Os poetas Lau Siqueira, Vássia Silveira e Marília Kubota encontraram-se no último dia 24 de outubro em Curitiba e repetem a dose no próximo dia 05 de dezembro em Florianópolis e no dia 06 em Joinville, para realizar o lançamento de seus livros de poesia “Livro Arbítrio” (Casa Verde, 2015), “micropolis” (Lumme Editor, 2014) e “Febre-Terçã” (Off Flip, 2013), os três publicados por pequenas editoras. Reunimos os autores nesta entrevista para um pingue-pongue de ideias sobre poesia e a aventura das edições independentes e uma reflexão sobre a função social da poesia:

Por que mesmo não sendo autor iniciante, você editou seu livro por uma pequena editora?
Vássia Silveira: Porque não me atrai essa lógica do mercado das grandes editoras. Não tenho interesse em apertar, de forma automática, como criticava Chaplin em “Tempos Modernos”, os parafusos desta máquina. E muito menos ser um deles. O problema é que essa lógica é tão perversa que mesmo algumas editoras pequenas acabam sucumbindo a estratégias que mostram certo desprezo, desrespeito pelo autor — quando, do ponto de vista da pequena editora, ele não é um nome “vendável”, não faz parte de panelas, não tem cacife para concorrer a editais do governo nem está incluído no mundo das feiras literárias. O que me faz pensar que o caminho está no artesanal e na força da coletividade, em iniciativas onde o autor é também um fazedor de livros. Acho fantástico, por exemplo, o movimento cartonero na América Latina! Ele rompe com toda essa lógica de mercado, é cultural, político, social, filosófico, poético e de resistência.
Lau Siqueira: As pequenas editoras são, atualmente, o principal campo de batalha da literatura contemporânea. O mercado editorial está por demais concentrado e as grandes editoras estão transnacionalizadas. Não se interessam por literatura brasileira. Menos ainda pela literatura contemporânea. Se limitam, no máximo, à republicação dos canônicos. O que se vê predominar nas grandes livrarias é uma literatura estrangeira de baixa qualidade ou mesmo livros de auto-ajuda. As pequenas editoras vêm cumprindo um papel importantíssimo na condução da literatura e especialmente da poesia contemporânea. Com raríssimas exceções, a literatura brasileira contemporânea tem passado “muito bem, obrigado” por fora das grandes editoras e até mesmo por fora do mercado formal do livro. Não acho isso ruim. Pois o mercado do livro é algo extremamente perverso, mafioso. Nós não existimos para eles e eles não existem para nós. E a vida continua.
Marília Kubota: “micropolis” é meu terceiro livro de poemas. Escrevo desde os 15 anos, mas demorei para publicar o primeiro de livro poemas, “Selva de sentidos”, produzido pela artista Jussara Salazar, em selo de sua autoria, o Água-forte Edições, em 2008; o segundo foi “Esperando as bárbaras”, publicado pela Blanche, de Curitiba, em 2012. A Lumme é conhecida pela publicação de boa poesia, brasileira e estrangeira. Optei por esta editora por causa de seu catálogo e qualidade no trabalho de edição de Francisco Santos. Se pudesse, gostaria de ser publicada pela Cosac Naify ou Record, mas sei que atualmente só pagando um agente literário ou fazendo lobby se consegue entrar numa grande editora.
Você acha que poesia não vende, como reza a lenda?
Vássia Silveira: Acho que quem lê poesia, compra poesia. Agora é claro, vivemos em uma sociedade onde o consumo está cada vez mais vinculado ao marketing. E no caso do livro parece que as estratégias têm que partir também do autor: o cara (ou a cara) tem que ser bom (ou boa) em marketing pessoal. Isso pra mim é um problema, sabe? Porque sou meio bicho do mato e não tenho disposição para criar um personagem fora da literatura.
Lau Siqueira: Não vende? Como assim? Baudelaire continua vendendo. Fernando Pessoa continua vendendo. Drummond continua vendendo. Semanalmente são lançadas dezenas de livros de poesia no país inteiro. Alguns com ótimos índices de venda. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, nos mostra que em algumas regiões, como a região do Pajeú (PE), a poesia é mais popular que livro religioso. Essa história de “poesia não vende” é que é uma lenda. É certo que ninguém está enriquecendo com venda de livro, mas dizer que poesia não vende é uma blasfêmia. Vende sim! O que não há é um único autor vendendo demais. Há um certo equilíbrio. Ainda não está sendo possível excursionar pela Europa com nossos livros, mas já é possível viajar para Curitiba e Florianópolis, por exemplo.
