Quando comecei a trabalhar em jornal, minha primeira incumbência como estagiária foi fazer a página de óbitos. Eu detestava aquilo. Queria escrever críticas de livros e de filmes e ser célebre. Mas nem um estagiário é contratado para escrever críticas de livros e filmes. Para não ter que apenas digitar a página com o nome dos mortos do dia, inventava nomes estapafúrdios como Epaminondas Pantagruel e metia no meio da lista. Se alguém percebeu a pequena traquinagem, nunca fiquei sabendo.
A primeira reportagem que fiz na vida foi sobre irregularidades de estacionamentos privados na cidade. Eu não lia jornais locais, só revistas semanais e as páginas de cultura, além de 4 ou 5 livros de ficção por semana. Não sabia como funcionava a administração pública, nem os negócios. Trabalhei durante muito tempo na editoria “Geral”, como se chamavam os cadernos que traziam notícias e reportagens sobre a cidade. Entrevistei muito buraco de rua. Hoje nem sei como escrevi essas matérias. Além de tímida (não sabia fazer perguntas), não sabia escrever matérias para a editoria de notícias locais. Algumas devem ter sido estapafúrdias, e posso ter metido um poema ou citação literária no meio.
Até hoje não sei como consegui ser aprovada em todos os cursos vestibulares para os quais prestei concurso. No curso de jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, nos cursos de Letras da Pontífice Universidade Católica do Paraná e da Universidade Federal do Paraná e no curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná. Se tivesse juízo, teria morado 4 anos em Londrina. Um dos professores do curso dizia que o jornalismo era arte, como a arquitetura. E que teve uma aluna que não conseguia organizar as ideias para escrever uma notícia. Me identifiquei imediatamente. Nunca consegui organizar ideias para escrever uma notícia. Não sei como fiz entrevistas e escrevi reportagens durante 25 anos de profissão.
Revisores e editores sempre sofreram comigo. Na verdade, jamais publiquei poemas meus nos jornais em que trabalhei. Também não escrevia textos poéticos em reportagens jornalísticas, embora algumas notícias — pela minha falta de contato com a realidade concreta — fossem estapafúrdias.
Com o tempo, aprendi a não levar tudo tão a sério. Mas ainda é difícil ser simpática e agradável o tempo todo. Em grupo, gosto de ficar em silêncio, mais observando do que falando. Sozinha, gosto de curtir melancolia e ler sobre tipos esquisitos. Se um poema, crônica ou novela trata da vida de um tipo esquisito, me apaixono, como os bizarros de J.D. Salinger ou os solitários de Dostoievski.
Hoje em dia prefiro seguir o caminho contrário ao dos que se apressam para chegar a algum lugar. Ando em ruas solitárias e descubro que alguns consensos podem ser rompidos. Andando a pé, converso com moradores de rua e muitos parecem não ser perigosos. Pelo contrário, têm medo de receber um não. Não devia conversar com desconhecidos. Isso acontece por acidente. Alguém pede dinheiro e eu digo que não tenho, mas dou um sorriso. Daí o marginal perde o medo e começa a conversar.
Algumas pessoas me acham insuportável por esquecer tudo. Desde acontecimentos a nomes de pessoas. Esquecia o chuveiro ligado ou a chave na porta de casa. Cheguei a esquecer de pegar documentos para ir viajar, as passagens de avião ou as malas. Minha distração chega a tal ponto que acabo esquecendo muita gente. Nesse caso, corroboro o ditado “há males que vêm para bem”. Esquecer se torna uma dádiva quando é preciso apagar ofensas e ressentimentos da alma. Já dizia o inesquecível Mário Quintana; “tenta esquecer-me… Ser lembrado é como evocar/Um fantasma”. Assim é…
Dez anos. Esse foi o tempo que durou a parceria entre o ilustrador Eduardo Baptistão e o jornalista Daniel Piza. Durante esse período, Baptistão foi responsável pelas ilustrações da coluna Sinopse, assinada por Piza e publicada aos domingos no Caderno 2 do jornal Estadão (Estado de S. Paulo).
Premiado dentro e fora do Brasil, Baptistão é dono de um traço inconfundível, instigante e lúdico, característica que impactou Daniel Piza. Gentilmente, Eduardo abriu seu arquivo pessoal para compartilhar com todos os leitores e leitoras do interrogAção algumas das ilustrações que fez de Piza.
