Tag: literatura brasileira contemporânea

  • Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera | Livros

    Daniel Galera em seu quar­to romance, Bar­ba Ensopa­da de Sangue (Com­pan­hia das Letras, 2012), é pro­tag­on­i­za­do por um “homem forte e silen­cioso” como diria Tony Sopra­no. Assim como em Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, temos uma nar­ra­ti­va onde a vio­lên­cia surge no cotid­i­ano con­fortáv­el da classe média. 

    Após o suicí­dio do pai, o pro­tag­o­nista decide viv­er um ano em Garopa­ba para se dedicar como instru­tor em uma acad­e­mia da região e se iso­lar de sua cidade natal, Por­to Ale­gre. Ao seu lado, temos a cachor­ra Beta, que per­ten­cia ao seu pai e que ele se recu­sou a sacrificar. 

    Diag­nos­ti­ca­do com uma doença neu­rológ­i­ca rara que o impos­si­bili­ta de guardar na memória o próprio ros­to e o das pes­soas com quem vem a se rela­cionar, o pro­tag­o­nista leva con­si­go um álbum de retratos para lem­brar-se do ros­to dos ami­gos, da família e inclu­sive da sua própria face. 

    Eis um dos mis­térios do romance: Na con­ver­sa que teve com seu pai quan­do esse o infor­ma que ira tirar a própria vida, fica saben­do que seu avô, Gaudério, acabou se isolan­do na cidade de Garopa­ba nos anos 1960 e dev­i­do ao seu com­por­ta­men­to vio­len­to foi assas­si­na­do a facadas por vários nativos e seu cor­po nun­ca foi encon­tra­do. Desco­brir o que real­mente acon­te­ceu com ele é uma de suas metas, mes­mo que isso pos­sa colo­car sua vida em risco. 

    Daniel Galera
    Daniel Galera atingiu um nív­el téc­ni­co muito alto nesse romance real­ista e ambi­cioso, com per­son­agens fortes e caris­máti­cos (vide Bonobo, o bud­ista nada orto­doxo), descrições ric­as em detal­h­es, e parece jus­ti­ficar a razão do seu nome estar em voga ape­nas com a qual­i­dade da sua nar­ra­ti­va. O livro tem muitas semel­hanças entre os romances Mãos de Cav­a­lo e Até o Dia que o Cão Mor­reu, mas em nen­hum momen­to o autor está se autoplagiando. 

    Ninguém escol­he nada e mes­mo assim a respon­s­abil­i­dade é nos­sa” diz o per­son­agem prin­ci­pal em uma dis­cussão com a ex-namora­da. O cen­tro do romance tra­ta a questão de livre-arbítrio e deter­min­is­mo, tópi­co estu­da­do por David Fos­ter Wal­lace, uma grande influên­cia do escritor brasileiro e do qual traduz­iu recen­te­mente a coletânea Fican­do Longe do Fato de Já Estar Longe de Tudo.

    Des­de o princí­pio do tra­bal­ho, eu que­ria que o romance explo­rasse de maneira implíci­ta a questão filosó­fi­ca da respon­s­abil­i­dade humana em uma visão de mun­do deter­min­ista, segun­do a qual tudo que acon­tece é ape­nas resul­ta­do inevitáv­el do que acon­te­ceu logo antes. É um assun­to que me inter­es­sa.” Diz o autor em uma entre­vista para o site do Jor­nal do Comércio

    O úni­co pon­to neg­a­ti­vo está no tra­bal­ho grá­fi­co do livro. De longe, uma das piores capas jamais feitas. Fora isso, a tra­ma de mais de 400 pági­nas não é em nen­hum momen­to cansati­va e uma das críti­cas feitas ao livro, da qual ele pode­ria ser menor e menos ver­bor­rági­co, é infundado.