Marília Kubota: Leminski uma vez escreveu num ensaio que os poetas deviam rejubilar-se porque poesia não vende. Não vende porque é um inutensílio, não serve a ninguém nem a nada, a não ser para dar prazer a quem cria e a quem aprecia. Tem o mesmo valor de um beijo, o ato sexual, contemplar saguis no Parque Barreirinha ou matar o trabalho para ir ao cinema. Hoje, quando tudo, até a nossa opinião e gostos se transformaram em mercadoria para as empresas pontocom, a poesia segue como peça de resistência. O mercantilismo tenta a todo custo comprar o poeta, especialmente o iniciante, que se deslumbra com prêmios, paratextos literários e a mídia. Mas a poesia resiste, diverte-se à margem do sistema, encarnada em palhaços como o performer Hélio Leite, que poucos críticos doutores considerariam poeta, mas até se tornou personagem de Adélia Prado. Glauco Mattoso, Ricardo Chacal, Alice Ruiz, Leila Miccolis, Nicholas Behr, Douglas Diegues, Jose Kozer, Reynaldo Jimenez são a evocação da graça, seguindo a máxima de Oswald de Andrade: a alegria é a prova dos 9. Se não existe diversão não é poesia. Vender ou não vender não faz parte dos ócios do poeta.

Que estratégias os poetas devem usar para distribuir seu livro?
Vássia Silveira: Olha, minha experiência não ajuda a responder esta questão. A única coisa que entendo de distribuição é o que fiz com o “Febre Terçã”: saí distribuindo, literalmente, entre amigos e leitores de poesia.
Lau Siqueira: Acho que a principal estratégia é a venda direta. Fazer tardes, noites,manhãs de autógrafo. Olhar no olho do leitor. Usar as redes sociais para distribuí-lo nacional e internacionalmente. Os esquemas de distribuição nas redes de livraria são charmosos, mas extremamente desfavoráveis aos poetas em todos os sentidos. Buscar os lugares alternativos é a principal estratégia. Monteiro Lobato já fazia isso nos anos 30. Escreveu uma carta para comerciantes do país inteiro com a seguinte pergunta: “você quer vender, também, uma coisa chamada livro?” Com isso abriu mais de 2.000 postos de venda para os seus livros, em armazéns, farmácias, estabelecimentos diversos espalhados no Brasil. A cultura alternativa, aliás, possui um mercado bem generoso e razoavelmente democrático espalhado pelo Brasil.
Marília Kubota: O bacana da poesia é encontrar outros poetas. As estratégias vão acontecendo com os encontros. Dois poetas juntos são pólos que atraem energias positivas e potencializam a criação do combustível mais poderoso do planeta, a alegria. O encontro entre dois criadores gera felicidade; estratégias para distribuir livros surgem das faíscas de felicidade: os poetas podem doar seus livros uns aos outros — como fazem com frequência — ou contratar uma distribuidora — o que é pouco provável — ou participar de eventos para vender seus parcos exemplares. O fato é que os livros de poesia são milagrosamente distribuídos. Uma pesquisa feita na última FLIP revelou que os livros mais vendidos foram de poesia. Mas a poesia sempre sobreviveu fora dos megaeventos de mercado, porque em cada canto do planeta há poetas juvenis, poetas madames, poetas empreendedores, poetas eruditos, que se galvanizam à voz dos menestréis, ou seja, ainda há necessidade de cultivar algo que não tem utilidade para o mercado.
Qual a sua visão sobre a poesia contemporânea?
