Um cortador de grama atravessa em ritmo monocórdio os imensos espaços de um gramado que brilha como móvel novo. Ao fundo, uma canção que nos faz lembrar dias bonitos e frases do tipo “a esperança nunca morre”. Imagens idílicas começam a se misturar até serem sumariamente quebradas pelo barulho do ventilador imerso em fumaça. Deitado em uma cama estreita, um homem fuma e transpira, transpira e fuma. Ao deixar seu santuário pessoal, ele vai de encontro à vida normal de cada dia. Uma vida de trabalho, de tédio, de cansaço, de madames lamentosas e sonhos que se perdem na fumaça do cigarro. No entanto, algumas ideias podem ser o começo de verdadeiras epifanias. É assim que o curta-metragem “Desejo” (2005) lança baforadas no rosto do espectador ao apresentar a história de um homem comum e suas cobiças construídas a partir do olhar fixo para o teto.
No curta, o porteiro Atanásio José (Wagner Moura) faz uma descoberta surpreendente em uma tarde tórrida e estimulante de glândulas sudoríparas. Deitado em sua cama, ele se deu conta da revelação que mudaria os rumos de sua vida, transformando‑o em um indivíduo realizado. Atanásio tinha agora uma obsessão: adentrar o Jockey Club Brasileiro (localizado na Gávea, bairro do Rio de Janeiro), considerado por ele o “santuário dos endinheirados”. Depois de conseguir a façanha, Atanásio saberia o que fazer – mas isso pouca importava. Para chegar ao ponto final da jornada, ele precisaria da ajuda do cunhado, Edmilson André (Lázaro Ramos), responsável pelos cuidados com o gramado do Jockey e considerado por Atanásio como um homem “direito, quieto, honesto e trabalhador – tudo isso até demais”. Preso nessa relação de causa e efeito, o porteiro faz a travessia dos seus dias sem esquecer por um momento da obsessão com o cunhado, o cortador de grama e o Jockey Club.
Com roteiro e direção de Anne Pinheiro Guimarães, “Desejo” remonta aos textos do citado Charles Bukowski e traz à beira da praia nomes como Henry Miller e Nelson Rodrigues, conectando a vida do sujeito ordinário aos devaneios que o fazem resistir, sobreviver e elaborar de um modo menos limitado a sua existência. A narrativa em off é utilizada durante todo o curta e abre espaço para a mistura entre a linguagem fílmica e literária, soprando no ar figuras irônicas, sarcásticas, ácidas e humanas.
Da clássica música “What a Wonderful World” — perpetuada na voz de Louis Armstrong – até o afamado “Melô do Piri Piri”, da popular cantora e casadoura Gretchen, “Desejo” vai além das epifanias do porteiro Atanásio e mostra que o mundo pode ter lá suas maravilhas – se a descobrirmos do nosso jeito.
O silêncio que pesa, arrasta e guarda, transformando a ausência de palavras em uma curva mística, enevoada. Essa descrição é uma das possibilidades de “Décimo Segundo” (2007), trabalho do diretor pernambucano Leonardo Lacca. Premiado em território nacional e internacional, o curta-metragem traz um recurso ainda pouco utilizado na linguagem cinematográfica brasileira: o silêncio.
As cenas avançam em direção a dois protagonistas, um homem e uma mulher, que parecem estar em um palco cercado por cortinas que abrem e fecham simultaneamente. Acompanhamos a chegada do homem e de suas malas a um determinado apartamento, e logo somos surpreendidos por uma referência clara ao filme “Estrada Perdida” (Lost Highway), do cineasta David Lynch. A clássica voz soturna que solta no interfone “Dick Laurent is dead” (Dick Laurent está morto), presente no filme de Lynch, também está no curta, acompanhando até mesmo o número exato de toques na campainha. Essa alusão é percebida como um jogo pessoal entre o casal, já que a mulher também faz uma brincadeira com seu visitante, ao esconder as malas que ele deixa no elevador.
