Um dos aspectos mais interessantes na literatura feita pelo escritor gaúcho Antônio Xerxenesky — e o que mais chama a atenção ao ler seus artigos e textos pela web — é o uso das suas referências, sejam elas literárias, acadêmicas ou inclusive de games. Li Areia nos Dentes (Rocco, 2010), o primeiro romance do escritor, depois de ter lido o mais recente livro de contos A Página Assombrada por Fantasmas (Rocco, 2011), o que me ajudou a observar mais de perto as tendências metaficcionais e de metaliteratura na obra de Xerxenesky.
O enredo primário de Areia nos Dentes é o mais improvável para um manual de boas maneiras de literatura brasileira: uma disputa de famílias ambientada num velho oeste envolvendo zumbis e questionamentos existenciais. Mas pode ir esquecendo que o livro possa ser um revival de filmes de George Romero, ele está mais para os longas reflexivos de Sergio Leone que é inclusive o primeiro nome que aparece na lista de agradecimetos finais.
¨Carlitos, qual é o melhor faroeste, Era uma vez no Oeste ou Meu ódio será sua herança?¨
¨O que isso tem a ver?¨
¨Isso tem tudo a ver. Eu não sei qual filme prefiro. Eu quero saber se sou um homem de reflexão ou um homem de ação, compreende? Porque vou passar isso para o meu relato. Quero saber se, em Mavrak, as coisas eram, e agora cito o mestre italiano ´ como uma dança da morte´, ou se…ou se…¨
(p.34)
Os Marlowe e os Ramírez são as duas famílias rivais da inóspita Mavrak — a palavra Maverick em um tabuleiro empoeirado. O lugar não tem uma localização certa mas se entende que está num deserto massacrante e arenoso onde a rivalidade entre famílias, e o calor atordoante, são os maiores incômodos na vida dos habitantes. Mas quem nos coloca nesse cenário não é um simples narrador onisciente e sim o próprio homem que está escrevendo a história dos seus antepassados.
O fato do narrador ser o próprio escritor — causando uma sensação de reação em cadeia de autores/narradores — permite que o texto tenha suas próprias marcas estilísticas como letras que travam no computador, onomatopéias que surgem na cabeça do escritor e a liberdade que ele tem de narrar a história em vários formatos. Há o uso de vários recursos desde um capítulo em formato de roteiro, uma perseguição narrada em duas colunas e cartas de confissão de personagens.
Agora tenho tantas outras dúvidas. E se eu estiver reproduzindo minha relação com minha ex-mulher nessa linhas? E se não for só precisão histórica o que eu busco ao caracterizar as mulheres dessa forma? Se for culpa da minha mentalidade, quase tão arcaica quanto a daqueles pistoleiros? Ninguém deveria escrever nada nunca, não há glamour ou prazer, só tormento. (p.66)
Ao passo que Areia nos Dentes trata de um homem que tenta criar uma ficção de sua própria vida para entende-la e, de certa forma, perpetuar os momentos numa forma de preencher as lacunas, ainda consegue se relacionar com personagens de outras ficções, dando voz ao escritor real. As duas famílias rivais, Marlowe e Ramirez fazem referências nítidas ao próprio Xerxenesky que nunca fez questão de esconder seu apreço pelo escritor Thomas Pynchon, por exemplo.
A aproximação com o escritor real se define mais ainda quando o leitor, consciente de alguns gostos e escolhas do próprio Antonio Xerxenesky, acaba por reconhecê-lo nas construções do enredo. E justamente nesse aspecto surge uma sensação de incômodo, justamente por ter emendado a leitura com A página Assombrada por Fantasmas, ficando a sensação que o autor é dominado pelo seu mundo de leituras e cotidiano, se obrigando a usá-los em sua ficção. Mas esse incômodo, se pensado sob o enredo de Areia nos Dentes, dá a noção de que todo escritor é ameaçado por suas referências, cotidiano e experiências — quase uma ideia Benjaminiana de narrativa — a ponto de colocá-las no papel, assim como acontece com o personagem principal.
Areia nos Dentes é a priori um romance contemporâneo principalmente pelo envolvimento massivo com referências, mas também, pelo tratamento metaficcional dos personagens. E sem análises mais profundas, o romance de estreia de Antônio Xerxenesky é um pastiche, mas acima de tudo, uma pequena amostra da euforia e interesse pelas coisas que vê, ouve, assiste e joga, altamente recomendado para fãs de todos os elementos citados.
*Recomendo bastante os textos de Antônio Xerxenesky no blog do Instituto Moreira Salles.
** Você pode adquirir esse livro por um preço bem bacana na Livraria de Babel.