    Bar­ba Ensopa­da de Sangue é um óti­mo romance, mas ain­da é cedo para diz­er qual é sua importân­cia para a lit­er­atu­ra brasileira. Ao mes­mo tem­po vemos uma pro­dução literária nacional dar pas­sos cada vez maiores (antolo­gias, feiras literárias, críti­cos aten­to ao que acon­tece no cenário nacional, etc.), ain­da não sabe­mos no que isso vai dar, pro bem ou pro mal. Ficamos no aguardo.

  • Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Livro: Areia nos Dentes — Antônio Xerxenesky

    Um dos aspec­tos mais inter­es­santes na lit­er­atu­ra fei­ta pelo escritor gaú­cho Antônio Xerx­e­nesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus arti­gos e tex­tos pela web — é o uso das suas refer­ên­cias, sejam elas literárias, acadêmi­cas ou inclu­sive de games. Li Areia nos Dentes (Roc­co, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de con­tos A Pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas (Roc­co, 2011), o que me aju­dou a obser­var mais de per­to as tendên­cias metafic­cionais e de met­al­it­er­atu­ra na obra de Xerx­e­nesky.

    O enre­do primário de Areia nos Dentes é o mais improváv­el para um man­u­al de boas maneiras de lit­er­atu­ra brasileira: uma dis­pu­ta de famílias ambi­en­ta­da num vel­ho oeste envol­ven­do zumbis e ques­tion­a­men­tos exis­ten­ci­ais. Mas pode ir esque­cen­do que o livro pos­sa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os lon­gas reflex­ivos de Ser­gio Leone que é inclu­sive o primeiro nome que aparece na lista de agradecime­tos finais.

    ¨Car­l­i­tos, qual é o mel­hor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
    ¨O que isso tem a ver?¨
    ¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme pre­firo. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, com­preende? Porque vou pas­sar isso para o meu rela­to. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e ago­ra cito o mestre ital­iano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
    (p.34)

    Os Mar­lowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspi­ta Mavrak — a palavra Mav­er­ick em um tab­uleiro empoeira­do. O lugar não tem uma local­iza­ção cer­ta mas se entende que está num deser­to mas­sacrante e arenoso onde a rival­i­dade entre famílias, e o calor ator­doante, são os maiores incô­mo­d­os na vida dos habi­tantes. Mas quem nos colo­ca nesse cenário não é um sim­ples nar­rador oni­sciente e sim o próprio homem que está escreven­do a história dos seus antepassados.

    O fato do nar­rador ser o próprio escritor — cau­san­do uma sen­sação de reação em cadeia de autores/narradores — per­mite que o tex­to ten­ha suas próprias mar­cas estilís­ti­cas como letras que travam no com­puta­dor, ono­matopéias que surgem na cabeça do escritor e a liber­dade que ele tem de nar­rar a história em vários for­matos. Há o uso de vários recur­sos des­de um capí­tu­lo em for­ma­to de roteiro, uma perseguição nar­ra­da em duas col­u­nas e car­tas de con­fis­são de personagens.

    Ago­ra ten­ho tan­tas out­ras dúvi­das. E se eu estiv­er repro­duzin­do min­ha relação com min­ha ex-mul­her nes­sa lin­has? E se não for só pre­cisão históri­ca o que eu bus­co ao car­ac­teri­zar as mul­heres dessa for­ma? Se for cul­pa da min­ha men­tal­i­dade, quase tão arcaica quan­to a daque­les pis­toleiros? Ninguém dev­e­ria escr­ev­er nada nun­ca, não há glam­our ou praz­er, só tor­men­to. (p.66)

    Ao pas­so que Areia nos Dentes tra­ta de um homem que ten­ta cri­ar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de cer­ta for­ma, per­pet­u­ar os momen­tos numa for­ma de preencher as lacu­nas, ain­da con­segue se rela­cionar com per­son­agens de out­ras ficções, dan­do voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Mar­lowe e Ramirez fazem refer­ên­cias níti­das ao próprio Xerx­e­nesky que nun­ca fez questão de escon­der seu apreço pelo escritor Thomas Pyn­chon, por exemplo.

