Em Paranaguá, minha cidade natal, ainda não há ciclistas, clicloativistas, nem bikeiros. Há pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte. É uma sensação confortável estar na minha cidade natal com músicos na praça e bicicletas. Em vez de ouvir “The Wall”, eu penso em “Cinema Paradiso”. Em breve esta aldeia será igual a todas as outras, com a instalação de dois shopping centers — todos os que ainda andam de bicicleta terão seu carro. Há tempos li que o fotógrafo Pedro Martinelli foi morar na Amazônia para registrar os últimos momentos da floresta em pé. Também quero acompanhar esse momento de transformação em que a minha pequena cidade vai ser se tornar igual a outra qualquer.
Na Alemanha, na Holanda e na Bélgica, na China e no Japão, países em que a bicicleta não é meio de mobilidade alternativa, mas preferencial, as pessoas levam tudo sobre duas rodas. Os japoneses, mais elegantes: executivos pedalam de terno e gravata e hábeis, empunham o guarda-chuva numa das mãos e com a outra agarram o punho do guidão; senhoras alinhadas na última moda desfilam com graça. Os chineses já se parecem mais com os caiçaras, levam a mulher e o filho e a mudança de casa sobre a bike.
No filme “Butch Cassidy and Sundance Kid”, Paul Newman tem uma famosa cena de bicicleta com Katherine Ross. Lá, explica que para os chineses, quando uma mulher e um homem andam juntos numa bicicleta estão namorando.
31Dada a profusão de bicicletas na cidade, meu avô, Kingo Kubota, ao instalar-se na cidade, teve visão de negócios. Abriu a Bicicletaria Santa Cecília, homenageando a cidade que morou anteriormente, no norte do Paraná: Santa Cecília do Pavão. Como todo bom japonês, meu avô cultuava rituais e adorava homenagens. Meu nome, por exemplo, é uma homenagem a outra cidade em que morou, no interior de São Paulo: Marília.
Fui uma criança cujo pai era dono de uma bicicletaria. Meus colegas de escola achavam que eu era a criança mais sortuda do mundo. Era o tempo em que nosso sonho consumista era ganhar uma Caloi, graças à propaganda televisiva: “Eu quero a minha Caloi”, anunciavam em todas as telas. Aprendi a andar de bicicleta com rodinhas e depois, sem rodinhas, caindo algumas vezes. Certa vez, minha escola promoveu um passeio de bicicleta e não fui. Todos me olharam espantados.
Além de vender bicicletas que ele mesmo montava, com a carcaça de bicicletas usadas, meu pai também tinha uma oficina. Os primos de meu pai e meus dois irmãos trabalharam na oficina. Um dia meu irmão mais velho foi para a escola com a mão suja de graxa. A professora perguntou o que era aquilo. Ele ficou com vergonha e nunca mais quis voltar pra escola.
Depois de anos, meu pai decidiu ampliar o negócio de duas rodas para quatro. E passou a vender peças de automóveis. Os primos já não trabalhavam com ele, meu avô havia partido, e o irmão envergonhado não sujava a mão com graxa. No ano de 1995, meus pais foram ao Japão pela primeira vez e viram de perto como o japonês se movia nas grandes cidades com bicicletas. Abandonavam suas bicicletas no estacionamento e pegavam outras, como guarda-chuvas. Já não se comoviam com as magrelas.
Desde que o cicloativismo começou a ganhar força em Curitiba e nas grandes metrópoles, impulsionado pelo exemplo das cidades europeias, passei a ver a bicicleta com os olhos de outros. Não era mais o ganha-pão de minha família, que pagou meus estudos. A bicicleta agora é transporte alternativo na mobilidade urbana.
Em Paranaguá as magrelas continuam em sua condição provinciana. Indo e vindo, levando o mundo sobre duas rodas. Penso que voltei numa hora boa para reciclar meus conceitos sobre a minha aldeia.