Confira também as impressões do ilustrador sobre a parceria de uma década:
Começo da parceria
Daniel já havia trabalhado no Estadão no início dos anos 1990, depois passou pela Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil. Voltou ao Estadão em 2000 como editor executivo e colunista de cultura e esportes. No início da publicação — uma coluna semanal no Caderno 2 -, ele procurou entre os ilustradores do jornal o estilo que mais se adaptava à ideia que tinha, e acabou optando pelo meu. Durante todo o período em que publicou a coluna Sinopse – pouco mais de 10 anos -, foram raros os domingos em que eu não a ilustrei. Nessas ocasiões, em que eu estava em férias ou de folga em algum feriado, quem normalmente me substituía era o meu amigo e colega Carlinhos Muller. Coube ao Carlinhos, por sinal, ilustrar a última coluna que Daniel escreveu, pois eu cumpria a folga de Natal.
Daniel Piza no dia a dia
Daniel gostava de conversar. Por ser um cara muito culto e informado, eram sempre ótimos papos! Não éramos íntimos a ponto de abordar assuntos pessoais, mas sempre trocávamos ideias sobre a coluna, sobre o tema proposto e, muitas vezes, eu lhe perguntava se tinha alguma imagem em mente para a coluna da semana. Ele sempre confiou na minha interpretação e me deu carta branca para criar. Em vez de enviar o texto por e‑mail, coisa que raramente fazia, Daniel preferia levar o texto impresso até a minha mesa, e sempre fazia algum comentário sobre o assunto principal da coluna. Nessas ocasiões, eram também comuns as conversas sobre futebol, paixão que tínhamos em comum, embora fôssemos “rivais” – ele corintiano, eu palmeirense. Cheguei a jogar futebol com ele muitas vezes, nas peladas noturnas organizadas pelo pessoal da redação. Daniel tinha muito bom domínio de bola e vocação de artilheiro – mas, devo dizer, isso era facilitado pelo fato de jogar sempre “na banheira” [posição de impedimento].
Repercussão das ilustrações
É difícil falar sobre a repercussão das ilustrações, porque raramente eu tinha algum retorno do público sobre elas. De maneira geral, os leitores comentavam muito as colunas, mas eram raríssimos os comentários sobre as ilustrações. Lembro de um desenho, de um filho correndo em direção ao pai sentado no chão, que fiz para uma coluna sobre o dia dos pais, em que um leitor se declarou emocionado não só pelo texto, mas também pela imagem.
Filho correndo para o pai sentado no chão (Eduardo Baptistão)
Traços marcantes de Daniel Piza
Algumas colunas do Daniel eram escritas tão em primeira pessoa que me sugeriam usar a figura dele como personagem da ilustração. Mas, nessas ocasiões, eu optava por apenas sugerir o Daniel nos desenhos, sem me preocupar muito com a semelhança. No conjunto de ilustrações que fiz para a coluna ao longo do tempo, foram muitas em que o Daniel aparecia de alguma forma.
O que mais admirava no Daniel era a versatilidade e a produção caudalosa. Era notável a sua capacidade de escrever sobre qualquer assunto, do futebol à culinária, da arquitetura à religião, da política à ciência. E era notável também a quantidade absurda de colunas, reportagens, resenhas, artigos e livros que ele escrevia, assim como a quantidade de livros lidos, de shows, concertos, peças e filmes assistidos e de discos ouvidos para produzir às vezes uma única coluna! Eu sempre o usava como referência, pelo tanto que ele produziu em tão poucos anos de vida em comparação comigo, quatro anos mais velho e infinitamente menos produtivo. Mas eu acredito que ele era exceção e não parâmetro. Era, de fato, acima da média.
Veja abaixo as ilustrações criadas pelo Eduardo Baptistão de Daniel Piza:
Em novembro de 2000, o jornalista e escritor Daniel Piza (1970 — 2011) concedeu uma entrevista direta e polêmica ao apresentador do programa Provocações (TV Cultura), Antônio Abujamra.
Nela, Daniel Piza fala sobre a prática do jornalismo cultural no Brasil e sua descaracterização: “O jornalismo cultural, em geral, é o jornalismo que eles chamam de variedades. Então, é a pequena reseinha [resenha] do último disco pop que saiu na Inglaterra, ou uma entrevista pingue-pongue com algum ator de Hollywood. Isso é o que chamam de jornalismo cultural no Brasil”, dispara.
Piza destaca que o público brasileiro tem “medo de opinião, medo de discussão, um público que prefere o populismo, o ‘da boca pra fora’, do que realmente você discutir coisas que tenham a ver, que façam sentido, que digam respeito à qualidade”.