O reencontro do casal, com o abraço do homem em sua anfitriã feito de forma intensa e ao mesmo tempo constrangida, é um dos fragmentos do não-dito, da ponte que vai nos possibilitando entrar na mente dos personagens. Os close-ups, o plano-sequência, a câmera na mão — tremendo calada como a própria história – e o efeito intimista de todo o enredo permitem criar canais de proximidade entre personagem e espectador. Por meio das frases engasgadas, surgem indagações curiosas sobre o casal que se encara de olhos baixos. Como testemunhas onipresentes, passamos a nos perguntar: “quem são essas pessoas?”, “elas foram amantes?”, “como e quando tudo terminou?”, além de notar que a importância do que acontece ali reside, na verdade, no ambiente fora-de-cena.
Décimo Segundo cria constrangimentos, distâncias e expressões abafadas. Vivida pela atriz e diretora teatral Rita Carelli, a anfitriã do curta parece conseguir superar melhor a invasão do passado, personificada pela presença do homem que está ali na sua frente, com o olhar perdido. Na pele do visitante tímido, o ator pernambucano Irandhir Santos ganha força e brilho ao conseguir reproduzir todo o embaraço do reencontro. Premiado por sua atuação no longa “Tatuagem” (2013), Irandhir reforçou o elenco de várias produções nacionais, como as conhecidas “Tropa de Elite 2” (2010) e “O som ao redor” (2012). O ator integrou o elenco da Rede Globo nas minisséries “A Pedra do Reino” (2007) e “Amores Roubados” (2014), e atualmente dá vida ao personagem Zelão, o capataz analfabeto que se apaixonada pela bela e meiga professora na novela “Meu Pedacinho de Chão”.
Assim como as enigmáticas pinturas do francês Alphonse Osbert (1857–1939), dissolvidas no isolamento de luzes e névoas misteriosas, Décimo Segundo vai descortinando a anatomia do silêncio, suas possibilidades e dimensões, e deixa a cargo do expectador a travessia – ou não – para o interior dos personagens, suas revoluções, emoções e sensações.
A cineasta paulista Juliana Rojas tem conquistado destaque no cenário cinematográfico brasileiro com o curta-metragem “O Duplo” (2012), trabalho premiado em Cannes e em diversos festivais nacionais e estrangeiros. Na trama, a professora Silvia (Sabrina Greve) é confrontada com a imagem de seu duplo, uma espécie de clone soturno e negativo, e entra em colapso. A história toma por base o mito europeu conhecido como Doppelgänger, que é considerado um sinal nada auspicioso. Segundo a lenda, quem vê seu duplo enfrenta o risco de maus presságios e morte iminente.
A história do curta foi baseada em um depoimento real sobre a aparição do Doppelgänger, fato registrado no começo do filme e que dá o pontapé inicial para abrir as comportas do universo fantástico e das fábulas de horror, assinatura de Juliana. Assim como em “Lençol Branco” (2004) e “Um Ramo” (2007), trabalhos produzidos em parceria com o diretor Marco Dutra, a cineasta concilia com precisão a trivialidade da vida de mulheres que, abruptamente desestabilizadas, precisam lidar de forma pavorosa com elementos surreais ligados ao macabro e à transformação física ou mental.
As imagens envelhecidas e com tonalidade marrom de “O Duplo” fortalecem a aura silenciosa e sinistra que cerca a escola, espaço principal dos acontecimentos. Ao encarar o seu clone maligno, os olhos da professora Silvia ganham um brilho novo, algo que se move com a ferocidade e carnificina de um tubarão-branco. Há elementos de horror e tensão espalhados do começo ao fim dos vinte e cinco minutos do curta, com destaque para a apocalíptica cena em que a personagem da atriz Gilda Nomacce, presença marcante nas produções de Rojas, estica e puxa o elástico de uma pasta de forma frenética e perturbadora. Nestes poucos segundos que parecem durar uma eternidade, há a certeza absoluta do desfecho trágico. Simplesmente fenomenal!
“O Duplo” faz emergir a qualidade de um trabalho que explora o terror e o fantástico de forma consistente, dando força a um gênero ainda pouco difundido entre as produções nacionais.
Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras?
