“Esta grande infelicidade, a de não estar só”, reveladora sentença do ensaísta francês La Bruyère (1645 ‑1696), foi escolhida pelo contista e poeta Edgar Allan Poe, mestre da “beleza mórbida” literária, para ilustrar o conto “O Homem da Multidão”. Publicada em 1840, a história narra as percepções feitas por um homem que observa o trânsito de pessoas na rua. A partir das características físicas, indumentárias e gestuais, o observador vai desnudando a identidade de personagens anônimos. Em dado momento, quando avista um sujeito idoso, com roupas que escondem requinte atrás da sujeira e movimentos ansiosos para se misturar à multidão das ruas, o narrador inicia uma louca perseguição. A cada novo passo, ele percebe que o “homem das multidões” recusa-se a estar só; seu maior desejo é perambular anonimamente entre a turba londrina.
Ser alguém sem nome e sem rosto no furacão coletivo, acalenta a consciência humana com uma falsa sensação de segurança, construindo um castelo de areia contra o medo da morte. A solidão e a morte andam de braços dados, tornando o indivíduo apenas uma partícula inexistente entre tantos organismos vivos. Esse é o sentimento de Almeida, personagem do curta-metragem O Dia M, dirigido por Paulo Leierer. Interpretado pelo ator Caco Ciocler, Almeida é um homem na casa dos trinta anos que descobre, através de exames laboratoriais, que seus dias de vida estão contados. Sozinho em sua casa, ele decide que precisa lidar com a situação e informar às pessoas próximas que está caminhando para a estrada do sono eterno.
No entanto, a notícia de sua morte não parece afetar absolutamente ninguém ao seu redor. Assim como o ‘homem da multidão’ de Poe, Almeida vai perambulando entre casas, ruas, pessoas e cemitérios, misturando-se ao cotidiano de rostos egoístas, cansados, amargurados e indiferentes. Lembrando a novela russa “A morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstói, mas sem sequer ter a presença confortante de um Gerassim, o solitário moribundo Almeida se vê às voltas com as máscaras humanas. Perto do leito de morte, ele está só. Completamente só.

Duas das cenas mais assombrosas do drama são espremidas na cara do espectador logo no começo do curta, quando Almeida vai à casa dos pais para anunciar sua morte e, em seguida, procura contratar os serviços de um despachante funerário. No meio da incredulidade furiosa do pai e do deboche sarcástico do despachante, Almeida encara silenciosamente a fragilidade de tudo o que imaginava ser e ter.

Vencedor de Melhor Curta no Hollywood Brazilian Film Festival – HBRFEST em 2009 e do Troféu Shoestring no Rochester Internacional Film Festival, também em 2009, O Dia M foi selecionado em inúmeros festivais nacionais e estrangeiros. A anônima trajetória de um homem que percorre a multidão e que deseja desesperadamente ser notado, pois o dia de seu adeus definitivo galopa a passos largos e ele estará mais solitário do que a própria morte, confronta o indivíduo com sua existência: Será que significamos alguma coisa? Alguém sentirá nossa ausência? Atravessaremos sozinhos o abismo da morte? Até que ponto a atomização do homem o faz querer ser partícipe do coletivo, para depois empurrá-lo para a condição real de solidão e esquecimento?
Essas são algumas das questões com as quais o curta-metragem indaga o espectador, dando firmeza à proposta do diretor Paulo Leierer e de toda a equipe. Destaque para a trilha sonora do filme, com a faixa “First Breath After Coma” (álbum The Earth is not a cold dead place), da banda americana de post rock Explosions in the Sky.
Visualmente, O Dia M lembra uma mistura das pinturas solitárias de Edward Hopper com as lúgubres visões da morte retratadas pelo nórdico Hugo Simberg. Ou, nas palavras do poeta Rainer Maria Rilke: “A solidão é como uma chuva. Ergue-se do mar ao encontro das noites; de planícies distantes e remotas sobe ao céu, que sempre a aguarda. E do céu tomba sobre a cidade. (…) Então, a solidão vai com os rios…”.
Assista o curta-metragem aqui: