Gozado como a gente vai escavando o buraco com uma colherinha de chá – uma concessão mínima, um arredondamento insignificante ou uma levíssima reformulação de determinada emoção para outra que seja um tiquinho mais simpática ou lisonjeira.
Kevin Khatchadourian é autor de uma chacina escolar que levou quase uma dezena de pessoas à morte. Naturalmente ao sabermos dessa informação, são inevitáveis as perguntas que buscam elucidar a razão de tal ato. “O que leva jovens com uma vida aparentemente boa a tomarem tal atitude, tirando a vida de pessoas inocentes?” “Por quê?” é a pergunta que sintetiza muitas vezes nossa perplexidade diante do fato.
Porém, ao longo da leitura de Precisamos falar sobre o Kevin (2007, Intrínseca), de Lionel Shriver, esse ato brutal passa muitas vezes esquecido, nos parece menor, ou pior ainda, soa apenas como o desfecho de uma sucessão de peculiares eventos que pontuam a vida da família Khatchadourian e de seu filho.
A história de Kevin é contada por sua mãe, de simbólico nome Eva. Por meio de cartas ao marido Franklin, Eva remonta sua trajetória como uma moça solteira com um destacado senso crítico aos EUA e com ímpetos de explorar o mundo. Sua vida muda ao conhecer (e se casar com) aquele que muitas vezes seria seu oposto, Franklin, um típico norte-americano enamorado por seu próprio país.
A opção de narrar as lembranças de Eva por meio de epístolas já nos diz muito sobre a história da qual vamos compartilhar em Precisamos falar sobre o Kevin, uma vez que essa escrita confessional parece a mais adequada para que a narradora pontue sua culpa, seu remorso e as concessões indevidas que Eva fez ao marido desde que engravidara. Seu relato é pontuado pelo silêncio e pela resignação.
Eva não queria, de fato, uma criança, mas não pôde “negar” ao marido a vontade de ter um rebento em casa. Mesmo durante a gravidez ela se sentia desconfortável, como se a criança anulasse sua individualidade, sua feminilidade, sua independência e, pior, seu casamento.
Desde a gestação, Eva trava lutas silenciosas com seu filho, em um clima hostil que perdura por toda narrativa. O clima de Precisamos falar sobre o Kevin nunca é leve, e por vezes a leitura dos acontecimentos choca, magoa, demanda um respiro ao leitor.
Isso porque as memórias de Eva são retomadas com sinceridade e brutalidade extremas. É possível acompanhar nitidamente cada passo errado e dado em falso pela família, e o oneroso peso que eles têm de pagar por isso. Kevin não é sociável, não é uma criança de desenvolvimento normal – os papéis muitas vezes se invertem e é ele quem força seus pais a crescerem, os provoca com sua apatia, questiona-os enquanto pais. A violência, a intransigência e o vazio que partem de Kevin permeiam a história e é impossível ficar indiferente a ela.
Naturalmente é fácil observar os Khatchadourian e tachá-los de culpados ou de negligentes… Agora, a história dessa família, até certo ponto, não se afasta muito da nossa: quantas vezes, em nossas relações, não nos vemos forçados a ceder a contragosto, a tomar partido, a optar por lados? Obviamente a história de Kevin é um relato extremado de uma atmosfera doentia e problemática, mas por isso mesmo Precisamos falar sobre o Kevin é um livro tão marcante – antes de se encerrar sobre o tema dos assassinatos em si, ele se abre ao dialogar com nossas relações familiares, com nossos arranjos sociais e com nossas crenças.
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