As declarações do jornalista possuem um tom controverso, mas eruditamente fundamentado, estilo que acompanhou Daniel Piza durante toda sua carreira. Essa é uma das características marcantes nas reflexões e discursos que permeiam o trabalho de Piza, reconhecido como um dos maiores nomes do jornalismo cultural brasileiro. Reconhecimento e valorização que continuam após sua morte precoce, ocorrida no final de 2011.
Quantos livros que você leu eram ambientados em um mundo fantástico, com fadas, elfos, trolls e até mesmo dragões? Se você acha esse tipo de livro uma literatura menor, vale lembrar o sucesso das obras de Tolkien, George Martin e até de autores brasileiros como Eduardo Spohr. É difícil predizer que elemento levou tais autores ao sucesso, mas com certeza a construção de uma história envolvente e bem ambientada, um universo crível e imersivo são aspectos que garantem a audiência literária que tais obras obtiveram.
A obra do jornalista, escritor e cineasta Fábio M. Barreto, Filhos do Fim do Mundo (Casa da Palavra, 2013), é ambientada não propriamente em um universo fantástico ou mundo paralelo. É um mundo pós-apocalíptico, ainda que muito próximo da sociedade em que vivemos hoje. Subitamente, em um dia específico, quando o relógio indica meia-noite, as crianças recém-nascidas começaram a morrer. Percebe-se que crianças com menos de um ano de idade, plantas e animais também pereceram. No mundo todo.
O que aconteceu? Qual é a cura para isso? Como evitar novas mortes e, mais importante, como levar a raça humana adiante a partir de uma perspectiva como essa? Tais perguntas invadem a obra e, principalmente, o protagonista, o Repórter, cuja mulher está grávida, pronta para parir a qualquer momento. O que já vale dizer que, se você gosta de histórias apocalípticas, de mistério, e quer se aventurar na nova seara de autores brasileiros, esta obra de Barreto certamente é pra você.
Ensaio sobre a cegueira, pela Cia das Letras
O livro lembra muito outras obras, como o filme “Filhos da Esperança”, e o livro de Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”. Este último é o que mais se aproxima da obra de Barreto, pela sua premissa também inexplicável: as pessoas começam a ficar cegas. O mundo, de uma hora para outra, torna-se um blecaute, um grande breu para a maioria das pessoas, que lutam desesperadas pela sua sobrevivência.
Mas há uma diferença grande na obra de Saramago e nas outras citadas no início do texto em relação ao livro de Barreto: nestas primeiras, ainda que as tramas apresentem elementos fantásticos, não são o principal chamariz dos livros. Na obra de Saramago, por exemplo, são os conflitos humanos, a imersão e a identificação que tais histórias proporcionam que nos levam a devorar suas páginas com avidez e ansiedade. O fantástico é o pano de fundo para uma humanidade frágil e em evidência.
No caso de Barreto, ainda que o livro tenha vários pontos altos e um protagonista muito cativante, o livro não deixa de lado as questões fantásticas por tempo suficiente para você mergulhar de vez na história e no drama do jornalista. E pior: as perguntas que são levantadas durante toda a obra, ao final do livro, não são respondidas.
Ou seja, o tempo todo os personagens do livro procuram a cura para o problema que aflige a humanidade e tentam entender porque essa tragédia acontece – é isso, e a tentativa de salvar o futuro filho, que motivam o personagem principal – para no fim isso não ter importância. Há um desenvolvimento muito bonito e tocante do Repórter e de suas desilusões sobre a humanidade, que acredito serem as melhores partes do livro – mas isso não foi o suficiente para eu não me perguntar a todo momento sobre respostas.
O autor Fábio M. Barreto
É possível dizer que a intenção original do autor é mostrar que esse pano de fundo criado por ele não passa disso – é a base para um drama maior, a saber, o crescimento e o amadurecimento do Repórter em sua jornada para salvar a família (e a forma como a sociedade se deteriora diante do caos). Mas a maneira como a história foi desenvolvida não me permitiu esquecer a razão de tudo aquilo e mergulhar de vez na trajetória do personagem. Eu buscava algumas respostas – que, diante do drama de alguns personagens podem ser vistas como questões menores — mas ainda sim a falta delas pareceu levar a história para um rumo diferente simplesmente para “surpreender” o leitor, e não para fechar a obra de maneira coerente.
