O buraco do espelho está fechado, agora eu tenho que ficar agora. Fui pelo abandono abandonado, aqui dentro do lado de fora.
O trecho acima faz parte da música “O Buraco do Espelho”, do cantor e compositor brasileiro Arnaldo Antunes. A canção integra a trilha sonora do filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), um retrato duro, ácido e humanamente cruel sobre a realidade vivenciada pelos internos de hospitais psiquiátricos. Dirigido pela cineasta Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolognesi, “Bicho de Sete Cabeças” narra a história de um jovem internado pelo pai em um manicômio depois de ter sido flagrado com cigarros de maconha. O enredo foi baseado no livro “Canto dos Malditos”, uma autobiografia de Austregésilo Carrano Bueno (1957–2008), ex-interno de uma instituição manicomial e, como muitos outros, vítima dos abusos, espancamentos e torturas comumente praticados nesse tipo de lugar.
No longa-metragem, Neto (protagonizado pelo ator Rodrigo Santoro) é um jovem de classe média baixa que vive conflitos familiares por não se enquadrar no padrão de comportamento socialmente aceito, irritando especialmente seu pai (vivido por Othon Bastos). Atravessando uma fase associada à rebeldia, Neto gosta de andar de skate, pichar muros, usar brincos e cabelos compridos, fato que a figura paterna não aceita e oprime. A ausência de diálogo e a repressão desmedida resultam no estremecimento da comunicação entre pai e filho, levando-os à constante troca de acusações e rompantes de agressividade. A contínua tensão e desconfiança faz com que Wilson, pai de Neto, decida internar o filho em um hospício depois de encontrar cigarros de maconha entre os pertences do rapaz. A partir desse momento, a vida de Neto transforma-se em um verdadeiro abismo esquecido dentro do inferno.
Encarcerado contra sua vontade, o jovem também é ignorado pelo psiquiatra da instituição, profissional que raramente aparece no lugar e cuja única preocupação é conseguir financiamento, ainda que isso signifique capturar e internar pessoas indiscriminadamente. O padecimento de Neto e dos outros internos ocorre das mais diferentes formas, seja por meio de drogas anestésicas e de substâncias como o metilfenidato, conhecido como “sossega leão”; ou da torturante “camisa de força”, colete que aprisiona os membros superiores; bem como através de tratamentos com Eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente chamados de eletrochoques. Além dos tormentos físicos, os “pacientes-prisioneiros” são humilhados, hostilizados, barbarizados e esquecidos, sofrendo forte coação de médicos e enfermeiros, e sentindo a indiferença e preconceito vindos da própria família. São seres humanos estigmatizados, coisificados e transformados em personagens invisíveis, perdendo sua liberdade, dignidade, autonomia e subjetividade.

A cicatriz da internação psiquiátrica cobra seu preço, e mesmo depois de liberado, Neto não consegue se adaptar ao modelo imposto pela sociedade e pela família, e é novamente encarcerado no hospício. O rapaz só consegue sair após incendiar a cela em que está e, finalmente, chamar a atenção do pai. No desfecho do filme, acompanhamos Neto envelhecido pelo sofrimento e pela dor. Depois de tudo o que enfrentou, o rapaz transforma-se em uma sombra de si mesmo, angustiado como o quadro “O grito” (1893), de Edvard Munch; desencantado como o grito de ‘Nunca mais’, do poema “O Corvo” (1845), de Edgar Allan Poe, e abatido como as composições derradeiras do compositor clássico alemão Robert Schumann.
Premiado em festivais nacionais e internacionais, “Bicho de Sete Cabeças” possui uma atmosfera que combina cinematográfico e documental, evidenciada pela naturalidade dos diálogos e atuação dos atores. O tema também fortalece a luta antimanicomial ao apontar a dor e a desintegração encontradas em espaços que controlam e reprimem para — tomando de empréstimo a expressão cunhada pelo filósofo e pesquisador francês Michel Foucault — transformar subjetividades humanas em “corpos disciplinados, corpos dóceis”. Por não fazer parte do enquadramento social e comportamento imposto pelas redes microbianas de poder, Neto foi aprisionado, castigado e submetido a mecanismos de remodelação.

