
A Idade Média, período obtuso da história da humanidade, contabiliza um número grande de mulheres condenadas à fogueira ou enforcamento por acusações como bruxaria, possessão demoníaca e pactos diabólicos. Sob a égide do “Não deixarás viver a feiticeira” (Êxodo – Capítulo 22, Versículo 17), a Santa Inquisição, “tribunal eclesiástico criado com a finalidade de investigar e punir crimes contra a fé católica”, promoveu execuções em massa numa ensandecida “caça às bruxas”. Com o apoio do livro “Malleus Maleficarum” (algo como ‘Martelo das Bruxas’), publicado em meados de 1486, os inquisidores difundiam entre a população a existência de supostos “métodos” para identificar, acusar e condenar formalmente uma bruxa.
O manual religioso aponta a arte de manipular e controlar a sexualidade como uma das principais fontes de poder das feiticeiras, associando o ato sexual ao pacto carnal entre mulher e demônio. O sexo é apontado aqui como propulsor da heresia e blasfêmia, digno de repulsa e dominação. Com base nesse argumento, muitas mulheres foram consideradas ‘servas de Satã’ e levadas à morte sem qualquer remorso por parte dos algozes, ao apresentarem um quadro de instabilidade emocional e alteração nos sintomas físicos, entre eles a perturbação dos sentidos, paralisia, dores agudas, contrações, convulsões, dentre outros distúrbios.

Somente no final do século XIX, com os estudos iniciados pelo neurologista e cientista francês Jean-Martin Charcot, professor de nomes que viraram referência, como Sigmund Freud e William James, o termo histeria foi ganhando forma para definir o tipo de neurose responsável por determinados distúrbios sensoriais e motores, responsáveis por fazerem com que as mulheres afetadas perdessem o autocontrole e entrassem em colapso.
Jean-Martin Charcot ficou conhecido pelos experimentos e estudos que realizava na famosa clínica psiquiátrica francesa Pitié-Salpêtrière, onde recebia – e fotografava — pacientes em diversos estados de instabilidade mental. Uma dessas pacientes era Louise Augustine Gleizes, uma jovem diagnosticada com histeria.

Esse caso clínico-amoroso foi abordado pela diretora francesa Alice Winocour no drama “Augustine” (2012), adaptação efervescente que narra a história de desejo, ambição acadêmica, investigação científica e ardor sexual entre o médico francês e a jovem paciente. No filme, Jean-Martin Charcot (interpretado por Vincent Lindon), respeitado e temido nas dependências do Hospital Salpêtrière, está às voltas com a recepção de sua pesquisa científica pelo meio acadêmico e pela elite social, tendo em vista que a boa repercussão concederia ao médico aumento de investimentos e maior visibilidade. Em dado momento, chega ao hospital a jovem Augustine, de 19 anos, vitimada por uma forte crise convulsiva e com o lado esquerdo paralisado, fato que ocorreu em meio às atividades domésticas realizadas pela moça durante um jantar, na casa na qual era empregada.
Augustine, interpretada pela cantora pop-folk francesa Stéphanie Sokolinski, conhecida como Soko, torna-se logo um caso emblemático para Charcot, desestabilizando a mente racional do médico ao exalar ingenuidade infantil com luxúria oculta. O filme todo é envolvido por uma atmosfera nebulosa, uma espécie de terror silencioso que Augustine traz nas feições, nitidamente góticas. Após a paralisia do lado esquerdo, ocasionada depois que Augustine vê caranguejos vivos em ebulição na panela, a jovem paciente é invadida por uma nova onda de terror quando presencia convulsões de uma galinha decapitada, trazendo à tona seus ataques eróticos. Dessa vez, o olho direito da jovem é abruptamente fechado.

Estudar os sintomas apresentados por Augustine renova a euforia de Charcot, alimentando a crença pessoal de que ele está bem próximo de uma descoberta crucial no campo da histeria, ciência que se propôs a investigar. Ao lado das investigações internas realizadas pelo médico no corpo de Augustine, há também demonstrações públicas para acadêmicos e pesquisadores da área, onde sessões de hipnose e colapsos públicos dão efetividade à teoria levantada pelo neurologista.
Augustine é submetida a uma verdadeira profusão de testes e observações. A obsessão de Jean-Martin Charcot em fotografar suas pacientes também é apresentada no filme, com uma sequência de registros e análises de Augustine até mesmo nos momentos de sono profundo. A aproximação gera um amor furtivo, uma tensão libidinosa entre médico e paciente, ao embaralhar sucessivamente os sentimentos que Augustine nutre pelo médico. Pensador moderno e formador de plateias, Charcot não consegue lidar de maneira isenta com o tufão de emoções que começam a invadi-lo, percepção que não escapa aos olhos de sua mulher, Constance, vivida pela atriz Chiara Mastroianni. No meio dessa confusão, nasce a transferência. Os limites entre terapeuta e paciente são rompidos, tal qual uma rachadura em um dique. Cedo ou tarde, a correnteza transborda.

A dinâmica perigosa na relação entre o médico e a paciente em crise também é explorada nos longas Um Método Perigoso (2012), dirigido por David Cronenberg, enredo que traz o caso de Carl Jung e Sabina Spielrein, com pitadas de Freud, e o fantástico A Pele que Habito (2011), de Pedro Almodóvar, onde um conceituado cirurgião plástico cria uma nova identidade física para um desafeto e acaba se apaixonando pela própria criação.
O trabalho de Alice Winocour em Augustine não apresenta a massacrante carga da parábola moralizante, criando vilão ou vítima. Pelo contrário: a originalidade da diretora está na aposta em um romance que viola tabus, desconcerta a ética e rompe com os canônicos protocolos de tratamento, para o bem ou para o mal.

A interpretação de Soko realça e encanta, exercendo enorme fascínio pelo modo como a atriz se entrega, seja pelo corpo ou pelas expressões significativas do olhar. Como uma borboleta, a personagem experimenta uma metamorfose ao sair do estado de pavor, manipulação e medo, para a cumplicidade e decisão que marcam os momentos finais do filme.
Adentrar as diferentes esferas do inconsciente, aceitando o risco de suas voltas – muitas vezes sem retorno -, fazem de Augustine um filme maior do que a disputa entre doença/cura e médico/paciente; a sutileza está nas transformações que nascem no rio profundo e inabitado, exatamente onde mora o desejo.
Para conhecer um pouco mais sobre as mulheres que se transformaram em uma espécie de “musas médicas”, recomendo a leitura do livro Medical Muses: Hysteria in Nineteenth-Century Paris, de Asti Hustvedt.
Trailer:
httpv://www.youtube.com/watch?v=FXepn0vkR_8