Não, aqui você não encontra ninguém vestido com roupas super-coloridas, poderes daqueles que soltam fogo pela boca, raios pelos olhos, muito menos lutas coreografadas. O trabalho do quadrinista e articulador cultural — isso, articulador: produtor de ambientes culturais na área das HQs em Teresina, o que falta a muitos criadores hoje em dia — Bernardo Aurélio passa longe das explosões gratuitas dos nossos amados heróis imperialistas, mas com uma influência fundamental no seu processo criativo.
Antes de falar de “Por Dentro do Máscara de Ferro”, vale a pena situar a importância do autor na cena das HQs na cidade. Autor de “Foices e Facões – A Batalha do Jenipapo” (junto com Caio Oliveira, seu irmão e artista dos bons, que participa do livro como desenhista convidado), Bernardo faz parte do Núcleo de Quadrinhos do Piauí, onde organiza (ao lado de uma equipe muito coerente) feiras temáticas em Teresina desde 2001 até então, movimentando o circuito dos quadrinhos independentes por aqui com muita responsabilidade.
O culpo diariamente por me tornar um apaixonado pelos quadrinhos há quase um ano. Depois da indicação de “Batman: Ano Um” não consigo parar de ler HQs. Enfim, vamos voltar ao que interessa!
“Por Dentro do Máscara de Ferro” é um livro que te atrai fisicamente. Grande, vermelho, com uma capa impossível de resistir à leitura, gostoso de segurar e carregar por aí. Um diferencial que gostei foi o cruzamento com outras linguagens, marcados pela inserção do texto em prosa no início da história, seguindo com seus traços em p&b, bem como a preocupação com a paisagem sonora nos momentos mais importantes da saga. Música e HQ transitam no mesmo espaço.
Já no índice, Bernardo lança para o leitor uma trilha indicada, prescrição sonora que desobedeci — quando comecei a ler, veio outro barulho na minha cabeça, já que na minha construção sonora do personagem couberam outros sons, como Ten Years After e alguns momentos de Neil Young — para experimentar outras possibilidades de leitura e exercícios particulares de imaginação.
A cada situação valiosa na trama, Bernardo faz as indicações sonoras aparecerem ao leitor, como podemos visualizar em Acelerando em marcha ré, com a trilha “Foi tudo culpa do amor”, de Odair José ou “As rosas não falam”, de Cartola, e outras sequências musicais articuladas ao enredo. Assim, Bernardo abre espaço para ampliar as sensações do público, tornando seu trabalho mais sonoro-visual-pop-experimental. Um jogo de mixagem que deve ser feito tanto com as músicas sugeridas e as que compõem o universo do leitor, sacudindo as experiências do personagem.
Numa oficina de carros, o jovem mecânico tenta recuperar o motor de um Maverick (entra o som de Alvin Lee e Ten Years After… viu? Não pude evitar). Neste cenário é que a história do Máscara inicia em texto-prosa. Sua mente está dividida entre o fim de um relacionamento e o trabalho que o consome, a rotina, a repetição, a vontade de mudar o percurso: “tenho pensado em tentar coisa nova (…). O problema é esse: não sei o que quero. Só sei que preciso sair dessa oficina vez ou outra (…)”.
Uma inquietação move aquele mecânico, algo estava fora do lugar. A operação de reviver o Maverick foi um fracasso. Fecham-se as portas da oficina. A paisagem fica cada vez mais noturna e úmida. Um leve chuvisco, daqueles leves e demorados, com relâmpagos e trovões ao fundo. Nosso olho está do lado de fora da garagem aparentemente vazia e triste, esperando algo acontecer, pois dá pra ver lá dentro que a luz está acesa.
“A garagem abre. Dois faróis acendem (…). A Kombi ganha a rua. Dentro dele, pela primeira vez, a alma de um aventureiro encontra aquele botão de adrenalina escondido, que injeta batidas fortes no peito”. Eis que explode o Máscara de Ferro.
Caracterizado por uma máscara típica dos soldadores, carregando no seu “cinto de utilidades” um maçarico, umas chaves de boca e roda, martelo, pregos, porcas, um cano e o “antigo 38 do meu velho pai”, o Máscara de Ferro sai em busca de aventuras nas noites de Teresina.
