma das lutas mais aclamadas do boxe. Mailer é tão personagem quanto os dois lutadores, participando de uma longa corrida com Ali e indo a uma cartomante junto com o jornalista George Plimpton pra saber quem venceria a disputa. Norman também relata a pobreza que se encontrava o país africano comandado pelo ditador Mobutu Sese Seko e as peripécias de Don King, o empresário fanfarão que organizou o evento.
Apesar dos dois livros terem o mesmo personagem principal, O Rei do Mundo não separa o boxe da política (desde 1950, a maioria dos pesos pesados eram composta por negros), e uma amostra do conflito racial da época é exemplificada na luta entre Floyd Patterson e Sonny Liston, onde o primeiro é o negro liberal, a favor da tolerância racial contra o negro estereotipado: Liston era considerado caso perdido, com passagens pela cadeia e ligação com o crime organizado. Esse terreno é armado par medir o impacto que seria a figura de Cassius Clay no esporte. David também presta um tributo à crônica esportiva da época, relembrando A. J. Liebling, Gay Talese (que escreveu um emocionante perfil de Floyd Patterson), James Baldwin e suas desavenças com Norman Mailer. Todo o trabalho de pesquisa feito por Remnick contribuiu para um ótimo livro tanto sobre boxe como para o que o foram os anos 60.
Já A Luta, é o clássico do jornalismo literário e da imersão. Mailer não faz concessão alguma quanto sua participação nos eventos e o coloca como um personagem tão participativo quanto Ali e Foreman. Ali é um mistério que Mailer vai desvendando ao longo do livro e assim como é também o ditador Mobutu Sese Seko, que para conter uma possível onda de violência contra turistas estrangeiros no dia do evento, mandou reunir mais de mil criminosos no vestiário do estádio onde seria a luta e mandou executar cem deles como um aviso para o que iria acontecer caso desobedecesse as ordens de Mobutu. Segundo Mailer, o chão do estádio ainda continha sangue no dia da luta. Como explicado no posfácio de Claudio Weber, muito das brincadeiras com palavras que Norman faz se perdem na tradução para o português, mas não compromete o texto.
Recomendações:
Ali (2001), cinebiografia do pugilista dirigida por Michael Mann, com Will Smith no papel principal, buscou muitas informações no livro de David Remnick
When We Were Kings(1996), documentário de Leon Gast, mostra como foi à luta entre Ali x Foreman e conta com depoimentos dos citados Norman Mailer e George Plimpton
¨Realmente os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. Esse não foi um erro do escritor. Foi um erro da humanidade¨ (p.30)
Impossível não se sentir tentado pela capa da edição brasileira de Festa no Covil (Companhia das Letras, 2012) — inspiradamente desenhada pela artista Elisa v. Randow — o romance de estreia de Juan Pablo Villalobos. Fazendo uso da simbologia da clássica festa de Dia de Muertos mexicana, a capa é um incrível convite para que você escute um menino solitário contar algumas peripécias.
Tochtli — coelho, na língua asteca — é uma criança comum, ou poderia ser, que como qualquer outra deseja muito um presente. Segundo ele próprio mora numa mansão no México, tem uma vida entediante, possui uma vasta coleção de chapéus e sonha em ter um casal de hipopótamos anões da Libéria. Um desejo nada convencional e que nos diz muito sobre o personagem que narra o romance do mexicano Juan Pablo Villalobos.
Festa no Covil trata de forma muito sensível, ao passo que te faz respirar a cada novo parágrafo, a vida solitária de uma criança em pleno cenário do narcotráfico mexicano. O pai, um renomado profissional do ramo, protege o filho numa espécie de fortaleza e é escondido do resto do mundo que o garoto relata peculiaridades do seu cotidiano, como o número de pessoas que conhece e como é a sua rotina diária, tudo do seu ponto de vista infantil, inteligente e com doses de ironia.