Ilustração feita por Felipe Watanabe
Outro ponto negativo é que alguns trechos do livro são um tanto confusos, principalmente nas passagens de ação (como no momento em que é descrita a chegada do Repórter e de uma equipe militar a um dos bunkers existentes na história). É preciso lê-las duas ou três vezes para discernir com certeza o que se desenrola, quem está fazendo o quê e o que está acontecendo na sequência. É preciso atenção do leitor para não se perder nos eventos.
Assim, Filhos do Fim do Mundo é uma obra que pode levar o leitor a ter uma experiência um pouco truncada com a história, uma vez que não permite o embarque completo na experiência desse mundo criado por Barreto.
Já seus destaques são principalmente atrelados à jornada do Repórter e seu questionamento sobre a profissão, sobre sua família, sua vida e sobre si mesmo. A respeito destes pontos, Fábio Barreto merece todos os créditos. É curioso e tocante acompanharmos a trajetória deste “herói”, que se despe de todos os seus pré-conceitos, certezas e pré-julgamentos diante da nova realidade que se desvela diante de si, simplesmente para fazer o que for melhor para sua família. Há passagens em que é muito fácil se identificar com ele e com suas decisões, aproximando o leitor da história e permitindo o envolvimento que vez ou outra escapa durante a leitura.
- Já vimos isso acontecer, em escala menor, claro. Conflitos tribais têm muito disso. E vemos esses efeitos em nossos treinamentos de sobrevivência. Até certo nível de estresse, os soldados se unem; dali para a frente, o instinto fala mais alto e qualquer razão para ter alguma vantagem tática ou fisiológica será usada para o benefício daquele indivíduo – continuava o argumento. A lógica parecia impecável e o discurso era sincero, chegando a ser influenciado por momento de pensar profundo, presentes, mesmo que de forma contida. Assim como o Repórter, o Major preferiria desconsiderar tudo aquilo, entretanto a verdade não podia ser omitida. E ambos sabiam. (p. 193)
O fim da obra, ainda que não seja o que leitor possa esperar, surpreende e emociona. Com alguns trechos revisados (principalmente na descrição das cenas de ação) o livro fluiria melhor, mas não há dúvidas de que a obra de Barreto (que ainda participa do podcast Rapaduracast), ainda que não seja o grande livro nacional do gênero em 2013, é um bom livro – o que não deixa de ter seu mérito.
Veja abaixo um curta-metragem inspirado no prólogo de Filhos do Fim do Mundo, criado pela SOS Hollywood Films:
So this house is empty now There’s nothing I can do To make you want to stay So tell me how Am I supposed to live without you?
This House is Empty Now – de Elvis Costello e Burt Bacharach
O homem de cabelos claros, levemente avermelhados, aparência jovial, mas farto em gestos e expressões carregadas de uma maturidade muito acima da sua idade, era só um pouco mais alto do que eu. Aquele era Daniel Piza, diretamente dos livros, das impressões do jornal e da tela do computador para o auditório de um dos shoppings da capital piauiense. Bem, essa história não começa com “era uma vez” e nem com um “finalmente”. Ela começa em 2009 e se desenrola em Teresina, em março de 2011. Se ela vai ter um fim? Estou convicta de que não. Como sibilou a poetisa Emily Dickinson:“To see the Summer Sky/ Is Poetry, though never in a Book it lie/True Poems flee” (Ver o céu de verão é Poesia/embora nunca em um livro seja encontrada/Os verdadeiros poemas voam). Dito isso, vamos atender a ordem afetiva dos acontecimentos. Teresina, 18 de março de 2011. Sexta-feira, último dia antes do final de semana, o aclamado suspiro de alívio que tantos trabalhadores, estudantes e até mesmo os adeptos do “ócio refinado” esperam em polvorosa, contando nos dedos. No meio dessa expectativa, às 9 horas da manhã, eu recebi a notícia de que o jornalista Daniel Piza, então editor-executivo e colunista cultural do jornal O Estado de São Paulo, estaria em Teresina para uma palestra exclusiva promovida pelo Festival Artes de Março, evento que reúne música, literatura e exposições artísticas. Particularmente, aquele seria o momento mais especial da minha vivência jornalística e literária até então. O sujeito que estava vindo participar da programação cultural do festival não era apenas um nome de respeito da equipe Estadão, ou o autor de inúmeros livros que me fizeram passar noites acordada na ânsia de terminá-los para recomeçá-los novamente. O dia 18 de março de 2011 traria em ‘carne e osso’ minha grande inspiração nas águas ondulantes do Jornalismo Cultural; o homem que me proporcionou ver uma mudança nítida na forma de informar e partilhar cultura, fazendo com que o conhecimento associado à consciência saísse de um plano da inexistência típica dos que ficam em cima do muro, sem opinião, para um plano onde há coragem, há iniciativa. E isso não se esquece.