    A aprox­i­mação com o escritor real se define mais ain­da quan­do o leitor, con­sciente de alguns gos­tos e escol­has do próprio Anto­nio Xerx­e­nesky, aca­ba por recon­hecê-lo nas con­struções do enre­do. E jus­ta­mente nesse aspec­to surge uma sen­sação de incô­mo­do, jus­ta­mente por ter emen­da­do a leitu­ra com A pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas, fican­do a sen­sação que o autor é dom­i­na­do pelo seu mun­do de leituras e cotid­i­ano, se obri­g­an­do a usá-los em sua ficção. Mas esse incô­mo­do, se pen­sa­do sob o enre­do de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaça­do por suas refer­ên­cias, cotid­i­ano e exper­iên­cias — quase uma ideia Ben­jamini­ana de nar­ra­ti­va — a pon­to de colocá-las no papel, assim como acon­tece com o per­son­agem principal.

    Areia nos Dentes é a pri­ori um romance con­tem­porâ­neo prin­ci­pal­mente pelo envolvi­men­to mas­si­vo com refer­ên­cias, mas tam­bém, pelo trata­men­to metafic­cional dos per­son­agens. E sem anális­es mais pro­fun­das, o romance de estreia de Antônio Xerx­e­nesky é um pas­tiche, mas aci­ma de tudo, uma peque­na amostra da eufo­ria e inter­esse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, alta­mente recomen­da­do para fãs de todos os ele­men­tos citados.

    *Recomen­do bas­tante os tex­tos de Antônio Xerx­e­nesky no blog do Insti­tu­to Mor­eira Salles.

    ** Você pode adquirir esse livro por um preço bem bacana na Livraria de Babel.

  • Café Literário: O Livro além do Livro

    Café Literário: O Livro além do Livro

    Se per­gun­tassem há um sécu­lo atrás qual era o pro­je­to de deter­mi­na­do escritor, a respos­ta viria fácil: Escr­ev­er bons livros e pub­licá-los pos­te­ri­or­mente, toda uma roti­na sem­pre foi lev­a­da em con­ta na vida de um escritor. Os temas pode­ri­am ser vari­a­dos, mas o pro­je­to em si se resumiria há um lon­go tem­po de ded­i­cação para a escri­ta, estu­do e bus­cas por edi­tores. Mas e no mun­do chama­do de pós-mod­er­no, como um escritor se com­por­ta diante de tan­ta infor­mação e hib­ridis­mo? Ele con­segue se man­ter ingên­uo no seu pos­to de somente escr­ev­er de for­ma passiva?

    Partin­do de um títu­lo que daria assun­to para bem mais de uma hora no Café Literário da Bien­al do Livro Rio 2011, a mesa O Livro além do Livro teve a ambi­ciosa tare­fa de jun­tar três escritores con­tem­porâ­neos da lit­er­atu­ra brasileira, medi­a­dos pela jor­nal­ista Cris­tiane Cos­ta. O trio for­ma­do para mesa foram os gaú­chos Paulo Scott, Antônio Xerx­e­nesky e a car­i­o­ca Simone Cam­pos. Os três, mes­mo sendo de ger­ações um pouco difer­entes, Paulo é o mais vel­ho, pos­suem suas ativi­dades literárias lig­adas de algu­ma for­ma com a cul­tura digital.

    Entre eles, Simone Cam­pos é a que tem o pro­je­to atu­al mais híbri­do, envol­ven­do a lit­er­atu­ra e games. Des­de a sua estreia como escrito­ra, aos 17 anos, ela apre­sen­ta uso de vocab­ulário da web mescla­dos com diál­o­gos cur­tos e nar­ra­ti­vas que beiram ao exper­i­men­tal. No últi­mo ano, Simone vem tra­bal­han­do no livro-jogo Owned (que já foi anun­ci­a­do o lança­men­to no dia 20 de out­ubro) que tem uma pro­pos­ta próx­i­ma do clás­si­co O Jogo de Amare­lin­ha, de Julio Cortázar, onde o obje­ti­vo é deixar o enre­do ser desen­volvi­do pelas decisões do próprio leitor. O livro vai ser disponív­el online e uma ver­são com extras no impres­so. Simone diz que sen­tia neces­si­dade de cri­ar algo que superasse o número de pos­si­bil­i­dades de se ler uma obra e para tal apren­deu bases de lin­guagem com­puta­cional e lóg­i­ca. Na cer­ta, Owned ain­da vai ren­der muito assun­to, prin­ci­pal­mente por unir duas lin­gua­gens que aparente­mente são pouco associáveis.

