Tag: autores

  • Querido Nikki

    Querido Nikki

    (Foto: Mai Fujimoto)
    (Foto: Mai Fujimoto)

    Havia o diário, onde eu podia escr­ev­er min­has ver­dades, min­has inqui­etações, min­has aflições pes­soais, min­has con­fis­sões, meus amores, e havia poe­sia, que era uma out­ra coisa, e que eu não enten­dia dire­ito o que era. Até que começaram a se aprox­i­mar os dois, enten­deu? As duas coisas começaram a se aprox­i­mar. Perce­bi que no ato de escr­ev­er a intim­i­dade ia se perder mesmo.

    (Ana Cristi­na César, Escritos no Rio, Brasiliense, 1993, p. 206)

    “O livro do travesseiro”, de Sei Shônagon
    “O livro do trav­es­seiro”, de Sei Shônagon

    No Japão as cri­anças são estim­u­ladas a escr­ev­er diários. Lá, o nik­ki não é só um reg­istro pes­soal. É con­sid­er­a­do gênero literário. Obras clás­si­cas, como “O livro do trav­es­seiro” (Maku­ra no Sôchi), de Sei Shô­nagon e “Con­tos de Gen­ji” (Gen­ji mono­gatari) podem ser clas­si­fi­ca­dos como diários ou mis­celâneas do gênero, já que a cat­e­go­riza­ção literária é flu­i­da no país de Mat­suo Bashô. Aliás, o poeta tem um céle­bre diário de viagem, “Sendas do Oku(Oku no Hosomichi). A palavra japone­sa oku, grosso modo, pode ser traduzi­da como “pro­fun­dezas”, o inte­ri­or mais pro­fun­do. No caso de Bashô, sig­nifi­ca­va a viagem que empreen­deu por todas as provín­cias japone­sas, chegan­do às aldeias mais remo­tas, no sécu­lo XVII.

    No oci­dente, ao con­trário do Ori­ente, o diário é con­sid­er­a­do rela­to pes­soal. Nos anos 50, era comum mul­heres, donas-de-casa e mães de família man­terem diários. Uma diarista famosa, a poeta Ana Cristi­na César, expli­ca o moti­vo: o diário é um inter­locu­tor. Ana C. perce­bia a difer­ença entre o diário pes­soal e o diário literário, mais aprox­i­ma­do da lit­er­atu­ra japonesa.

    "A teus pés", de Ana Cristina César
    “A teus pés”, de Ana Cristi­na César

    No Japão, o diário literário con­tém poe­mas e desen­hos, é um hai­bun, como o de Bashô. O diário de Ana C., pub­li­ca­do em “A teus pés”, difere do diário da escrito­ra neoze­landesa Kather­ine Mans­field, por exem­p­lo. Ana C. capricha na lin­guagem poéti­ca, enquad­ran­do a sua intim­i­dade sob o molde literário. O diário de Mans­field é o tipo de doc­u­men­to apre­ci­a­do pela críti­ca genéti­ca, que exam­i­na doc­u­men­tos pes­soais do escritor. A poe­sia de Bashô ou de Ana C., emb­o­ra pertençam à escri­ta da intim­i­dade, cat­e­go­rizadas como diários, são lit­er­atu­ra. O que difere um e out­ro é a lin­guagem que se emprega.

    No plano pes­soal, diário não é só para ficar baten­do-papo con­si­go, num exer­cí­cio exac­er­ba­do de auto-nar­ci­sis­mo. Fun­ciona como arqui­vo, para orga­ni­zar a memória. Para uma ger­ação de mul­heres edu­cadas para serem donas-de-casa ou servirem à família, os diários fun­cionavam como válvu­la de escape. Não bas­ta­va o con­fes­sionário da igre­ja para expi­ar as cul­pas. Essa ger­ação não havia sido intro­duzi­da ao dis­cur­so da psi­canálise e da psi­colo­gia. O diário era a saí­da para preser­var a sanidade mental.

    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angélica Freitas
    Andréa Del Fuego, Daniel Galera e Angéli­ca Freitas

    Nos anos 90, os blogs se tornaram moda no Brasil. Blog é tam­bém uma espé­cie de diário. Lançaram mais de um escritor à cele­bri­dade: Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck, Marceli­no Freire, Andréa Del Fuego, Daniel Galera, Angéli­ca Fre­itas, todos tin­ham seus blogs, e reg­is­travam entradas diárias. Com Roland Barthes dec­re­tan­do a morte do autor, tornar-se autor já não era priv­ilé­gio de uma elite de pre­des­ti­na­dos. Os soft­wares que facil­i­tavam a pub­li­cação de diários eletrôni­cos aju­daram. Depois vier­am as redes soci­ais, e os blogs se tornaram ultrapassados.

    Fabrício Carpinejar, Clarah Averbuck e Marcelino Freire
    Fab­rí­cio Carpine­jar, Clarah Aver­buck e Marceli­no Freire

    Mes­mo depois da explosão das redes soci­ais, con­tin­uei a escr­ev­er em meu blog. Hoje ele já não é mais um con­fes­sionário vir­tu­al. Ain­da man­ten­ho o reg­istro da intim­i­dade, mas bus­co uma lin­guagem mais literária, próx­i­ma do nik­ki. O blog não bus­ca auto­ex­posição aleatória. E tam­bém quer preser­var o esta­do de solidão. Esta­b­ele­cer uma comu­ni­cação. Isso é lit­er­atu­ra: o meu caminho.