Situações como as do protagonista do filme — de não adaptação aos parâmetros estabelecidos — também fizeram com que muitas mulheres fossem sentenciadas à internação em instituições asilares, como o Hospício do Juquery. O estudo detalhado de Maria Clementina Pereira Cunha em livros (O espelho do mundo. Juquery, a história de um asilo – 1986), artigos (De historiadoras, brasileiras e escandinavas: Loucuras, folias e relações de gêneros no Brasil (século XIX e início do XX)) e pesquisas mostra que a imposição de padrões ditos normais para o comportamento feminino exercia papel decisivo na internação psiquiátrica. Assim como a personagem do filme “Bicho de Sete Cabeças”, as mulheres que estavam fora do padrão social esperado eram consideradas inadequadas e, dessa forma, obrigadas à correção exemplar.

A imposição do padrão de normalidade, difundida com toda força pelos discursos de natureza médica de menos de um século atrás, foi utilizada dentro dos hospitais psiquiátricos para justificar internações e ações arbitrárias. Além do grupo feminino, os demais marginalizados – pessoas pobres, miseráveis, moradores de cortiços, operários, mendigos e todos os que subvertiam a ordem estabelecida – eram considerados propensos à devassidão, perversão, loucura e criminalidade.
Outro ponto interessante devidamente representado no longa-metragem de Laís Bodanzky diz respeito à figura do psiquiatra como autoridade competente, atestada cientificamente para produzir discursos autorizados. No início de sua internação, Neto questiona enfermeiros sobre o fato de estar ali, afirmando que eles não poderiam mantê-lo internado, pois não estava doente. Um dos enfermeiros afirma a Neto que os pais do jovem já tinham conversado com o médico e explicado toda a situação. No prontuário de Neto constava que ele era um rapaz “agressivo, rebelde, que não respeitava seus pais, mesmo tendo muito amor e diálogo em casa”, ou seja, o jovem já estava fichado e rotulado assim que entrou no hospício, e nada do que dissesse ou fizesse modificaria ou atenuaria sua situação. Neto perdeu a autonomia, sua capacidade de decidir e sua liberdade de ir e vir. Como expressa Alfredo Naffah Neto em artigo intitulado ‘O estigma da loucura e a perda da autonomia’:
Desde o instante em que o estigma da loucura lhe foi imputado, é como se no lugar do sujeito aparecesse a doença mental; então, o discurso e as ações expressas pelo louco cessam de significar em si próprias, tornando-se apenas sintomas da doença.

Dessa forma, aqueles que são marcados com o estigma da loucura são considerados incapazes – jurídica, social e emocionalmente – de decidir sobre o seu próprio destino. Nas palavras de Naffah Neto: “O louco é transformado num fantoche que deve ser manipulado pelo poder/saber médico”. Na literatura, o poder discricionário das autoridades médicas, “científicas e competentes”, pode ser observado no conto “Só vim telefonar”, do autor colombiano Gabriel García Márquez, e no conto-novela “O Alienista”, do escritor brasileiro Machado de Assis. De diferentes maneiras, ambos tratam de questionar a visão do saber médico como discurso incontestável, capaz de manipular, subjugar e aniquilar identidades. Tanto o hospício como a prisão atuam como instituições de disciplina e controle, criando novas modalidades de fiscalização e domínio justificadas pela legitimidade científica.

Em artigo intitulado “Loucura e Criminalidade: Desvendando os mistérios das moralidades anômalas”, Felipe da Cunha Lopes e Ítalo Cristiano Silva e Souza discorrem sobre a associação entre loucura e criminalidade feita pelo discurso médico teresinense entre as décadas de 1870 e final da década de 1930. Segundo o artigo, os articulistas que escreviam para jornais piauienses da época associavam loucura à prática de crimes, alegando a existência da insanidade em criminosos e da criminalidade em loucos (baseados na teoria da degenerescência). Com base nessa ideia, percebe-se a “problematização da loucura em função da virtualidade criminosa”. Os autores do artigo lembram que “(…) a psiquiatria foi uma das principais ferramentas utilizadas para justificar e elaborar estratégias de controle e transformação do comportamento do homem em sociedade”. Assim, a medicina transformou-se em ferramenta indispensável para manter dispositivos de controle social.

O regime de verdade e a imposição de uma suposta normalidade exigem tributos caros; preço que é pago a sangue e alma por um número inestimável de pessoas que foram e continuam sendo excluídas, trancafiadas e esquecidas. Os exemplos de desrespeito e invisibilidade extrapolam páginas de livros e dados de pesquisas. Eles estão marcados no coração dos sobreviventes do Hospício de Barbacena (MG), do Juquery e muitas outras instituições de controle e domínio.