    Para Xerx­e­nesky os jogos não estão tão dis­tantes das nar­ra­ti­vas fic­cionais literárias como se pen­sa. Em seu primeiro livro, o romance Areia nos Dentes (Roc­co, 2010), ele deixa clara sua influên­cia ao jogo clás­si­co Alone In the Dark. Expli­ca que um jogo pre­cisa de cabeças tão pen­santes como se acred­i­ta a lit­er­atu­ra ter e que o fato de alguém gostar muito de deter­mi­na­do tipo de nar­ra­ti­va, como em muitas vezes os com­plex­os roteiros de games, não sig­nifique que ela ten­ha algum grau difer­ente de int­elec­tu­al­i­dade. Os escritor gaú­cho ain­da relem­bra que jogos são usa­dos há muito tem­po na lit­er­atu­ra, sem deixar de citar os exper­i­men­tal­is­mos literários, do já cita­do, Julio Cortázar.

    Um dos pon­tos mais bacanas de uma dis­cussão sobre as influên­cias da cul­tura dig­i­tal no desen­volver do tra­bal­ho de um escritor é que os tópi­cos ultra­pas­sam a mera dis­cussão mer­cadológ­i­ca e apoc­alíp­ti­ca sobre os ebooks e tablets. Ess­es autores do pre­sente estão mais pre­ocu­pa­dos em for­mas inter­es­santes de colo­carem em práti­ca suas reações às infor­mações que chegam o tem­po todo. Em tom diver­tido, Paulo Scott fala que na ver­dade ele é um frustra­do em mui­ta coisa que gostaria de ter feito e por isso aca­ba envol­ven­do tudo isso no seu pro­je­to literário.

    Paulo Scott está numa empen­ha­da função de virar DJ Literário remixan­do poe­sias de out­ros poet­as com as suas, ou ain­da, colo­can­do out­ros escritores para lerem, decla­marem e etc trans­for­man­do tudo em um tra­bal­ho mul­ti­midiáti­co. Mes­mo afir­man­do de que o mun­do da ficção literária vai muito além do game e do vir­tu­al, ele tam­bém diz que os jovens escritores, se referindo aos seus com­pan­heiros de mesa, tem uma bagagem de con­hec­i­men­to con­struí­do na leitu­ra e no bom aproveita­men­to das infor­mações. Antônio Xerx­e­nesky foi práti­co em diz­er que um escritor hoje não tem mui­ta opção a não ser faz­er parte das redes soci­ais e ser uma figu­ra ati­va na inter­net. Ele já havia escrito sobre isso num tex­to muito enfáti­co e inter­es­sante sobre os escritores con­tem­porâ­neos brasileiros, no site do IMS — Insti­tu­to Mor­eira Salles.

    Xerx­e­nesky tem uma veia forte na metaficção e met­al­it­er­atu­ra, em seu últi­mo livro — reunião de con­tos — inti­t­u­la­do de A Pági­na Assom­bra­da por Fan­tas­mas (Roc­co, 2011), são níti­dos os vul­tos das refer­ên­cias literárias e eru­di­tas que con­stroem o escritor. Quan­do ques­tion­a­do se sua lit­er­atu­ra é uma espé­cie de fan­fic­tion, ele expli­ca que o seu tex­to é mais uma for­ma de lidar com as refer­ên­cias e não dis­torce-las ou ree­screve-las. No mais, há out­ra for­ma de um autor se livrar de seus próprios demônios a não ser lidan­do com eles?