Entre ações frustradas como “super-herói” da noite e explorações das suas habilidades, o Máscara abre para nós uma reflexão que move sua caminhada: “Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras?”
E assim, vamos acompanhando o processo de autodescoberta do Máscara. Após a cômica “carga dramática” que movimenta a performance do nosso herói, ele salta pelo ar e vivencia um conjunto de experiências fundamentais para reorganizar seus sentimentos, mesmo em conflito com seu melhor amigo: “Alguma vez, da altura desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu uma maldita certeza de que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era tu mesmo?”
Caminhando por Teresina (já escura), ele vai em direção aos seus fantasmas, pois a sua máscara é o instrumento que potencializa todas as suas vontades mais secretas, agora compartilhadas entre nós. É aí que fui imaginando os traços autobiográficos em convergência entre Máscara e seu autor, que o toma como elemento para explorar paisagens talvez inabitadas, se não houvesse a armadura construída para tal.
A busca por justiça, ameaçada por um desejo mal compreendido? A angústia e a vontade de invadir os olhos da antiga amada? Uma curiosidade insistente pela felicidade dela? Por que tomar os olhos dos outros? “Você ainda não conseguiu colocar uma pedra por cima disso”? Estaria o Máscara, (como todos nós) buscando uma armadura para resolver seus conflitos mais íntimos? Quantas Kássias precisamos (diariamente) para exorcizar nossos demônios, a fim de reinventar a noção de desejo e todo aquele pó que cobre nossas taras? Aqui entra Marina Lima (na minha trilha sonora), situando o amor dos dois: “Os dois cansados, de tanto amar, empapuçados, pra poder fugir, os dois cansados, de viajar, maravilhados, pra poder fugir, enquanto você se afasta me desenterro…”.
Nada como a água para purificar os conflitos internos, mesmo com Deus cuspindo verdades que a gente não quer ouvir. Às vezes a gente toma o aprendizado como algo doloroso e é dessa forma que vejo o Máscara, um personagem que carrega a vontade de desbravar todos os seus limites e de conhecer esferas que fogem das convenções estabelecidas. Como invadir sem proteção? Como não sentir dor se algumas explorações podem nos custar um preço alto?
Todos os desbravadores da vida, seja por meio lícito ou não, guardam nas mochilas suas máscaras de ferro, pois o corpo não suporta todas as pressões: “somos tão falíveis”!
Sentado na calçada, conversando com uma garota perto da Ponte Metálica, talvez o Máscara tenha encontrado algum estilhaço que possa ser útil para aliviar seus conflitos. “Sabe o que acontece quando se pede algo a Deus? Ele te dá a oportunidade de provar para si mesmo se você merece o que quer… depende mais de você e das suas escolhas do que da vontade dele”.
Os demônios que o cercam são expulsos para que um Amor possa entrar. O Máscara enfrenta todos os seus inimigos interiores, amplia todos os seus horizontes de experiência, para finalmente completar seu objetivo mais importante: se reencontrar a partir do outro.
Bernardo é o Máscara de Ferro? E você? Aonde você esconde a sua? Já explodiu em si mesmo para arrancar as armaduras que o impedem de viver um grande amor? Não seria a nossa máscara um artefato moralista-conservador diante da maravilhosa possibilidade de transitar pelo Inferno e por vários corpos oferecidos por Dino Buzzati? A diferença entre Máscara e Orfi é que aquele não usa violão para lutar contra seus maus espíritos, mas convergem no mesmo “inventário de ‘baixezas’ e de ‘nobrezas’, aquelas que se abrigam no coração de todos” (TOSCANI, Cláudio).
Orfi sofre o luto de não capturar Eura e o Máscara vive feliz, jogando fora sua armadura para poder (finalmente) olhar sem medo para a mulher que ama, encerrando uma saga interior, pois “poucas coisas no mundo devem ser como estar no fundo da rede com quem você quer”. A vida segue.
Esse amor sem razão.
Sem valor amanhã.
Mesmo assim arderá eternamente.