  • Um homem que escreve jamais está só

    Um homem que escreve jamais está só

    Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e Jamil Snege
    Valên­cio Xavier, Manoel Car­los Karam e Jamil Snege

    Quem escreve con­to ou poe­sia pre­de­ter­mi­na que não terá públi­co em mas­sa. Con­to e poe­sia são gêneros des­ti­na­dos a um públi­co fora do alvo do mer­ca­do edi­to­r­i­al. Uma ex-jor­nal­ista que tra­bal­ha no mer­ca­do adverte: se quis­er entrar, o can­dida­to a escritor tem que escr­ev­er romance. Autores pub­li­ca­dos por grandes edi­toras são romancis­tas. Exceção, os con­sagra­dos ao lon­go do tem­po. E aí se tem uma vida inteira — e uma morte — de trabalho.

    Valên­cio Xavier, Jamil Snege, Manoel Car­los Karam, Wil­son Bueno talvez sejam daque­le tipo de autores que jamais atin­jam o grande públi­co. O “grande públi­co”, essa enti­dade fan­tás­ti­ca que lê “50 tons de cin­za”, “O diário de um mago”, “Har­ry Pot­ter” e é visa­do pelo mer­ca­do, nem sem­pre se inter­es­sa por boa lit­er­atu­ra. Assim, se pri­va de ler, além dos já cita­dos, Nel­son de Oliveira, Luiz Ruffa­to, Ricar­do Lísias e J.M. Coet­zee. E, claro, nem quer saber de poe­sia. A não ser que o poeta se torne um fenô­meno com­er­cial, como Paulo Lemins­ki. O grande públi­co seguirá igno­ran­do as obras de Alice Ruiz, Paulo Hen­riques Brit­to, Adília Lopes, Miche­liny Verun­schk. Lerá, quan­do muito, Manoel de Bar­ros.

    Wilson Bueno, Nelson de Oliveira e Luiz Ruffato
    Wil­son Bueno, Nel­son de Oliveira e Luiz Ruffato

    Recon­heci­do pela críti­ca, Valên­cio mor­reu “esque­ci­do” . Tão esque­ci­do que nem sabia mais diz­er seu nome. Em vida, Valên­cio era esque­ci­do. Pela man­hã tele­fon­a­va aos ami­gos para con­tar casos que repe­tiria à noite, quan­do os encon­trasse. Era o iní­cio do “Alemão”. A doença não cor­tou a verve cria­ti­va e per­maneceu lúci­do. A frase der­radeira do últi­mo livro, “Rre­men­branças da meni­na de rua mor­ta nua e out­ros livros”, pub­li­ca­do em 2006 é: “Estou mor­to.” Valên­cio, ele mes­mo, era seu per­son­agem. Seguiu estri­ta­mente o con­sel­ho de Roland Barthes que dizia: “tra­bal­he enquan­to hou­ver sol.” A luz da razão per­maneceu até o lim­ite da lucidez.

    Há alguns anos, Daniel Fil­ho lançou uma biografia inti­t­u­la­da “Antes que me esqueçam”. Atores globais e out­ras cele­bri­dades lançam biografias e livros para não serem esque­ci­dos. O livro, obje­to mis­te­rioso numa cul­tura midiáti­ca audio­vi­su­al, é um amule­to que asse­gu­rará a imor­tal­i­dade dos tementes do Juí­zo da Eternidade. É fácil pre­v­er que, à parte sua neces­si­dade de ser irra­di­a­da pelo públi­co, em pouco tem­po essas cele­bri­dades serão esquecidas.

    Ricardo Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee
    Ricar­do Lísias, Alice Ruiz e J.M. Coetzee

    Na Antigu­idade, os reis não podi­am ser vis­tos pelo povo, nas tri­bos prim­i­ti­vas. Como eram con­sid­er­a­dos deuses, não podi­am tocar o solo impuro, toca­do por todos. Eram lhes atribuí­dos poderes de con­tro­lar as forças da natureza e pro­por­cionar boas col­heitas na agri­cul­tura. Mas seus poderes só se man­tinham intac­tos longe do povo. Assim, criou-se o vín­cu­lo entre objetos/entidades sagra­dos e sua ocul­tação ou vela­men­to públi­co. Aparente­mente, a era da repro­dução instan­tânea inver­teu o par­a­dig­ma. Ago­ra, o que deve ser cul­tua­do têm que ser superexposto.

    Michelliny Verunschk, Paulo Henriques Brito e Adília Lopes
    Michelliny Verun­schk, Paulo Hen­riques Brito e Adília Lopes

    Um pas­so para além da neces­si­dade de pub­li­ci­dade, o val­or do obje­to artís­ti­co per­manece igual ao de ger­ações pas­sadas. A memória humana não é preser­va­da nos obje­tos que seduzem instan­ta­nea­mente. Mas naque­les em que se percebe o val­or do tra­bal­ho e da luta pela preser­vação da humanidade. No caso da lit­er­atu­ra, o tra­bal­ho com a lin­guagem e a lín­gua: novas per­cepções, conexões, saltos cria­tivos. Por isso, escritores como Valên­cio Xavier não são esque­ci­dos. O sol bril­hou em seu sig­no astral, até sua luz sumir no hor­i­zonte. Esse tími­do raio de sol será vis­to por anos.