“Parece que o país Libéria é um país nefasto. O México também é um país nefasto. É um país tão nefasto que você não pode conseguir um hipopótamo anão da Libéria. O nome disso na verdade é ser do terceiro mundo.” (p.20)
O narcotráfico, talvez a atividade mais rentável na latinoamérica, é um plano de fundo um tanto quanto fosco em Festa no Covil pois, diferente de uma visão realista, esse mundo se apresenta cheio de metáforas e portas fechadas, vistas pelos olhos de uma criança. A marginalização da sociedade mexicana foge da figura do imigrante e trata mais de perto os atuais problemas do país no combate da máfia das drogas. Na verdade, qualquer país abaixo da fronteira dos Estados Unidos poderia ser o cenário da vida de Tochtli e talvez um dos pontos mais fortes do livro seja essa sensação de conhecimento de causa que temos ao ver uma criança encarando a realidade de forma tão ingênua.
Mas Villallobos não faz um relato comum e muito menos produz uma narcoliteratura fundada em realismos. Ele usa a voz de Tochtli para criar um apego entre o leitor e o personagem e assim criar um enredo que beira à suavidade de histórias infantis. Em muitos momentos nos vemos olhando assustados para o garoto da ficção, todo o discurso do pequeno Tochtli é marcada por suas sensíveis peculiaridades. As vezes ele é mimado, não quer mais brincar e em outros momentos ele demonstra uma maturidade, consumida por frases precoces, que nos leva a questionar a solidão infantil.
Há apenas um flerte com a realidade vista por esses olhos inocentes. Se outrora a literatura fazia uso das metáforas fantásticas para contar um fato real, em Festa no Covil são os olhos infantis que interpretam a vida com inocência e em algumas situações com a frieza da verdade. Tochtli é solitário, tem aulas particulares em casa e convive o tempo todo com adultos, portanto é inevitável que em sua voz saiam definições precoces. Não se sabe ao certo se o garoto é somente mimado, vítima de um pai ausente e mãe que morreu, ou profundamente inspirado pelas pessoas misteriosas que convivem com ele e vivem ensinando algo.
O presidente John Kennedy estava fazendo um passeio num carro sem teto e atiraram na cabeça dele. Ou seja, as guilhotinas são para os reis e os tiros, para os presidentes. (p.47)
Durante toda a narrativa de Festa no Covil fica nítida uma relação estreita do menino com as palavras, incluindo o próprio discurso que ele cuida que seja bem explicativo. O pequeno Tochtli não dorme sem ler o dicionário, ele gosta de nomear os sentimentos e as pessoas e quando se encanta com uma palavra a usa em vários contextos, independente se elas continuam ou não com o mesmo significado.
Juan Pablo Villalobos, até pouco tempo atrás, era um nome desconhecido da literatura latinoamericana. O mexicano, casado com uma brasileira e residente no país, diz que sua visão sobre o México é de quem observa de longe e que nesse ponto de fora consegue ver com muito mais clareza a situação vivida pelo país. Quando questionado se ele espera que no Brasil haja identificação com o pequeno Tochtli, diz que sim mas que no Brasil ele vê mais otimismo, uma das características impressionantes no personagem-garoto de A Festa no Covil.
É impossível sair imune de Tochtli e seus sonhos mimados. Enquanto o México, e consequentemente seu pai, vivem períodos de limbos, o garoto apenas anseia em encontrar o casal de animais que falta para seu zoológico. Pequenos nuances detalham a realidade do personagem que faz de Festa no Covil uma fábula de uma criança — lembrando o significado do seu nome asteca — dentro de um buraco, alheio ao mundo caótico e sem esperança de fora.
Gozado como a gente vai escavando o buraco com uma colherinha de chá – uma concessão mínima, um arredondamento insignificante ou uma levíssima reformulação de determinada emoção para outra que seja um tiquinho mais simpática ou lisonjeira.
Kevin Khatchadourian é autor de uma chacina escolar que levou quase uma dezena de pessoas à morte. Naturalmente ao sabermos dessa informação, são inevitáveis as perguntas que buscam elucidar a razão de tal ato. “O que leva jovens com uma vida aparentemente boa a tomarem tal atitude, tirando a vida de pessoas inocentes?” “Por quê?” é a pergunta que sintetiza muitas vezes nossa perplexidade diante do fato.
Porém, ao longo da leitura de Precisamos falar sobre o Kevin(2007, Intrínseca), de Lionel Shriver, esse ato brutal passa muitas vezes esquecido, nos parece menor, ou pior ainda, soa apenas como o desfecho de uma sucessão de peculiares eventos que pontuam a vida da família Khatchadourian e de seu filho.