Marina Lima
O cinema brasileiro independente colhe seus frutos. Vivemos uma fase marcada pelas novas possibilidades de produção audiovisual em virtude da democratização das mídias e suporte de expressão. Hoje é possível colocar em prática ideias, até então amarradas pela limitação dos recursos técnicos, que estava disponível nas mãos de poucos. Agora podemos criar e fazer cinema no Brasil em perspectiva plural, experimentando a linguagem dentro de nossas viabilidades e desejos de criação, com nossos celulares, máquinas fotográficas e demais dispositivos móveis.
Novos documentaristas surgem nessa safra criativa, produzindo sentido à História – seja na política, nos debates sociais, religião, etc — no caso de Jucélio Matos, às histórias das sensibilidades contemporâneas. Ao iniciar seus estudos sobre cinema em 2004, Jucélio se revelou para a cena audiovisual pernambucana em pouco tempo, com o filme Doc de Amor (2010).
Realizado para um trabalho de conclusão de curso da Faculdade Maurício de Nassau, o filme já desbravou quatro festivais (Festival Brasileiro de Cinema Universitário (RJ), Curta Cabo Frio (RJ), Festival do Filme etnográfico do Recife (PE) e Arraial Cine Fest (BA)) e vem ganhando espaço por onde passa, ao explorar um tema desconcertante e misterioso para muitos de nós: o Amor.
O filme apresenta um mosaico de histórias: expondo a vida de várias pessoas comuns vivendo seu dia-dia, sejam nos postos de gasolina, nos bares, nas cozinhas, nas casas, nas aventuras ou nos lanches habituais de fim de tarde. Em cada coração que transita no filme, podemos encontrar diferentes reinados, que decidem as formas de vivenciar suas noções de Amor.
O filme problematiza o ato de amar, visto nos depoimentos como ruptura das convenções, que antes prendiam nossos corpos numa estrutura rígida, sustentado pelo senso masculinizante da sociedade, limitando as possibilidades de experimentação dos sentidos.
Jucélio sabe captar os aromas das perspectivas, das vozes que prendem o espectador nas narrativas mais íntimas, na busca de produzir vários sabores que se aproximam do paladar de Rodolfo, o cozinheiro real, especialista em transformar o Amor num conjunto de porções regadas à salada verde (leveza), com um toque de arroz marroquino (consistência), mesclado com proteína — entre o salmão e o camarão (energia e tranqüilidade), fechando com um café e chocolate, para não perder o ânimo.
Nem sempre o Amor é visto como trânsito de liberdade. Ele também é controle e disciplina, como aquele pote de jujubas que você não pode devorá-lo de imediato, mas só pode comer um, sob o monopólio de uma tutora, que impede o desejo de se lambuzar no açúcar. É o que podemos ver no reinado de Paula, que percebe o Amor numa lógica de jogo e controle – muitas vezes de forma tirânica – para gerar “funcionalidade” e medida na relação. Para ela, “amar é castigo. Nada sobre controle, tudo em perigo. Adorável penitência, chicote amigo. Se chegar a falência, morro contigo”.
Entre comida e controle, temos expectativa e morte, entre risos e timidez, temos a representação cênica que faz do Amor um grande espetáculo, demarcando as fronteiras entre o real e o desejo. Até que ponto nos é permitido quebrar mais de um pote e saciar nossa fome?
Cada vida aberta nos ensina que o Amor não é visto apenas por um ângulo, mas vividos em múltiplos olhares não-contemplativos, que fazem do sentimento um campo de experiências e troca de sensibilidades, mesmo que o outro não fale sua língua, ou que não consiga viver no mesmo teto. Os amores enquanto processo, fluxo e instrumento de redefinição constante de cada indivíduo.
O filme não expõe o Amor enquanto efetivação, resultado final, previsibilidade, o que Jucélio procura é transitar pelas experiências que se colocam diante de nós, para compartilhar um conjunto de visões em processo de construção, muitas vezes não-ditas no universo senso-comum, que é vigiada pela estupidez da virilidade machista, restrita ao moralismo triunfante do homem sifilizador e da mulher recatada, enrijecida pela tradição do corpo que se fecha para os possíveis e impossíveis.