O modelo de inspiração começou a se formar no meu íntimo em março de 2009, dois anos antes e, ironicamente, no mesmo mês em que vi Daniel Piza pela primeira vez. Na época, quase um ano e meio depois de ter começado o curso de Jornalismo — um dos meus grandes projetos de vida -, eu estava às voltas com pesquisas bibliográficas e redação de um artigo sobre cultura, jornalismo, análise do discurso e exclusão social. Exatamente nesse período, uma das professoras da faculdade me entregou um livro fino, com uma imagem à moda antiga na capa e com o título de Jornalismo Cultural. Ao folhear distraidamente o livro para começar minhas anotações, não consegui mais parar. Devorei‑o em menos de 2 horas. Naquele momento, tive a certeza de que gostaria e deveria saber mais sobre o escritor que retomava tão bem os primórdios do Jornalismo Cultural e esboçava assuntos polêmicos, como a separação entre “alta cultura” e “baixa cultura” de forma lúcida, elegante, interessante. O autor? Um senhor de nome Daniel Luiz de Toledo Piza, nascido em São Paulo no ano de 1970 e formado em Direito pela tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Como o destino é terra de ninguém, Daniel deu asas à tendência jornalística que lhe perseguia e enveredou pelos cadernos de cultura do Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e Gazeta Mercantil, além de atuar como comentarista esportivo.
Coleção da Mara com títulos do autor
À época, para saber mais sobre o jornalista, fiz o que qualquer “indivíduo-máquina” do século XXI faria: dei uma “googleada” no nome Daniel Piza e descobri o blog pessoal do autor e inúmeras outras informações. Eu ainda não sabia, mas, ao executar essa procura, eu tinha encontrado o jornalista que viria a ser a minha maior inspiração desde então. Comecei a procurar livros, textos, artigos, ensaios, fragmentos, traduções. A lista é grande. Nos anos seguintes, adquiri os livros “Jornalismo Cultural” (editora Contexto), “Mistérios da Literatura – Poe, Machado, Conrad e Kafka” (editora Mauad), “Ora, bolas! – Da copa de 98 ao Penta” (editora Nova Alexandria), “Contemporâneo de Mim – Dez anos da coluna Sinopse” (editora Bertrand Brasil), “Noites Urbanas” (editora Bertrand Brasil), “Amazônia de Euclides” (editora LeYa) e “Dez Anos que Encolheram o Mundo” (editora LeYa). Apesar da pouca idade e cerca de vinte anos de carreira, Daniel escreveu e publicou dezessete livros, além de assinar traduções das obras de Bernard Shaw, Herman Melville e Henry James, nomes de peso da literatura mundial.
Tweet do jogador Ronaldo sobre a morte de Piza
Além de todas as láureas profissionais, Daniel Piza conseguiu o impossível: provocar minha curiosidade o suficiente para ler e pesquisar sobre futebol, esporte que está longe de alcançar qualquer inclinação da minha parte. Com títulos inusitados, que mais pareciam um anúncio para o Coliseu de Roma, o jornalista descrevia jogos, atletas, ambientes de competições e as tendências do momento. Através dos textos dele, eu soube, por exemplo, quem é Neymar, qual a importância real do Pelé (me desculpem os doutos na vida esportiva, mas devo confessar que não entendia nenhuma reverência ao Pelé até ler os escritos do Daniel) e por que alguns técnicos — e torcidas — são tão indigestos. Daniel era corintiano apaixonado e foi responsável por reportagens exclusivas, como o anúncio da aposentadoria do jogador Ronaldo, o Fenômeno, de quem era amigo. O jornalista, escritor e tradutor, filho da Dona Edith e do Sr. Heraldo Piza, e também, como ele mesmo gostava de se descrever, “casado com Renata Piza e pai de Letícia, Maria Clara e Bernardo”, segurava muitos leitores horas a fio na frente do computador, lendo e relendo (a releitura faz parte de um processo de aprendizado), artigos e matérias de conteúdo impecável, bem escrito e persuasivo. Todos os dias, às 7:15h da manhã, eu corria para o computador para me manter informada sobre as atualizações do blog que Daniel mantinha. No trabalho, em alguma folga, o esquema era o mesmo. Lembro de ter apertado F5 ( o que corresponde à operação de atualização) no teclado umas seis vezes em um só dia esperando novas postagens. Quando viajava ou me ausentava, procurava retomar as leituras perdidas e “subornar” com refrigerantes e doces caseiros o jornaleiro da banca que eu frequentava, para que ele guardasse pelo menos algumas edições do Estadão.