Vássia Silveira: Tenho curiosidade e desconfiança ao mesmo tempo. Curiosidade em descobrir o que de bom está sendo produzido e desconfiança com o que o mercado (e as redes sociais) me diz que é bom. Movida por esses dois sentimentos, acabo me refugiando muitas vezes na poesia de autores que me acompanham desde sempre, o que não deixa de ser uma grande ironia…
Lau Siqueira: Está acontecendo, apesar de tudo. Há uma diversidade imensa. Numa quantidade assustadora. Um bom garimpo nos permite encontrar poetas importantes como Sérgio de Castro Pinto, Antônio Brasileiro, Líria Porto, Glauco Mattoso e muitos outros. Existe um panorama nacional se consolidando cada vez mais, entre diluidores e suicidas. As pessoas estão, de forma muito saudável, se afastando dos chamados “cabeças de rede”. Mas, acho que ainda é cedo para um olhar mais definidor. Alguém já disse que o cenário atual se parece com um liquidificador ligado. Ainda não dá pra medir a qualidade do suco.
Marília Kubota: não é diferente a poesia contemporânea da poesia do passado. Alguém já disse que as redes sociais democratizaram a imbecilização. Não sabíamos que havia tantos poetas por aí, agora esbarramos com eles em todos os lugares. Creio que na verdade há poucos poetas, isto é, poucos de fato se dedicam à pesquisa de linguagem, a criar algo novo. No Brasil, depois dos anos 90, temos Paulo Henriques Britto, Armando Freitas Filho, a poesia demolidora de Sebastião Nunes, Lucila Nogueira, Debora Brennand. Entre os mais novos, Carlito Azevedo, Claudio Daniel, Micheliny Verunschk, Jussara Salazar e Rodrigo Garcia Lopes. Da safra da nova geração (00), a singularidade e insularidade de Nydia Bonetti, embora ela tenha 50 anos. Uma novidade é a poesia étnica, isto é, poetas negros com consciência de sua identidade étnica, como Edimilson de Almeida Pereira e Nina Rizzi, trazendo à baila não apenas a reivindicação da negritude, mas vozes estranhas ao discurso canônico.

Como vê a ansiedade dos novos autores em relação a prêmios literários ou indicações, a necessidade de ser legitimado a qualquer custo, seja negociando prefácios com críticos ou matérias em jornais?
Vássia Silveira: Acho engraçado e desolador ao mesmo tempo. Engraçado porque parece que isso realmente tem funcionado (e daí a desconfiança sobre a qual falei anteriormente). E desolador porque essa prática mostra que a literatura, em alguns casos, está deixando de ser um processo de reflexão e amadurecimento do autor com o texto. E veja, estou dizendo isso e me colocando, também, como uma autora nova. Porque minha relação com o texto está sempre inacabada, é um percurso que me sinto obrigada a fazer. E que não depende da legitimação do outro. Pra ser bem honesta, toda vez que leio ou ouço alguém se referir a mim como “poeta”, sinto um calafrio na espinha. Porque tenho medo do peso e da responsabilidade desta palavra. Prefiro pensar que estou no entre-lugar da poesia.
Lau Siqueira: Perda de tempo. Esse tipo de coisa a psicanálise resolve. Cada poeta é absolutamente responsável pela sua poesia. A preocupação central do poeta (novo ou velho) deve ser com a metalurgia da palavra. Escrever um poema é uma atividade muito difícil. Dividir essa preocupação com a necessidade de alpinismo é a negação da própria poesia. Os prêmios não representam nada. Absolutamente nada. Os prefácios robustos ajudam na terapia, mas não resolvem a cura. Matéria em jornal não representa nada, porque os jornalistas não leem nem o próprio jornal que editam, imagine livros de poesia. A “fama postiça” resolve apenas a necessidade de afirmação social de certos poetas, jovens de qualquer idade.