Paralelo às narrativas, Jucélio explora no filme o uso de legendas para contar outra história, exigindo do espectador atenção redobrada no cruzamento entre o texto e as imagens. Era uma vez, um príncipe que “só gostava de príncipes”, com receio de perder todas as suas riquezas, o príncipe “decide escrever um discurso a todo seu reinado”, um pronunciamento que fala do Amor.
Para receber inspiração, o príncipe vai à busca de conviver com pessoas que compartilhavam das mesmas emoções. As legendas que narram esta história não aparecem numa ordem definida, mas durante todo o filme, dispersas entre as vozes que revelam seus amores ao espectador. As legendas também são utilizadas em algumas cenas para acompanhar simultaneamente os depoimentos.
Quando entrevista Rodolfo, Jucélio experimenta trocar a voz do depoente pelas legendas, onde a entrevista é textualizada, a partir de um corte na cena, para inverter a relação que o espectador mantinha até então com o filme. Nesse momento, quem assiste é também leitor, ao acompanhar a conversa entre os dois, a partir do texto disponível, silenciando as vozes, ao destacar imagens de Rodolfo no trabalho, cozinhando, despreocupado com a presença da câmera, que fixa o olhar em seus movimentos quase automáticos na cozinha.
Já no final do filme, Jucélio retoma as legendas para concluir que o príncipe, ao escrever seu discurso, “aprontou-se elegantemente… e desistiu. Não havia sentido em falatório algum. Porque apesar de amor rimar tanto com dor, ele resolveu acreditar no tempo presente. Independente em qual lado do espelho estivesse. E a realidade e ficção viraram assim, um só amor”.
Seria o príncipe do Doc de Amor uma extensão de Jucélio? Ou nossas extensões mais íntimas, postas em questão? Para adentrar neste universo que se desfaz com uma névoa branca, que se perde entre as folhas e o céu, é preciso se permitir, ativar todos os poros que ainda nos restam para consumir e ser consumido pelos amores que compartilhamos num espaço aberto-fechado-aberto, num exercício constante de reinvenção dos conceitos que cercam o Amor, a fim de torná-lo livre, para degustações afetivas, em quem sabe, efetivas…
O sol reaparece, os corpos são obrigados a se separar… é hora de ir embora para casa… mas, como diz Jorge Mautner*, “minhas lágrimas se acabaram, mas não a vontade de chorar… só o amor pode matar o medo”.
Esse é o Doc de Amor, meu Doc de Amor, que Jucélio Matos fez para o mundo. Por uma história das sensibilidades.
* Jorge Mautner em Ressureições do álbum Revirão (Warner Music), de 2007
“Poesia é núcleo, é matriz. Quando eu faço poesia, fico chapado.” Carpinejar
“Escrever é poesia, é dar corda para a inquietação.” Martins
Um bate-papo sobre poesia talvez não seja um evento que chame muito a atenção das pessoas, principalmente porque a discussão em torno dela seja ainda muito acadêmica e repleta de referências canônes da literatura, gerando uma conversa monótona, com linguagem muito específica, e assuntos muito distantes do cotidiano. Não foi o caso do Café Literário, na Bienal do Livro Paraná 2010, com Fabrício Carpinejar e Alberto Martins, mediado por Luiz Rebinski Junior, em cima do tema “Poesia, quem é você?”.
De uma forma bem descontraída e acalorada, os dois poetas literalmente discutiam as suas opiniões sobre o que é ser poeta e a poesia na atualidade. Uma discussão muito pertinente no campo literário hoje, já que o fazer poético vem se metamorfoseando desde do Modernismo e os Concretistas a partir da década de 70.