Daniel Piza e o fotógrafo Tiago Queiroz, em Sena Madureira (AC)
Até que, coincidentemente, em março de 2011, Daniel Piza aterrissou em solo piauiense pela primeira vez, com conferência marcada para 19h. Lá estava a minha oportunidade única – e por isso mesmo imperdível — de conferir o que o jornalista-referência dos meus textos e artigos tinha a dizer, agora presencialmente. Cheguei ao local com quatro horas de antecedência — sem necessidade, lógico — e fiquei flanando pela praça de alimentação e livraria. Às 18h, já estava na porta, observando o entra e sai de profissionais da imprensa e do colunismo social piauiense, todos querendo uma declaração, imagem ou gravação para seus respectivos veículos. Afinal, ali estava o autor de ensaios interessantes sobre literatura, onde um trabalho de pesquisa e a paixão o levaram a escrever a biografia de Machado de Assis.O fascínio pela união entre literatura e jornalismo o fez sair Amazônia a dentro para percorrer o caminho de Euclides da Cunha, ou ainda ter atrevimento e, acima de tudo, coragem, para dar opinião, apontar o dedo, dizer o que pensa com responsabilidade e conhecimento.
Ambiente de trabalho do Daniel Piza
Daniel Piza conseguia andar pelo futebol sem perna de pau, discorrer sobre política com certa passionalidade, mas com força argumentativa, e falar sobre música, literatura, artes plásticas e arquitetura, adentrando o universo cultural como ninguém. Assim, fica difícil mesmo não querer uma pontinha desse fenômeno, que muitos insistem em chamar de herdeiro de Paulo Francis, mas que agora, depois da maturidade que vem com leituras e reflexões, prefiro mencionar como protagonista de seu próprio legado.Enfim, entrei no local da palestra, sentando em uma das primeiras filas, à esquerda, e consegui ver Daniel Piza concedendo entrevistas, reconhecendo terreno e falando sobre cultura, cultura e mais cultura. Do meu lugar, observava as expressões e o tom de voz — baixo e explicativo –, imaginando também que tinha me enganado um pouco. Lembro de ter concluído que a televisão e a internet aumentam as pessoas. Daniel era um pouco mais alto do que eu e sua expressão corporal transmitia serenidade.
Daniel Piza e Mara Vanessa Torres
No final do evento, impulsionada por um amigo mentalmente estável – já que minha timidez me prendeu solo abaixo -, troquei algumas palavras com Daniel Piza. Meu diálogo foi repleto de palavras balbuciadas, recheadas de constrangimento. Desnecessário. Notando minha timidez, o biógrafo do grande Machado de Assis simplesmente disse: “Não tem problema. Eu também sou tímido”. Desse momento, apenas um registro feito com câmera de celular. Tímido, como todas as boas inspirações. Na manhã do dia 31 de dezembro de 2011, 9 meses depois da vinda de Daniel Piza à minha cidade, recebo um SMS trucidante às 8h da manhã, dizendo que Daniel tinha sido vítima de um AVC (acidente vascular cerebral). E com ele, lá se foi uma dose de saudade, de vasto conhecimento e de alguém que soube ser o máximo de encanto em uma vida de desencanto. Daniel Luiz de Toledo Piza vive hoje no coração daqueles que o amam, nas feições de seus três filhos, no legado de obras publicadas, inúmeros textos jornalísticos, artigos, opiniões, prefácios e nas homenagens constantemente prestadas. No dia 04 de julho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro inaugurou a Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, zona norte da cidade. A instituição de ensino fica situada em um bairro com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital fluminense, atendendo alunos do 6º ao 9º anos do ensino fundamental. Mesmo de longe, Daniel continua transformando, criando e observando o mundo através das palavras. Um gênio raro, constelação intelectual de primeira grandeza. Que ele continue fazendo por muitos outros, inclusive por todos vocês, o que fez por mim: abrir a consciência e despertar o entendimento para um mundo novo.
(…) Não deixar o desencanto tomar conta é o melhor presente.
Daniel Piza
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