Marília Kubota: Vejo com preocupação a ansiedade do poeta jovem em ser consagrado imediatamente. “Poeta bom é poeta morto” é um adágio que considero válido para manter a autocrítica em alta. Flora Sussekind escreveu, no ano de 2005, o artigo “Hagiografias”, em que analisava a poesia de três autores da Poesia Marginal: Cacaso, Ana Cristina César e Paulo Leminski, mortos e em vias de serem canonizados. Dois seriam suicidas, apenas Cacaso morreria por fatores naturais, mas empedernido crítico da ditadura militar. O que importa hoje para o poeta – ou escritor – é o reconhecimento crítico antes que o autor encontre a voz poética. Para isto, vale tudo, desde ser empreendedor mambembe até bajular novos editores, críticos e outros poetas. Há novos autores que declaram não ter capacidade para comentar o trabalho de seus pares e se colocam à frente de sites que emulam revistas literárias. Para ser poeta é preciso ter lido muito, e de forma variada, ou seja, loucamente. A leitura fornece o senso crítico para separar o joio do trigo. Ao reconhecer que não têm senso crítico, tais autores fazem autopropaganda negativa: não têm leitura suficiente para se auto-avaliar, como poderão ser avaliados por outros leitores ? Numa discussão sobre os atentados em Paris, lembrei o final de “A montanha mágica”, de Thomas Mann: “Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia de amor?” Um autor que escreva um texto como este não precisa ser distinguido com um prêmio. O prêmio é sua linguagem ter atingido o mais alto nível de compreensão e beleza sobre a complexidade da natureza humana.
Quais são seus livros de cabeceira ? Há um autor que pode ser considerado uma influência literária?
Vássia Silveira: Continuo me encontrando e me desencontrando no “Grande Sertão: Veredas”, no “Livro do Desassossego” e em “Água Viva”. E fundamentalmente em um livrinho pequeno que ganhei aos 15 anos de meu pai e que inclusive dei de presente também para minha filha mais velha: o “Cartas a um jovem poeta”, do Rilke. Então acho que posso dizer que estes são meus livros de cabeceira. Sobre a influência literária, é complicado… Não sei se posso apontar o nome de um autor ou autora somente. Porque tudo o que me afeta passa, de alguma maneira, a fazer parte de minhas angústias em relação à escrita. O que posso dizer é que minha aventura como leitora foi marcada a ferro e fogo, e ainda na adolescência, por Dostoievski e pela poesia de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Drummond… Eu não acharia nada ruim se pudesse escrever como eles ou como a Clarice, a Ana Cristina César, a Hilst.
Lau Siqueira: Não sei se tenho livros de cabeceira. Mas, autores de cabeceira. Sempre leio Antônio Cândido, Ezra Pound, João Alexandre Barbosa, Joan Brossa, Maiakovski, Fernando Pessoa, João Cabral, Augusto de Campos, Drummond e alguns poucos autores. Misturo poetas e teóricos, mas ando lendo poucos romances. No entanto, sou aberto às influências não apenas de poetas, mas de músicos como Jards Macalé, Itamar Assunção, Chico Cesar, Zeca Baleiro e outros tantos.
Marília Kubota: Considero Manuel Bandeira e Jorge de Lima os poetas maiores do Brasil. Tenho lido também e apreciado a obra de Murilo Mendes. Mas Paulo Henriques Britto e Armando Freitas Filho são hoje nossos poetas maiores. Me admira quantos leitores ainda se deixam cativar por Emily Dickinson, autora que cultuei na juventude, e Clarice Lispector. Por compromissos profissionais leio muita literatura japonesa, entre estes Banana Yoshimoto e o best seller Haruki Murakami, mas sei que a literatura deles é bobagem. Gosto dos tankas de Takuboku Ishikawa e Akiko Yosano, além dos quatro grandes mestres haicaistas, Bashô, Buson, Issa e Shiki e de haicaistas do Brasil, Nenpuku Sato, Masuda Goga e Teruko Oda. E adoro a poesia popular brasileira, a MPB: ouço de Chico Buarque a Edvaldo Santana, Estrela e Téo Ruiz e os incríveis PoETs, a banda dos poetas Alexandre Brito, Ricardo Silvestrim e Ronald Augusto.

O que fazer com o cânone literário ? O cânone é uma referência para a obra de vocês ou estão na turma do deixa isto pra lá?
Vássia Silveira: A ideia de cânone me incomoda quando penso que há, por trás dela, uma relação histórica de poder que passa não só pela academia e por aquilo que ela legitima como “alta literatura”, mas também pelo olhar do ocidente em relação ao oriente; ou da Europa em relação à África, Ásia e América Latina. Por isso prefiro pensar no que não fazer com o cânone: ter uma postura ingênua frente a ele. Isso não significa, de forma alguma, ignorá-lo (ou ignorá-los, já que o cânone é diverso e mutável). Porque seria muita estupidez minha “deixar para lá” autores como Dostoievski, Tolstói, Shakespeare, Goethe, Kafka, Virgínia Woolf, Homero, Cervantes, Borges, Pound e Mallarmé para falar de alguns estrangeiros que li e sinto a necessidade de reler; ou de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira. Enfim… Acho que é importante lê-los com fome suficiente para saber que há outras leituras inquietantes e não canonizadas. É preciso descobri-las também.