A identidade do poeta foi o ponto central em que a discussão girou. Para Carpinejar, os poetas vivem uma crise de identidade e têm muito problema em se assumir, não só perante as editoras e o mercado, mas na sua própria vida pessoal também. Diz que se essa dificuldade fosse ultrapassada, isto iria ajudá-los na criação do seu próprio trabalho, tornando-se mais autênticos. Já Martins acredita que não é o escritor que tem o direito de se intitular poeta, até que porque ele não considera isso como um ofício e sim um momento que acontece durante o trabalho, mas cabe ao leitor da obra decidir isto. Este momento da discussão deixou claro a dualidade (necessária) das pontos de vista dos dois poetas, Martins optando pelas visões do ¨outro¨ que o escritor vive e Carpinejar visando o cotidiano na autoria da poesia, insistindo em um autor mais próximo de quem o lê. Este debate foi o que mais se destacou, principalmente pela indignação de Carpinejar com o fato que Martins não conseguia responder a pergunta “Tu é poeta ou não é?” de maneira binária (sim ou não).
A diferença de gerações entre os dois é muito clara, principalmente pela diferença das visões sobre as novas tecnologias. Carpinejar publica também seus poemas em blog e possui uma visão totalmente adepta ao mundo virtual. Como seria se Drummond usasse o twitter e fosse tão exposto como são as pessoas hoje? Porque é que um poeta precisa ter um livro publicado para ser considerado poeta? Não pode apenas fazê-lo no mundo virtual? Por que uma biblioteca precisa ser silenciosa, sem música e sem poder levar comida? Esses foram alguns questionamentos levantados por ele. Alías, a sua visão de biblioteca moderna é bem diferente do que ouvimos normalmente falar por aí. Martins tem uma visão claramente mais literata e voltada ao ato da leitura como experiência e não somente prática social. Ele questiona a efemeridade dos poetas virtuais e ao se contrapor às opiniões do gaúcho, diz que a poesia não pode ser generalizada, pois é um ato singular.
O bate-papo se desenvolveu de uma forma excelente, pois mesmo que os dois autores sejam contemporâneos entre si, o contraste de opiniões é necessário para que uma lacuna permaneça aberta quanto a caracterização do que é poesia, hoje. A discussão não girou em torno somente desse assunto, pois quando se trata de literatura outros dois componentes sempre andam juntos: leitor e autor, e nesse quesito ambos abrem novas discussões muito pertinentes.
No final do bate-papo, Fabrício Carpinejar e Alberto Martins receberam várias perguntas vindas dos participantes, que levaram á desdobramentos bem interessantes, tornando o encontro bem dinâmico, descontraído e informal, satisfazendo a proposta principal do Café Literário, na Bienal do Livro Paraná 2010.
O interrogAção gravou em áudio todo esse bate-papo e se você quiser pode escutar aqui pelo site, logo abaixo, ou baixar para o sue computador e ouvir onde preferir.
Ouça a palestra completa: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o download)
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O sorteio já foi realizado e os vencedores serão comunicados por email.
Para marcar o lançamento de B1 – Tenório em Pequim, que estreia dia 3 de setembro, o interrogAção, juntamente com a equipe de produção do filme, estarão sorteando 5 pares de convites para o filme. Promoção válida para todo Brasil.
A promoção vai até dia 12 de Setembro e os vencedores serão notificados por email.
Sinopse: O que faz um campeão? Perseverança, sacrifício e disciplina somam-se na jornada de Tenório, judoca profissional classificado como B1 – cego total. Isolamento e solidão são alguns dos desafios enfrentados por este brasileiro espetacular em um projeto inédito, a conquista de uma quarta medalha de ouro em Paraolimpíadas. Filmado no Brasil, França e China, o documentário “B1 – Tenório em Pequim” mergulha na sensibilidade de um personagem explosivo e tocante, e narra por um ponto de vista que nada tem de deficiente a preparação para este grande combate, numa emocionante viagem cinematográfica.
O sorteio já foi realizado e os vencedores serão comunicados por email.
No próximo dia 06 de agosto, estréia nos cinemas o filme 400 contra 1, de Caco Souza, que tenta resgatar o histórico de William da Silva Lima, um dos principais protagonistas da formação da organização criminosa Comando Vermelho, no Rio de Janeiro.
Em Senhora Liberdade, curta-metragem também de Caco Souza, a personalidade de William é tratada de forma mais intíma e traz o interessante engajamento político e intelectual do preso que está há em regime fechado há mais de 30 anos e hoje busca a liberdade condicional.