A história de Kevin é contada por sua mãe, de simbólico nome Eva. Por meio de cartas ao marido Franklin, Eva remonta sua trajetória como uma moça solteira com um destacado senso crítico aos EUA e com ímpetos de explorar o mundo. Sua vida muda ao conhecer (e se casar com) aquele que muitas vezes seria seu oposto, Franklin, um típico norte-americano enamorado por seu próprio país.
A opção de narrar as lembranças de Eva por meio de epístolas já nos diz muito sobre a história da qual vamos compartilhar em Precisamos falar sobre o Kevin, uma vez que essa escrita confessional parece a mais adequada para que a narradora pontue sua culpa, seu remorso e as concessões indevidas que Eva fez ao marido desde que engravidara. Seu relato é pontuado pelo silêncio e pela resignação.
Eva não queria, de fato, uma criança, mas não pôde “negar” ao marido a vontade de ter um rebento em casa. Mesmo durante a gravidez ela se sentia desconfortável, como se a criança anulasse sua individualidade, sua feminilidade, sua independência e, pior, seu casamento.
Capa da primeira edição
Desde a gestação, Eva trava lutas silenciosas com seu filho, em um clima hostil que perdura por toda narrativa. O clima de Precisamos falar sobre o Kevin nunca é leve, e por vezes a leitura dos acontecimentos choca, magoa, demanda um respiro ao leitor.
Isso porque as memórias de Eva são retomadas com sinceridade e brutalidade extremas. É possível acompanhar nitidamente cada passo errado e dado em falso pela família, e o oneroso peso que eles têm de pagar por isso. Kevin não é sociável, não é uma criança de desenvolvimento normal – os papéis muitas vezes se invertem e é ele quem força seus pais a crescerem, os provoca com sua apatia, questiona-os enquanto pais. A violência, a intransigência e o vazio que partem de Kevin permeiam a história e é impossível ficar indiferente a ela.
Naturalmente é fácil observar os Khatchadourian e tachá-los de culpados ou de negligentes… Agora, a história dessa família, até certo ponto, não se afasta muito da nossa: quantas vezes, em nossas relações, não nos vemos forçados a ceder a contragosto, a tomar partido, a optar por lados? Obviamente a história de Kevin é um relato extremado de uma atmosfera doentia e problemática, mas por isso mesmo Precisamos falar sobre o Kevin é um livro tão marcante – antes de se encerrar sobre o tema dos assassinatos em si, ele se abre ao dialogar com nossas relações familiares, com nossos arranjos sociais e com nossas crenças.
“Eu quero escrever uma história simples, bela e extraordinária”
F. Scott Fitzgerald em correspondência para o seu editor Maxwell Perkins em 1922. Três anos depois publicaria O Grande Gatsby (Penguin-Companhia, tradução de Vanessa Barbara e introdução e notas de Tony Tanner), romance considerado por muitos como um dos melhores do século XX.
Fitzgerald nos concede uma jornada através da obsessão de um homem que se entrega a um mundo de valores duvidosos, movido apenas por um amor do passado. Também é a história de pessoas superficiais que vivem sobre a ilusão da eterna juventude, beleza e riqueza; não se importando com nada a não ser a si mesmos.
Nick Carraway, jovem graduado em New Haven e ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, narra sua mudança para West Egg e acaba se tornando vizinho do misterioso Jay Gatsby que promove festas extravagantes em sua mansão, atraindo a alta sociedade local que especula sobre o seu passado: ninguém conhece Gatsby pessoalmente, mas todos já ouviram alguma suposta história sobre suas ações, entre elas, que já teria cometido assassinato.
O que ninguém sabe é que Gatsby pretende repetir o passado: reencontrar o seu amor perdido na juventude, Daisy, agora casada com o agressivo Tom Buchanan, que mora na parte oposta da baía, em East Egg (onde moram os ricos na ilha fictícia*, West Egg é a parte pobre). Ele alimenta esperanças de que um dia ela possa visitar uma de suas festas e assim reconquistá-la.
