Um trauma emocional é o tipo de veneno com grande concentração de substâncias mortíferas. Agindo internamente e induzindo a um grande sofrimento, o trauma quase sempre vem acompanhado de estados físicos ou psíquicos lesionados pelo tempo e pelas vivências negativas acumuladas. Sorrateiramente, ele vai crescendo em dimensões e poder destrutivo, e tal qual uma epidemia, é difícil extirpá-lo.
Retalhos de diferentes traumas compõem a obra “Boneco de Neve” (original Snømannen, tradução de Grete Skevik, editora Record, 2013, págs. 420), sétimo livro da série “inspetor Harry Hole”, trabalho do escritor, músico e economista norueguês Jo Nesbø. Aclamado na Europa e em franca ascensão pelo mundo, Nesbø já vendeu mais de 20 milhões de livros, conquistando o Prêmio Glass Key como melhor romance nórdico de 1998.
Na obra “Boneco de Neve”, o terror psicológico dos thrillers policiais lançados pelo autor norueguês retorna com força total, personificado agora pela presença do assassino em série que, antes de sumir com as vítimas, deixa um “simpático” bonequinho feito de gelo em frente ao local em que comete os sequestros. O lunático costuma atacar sempre quando cai a primeira neve do ano, agindo dentro de um padrão. Descobrir que tipo de linha de ação e quais são os modelos (e segredos) que orientam o serial killer é tarefa do problemático inspetor Harry Hole.
Marcado pelas trágicas lembranças de um passado tumultuado, Hole amarga o rompimento de um relacionamento, a morte de amigos em missão, o definhamento da mãe em um leito de hospital, além de situações familiares complicadas e a dependência do álcool. Quando donas de casa começam a desaparecer misteriosamente, com a posterior desova de alguns cadáveres – ou o que sobrou deles -, o traumatizado inspetor começa a medir pistas, contando com a ajuda da policial Katrine Bratt, recém-integrada à corporação em que Harry é lotado.

A trama é estruturada com idas e vindas na ordem cronológica, além de digressões dos personagens, o que exige um pouco mais de atenção do leitor. A narrativa é intensa, repleta de picos de tensão, misturando elementos macabros e perturbadores, mas sem apelar para a escatologia visceral de livros como “O Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis. O grande trunfo de “Boneco de Neve” é enveredar pelo enigma ao desafiar a percepção do leitor; a todo o momento, o senso de observação é colocado à prova, pois cada detalhe revela mais – ou menos – do que aparenta.
Confesso que antes de começar a leitura, subestimei o emblema do boneco de neve como assinatura de um assassino perverso. Ligada à figura do ‘homem de gelo’ como metáfora natalina próxima do universo infantil, não consegui perceber de imediato que nessa escolha também reside uma pista importante. De objeto lúdico à marca de crime, a imagem do boneco atravessa ciclos diferentes, que ajudam a compreender um pouco do universo que o autor apresentou.

Seguindo o ritmo frenético da obra, deslumbrei todos os meus neurônios para que superassem o cansaço e continuassem em marcha, afinal, são 420 páginas vorazes. Interessante notar que a descrição física do policial Harry Hole me fez supor que a personagem pode se tratar de um alter ego de Jo Nesbø, pois as associações são imediatas. Fora isso, Nesbø criou uma espécie de “certidão pessoal e profissional” para o protagonista de suas séries, com direito a descrições de personalidade, curriculum vitae, interesses, ambições e planos futuros. Gostei de descobrir que estou ligada ao detetive atormentado pelo gosto musical (Sex Pistols e Neil Young) e pela ambição pessoal, que consiste em entender o que é a maldade e o amor.
Comparado pelo jornal britânico The Sunday Times ao influente “O silêncio dos inocentes”, do escritor Thomas Harris, a carnificina silenciosa do livro “Boneco de Neve” leva o leitor a penetrar em uma versão moderna do mitológico labirinto de Dédalo, onde uma besta movida por emoções humanas sequestra e aniquila suas vítimas, deixando um rastro silencioso de terror. Jo Nesbø cativa o leitor ao trazer o diabólico e a redenção lado a lado, em capítulos que pulsam, dilatam e escondem. Uma dica preciosa: esteja atento aos mínimos detalhes e símbolos espalhados em toda a narrativa. Como escreveu o dramaturgo William Shakespeare na peça “Macbeth”: “Pelo comichar do meu polegar, sei que deste lado vem vindo um malvado”.
Assista o book trailer sensacional do livro (versão do Reino Unido):