    O escritor gaú­cho ain­da cita sua influên­cia por escritores como Thomas Pyn­chon, Rober­to Bolaño e Enrique Vilas-Matas, que são con­heci­dos por terem seus próprios pro­je­tos volta­dos ao caos da vida con­tem­porânea. Ou seja, facil­mente o leitor encon­trar fig­uras pop e mitológ­i­cas passe­an­do pelos tex­tos dess­es autores em situ­ações mirabolantes e inusi­tadas. De fato, não há como fugir das próprias refer­ên­cias, onde os próprios escritores são per­son­agens de seus mun­dos paralelos.

    Quan­do se fala em cul­tura dig­i­tal parece que é prati­ca­mente impos­sív­el de se empre­gar jun­to as palavras livro, lit­er­atu­ra, autores, edi­toras e mais o leque de sinôn­i­mos que acom­pan­ham essas out­ras. É muito mais fácil usar ter­mos mais apoc­alíp­ti­cos e de infor­mações de que você não tem chance nen­hu­ma a não ser se ren­der aos ter­abytes de tec­nolo­gia que deix­am sua vida mais inter­es­sante. E é fug­in­do das dis­cussões de mer­ca­do que podemos obser­var mais de per­to como os escritores, estes pre­ocu­pa­dos com a cri­ação e como boa parte deles lidam de for­ma har­môni­ca com a web e o dig­i­tal. As pos­si­bil­i­dades são infini­tas e provavel­mente logo ter­e­mos novas visões e ramos para a lit­er­atu­ra, sem ela, de for­ma nen­hu­ma, deixar de ter suas funções pri­mor­diais, seja para quem escreve ou para quem lê.

    O inter­ro­gAção gravou em áudio todo esse bate-papo e se você quis­er pode escu­tar aqui pelo site, logo abaixo, ou baixar para o seu com­puta­dor e ouvir onde preferir.

    Ouça a palestra com­ple­ta: (clique no link abaixo para ouvir ou faça o down­load)

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  • Crítica: Natimorto

    Crítica: Natimorto

    Lourenço Mutarel­li é um dos escritores mais inter­es­santes e híbri­dos da lit­er­atu­ra atu­al e Nati­mor­to (Brasil, 2011), dirigi­do por Paulo Mach­line, é a adap­tação do segun­do livro deste escritor con­heci­do pela den­si­dade e iro­nia de suas obras.

    Um homem e uma mul­her numa pro­pos­ta de tentarem viv­er suas vidas, lit­eral­mente, num quar­to de hotel. Os per­son­agens se resumem no homem (Lourenço Mutarel­li), uma espé­cie de pro­du­tor musi­cal e a mul­her (Simone Spo­ladore), uma can­to­ra de ópera. Enquan­to o cotid­i­ano da relação vai se con­stru­in­do, eles pas­sam a dis­cu­tir, entre cig­a­r­ros e cafés, seus futur­os através da asso­ci­ação de embal­a­gens de cig­a­r­ro e car­tas do Tarô.

    O enre­do de Nati­mor­to se foca neste con­vívio claus­trofóbi­co, exem­pli­f­i­can­do de for­ma muito inter­es­sante o sufo­ca­men­to das relações. Os dois per­son­agens podem sair o momen­to que quis­erem da situ­ação pro­pos­ta, mas não há a ini­cia­ti­va. Ele por não acred­i­tar na vida fora do quar­to e sen­tir que sua vida se resume em lamen­to, café e cig­a­r­ros e ela por ter a neces­si­dade de alguém que ali­mente a sua per­spec­ti­va de existên­cia, ou seja, uma relação extrema­mente simbiótica.

    Antes de ser con­heci­do pela sur­preen­dente obra e bem suce­di­da adap­tação de O cheiro do Ralo, Lourenço Mutarel­li era famoso pelos seus quadrin­hos obscuros e reple­tos de um humor negro incon­fundív­el. Além dis­so, o paulista tam­bém é con­heci­do na lit­er­atu­ra con­tem­porânea pelas idioss­in­cra­cias e por con­stru­ir diál­o­gos inteligentes pau­ta­dos por movi­men­tos de câmeras-nar­ra­ti­vas que vem e vão durante as cenas literárias.

