
Seu nome, Miya, deveria ter sido Miyako. Na época em que nasceu, era proibido às japonesas nascidas no campo usarem o ideograma KO [子]. O uso era permitido apenas às mulheres de origem nobre. O ideograma miya [宮] significa templo xintoísta, príncipe ou princesa da família imperial. Sua mãe, Masa Sato, era de família nobre. Prometida a um noivo que não gostava, casou-se, por amor, com um homem abaixo de sua condição social. Por isso a família a deserdou. Miya tinha um irmão mais velho, Sadaji e dois irmãos mais jovens, Tome e Kameki. Muito jovem, minha avó se interessou por literatura. Em sua cidade, que fica na província de Saga, região sul, perto de Nagasaki, só havia bibliotecas na igreja presbiteriana. Ela se converteu, só para frequentar a biblioteca e ler a obra do escritor francês Victor Hugo. Sadaji e Kameki vieram para o Brasil antes das irmãs, nos anos 30 e começaram a trabalhar no cafezal da família Shinobu, na Colônia Nipolândia, em Birigui, na região oeste de São Paulo. Depois, vieram Miya e Tome.

Kunyo Tiba, meu avô, marinheiro, também veio para o Brasil, com a missão de buscar a irmã, Miyoko. Ela resolveu se aventurar no “País dos frutos dourados”, como era chamado pela Imigração Japonesa. Veio como agregada da família Shinobu, um expediente comum na época. Famílias eram compostas por membros de diferentes origens, forjando documentos. Miyoko morava na “casa grande”, com a família artificial. Kuniyo não pôde voltar ao Japão, porque seu país havia anexado a Manchúria e começaram os conflitos com a China. No cafezal, conheceu Miya e casou com ela.
No Brasil, Miya continuou frequentando a igreja presbiteriana. Praticava a arte do tanka — uma das formas poéticas japonesas. Kuniyo tocava shakuhachi — a flauta de bambu japonesa. Como ele era era marinheiro, poucos ofícios restavam em terra. Mas Kuniyo achou que não teria futuro morando na colônia japonesa de Birigui. Decidiu fabricar carvão vegetal e mudou para Tapiraí, no Sul paulista, que veio a se tornar um importante centro de produção da matéria-prima. A mulher e os três filhos o ajudavam a queimar carvão. Por causa do ofício do patriarca, a família morou em diversos pontos da cidade. Kameki, o caçula Tiba, ficou doente e foi se tratar em Campos de Jordão. Curado, decidiu fazer um curso de farmacêutico, em São Paulo. Quando se formou, os irmãos montaram uma pequena farmácia no centro de Tapiraí. Kuniyo decidiu montar um bar, vizinho à farmácia.

Meu tio mais velho começou carreira militar e pôde comprar um sobrado para os pais, no bairro de Jabaquara, em São Paulo. Mudaram-se para lá em meados dos anos 60. Toda vez que íamos visitá-lo, Kuniyo fazia algodão-doce para nós. Ele vendia o doce nas ruas de São Paulo. Criança, não sabia como o açúcar colorido se transformava em nuvem de algodão. A casa de meus avós era meio mágica. Na cozinha havia um grande telescópio. Um dos tios havia entrado para a Aeronáutica e tinha mania por apetrechos de aviação e aeronáutica.
Meu avô morreu em 1974, de câncer no intestino. Na época era uma doença devastadora. A família cuidou dele por meses. Depois que o marido morreu, Miya vinha passar férias com minha mãe. Meus avós só falavam japonês. Eu e meus irmãos não entendíamos o que falava. Sinto pena de não ter estudado a língua japonesa quando criança. Só descobri o que era shakuhachi e tanka com quase 40 anos. Zannen.**
* Em japonês: antigo, antigo. Em geral, as histórias de tradição oral japonesas começam com “Mukashi, mukashi…”
**Em japonês: Que pena !