No formato de documentário, Senhora Liberdade é de concepções simples porém rico em conteúdo, nos fazendo compreender as raízes da atual violência urbana brasileira e entender como, ainda hoje, ecoam situações que surgiram nos momentos de repressão nos piores anos da ditadura militar.
Nem sempre os adultos estão preparados para responder as perguntas, muitas vezes óbvias, das crianças. Em Minhocas (2006), de Paolo Conti, Junior é uma pequena minhoca que até hoje não teve respostas concretas sobre seus questionamentos e um dia, durante o almoço, resolve finalmente fazer a pergunta derradeira, afinal, por que é proibido cavar para cima?
A animação, recomendada para todas as idades, traz o questionamento sobre o por quê das coisas, sendo uma espécie de filosofia animada. Abordando principalmente a dificuldade dos adultos em explicar sobre o que fazem, quando são perguntados pelos pequenos, pois eles mesmos mal entendem o real motivo.
Minhocas, foi animado em stop-motion e ganhou, entre outros prêmios, o Juri Infantil do AnimaMundi 2006. Esta em fase de desenvolvimento um longa baseado no curta, utilizando a mesma técnica de animação, feito inteiramente por brasileiros. Veja também o site da produção Minhocas — O Filme.
“A única imagem verdadeira é de um fóbico diante da sua fobia”, frase sussurrada e dita inúmeras vezes, por Jean Claude Bernardet, durante FilmeFobia (FilmeFobia, Brasil, 2008), o último trabalho de Kiko Goifman.
Goifman em parceria com uma modesta equipe (que inclui o teórico/crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet), se aventurou num filme que trata da fobia, apresentado‑a, em certos momentos, de forma sádica e exibicionista. Nele são exibidos alguns medos, aparentemente banais, de borboletas, celulares, botões, penetração sexual, entre outros que se tornaram características comuns ao homem moderno.
Foram utilizados atores, fóbicos reais e atores fóbicos como personagens. O tom documental tem como proposta que eles participem de experimentos, genialmente elaborados pela fotógrafa, diretora de arte e atriz Cris Bierrenbach. Na maioria das tomadas o estúdio se mostra como um pequeno laboratório de horrores. São usados instrumentos de ¨tortura¨ como cadeiras com amarras, vendas e parafernálias, que instigam os participantes. Os experimentos são comandados pelo próprio Bernardet que, faz de si mesmo, um objeto ficcional. Inclusive, em uma das situações, é chamado de sádico por um dos participantes.
Bernardet dialoga com os fóbicos sobre a origem de suas fobias e expõe também as suas (como o sangue, por ser soropositivo) e seus problemas de visão. Kiko Goifman também participa com seu medo (real) de sangue e brinca com cartas de poker, com fotos de partes de um corpo cortadas. Este é exatamente um dos pontos interessantes do FilmeFobia. A equipe age como um grupo de produção real em busca de fobias discutindo também, em algumas cenas, se estão no caminho certo e até que ponto devem chegar.
O filme se destaca, no cinema brasileiro, justamente por não se encaixar numa categoria especifica, oscilando entre a ficção e o documental. Por vezes, se mostra também como uma videoarte, valorizando o ponto de vista do espectador/observador. Afinal, ver as cenas dos fóbicos atuando é inquietante, portando, artístico. A estética do FilmeFobia por si só é angustiante, escura e cheia de brinquedos/experimentos adaptados. Os instrumentos lembram muito as técnicas Ludovico utilizadas no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (e no livro de Anthony Burgess). Ainda, somente duas câmeras foram usadas, uma na mão de Kiko Goifman e outra na cadeira de rodas com Jean-Claude Bernardet.
Kiko Goifman já é um veterano em cinema documentário, e exatamente por isso a discussão sobre qual é a característica limítrofe entre o ficcional e o documentário fica explícita. Afinal, em que momento a realidade se torna tão ficcional a ponto de ser passível de tornar película? FilmeFobia é um ótimo filme para se discutir tabus e praticar um pouco de Relativismo em relação ao “outro”.
Leia o diário de filmagem do filme neste blog, muito legal!