    O fato de Mutarel­li usar recur­sos de roteiro para escr­ev­er seus romances não sig­nifi­ca que as adap­tações de seus tra­bal­hos, para o cin­e­ma, devam sem­pre ser trans­postas de for­ma lit­er­al. Há detal­h­es na nar­ra­ti­va literária que surtem efeito aos olhos do leitor mas, quan­do pas­sadas para uma nar­ra­ti­va de imagem, elas aparentam serem mais lon­gas ou fazem pouco sen­ti­do num deter­mi­na­do plano. Na adap­tação de Nati­mor­to, ocor­reu isso algu­mas vezes, como, por exem­p­lo, nos lon­gos diál­o­gos reple­tos de reflexões, numa espé­cie de bate e vol­ta con­si­go mes­mo, do per­son­agem sociofóbi­co inter­pre­ta­do pelo próprio Mutarel­li. Os lon­gos diál­o­gos no lon­ga se tor­nam, em algum momen­tos, um pouco cansativos por ocu­parem difer­entes tem­pos do que ocorre na nar­ra­ti­va literária. No livro, os dis­cur­sos se desen­volvem em muitas pági­nas, enquan­to no filme eles são suprim­i­dos a uma cena do roteiro.

    Por out­ro lado, out­ras situ­ações se encaixaram per­feita­mente, como em muitos momen­tos onde os planos seguem à risca as descrições do livro em que o nar­rador apon­ta a câmera para a boca de deter­mi­na­do per­son­agem, como se o leitor — ago­ra espec­ta­dor — final­mente pudesse enten­der deter­mi­na­da situ­ação descri­ta no livro.

    Em Nati­mor­to há pou­cas cenas exter­nas, o que aca­ba fazen­do a atenção se voltar para as inter­pre­tações, como a do próprio escritor que se mostra inse­guro no íni­cio do filme mas que, com o pas­sar do tem­po, se tor­na uma pre­mis­sa psi­cológ­i­ca do per­son­agem. A aparên­cia miú­da e ner­vosa de Mutarel­li con­funde, de for­ma muito inter­es­sante, o cri­ador e a criatu­ra. Já Spo­ladore faz um papel que acred­i­to com­bi­nar com ela, pos­suin­do uma voz forte e um olhar irôni­co cabív­el à personagem.

    Nati­mor­to é uma exper­iên­cia inter­es­sante para o cin­e­ma nacional que vem apo­s­tan­do em tra­bal­ho menos hiper­re­al­is­tas e con­fig­u­ran­do asso­ci­ações com a lit­er­atu­ra fei­ta no pre­sente. Mes­mo para os desacos­tu­ma­dos a um cin­e­ma com mais diál­o­gos e exper­i­men­tal, o filme vale o ingresso.

    Trail­er:

    httpv://www.youtube.com/watch?v=PfoHx-kHUhQ

  • Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Livro: O menino que se trancou na geladeira — Fernando Bonassi

    Fer­nan­do Bonas­si aparente­mente é mais con­heci­do por coau­to­ria em roteiros de filmes nacionais de suces­so e minis­séries de TV aber­ta. Mas é na lit­er­atu­ra que ele se apre­sen­ta uti­lizan­do um esti­lo críti­co, com dos­es dobradas de sar­cas­mo, a respeito da sociedade brasileira e suas excen­t­ri­ci­dades. Em O meni­no que se tran­cou na geladeira (Edi­to­ra Obje­ti­va, 2004), esse paulista traz um enre­do que de longe nos lem­bra muitos dos fatos ocor­ri­dos no país nos últi­mos 50 anos, mas de per­to, é muito mais min­i­mal­ista e acer­ta em cheio, com uma críti­ca fer­ren­ha aos fatos cor­riqueiros da nos­sa história políti­ca, refleti­da na sociedade.