Os anos 1920 foram os anos de prosperidade econômica na América do Norte, principalmente nos Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial — período conhecido como Roaring Twenties. Após a recessão, a economia americana entrava em uma nova fase. A indústria automobilística produzia em massa, o cinema e o rádio eram as principais formas de entretenimento, o jazz se tornava bastante popular e a propaganda tinha um papel importante na mídia. Também nesta década foi instituída, em 1923, a Lei Seca (que teve seu fim em 1933) – onde produzir, vender, importar e exportar bebidas alcoólicas era ilegal. O crime organizado – a máfia, liderada por Al Capone – passou lucrar muito com a venda clandestina. Nessa época, o materialismo e o egoísmo se tornaram parte do sonho americano e isso ficou muito bem retratado em O Grande Gatsby.
O livro também trata dos problemas que acarretam quando vivemos do passado e do fim das ilusões da juventude. A tristeza está presente do começo ao fim. A obra continua atual e é válida para aqueles que ainda não tiveram contado com esse clássico americano.
*Acredito que talvez fiquem confusos com minha explicação sobre East e West Egg, mas a tradutora fez uma cartografia da região no blog da Companhia.
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Há seis adaptações do romance para o cinema, mas recomendo a versão de 1974 com Robert Redford (Gatsby) e Mia Farrow (Daisy) no papeis principais. O roteiro é de Francis Ford Coppola, em substituição a Truman Capote, demitido pelo estúdio. A direção ficou por conta de Jack Clayton.
Está em pós-produção a adaptação em 3D (não me pergunte, eu também não sei o motivo) para o cinema de O Grande Gatsby estrelada por Tobey Maguire, na pele de Nick Carraway, Leonardo Di Caprio, como Jay Gatsby, Joel Edgerton interpreta Tom Buchanan e o papel de Daisy ficou para Carey Mulligan; com estreia prevista ainda para este ano. É esperar para ver o resultado.
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E como presente para o bravo e destemido leitor (a) que chegou até aqui, fique com o jogo de Super Nintendo do livro mais famoso de F. Scott Fitzgerald . Não precisa agradecer.
Um dos aspectos mais interessantes na literatura feita pelo escritor gaúcho Antônio Xerxenesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus artigos e textos pela web — é o uso das suas referências, sejam elas literárias, acadêmicas ou inclusive de games. Li Areia nos Dentes(Rocco, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de contos A Página Assombrada por Fantasmas(Rocco, 2011), o que me ajudou a observar mais de perto as tendências metaficcionais e de metaliteratura na obra de Xerxenesky.
O enredo primário de Areia nos Dentes é o mais improvável para um manual de boas maneiras de literatura brasileira: uma disputa de famílias ambientada num velho oeste envolvendo zumbis e questionamentos existenciais. Mas pode ir esquecendo que o livro possa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os longas reflexivos de Sergio Leone que é inclusive o primeiro nome que aparece na lista de agradecimetos finais.
¨Carlitos, qual é o melhor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
¨O que isso tem a ver?¨
¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme prefiro. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, compreende? Porque vou passar isso para o meu relato. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e agora cito o mestre italiano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
(p.34)
Os Marlowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspita Mavrak — a palavra Maverick em um tabuleiro empoeirado. O lugar não tem uma localização certa mas se entende que está num deserto massacrante e arenoso onde a rivalidade entre famílias, e o calor atordoante, são os maiores incômodos na vida dos habitantes. Mas quem nos coloca nesse cenário não é um simples narrador onisciente e sim o próprio homem que está escrevendo a história dos seus antepassados.
O fato do narrador ser o próprio escritor — causando uma sensação de reação em cadeia de autores/narradores — permite que o texto tenha suas próprias marcas estilísticas como letras que travam no computador, onomatopéias que surgem na cabeça do escritor e a liberdade que ele tem de narrar a história em vários formatos. Há o uso de vários recursos desde um capítulo em formato de roteiro, uma perseguição narrada em duas colunas e cartas de confissão de personagens.
Agora tenho tantas outras dúvidas. E se eu estiver reproduzindo minha relação com minha ex-mulher nessa linhas? E se não for só precisão histórica o que eu busco ao caracterizar as mulheres dessa forma? Se for culpa da minha mentalidade, quase tão arcaica quanto a daqueles pistoleiros? Ninguém deveria escrever nada nunca, não há glamour ou prazer, só tormento. (p.66)
Ao passo que Areia nos Dentes trata de um homem que tenta criar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de certa forma, perpetuar os momentos numa forma de preencher as lacunas, ainda consegue se relacionar com personagens de outras ficções, dando voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Marlowe e Ramirez fazem referências nítidas ao próprio Xerxenesky que nunca fez questão de esconder seu apreço pelo escritor Thomas Pynchon, por exemplo.
