E “No dia seguinte ninguém morreu”, a primeira frase do livro As intermitências da Morte (Companhia das Letras, 2005), de José Saramago, ecoou pelos milhares de leitores dele, no último dia 18 de junho. A Morte de fato não cessou e as Letras perderam um dos escritores contemporâneos que mais trouxe discussões em torno do ser humano. Com características próprias, Saramago escrevia sem pensar nas formalidades do texto. Seus longos (e densos) parágrafos, marcam a sua técnica narrativa única, fazendo o leitor mais assíduo ficar atônito e os desavisados levemente cansados.
Anunciando que a Morte tirou férias, somente em um pequeno país, se dá o inicio da saga de uma morte com trejeitos humanos que resolve dar aos homens o que pedem há séculos, a vida eterna. Mas com ela cessando seus serviços, o que sobra? Como um país, economicamente falando, funciona se as pessoas pararem de morrer? E a Igreja, vai prometer uma vida após morte para quem? Num primeiro momento a sensação era de estado de euforia e de otimismo e até de fervor patriótico, afinal as pessoas não morreriam mais, acabaram-se os momentos depressivos do adeus. Mas em pouquíssimo tempo essa euforia se dissiparia em pedaços, com trechos descrevendo o desespero de pessoas atravessando as fronteiras do país, para simplesmente morrer.
Na primeira parte de As intermitências da Morte, a própria se apresenta de forma clássica porém existencialista decidindo não trabalhar por alguns dias, e simplesmente nem um pouco preocupada com o que andam dizendo os homens. Por mais estranho que possa parecer, ela decide ¨viver¨. A partir do ponto em que resolve experimentar as vicissitudes humanas é que a narrativa de Saramago toma outro rumo. A segunda parte do livro surge com uma história de uma Morte apaixonada, sem saber o que fazer com um dos sentimentos que mais questionam os homens, além dela própria, o amor.
Saramago foi minucioso, como não poderia deixar de ser. A narrativa de As intermitências da Morte é simples porém detalhista, em muitos momentos ele se atém a dados e resultados de cada setor de um país (nesse caso, monarquista), que pode sofrer com uma coisa que pode ser tão banal como a morte, deixando o texto cheio de referências soando como um verdadeiro relato. A crítica é ferrenha contra o Estado e a Igreja, e o português não deixa por menos a sua fama de questionador, fato que se comprovou até os seus últimos dias escrevendo sempre inflamações em relação ao mundo no seu blog.
A crítica especializada banalizou ao extremo a obra publicada em 2005. Afinal, Saramago já havia escrito livros premiados e polêmicos como o ¨Ensaio sobre a Cegueira¨ e ¨O evangelho segundo Jesus Cristo¨ que trazia explícitas suas opiniões sobre ateísmo e alienação das pessoas. Muito se falou da solução ¨hollywoodiana¨ do autor usar uma Morte que encontra no Amor um motivo de tratar o seu trabalho de outra forma, de entender um pouco os sentimentos humanos. Mas a verdade que dessa forma, mais uma vez, ele surpreendeu trazendo a obviedade em meio todo o caos que se gerou e torna de uma única figura, a Morte.
Talvez, para a crítica, não caiba mais a discussão da recepção do leitor (sem teorias, por favor), ou de como a experiência da leitura faz sentido para quem lê. Essa obra de José Saramago, como em todas as suas ficções, traz a tona questionamentos profundos típicos dele, a economia, a religião e a sociedade, afinal elas andam juntas e devem ser pensadas como parte de um todo. Pensar sobre o fim das coisas sempre foi um questionamento que se igualou com o do porquê estarmos aqui, e para onde mesmo vamos.
O autor sempre fora conhecido por ser crítico e certeiro e, mesmo assim, sem atacar ninguém. Não era necessário, ele precisava simplesmente escrever sobre o que considerava verdade, sem temer. Não foi diferente no seu último livro, Caim. Realmente, na literatura, autores como José Saramago farão falta. Em tempos de celebridades instantaneas tornando-se ¨escritoras¨, sempre sobrarão lacunas para aqueles que possam proliferar seu ácido sobre tais situações.
As intermitências da Morte, enfim, faz mais que o papel de uma narrativa circular e ficcional, usando como personagem um dos maiores temores humanos. É uma leitura nitidamente crítica e que representa, além dos próprios cânones dele, uma obra tipicamente ¨saramaguiana¨ que critica além dos contratos sociais, o próprio homem, humanizando a própria morte.