    Primeira­mente deve-se enten­der que O meni­no que se tran­cou na geladeira é um romance-reportagem, o nar­rador deixa claro que cada lin­ha é fru­to de uma visão jor­nalís­ti­ca sobre um habi­tante sem iden­ti­dade de um país irrecon­hecív­el. O meni­no, inti­t­u­la­do assim porque sim­ples­mente não nos inter­es­sa a iden­ti­dade dele, nasceu numa sociedade já cor­romp­i­da e em uma família que pouco lig­a­va para a existên­cia dele. Tudo dera erra­do, sen­tia-se deslo­ca­do por não ser belo e a úni­ca meni­na que ele se apaixo­nou, o despreza. O que lhe res­ta, de fato, é faz­er parte desse todo, de uma sociedade onde a vio­lên­cia é uma saí­da e o esti­lo de vida é a apa­tia, afi­nal, havia algo mais a se faz­er? Para se for­t­ale­cer, após suces­si­vas ten­ta­ti­vas de viv­er do seu modo e com as decepções que as pes­soas o causam, ele decide viv­er den­tro do seu próprio mun­do, den­tro de uma geladeira. E é no inte­ri­or desse eletrodomés­ti­co, de sen­ti­do metafóri­co, que o meni­no vai apren­den­do a lidar com as pes­soas e o sis­tema cri­a­do por elas. Sair da geladeira é um peri­go e viv­er den­tro dela é se entor­pecer de mentiras.

    Uma das car­ac­terís­ti­cas mais inter­es­santes de O meni­no que se tran­cou na geladeira é uso das téc­ni­cas nar­ra­ti­vas. O tex­to é mar­ca­do pela apre­sen­tação de um mun­do pecu­liar cheio de dis­cur­sos entrecor­ta­dos e veloci­dade que em muitos momen­tos parece nos tirar o ar. Esse tem­po de nar­ra­ti­va cri­a­do por Bonas­si não soa como os lon­gos pará­grafos de Sara­m­a­go, ou ain­da, de Gar­cia Mar­quez, ele tem a função de cri­ar um sen­ti­do de caos ao leitor. São tan­tos sar­cas­mos, joga­dos em pou­cas palavras, que a exper­iên­cia de leitu­ra é mar­ca­da pelo ator­doa­men­to dos fatos. Sabe­mos muito bem pelo que o meni­no pas­sa, pois é uma hipér­bole dramáti­ca do nos­so cotidiano.

    Out­ro pon­to alto do livro são as denom­i­nações que o nar­rador, proposi­tal­mente um jor­nal­ista que neces­si­ta de dados verossim­il­hantes, nos apre­sen­ta a sociedade desse país som­brio onde o vive o meni­no. Por exem­p­lo, a sociedade ali é divi­di­da em os ricos, os cidadãos da faixa média e os fer­ra­dos de vez, reforçan­do o uso da lin­guagem colo­quial como um dos pon­tos máx­i­mos de lig­ação com o leitor.

    Em O meni­no que se tran­cou na geladeira impera a inter­tex­tu­al­i­dade da lit­er­atu­ra atu­al, que opera numa hiper­a­tivi­dade entre todas as artes, partin­do inclu­sive do jor­nal­is­mo até o teatro. É uma ficção cal­ca­da no choque do real, pois mes­mo que a primeira sen­sação de leitu­ra seja de um absur­do sur­re­al­ista, há uma real­i­dade latente se man­i­fe­s­tando através dis­so e é jus­ta­mente esse fator que prende a leitu­ra nos tex­tos de Bonas­si: a real­i­dade nua e crua trata­da como fato cor­riqueiro e em tom de comé­dia. Rir da real­i­dade para deixá-la menos ten­sa e pesa­da, um esti­lo que o autor vem prat­i­can­do muito bem, inclu­sive em roteiros como o pre­mi­a­do Carandiru, ou ain­da, Os Mata­dores, de Beto Brant.

    Se você ficou inter­es­sa­do, uma parte do livro O meni­no que se tran­cou na geladeira está disponív­el para leitu­ra gra­tui­ta no Google Docs. Para ler, clique aqui.