
À primeira vista, quando peguei, por acaso, o material de Brian Wood (roteiro) e Ryan Kelly (arte) na livraria Quinta Capa (a mais legal de Teresina), tive basicamente a intenção de atualizar algumas leituras ainda desconhecidas por mim na cena dos quadrinhos. A sensação que tive (não sei explicar o motivo) ao tatear “Local” foi de encontrar algo na linha narrativa de Craig Thompson em “Retalhos”, por imaginar que o eixo temático seria parecido. Felizmente estava enganado, e o universo que se abriu foi outro bem diferente, lindo por sinal.
“Local” expõe a importância dos lugares e das caminhadas que fazemos pelos espaços. No início da leitura, tive preconceito em achar que a história não teria uma potência poética universal na linha de trabalhos autorais como de Emilio Fraia e DW Ribatski (“Campo em Branco”) ou do próprio Craig, mas não. Mesmo com uma narrativa que freqüenta ambientes/paisagens estadunidenses, o impacto da obra universaliza o que somos e o que podemos ser… É surpreendente!
Estruturado em 12 capítulos “autocontidos” (encadernado em dois volumes: “Ponto de Partida” e “Fim da Jornada”, pelo Devir Livraria), as histórias estão demarcadas na vida de Megan McKeenan, uma jovem em busca de novas experiências, que segue viajando pelos EUA atrás de si mesma.
Cada capítulo situa Megan numa cidade-aventura, no qual ela vive uma série de situações cotidianas com pessoas normais, que vivem seus problemas, suas conquistas, afetividades e desesperos, que nem sempre é fácil de entender: um mergulho nas particularidades.
Entre empregos, namorados, sustos, experiências culturais, decepções e imaturidades, Megan nos encanta com sua vontade de descentrar o Eu que a habita, pulverizando as raízes que a prendem no chão, carregando nas costas sua mochila recheada de desejos e sonhos. Quebrar as linhas rígidas do mapa e compreender-se enquanto cartografia: se jogar sem medo ou culpa, pelo Não do previsível.
Megan caminha pela cidade encarando‑a como um laboratório de sensibilidades. Talvez ela não compreenda inicialmente a força dos elementos afetivos que está criando, mas do decorrer da narrativa é possível acompanhar que cada espaço praticado representa uma micro-revolução fundamental na construção da sua personalidade.
Megan muda seu olhar para o mundo a cada aprendizado vivido. Potencializa os estilhaços recolhidos dos confrontos urbanos interiores e das pessoas que habitam estas tensões. Ser a soma dos cruzamentos das avenidas, dos gritos e estouros alheios, dos parceiros de quarto mal-resolvidos, do irmão problemático e dos corações-fantasmas. Histórias muitas vezes inconclusas, encerradas às pressas com um bilhete de despedida.
A paixão de Megan pela fuga/deambulação/desprendimento dos centros de fixidez vem desde a infância, quando avisava para a mãe que estava fugindo para algum lugar e tinha como resposta: “Mas daqui a pouco é hora de jantar. O que você vai comer? Quem vai cozinhar pra você?”.

Sua primeira tentativa de explorar o mundo foi frustrada, pois não passou do “carvalho no nosso quintal da frente”. A suposta “indiferença” da mãe em torno das fugas era, na verdade, um incentivo para que Megan seguisse seu destino sem medo de sonhar.
Enquanto nossas mães nos sufocam com proteção e mimo, “ela estava removendo qualquer obstáculo que surgisse no meu caminho. Ela queria que eu me sentisse livre”. A mãe era vítima de uma profunda prisão interior, e não desejava o mesmo à filha.
A mãe atua como espaço livre de travessia para o mundo em construção. A figura paterna aparece como elemento repressor na jornada, mas nada que atrapalhe seus objetivos: “Meu pai nunca a desafiou [mãe], nunca levantou um dedo para tirá-la da sua rotina diária. Acho que na cabeça dela, me limitar seria uma forma de mau trato”.
Aprendendo com a mãe que o desprendimento representa os sonhos e a esperança da liberdade, Megan só encerra sua caminhada quando a pontes entre o coração materno e o mundo rompem-se com a violência inesperada da morte.
Após o falecimento da mãe, é hora de voltar. A dispersão e a identidade flâneur convertem-se em fechadura-porta-casa. Agora é preciso sentar no sofá, tomar um leite quente e ser importunada por todos os espíritos que o passado guardou na mochila. Quantos territórios te perseguem? Quando amores não enterrados te perturbam? Quantas feridas não cicatrizaram na memória? Qual o preço de percorrer tantos universos em busca da liberdade? Os fantasmas “querem saber por que você os abandonou?”.
O trânsito pelo mundo é encerrado (por enquanto) na casa da falecida mãe, em Vermont, sozinha. O lar materno é chave para o auto-conhecimento. Recolher-se para o descanso, até que novas aventuras e convites para futuros saltos apareçam por aí.
“Meu primeiro instinto é fugir, ir embora, simplesmente se esquivar da questão e evitar a situação. Mas não há pra onde fugir. Por que fui embora todas aquelas vezes? Eu não sei por quê!”
Num encontro com o espírito da mãe, ela confessa que suas fugas pelo mundo resultaram em profundas crises existenciais. A solidão da caminhada a obrigou a entender seus conflitos pessoais sozinha, já que, até então, nunca compreendeu por que as pessoas foram tão horríveis com ela, porque estava deslocada de tudo.
Precisamos sentir saudade, talvez esse foi o erro de Megan: negligenciar tal sentimento.
Sentada na varanda da velha casa, ela pensa: “No fim, o que realmente importava era o que eu pensava, como eu respondia às minhas próprias perguntas. Demorei muito tempo pra perceber isso. E com o tempo, eu fiquei verdadeiramente feliz comigo mesma.”
O retorno ao antigo lar move a pergunta final: “A sua cidade natal se importa com você?”
Somos como Megan. Sujeitos em construção/contradição. Um pedaço de muitos lugares, cacos de muitas esquinas, retalhos de amores feridos, rupturas em busca de aconchego, mutações diárias, ilhas desconhecidas. Somos conexões de olhares e sabores de cidades passadas. De nenhum lugar, de todos os lugares.
No final, o cheiro da infância nos torna pessoas fortes.