A aproximação com o escritor real se define mais ainda quando o leitor, consciente de alguns gostos e escolhas do próprio Antonio Xerxenesky, acaba por reconhecê-lo nas construções do enredo. E justamente nesse aspecto surge uma sensação de incômodo, justamente por ter emendado a leitura com A página Assombrada por Fantasmas, ficando a sensação que o autor é dominado pelo seu mundo de leituras e cotidiano, se obrigando a usá-los em sua ficção. Mas esse incômodo, se pensado sob o enredo de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaçado por suas referências, cotidiano e experiências — quase uma ideia Benjaminiana de narrativa — a ponto de colocá-las no papel, assim como acontece com o personagem principal.
Areia nos Dentes é a priori um romance contemporâneo principalmente pelo envolvimento massivo com referências, mas também, pelo tratamento metaficcional dos personagens. E sem análises mais profundas, o romance de estreia de Antônio Xerxenesky é um pastiche, mas acima de tudo, uma pequena amostra da euforia e interesse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, altamente recomendado para fãs de todos os elementos citados.
George Orwell, em um ensaio, disse que escrevia “Por puro egoísmo. O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser lembrado após a morte (…)”. O lema dessa geração da qual faço parte é escrever — apenas e somente — por puro egoísmo. Clima de tragédia.
“Agora, as pessoas que têm a sarna de escrever livros, por Deus, livros sobre suas vidas vazias ainda “verdes”, mesmo quando são capazes de formar uma frase, nunca são interessantes – na vida real ou em papel. Ao menos eu nunca vi. E aí você vê os livros delas entrarem em liquidação por R$ 9,90 e atravancarem todos os sebos da cidade e pensa: pelo menos o público não se deixa enganar tão fácil. Há doidos que escrevem coisas boas sobre suas vidas depois de algum tempo, ou num intervalo entre dois “acessos”, nunca durante a loucura, e chegaram a best-seller. Citemos: Colette. José Mauro de Vasconcellos. Não, não gosto de Bukowski.”
Trecho do texto da escritora carioca Simone Campos para o Le Monde Diplomatique que dá uma ideia da situação. Leiam.
“Deixe o ego fora da sua história. O ego não é a verdade” era o conselho do escritor Hubert Selby Jr. para os iniciantes. Acho que ainda é válido nos dias de hoje. O mundo não é feito a imagem e semelhança dos seus escritores heróis. Vamos todos agora pedir desculpa ao tio Henry Miller e ao tio Charles Bukowski. Que coisa feia vocês andam fazendo em nome deles, meu deus.
Se vai se aventurar a escrever ficção, é bom fazer a lição de casa: conhecer e respeitar os clássicos, discutir ideias, não tomar como ofensa pessoal o fato de uma pessoa não gostar dos autores que você aprecia, saber ouvir críticas sobre o seu texto e o mais importante: ter ideia que não existe O Segredo para escrever.
È um trabalho difícil tanto para um iniciante quanto para um escritor com certa notoriedade. E também não espere reconhecimento de imediato. Se fizer um bom trabalho, as editoras irão entrar em contato com você, mas isso não impede que você possa fazer seu próprio marketing.
Gosto bastante de ler ficção, mas não tenho pretensões literárias ou talento suficiente para escrever um conto sobre uma criança triste ou um monumental romance de quinhentas páginas sobre o drama de um homem que é impedido de se fantasiar de banana. E muito menos sobre minha própria vida. É bom ter limites.
Confesso que sinto inveja de quem tem a habilidade de criar tramas, personagens, subtexto e o que mais se precisa para escrever uma boa história, mas saber que você não leva jeito para coisa também é uma arte. Aceite.
Penso estar evitando com a minha atitude a derrubada de inocentes árvores e prevenindo futuras gerações de ter o desagradável contato com uma obra literária de minha autoria. E também evitando a vergonha que seria de ter o maior encalhe de livros jamais visto na América Latina.