Mãe dá a Filha uma caixa cheia de velhos disquinhos coloridos com músicas infantis. Filha poderia ouvir os disquinhos, mas nunca, o disco verde.
É com essa narração peculiar e sinistra que começa o curta Vinil Verde (2004), dirigido por Kleber Mendonça Filho, um suspense brasileiro bem fora do comum.
A história toda se desenvolve em volta desta proibição e como já era de se esperar, Filha não consegue resistir por muito tempo à tentação de escutar o Vinil Verde (apesar de todos os dias Mãe lembrar de que não poderia). Cada vez que toca o disquinho, algo ruim acontece. Mesmo assim, continua fazendo isso todos os dias até as consequências chegarem ao seu ápice.
O fato dos personagens serem chamados de “Mãe” e “Filha”, já cria um tom meio sinistro no curta, que fica ainda mais macabro por conta da narração com sotaque alemão carregado. A história é uma livre adaptação da fábula russa “Luvas Verdes”. Seu estilo lembra bastante o livro infantil “Juca e Chico — História de Dois Meninos em Sete Travessuras”, do autor alemão Wilhelm Busch, traduzido por Olavo Bilac, onde as travessuras são tão cruéis quanto suas consequências.
Este é o segundo trabalho de Kleber Mendonça Filho, que está chamando muita atenção na mídia nacional e internacional, por conta do seu último longa O Som ao Redor. O curta foi todo feito com fotografias (totalizando 500 fotogramas) e junto com a narração, faz com que ganhe um ar fantasioso e assustador.
Para quem ficou curioso, a música do tão perigoso Vinil Verde, foi feita por Silvério Pessoa e Tonca. Ela foi tocada por uma banda de Ribeirão Preto que fazia basicamente só cover dos Los Hermanos, sendo este um de seus experimentos mais autorais.
Se você ficou interessado em assistir outros trabalhos do diretor, alguns deles podem ser assistidos na sua conta oficial do Vimeo.
O Som Ao Redor (Brasil, 2012), de Kleber Mendonça Filho, foi um dos longas nacionais mais comentados no ano de 2012, recebendo inclusive uma posição na famigerada lista de A.O. Scott, o principal crítico de cinema da jornal americano New York Times. Trazendo a assinatura de mais um promissor diretor e roteirista de Recife, o longa trata de forma sutil a violência e a sua relação com os problemas sociais da classe média.
Um bairro de uma grande cidade, um lugar onde vive famílias típicas de classe média. Condomínios e casas perto da praia montam um contexto. Apesar de haver condomínios de luxo, há também casas mais simples, do alto de um prédio se avista uma favela próxima. Essa região vem sofrendo um surto de assaltos e violência, e um grupo de seguranças independentes propõe fazer uma espécie de ronda diária para proteger os moradores do lugar. Com a chegada desses elementos estranhos aos padrões de vida do lugar, o longa faz um recorte de um momento muito atual das cidades brasileiras.
Uma vizinhança é um convívio coletivo mas que sempre haverão os que estão coordenando no topo. Em Som ao Redor as hierarquias são estabelecidas através da cor da pele, do poder aquisitivo de compra de uma TV, de uma ameaça ou de tradicionalismos sociais. Kleber Mendonça reflete no longa uma Recife que ainda ecoa uma sociedade do século XVIII, escravocrata e feudal, mas que poderia ser em qualquer lugar do Brasil.
O som do longa confunde num primeiro momento o espectador. As vozes saem baixas, em alguns momentos é inaudível o que os personagens falam. O que parece ser um problema de captação de som funciona mais como um recurso bastante ousado de narrativa. O som externo é o que prevalece, o som ao redor que torna o cotidiano desses moradores um só, independente do que acontece no interior das residências. São os latidos de cachorro, o vizinho que liga o aspirador na janela para provocar intrigas ou mesmo os ambulantes de CDs e DVDs que passam com seus carrinhos de som que realmente importam no enredo.
A forma e o conteúdo do longa andam muito bem juntos. Além do aspecto de som, o longa passeia pelos personagens trazendo sutilezas de cada um em pequenas metáforas de cenas cotidianas. Muitos ângulos trazem sentidos diversos e são esses pequenos cuidados com a câmera que universaliza todo o enredo do longa em cenas carregadas de sentido. As grades das casas com seus próprios cadeados ganham um sentido diferente quando a câmera filma de fora da porta um quadro católico de Jesus e Maria separados pela grade. São sutilezas poéticas facilmente identificáveis no cotidiano.
“Não queria dizer nada, mas tenho recebido minha Veja fora do saco plástico” diz uma moradora de um condomínio da região e a frase deixa clara uma vida morna, entediante e competitiva de uma classe média que vive para provar que pode ostentar um padrão de vida enquanto muitos subordinados – empregados, porteiros e seguranças – são as verdadeiras bases para que essa classe consiga se manter em pé. E enquanto essa classe se preocupa em ostentar seu poder de dinheiro – ganho na forma de um regime de trabalho deprimente – os que são nivelados por baixo como simples prestadores de serviços dessa classe se organizam para que eles possam sobreviver das paranoias dos que estão acima.
O Som Ao Redor lembra de certa forma o que o ótimo Sérgio Bianchi fez em Os Inquilinos, além de outros longas do diretor em que a realidade é tratada de forma cínica quando vista do ponto de vista ficcional. Quando observamos como espectadores os pequenos detalhes de convivência urbana e social, estes se tornam abomináveis. Por exemplo, uma simples chegada de compra de uma TV causa a ira de um vizinho que não pode tê-la ou um “não” dado ao cuidador de carros da rua pode levar ele riscar o carro num ato de vingança. Nessa pirâmide social os que estão acima ou abaixo, até mesmo os que vivem do outro lado da cerca acham seus meios de burlar os limites impostos pelas regras ou perpetuar o seu espaço, sempre há os que se acham vitimizados pelo meio e dispostos a se dar bem.
Um ponto bastante interessante e próprio ao contexto da cidade de Recife apresentado no longa, é como a questão da escravidão negra no Brasil ainda reflete de forma tão sutil na caracterização dessa classe média dos personagens de O Som ao Redor . Desde os empregados até os seguranças da rua, a situação social construída sobre os aspectos históricos do país é nítida, forte e ao mesmo tempo sutil e metafórica. Vive-se na sombra de um problema que foi construído ao longo de pelo menos cinco séculos.
O Som ao Redor é um excelente trabalho que surge no mar de produções tão descaracterizadas do cinema nacional atual exibidas no circuito comercial. Flertando com as críticas propostas no Cinema Novo, ele também apresenta os cenários urbanos atuais de um Cinema de Retomada. Vale a pena prestar atenção no trabalho de Kleber Mendonça Filho, que além de curtas premiados como O Vinil Verde, em seu primeiro longa soube olhar criticamente ao seu próprio redor.