Lau Siqueira: Geralmente isso tem mais a ver com política literária que com poesia. Eu vejo isso de forma muito libertária. Não é assunto que deva preocupar um poeta. Que os generais da cena que decidam quem deve viver ou morrer. Não me interessa. Não perco meu tempo escolhendo fita métrica para saber quem é maior ou menor. Quando gosto de um autor, não interessas se é considerado canônico ou não.
Marília Kubota: Ultimamente leio poucos autores canônicos. Gostaria de ler mais Shakespeare e literatura de língua inglesa e francesa. Mas tenho descoberto os autores de língua portuguesa, de Portugal e ex-colônias: Saramago, Gonçalo Tavares, Sophia de Mello Breyner Andresen, Helberto Helder, Adília Lopes. Por isto me vêm a ideia de ler mais Camões, apesar de que quase todo bom autor em língua portuguesa dificilmente deixará de sofrer a influência do autor de Os Lusíadas. Embora não seja considerado no cânone ocidental, um projeto meu é ler o Heike monogatari, clássico que marca a ascensão do shogunato no Japão.
Como fica a questão da solidão criativa hoje, quando vivemos numa sociedade hiperconectada?
Vássia Silveira: A minha vai muito bem, obrigada. Primeiro porque gosto e preciso da solidão. E segundo porque sou louca o bastante para me manter conectada com a minha própria vida, o que já rende matéria suficiente para me tirar o sono, a fome e muitas vezes o riso. E quando falo da minha própria vida não estou me referindo às misérias cotidianas da Vássia enquanto mãe, mulher, filha. Mas das angústias da Vássia enquanto ser, estar e ver o mundo. Isso significa, por exemplo, que você não vai me encontrar, na rua ou no ônibus, com os olhos pregados a uma tela, porque tenho o péssimo hábito de observar as paisagens, as pessoas, aquela “vida besta” que falava Drummond. Então, para mim, a hiperconectividade é uma grande farsa, uma distração.
Lau Siqueira: A solidão, hoje, é coletiva. Exercitamos nossa solidão nas redes sociais sem nenhum pudor. Meu último livro, o Livro arbítrio, foi integralmente escrito no Facebook. É fruto de uma solidão compartilhada, curtida e comentada. Estamos vivendo no século XXI e não no século XIX. Na solidão do século XIX não tinha Wi-fi.
Marília Kubota: Tenho necessidade de solidão para criar. Quando estou em casa, em Curitiba, passo quase a maior parte do tempo a sós, lendo ou escrevendo. Através da internet consigo conversar com parceiros para produzir projetos ou eventos literários. Por força de compromissos profissionais e familiares, tenho menos momentos de solidão do que gostaria. Muitos falam que o autor deve se isolar para escrever – ir para a praia, fora de temporada, ou a algum lugar distante. Gostaria de poder fazer isto, mas é quase impossível. Se eu fosse para um paraíso ecológico ou uma aldeia, duvido que ficasse desconectada.
Vocês moram em cidades pequenas. Acham que não é necessário morar no eixo Rio-São Paulo para projetar suas obras?
Vássia Silveira: Bem, acho que temos exemplos recentes provando que não…
Lau Siqueira: No eixo-Rio/Sampa predominam as periferias, onde a sobrevivência se assemelha às pequenas cidades onde moramos. O país foi construindo novas referências, sem que se faça necessário buscar um “centro de projeção”. No mais, pra que projeção? Vamos vivendo o que nos cabe.
Marília Kubota: Com a sociedade constelada criada pela conexão por satélite, não parece mais necessário morar em metrópoles, como Rio e São Paulo. Mas o eixo cultural continua sendo as duas cidades, no Brasil. Se você é artista, não pode deixar de mostrar seu trabalho no Rio e em São Paulo para se projetar nacionalmente. Mas não é preciso mais morar e trabalhar nestas cidades.
A questão social em poesia é ultrapassada ? Poesia engajada é sempre panfletária? Como vê a apolitização de parte dos poetas contemporâneos, que optam por um ativismo seletivo — em relação a questões étnicas ou de gênero, ou à ecologia, por exemplo, deixando de se posicionar sobre grandes questões da humanidade, como as guerras e a política nacional e internacional?
Vássia Silveira: Não acho que seja ultrapassada e também não gosto de rotular como “panfletária” a poesia engajada. Sinto inveja dos autores que conseguiram ou conseguem levar para a poesia, e de forma clara, as grandes questões de seu tempo. Tenho consciência de que não consigo fazer isso, pelo menos não ainda. Sou lenta, demoro a processar aquilo que me impacta, o que faz com que eu facilmente seja encaixada nesse perfil que você traçou e criticou na última pergunta. Acho mais fácil, por exemplo, me posicionar de forma incisiva em relação a questões étnicas e/ou de gênero porque tive mais tempo para digerir a violência embutida nelas. E não por ser apolítica, muito menos por não me interessarem as guerras civis, o drama dos refugiados, o fundamentalismo, o ódio ao PT, as manobras da política internacional e seus desdobramentos na América Latina, na África ou na Ásia. Essas são questões que me afligem e sobre as quais procuro refletir e me posicionar em outras instâncias. Agora veja, estou falando de minha experiência. Não posso responder pelo silêncio dos outros.
Lau Siqueira: A poesia transita livremente pelo tempo. Em qualquer tempo. As temáticas escolhidas não alteram o produto final do poema. Nenhuma questão social ou política é ultrapassada. Na verdade são questões desafiadoras para a usina criativa de cada um. Cada qual sabe por onde caminha, mas existe até mesmo um certo preconceito quanto às escolhas temáticas desse tipo, o que eu acho uma bobagem. A matéria da poesia é a palavra. O resto é cenário.
Marília Kubota: A sociedade constelada facilitou a segmentação e fortaleceu a identidade coletiva. Stuart Hall fala sobre as identidades móveis, em que o indivíduo abandona a identidade com a nação e o território, buscando outro tipo de subjetividade, nômade. Durante muito tempo me identifiquei como nipo-brasileira até perceber que a hifenização não faz sentido: sou brasileira. Mas a aceitação de um biótipo diferente do europeu ainda está em processo na sociedade brasileira. A luta das minorias sociais, dos imigrantes, das feministas, dos negros, dos homossexuais, embora pareça assimilada, ainda está em processo.
Acho importante discutir estas questões, porque em tempos de recrudescimento político, tais minorias são as primeiras a serem socialmente rechaçadas. Creio que o poeta jamais abstém-se de ter uma posição política. Eu me recusei a fazer parte de duas antologias patrocinadas pelo governo do Estado do Paraná. Uma de contos, organizada pelo escritor Luiz Ruffatto, e outra de poesia, organizada por Ademir Demarchi. Foi numa época em que o governo fechou vários espaços culturais em Curitiba, cancelou verbas para projetos culturais no estado e apropriou-se dos direitos autorais dos colaboradores do JORNAL NICOLAU, para fazer uma edição fac-similar, que até hoje está à venda. O NICOLAU, criado por uma equipe comandada pelo artista gráfico Luis Antônio Guinski e pelo poeta Wilson Bueno fez história na cultura do Paraná e do Brasil. A recusa foi um protesto contra os desmandos deste governo, que culminou no episódio de 29 de abril, o Massacre do Centro Cívico. Na época em que comecei a denunciar os abusos do governo do Paraná nas redes sociais, muitos me advertiram para ficar calada. Nunca consegui ficar calada, por isto jamais recebi indicações para participar de eventos literários, mas os colegas mais dóceis receberam. Declinei de participar da antologia “O verso da violência”, publicado pela Editora Patuá. Embora traga registros importantes, feitos pelos fotógrafos Lina Faria e Bruno Covello, me pareceu que a publicação da antologia não faria diferença na oposição a este governo arbitrário, no qual muitos se aproveitam para promover interesses pessoais através da máquina pública.